Você está na página 1de 15

imagoMundi_Versão junho/2021

Volume 1
REFLEXÕES SOBRE O SER: O EU

Gurdjieff e o Quarto Caminho


George Ivanovitch Gurdjieff nasceu em Alexandropol, na Armênia, na fronteira com a Turquia,
mas que em sua época fazia parte do Império Russo. Não existe certeza sobre a data de seu
nascimento, sendo que seus biógrafos apontam como sendo mais provável o ano de 1872. Seu
pai era grego e sua mãe, armênia. Sua infância e juventude foram marcadas por contatos com
diversas formas de conhecimento e espiritualidade, uma vez que sua cidade natal era berço de
uma mistura bastante rica de tradições.

As primeiras influências em sua juventude vieram de seu próprio pai e de um padre que, durante
sua infância, assumiu pessoalmente sua educação. Nessa época, a família de Gurdjieff vivia em
Kars, uma cidade turca próxima à fronteira da Rússia, que havia sido tomada quando os russos
declararam guerra à Turquia.
Depois de sair da casa de seus pais, Gurdjieff mudou-se para Tiflis (mais tarde chamada de Tbilisi)
e, nesse período, começou suas viagens e estudos pelos centros religiosos e espirituais da época.
Junto de amigos próximos com quem empreendia tais viagens e buscas, encontrou referências
sobre Sarmoung1, uma Escola de Sabedoria que teria sido fundada na Babilônia, e resolveu
empreender uma viagem para o Kurdistão. Porém, eles decidem modificar sua rota ao encontrar
mapas antigos do Egito para ir para Alexandria e Cairo. Anos mais tarde, Gurdjieff retorna a
Alexandropol, organiza um grupo denominado de Buscadores da Verdade e, junto a seus
companheiros, empreende todo o tipo de estudo acerca do conhecimento espiritual. Dá-se
início então, uma outra série de viagens, durante as quais, ele teria encontrado a escola de
Sarmoung, onde permanece estudando por algum tempo.
Em 1908 Gurdjieff estabelece-se em Tashkent e começa a ensinar, mas é em Moscou, a partir
de 1912, que ele atrai os primeiros alunos que irão estudar suas ideias de forma mais profunda
e constante. Durante os anos seguintes, entre Moscou e São Petersburgo, Gurdjieff apresenta
seu sistema de ideias. É nesse mesmo período que ele conhece Thomas de Hartmann e sua
esposa Olga, além de Alexander e Jeanne de Salzmann. Os dois casais se tornam importantes
seguidores e continuadores de seu trabalho. Nessa época, Peter D. Ouspensky também se junta
ao seu grupo de alunos.

Nos anos de 1917 e 1918 Gurdjieff e seus grupo de estudantes são forçados a mudanças
constantes por causa da Revolução Russa. Por algum tempo eles se estabelecem em Yessentuki
para, então, rumarem para Tbilisi em 1919, em meio a plena guerra civil. Junto com Jeanne de
Salzmann e suas alunas, treinadas nas técnicas da Ginástica Rítmica de Jacques Dalcroze,
Gurdjieff faz suas primeiras apresentações de Danças Sagradas no Tbilisi Opera House. É nesse
ano também que ele funda o Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem. Ao

1 Gurdjieff, G.I. 1993. Encontro com homens notáveis. Pensamento, São Paulo.

1
imagoMundi_Versão junho/2021

mesmo tempo, a ênfase sobre o estudo das danças sagradas se intensifica no sentido da
montagem do balé A Luta dos Magos.
No ano seguinte, por causa de problemas sociais e políticos, ele ruma com alguns de seus
discípulos para Constantinopla, onde continua seu trabalho. Ouspensky, parte de
Constantinopla para Londres e, logo depois, Gurdjieff o segue, e é nesse período que ele
conhece A. R. Orage e J. G. Bennet, dois dos discípulos mais importantes de Ouspensky.
Posteriormente, Gurdjieff se separa novamente de Ouspensky, e vai para França. Orage e alguns
dos discípulos de Ouspenky se juntam a ele, e se estabelecem na Prieure em Fontainebleau-
Avon, em Paris.
É nessa fase, em Paris, que seu trabalho floresce completamente. Seus discípulos se unem a ele
no desenvolvimento do balé A Luta dos Magos e em seus estudos e exercícios. Em dezembro de
1923 ele faz a primeira apresentação no Teatro de Champs-Elysees. Em 1924, com 35 de seus
discípulos ele embarca para os EUA onde faz apresentações em Nova York e Filadélfia. Ao atrair
vários interessados, ele funda um novo ramo de seu Instituto em Nova York sob a direção de
Orage. É também em 1924, de volta a Paris, que ele sofre seu primeiro acidente sério de carro.
Em 1934, ele termina por fechar a Prieure, mas continua a ensinar, escrever e viajar para divulgar
suas ideias, tendo Paris ainda por base. Porém em 1948, Gurdjieff sofre um novo acidente de
carro, do qual se recupera apenas parcialmente, vindo a falecer em 29 de outubro de 1949, para
ser enterrado em Fontainebleau-Avon.
Alguns elementos fundamentais da tradição de Gurdjieff, o Quarto Caminho, podem ser
destacados. Ao conferir o nome de Quarto Caminho a seu método de trabalho, ele exemplifica
os três caminhos clássicos de desenvolvimento espiritual como aspectos parciais que refletiam
elementos culturais de cada tradição. Simplificadamente, o primeiro caminho é representado
pelo faquir, que trabalha sobre o corpo para atingir os graus de desenvolvimento do ser. O
segundo, está associado ao caminho do monge, da devoção e oração, e que trabalha sobre os
aspectos emocionais. O terceiro, seria o caminho do iogue, que Gurdjieff associa ao
desenvolvimento filosófico e, portanto, trabalharia sobre dimensões intelectuais. Essa
abordagem está presente em várias tradições espirituais e religiosas que focaram seus esforços
de forma preponderante em algum desses aspectos: corpo, mente ou emoção. Gurdjieff define
então o Quarto Caminho como uma forma harmoniosa de trabalhar integralmente sobre as três
esferas do ser, buscando expor seus alunos às mais diversas áreas de treinamento: religioso,
artístico, científico e filosófico.
Outro legado importante é a definição de que o caminho de crescimento pessoal é um processo
fundamentalmente prático2, buscado voluntariamente através de métodos e exercícios,
executados e discutidos em grupos3. Assim, o conhecimento gerado por todos os participantes
ao longo dos exercícios é compartilhado em grupo, de tal forma, que cada pessoa possa
aprender com todas as demais. Disso nasce uma noção de cumplicidade e amizade, onde o
crescimento é conjunto, o que estimula a participação responsável de todas as pessoas
envolvidas no processo. Estimula também o desenvolvimento de uma verdade compartilhada,

2 Webb, J. 1980. The Harmonius Circle: the lives and work of G. I. Gurdjieff, P. D. Ouspensky and their followers. G.
P. Putnam's Sons, New York.
3 Moore. J. 1991. Gurdjieff - a biography. Element, Iowa.

2
imagoMundi_Versão junho/2021

que nasce dos resultados obtidos nas práticas em conjunto e, portanto, é mais livre de dogmas
e crenças exteriores.
Além desse elemento central citado acima, o Quarto Caminho determina que o trabalho deve
ser empreendido na vida cotidiana. Assim, as dificuldade e distrações da vida são o campo de
teste onde cada indivíduo, buscando seu desenvolvimento, poderá encontrar os desafios
concretos que lhe mostram exatamente seu grau de compreensão, seu nível de ser e, portanto,
o quanto foi capaz de realizar o conhecimento a que teve acesso. A inserção desse trabalho, e
da própria escola, na vida social e cultural de sua época, exige a reflexão e a readaptação dos
modelos e práticas diante da própria expansão do conhecimento humano. Nesse sentido, sua
busca por Sarmoung, uma escola de sabedoria que possuísse um conhecimento preciso para o
desenvolvimento dos potenciais humanos, é emblemática. Se a escola foi de fato um local físico
que existia em seu tempo continua sendo objeto de discussão. Mas, Sarmoung indica
principalmente, uma tradição atemporal e não-local envolvendo homens e mulheres cuja
função é a de coletar, preservar, desenvolver e atualizar os conhecimentos espirituais mais
importantes para a humanidade. O próprio símbolo de Sarmoung refere-se a essa atitude: foi
escolhida uma abelha para simbolizar essa tradição, em uma referência direta ao trabalho de
coleta e proteção daquilo que seria o néctar da humanidade, ou seja, a sabedoria e o
conhecimento sobre si mesmo.
Aqui se encontra um aspecto fundamental do trabalho de Gurdjieff, que é o de adaptar e
atualizar o conhecimento universal disponível na época, ao seu lugar e momento. A realidade
social e cultural da virada do século XX testemunhou o surgimento da física quântica e o
desenvolvimento de diversas áreas do conhecimento impulsionadas pelo avanço científico, além
de uma profusão de teorias e linhas psicológicas que modificavam a própria noção da mente
humana e de sua consciência.
É diante de tal cenário que Gurdjieff faz uma de suas afirmações mais contundentes: a de que o
ser humano está dormindo4. O Quarto Caminho afirma que o ser humano vive imerso em uma
espécie de sono, preso às projeções de suas próprias fantasias, em um grau muito baixo de
consciência, que não contém um eu permanente5, e sim uma profusão de eus imersos em uma
personalidade caótica. O funcionamento básico do ser humano é fundamentado em padrões
estímulos-respostas fortemente mecânicos e condicionados, sobre os quais não se tem controle.
Para o ser humano que se encontra nesse estado de adormecimento não há liberdade e,
portanto, não há livre arbítrio. Ele afirma que tal “homem é incapaz de fazer”6, ou seja, no sono
tudo é reativo, tudo acontece de forma mecânica e praticamente inconsciente. Assim, o
trabalho de desenvolvimento da consciência exige esforço, ou seja, ele é antinatural, e a
responsabilidade por esse trabalho está repousado sobre os ombros de cada pessoa,
exclusivamente.
A visão dura e objetiva de Gurdjieff sobre a condição humana e a sociedade, no momento em
que a cultura e o avanço tecnológico faziam com que se sentissem no ápice de seu
desenvolvimento enquanto indivíduos livres, certamente não ajudou em sua popularidade, ou

4 Reyner, R.H. 1984. The Gurdjieff Inheritance. Turnstone, Manitoba.


5 Gurdjieff, G.I. 1991. Views from the Real World. Penguin Books, Londres.
6 Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pp. 157.

3
imagoMundi_Versão junho/2021

na popularidade de suas ideias. Apesar de renovar os modelos clássicos e utilizar uma linguagem
moderna aplicada a questões espirituais perenes, ele não fazia concessões em suas críticas ao
estado de adormecimento que é marca registrada da humanidade. Para ele, não houve um
progresso real na sociedade e sim um refinamento aparente, em termos das teorias e
discussões, que tentam explicar as atitudes ainda primitivas de uma humanidade adormecida.
Citando suas próprias palavras: "a civilização moderna é baseada em violência, escravidão e
palavras elegantes"7.
Ao refletir sobre a essência desse conhecimento perene em relação às novas visões de mundo
do começo do século XX, Gurdjieff renova a apresentação da realidade interna do ser humano,
discutindo os níveis de funcionamento da personalidade, os potenciais de desenvolvimento de
funções superioras do ser e da consciência, e insere cada etapa em um modelo cosmológico
que, finalmente, atualiza as visões astronômicas do universo8. Sua ênfase no aspecto prático do
trabalho sobre a atenção, e sua relação com a consciência e o estado desperto, a necessidade
de uma auto-observação dos conteúdos e processos internos da personalidade para
compreender a natureza do sono e do condicionamento, bem como a busca por uma sensação
de ser mais intrínseca ligada a uma fonte mais profunda e genuína de ser, permitem inúmeros
desenvolvimentos. Tais conteúdos e a aplicação de técnicas e práticas a partir dessas ideias,
tornam os princípios do Quarto Caminho uma base segura e eficaz para os primeiros passos do
desenvolvimento da consciência, permitindo o estudo e o conhecimento de si mesmo, ao longo
da vida do dia a dia, e abrindo espaço para o acesso a dimensões mais profundas de ser. De
qualquer forma, suas ideias permanecem extremamente relevantes, e sua compreensão da
natureza humana ainda pode servir de antídoto para abordagens cada vez mais distantes de
uma reflexão séria sobre o despertar da consciência. Suas abordagens são atuais, e representam
um ponto de partida consistente, pois proporcionam mais objetividade nas reflexões acerca dos
conceitos e processos de desenvolvimento do ser.
Porém, ainda que Gurdjieff cite as dimensões superioras de desenvolvimento do ser, os métodos
necessários para um trabalho prático nesse sentido não foram disponibilizados. Gurdjieff
renovou os modelos espirituais clássicos e reapresentou as dimensões superiores de ser e
consciência em conceitos como os Centros e os Corpos Superiores, situando-os dentro de seu
modelo cosmológico, o Raio de Criação9. Porém, não foram deixadas indicações claras e
métodos sobre como desenvolver tais níveis. Assim, fica sob responsabilidade dos grupos que o
sucederam, resgatar a essência desse conhecimento, e readaptar e compartilhar tais reflexões,
na esperança de manter vivos, os conhecimentos, métodos e processos visando o pleno
desenvolvimento do ser humano e de sua consciência. E é dentro desse contexto que se insere
o trabalho da escola ImagoMundi, que busca resgatar a essência desses conhecimentos. Em suas
décadas de atuação, procura compartilhar as reflexões, métodos e processos sintetizados, na
esperança de fornecer uma pequena contribuição para a preservação dos ideais que revelam os
potenciais de consciência presentes no ser humano.

7 Gurdjieff, G.I. 2012. In search of being. Shambala, Boston / Londres, pp. 22.
8 Gurdjieff, G.I. 1991. Views from the Real World. Penguin Books, Londres.
9
Gurdjieff, G.I. 1991. Beelzebub's tales to his grandson. E.P.Dutton, New York.

4
imagoMundi_Versão junho/2021

CAPÍTULO I: A NOÇÃO DE EU

Conceitos iniciais
A experiência que cada um tem de sua própria identidade é bastante pessoal e subjetiva. Ela é
fruto de relações muito sofisticadas entre a memória, as experiências vividas, a biografia e o
contexto cultural, e é organizada no cérebro de uma forma complexa e ainda não totalmente
compreendida. Assim, a noção de identidade tem dado origem a debates e discussões
importantes em diversos ramos do conhecimento humano ao longo da história.
A identidade é representada aqui como sendo aquilo que cada um sente ser, ou seja, a sensação
mais pessoal e interna que cada um tem de si mesmo ou de seu próprio eu. Mas os elementos
a partir dos quais cada pessoa define a si mesma diferem enormemente e várias tradições e
modelos - sejam eles religiosos, espirituais, filosóficos ou científicos - exploraram diferentes
aspectos da experiência humana, na busca por respostas sobre o que cada um é e o que
fundamenta a noção pessoal de eu.
Algumas das tradições que buscaram explorar os limites do desenvolvimento do ser e da
consciência, reconhecem e estabelecem a existência de duas dimensões presentes no ser
humano. Gurdjieff, diante do avanço do conhecimento de sua época, definiu essas duas
estruturas como sendo a essência e a personalidade. Segundo esse autor, a essência seria um
elemento inato, que representa a verdadeira natureza humana, constituindo a expressão mais
profunda e genuína de cada indivíduo. Por outro lado, a personalidade seria uma estrutura
formada durante o crescimento e, portanto, seria fruto de aprendizado, sendo constituída por
elementos externos adquiridos no tempo. Nas palavras do próprio Gurdjieff: “[...] o homem é
constituído de duas partes: essência e personalidade. A essência no homem é o que lhe
pertence. A personalidade no homem é o que não lhe pertence. O que não lhe pertence significa:
o que lhe vem de fora, o que aprendeu ou que reflete.”10
Porém, o termo essência é utilizado no presente texto de forma diferente da utilizada pelo
Quarto Caminho, em consonância com outros pensadores que sugerem a existência de uma
unidade primordial11 presente em todos os elementos da criação. Assim, a escola ImagoMundi
define essência dentro dessa linha de pensamento, e não como um aspecto estritamente
pessoal. Por essa razão, algumas definições preliminares serão feitas a seguir, visando esclarecer
o conceito de essência no contexto que será apresentado ao longo do presente volume.

Além disso, outro elemento igualmente importante a ser inserido na presente reflexão é a
consciência, pois o sentimento de individualidade inerente à experiência humana tem relação
direta com as capacidades da consciência. Assim, a essência, o ser, a personalidade e a
consciência são os protagonistas nesse drama onde a identidade é forjada. São as capacidades
de consciência de cada indivíduo que lhe conferem uma sensação de eu que está baseada em

10Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pp. 188.
11Diversos autores sugeriram a existência de uma unidade que permeia o universo, desde os filósofos pré e pós-
socráticos, até representantes mais atuais da filosofia, tais como Baruch Spinoza, Gottfried Wilhelm Leibniz, Arthur
Schopenhauer e Bertrand Russell. Uma revisão atual sobre esse tema afirma que “o mundo tem partes, mas as partes
são fragmentos dependentes de uma totalidade”. Schaffer, J. 2010. Monism: The Priority of the Whole. Philosophical
Review 119, 31–76 (citação na pp. 33).

5
imagoMundi_Versão junho/2021

uma individualidade pessoal. Por ser fruto direto da consciência, o ser possui gradações e pode
se desenvolver de tal forma a expandir em muito a noção de individualidade. E este é o campo
de desenvolvimento sobre o qual várias escolas e professores atuaram, e é sobre ele que o
presente texto irá discorrer.

A essência e o ser
Como já citado, a ideia de uma unidade que permeia todo o universo tem um longo histórico
em debates espirituais e filosóficos. Essa substância primordial de toda a existência não seria
exatamente o ser individualizado, mas aquilo que o determina12, e é através dela que o cada
elemento existente se manifesta e se expressa. Assim, ainda que tais manifestações do ser sejam
múltiplas em sua expressão no universo, sua essência permanece una, universal e
indiferenciada13,14. E é nesse sentido que a palavra essência é utilizada aqui. Essa visão difere,
como citado acima, da utilização que Gurdjieff faz do termo essência para designar a dimensão
mais profunda e genuína daquilo que cada ser humano é, em contraposição com os elementos
aprendidos da personalidade que irão constituir um sentimento ilusório de identidade, ou um
Falso Eu15. A compatibilização de tais definições se dá na apresentação de certos autores de que
cada ser é o reflexo do próprio universo, o microcosmo que espelha o macrocosmo16.
Assim, a partícula essencial presente no ser humano é considerada aqui como expressão da
própria essência universal e, por esse mesmo motivo, ela se torna a fonte do sentimento de ser
e de existência mais basal e fundamental possível ao ser humano. É possível então reconhecer
a existência de um núcleo de sentimento primordial e, portanto, essencial, que marca a própria
individualidade em seu contato com a essência. Como se o primeiro lampejo de consciência
potencial que surge no ser humano, e que define sua individualidade, tivesse como primeiro
registro a própria essência, em uma experiência unitiva e indiferenciada.

12 “[...] a questão é o ser - aquilo que determina que as coisas sejam o que são [...[. O ser dos seres ‘não é’ em si
mesmo um ser. O primeiro passo filosófico na compreensão do ser consiste em não ‘contar uma história’, ou seja, em
não determinar a proveniência das coisas recorrendo a outra coisa, isto é, como se o ser tivesse o caráter de algum
ser determinado.” (tradução dos autores). Heidegger, M. 1996. Time and Being. State University of New York, New
York, pp. 4-5.
13 Ibn Arabi discute a essência em um contexto místico considerando-a como sendo universal, una e indiferenciada,

e relacionando-a com a ideia de uma substância primordial. “Por Obscuridade Divina (al-ama) nos referimos à
Realidade das Realidades, que não pode ser qualificada como ‘divindade’ ou ‘criatura’, sendo pura essência, sem
conexão com nenhum grau, divino ou criado, não sendo possível atribuir a ela, qualidade ou nome” (tradução livre
dos autores). Em: Jili, A.K. 1995. Universal Man. Beshara, Oak Park, pp. 34. Ademais, o conceito de al-ama está ligado
também ao termo hayula, derivado do hylé grego, a matriz primordial imaterial. Na tradição platônica e neoplatônica,
com traços filosóficos mais fortes e com menos influência religiosa, tais conceitos estão associados à unidade
preexistente do ser, que permanece como a base na qual toda a existência se manifesta.
14 A visão mística desse conceito é também apresentada por Baruch Spinoza. “Pois Deus é chamado onisciente

justamente porque tem ideia de si mesmo, ideia ou conhecimento que sempre existiu simultaneamente com Deus,
porque nada existe fora de sua essência, nem poderia existir de outra maneira”. Spinoza, B. 2015. Princípios da
filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos, Autêntica, Belo Horizonte, pp.44-45
15 “[...] todos esses aspectos de si mesmo que não apresentam nenhuma utilidade do ponto de vista de seu

crescimento interior ou a ele se opõem [..] são, antes de tudo, seu falso eu”. Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de
um ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pp. 252.
16 Essa ideia é encontrada em uma das frases da Tábua Esmeralda, um texto que, embora seja atribuído à lendária

figura de Hermes Trismegistus, apareceu pela primeira vez em fontes árabes medievais. A versão mais antiga desse
texto data do final do século VIII. No original, traduzido do latim, a frase diz “aquilo que está acima é como o que está
abaixo, e o que está abaixo é como o que está acima”. Scott, W. 1993. Hermetica. Shambala, Berkeley.

6
imagoMundi_Versão junho/2021

Neste mesmo contexto, o ser é discutido do ponto de vista filosófico, e é dentro do núcleo da
experiência essencial que reside sua expressão mais primordial, em sua própria manifestação
como uma individualidade. Essa sensação essencial do ser seria o elemento mais central e
permanente de cada indivíduo, que independe de qualificações ou de aspectos históricos ou
biográficos. Ela é o ponto de partida para todos os processos de expansão da consciência, em
direção às expressões infinitas possíveis ao ser. Assim, o ser que se manifesta em toda sua
plenitude em diversos níveis de expressão é o mesmo ser que está presente em cada indivíduo,
que através da consciência pode expandir-se manifestando os potenciais essenciais infinitos, e
assim realizando a plenitude de suas próprias expressões.
A essência tem relação com uma sensação de ser que é mais central e permanente, e que
independe de qualificações ou de aspectos históricos ou biográficos. Ela pode ser entendida
como uma ação de ser e existir, e não como um substantivo (um nome atribuído), indicando
assim uma ação que se estende no tempo, e não uma coisa ou algo. Os contatos mais iniciais
com a essência podem ser descritos como um estado mais centrado, atento, silencioso, onde se
está ciente do que está acontecendo no momento presente. A experiência de passagem do
tempo parece desaparecer, e a pessoa se sente conectada a algo que pode ser definido como
eternidade. É um estado onde a sensação de si mesmo é mais ampla, livre de reações ou de
respostas internas ao que está acontecendo ao redor. Por não se associar a definições
(substantivos) ela é livre de qualquer necessidade de restringir sua existência a algo; ao
contrário, ela é o próprio fluxo da existência que se manifesta no momento presente. É neste
contexto que se discute filosoficamente o ser como aquele que simplesmente é (um verbo, uma
ação, e não uma coisa), sem que haja nenhum outro condicionante à sua existência. Ela é
representada como sendo uma pura ação de existir, sem nenhuma qualificação que lhe seja
necessária. Nesse sentido, a essência consiste em um universal, já que tudo o que existe
compartilha desse mesmo elemento. Assim, não faz sentido considerar a essência como algo
individual ou pessoal.
Em termos individuais e pessoais, é necessário entender as discussões acima considerando-se o
próprio processo de desenvolvimento de cada indivíduo. No nascimento e nos primeiros anos
de vida, o bebê ainda não apresenta uma identidade pessoal ou uma noção individualizada de
si mesmo. De certa forma, é como se ele permanecesse imerso em uma experiência puramente
essencial que é ainda oceânica ou universal. Ele é ainda incapaz de sentir a si mesmo como uma
individualidade, já que não existem estruturas de consciência suficientemente formadas nesses
estágios primitivos de desenvolvimento. Porém, com o crescimento e o desenvolvimento da
consciência e das relações entre a criança e seu meio ambiente, começará a haver uma
diferenciação. Dá-se o surgimento de uma consciência de si ainda muito primitiva, mas que já é
suficiente para que a criança seja capaz de estabelecer um limite entre o que ela é, e o que é a
realidade. Esse processo, obviamente, é natural e necessário, e implica no desenvolvimento de
uma noção de eu ou de individualidade.
Com o fortalecimento dessa identidade baseada em um eu individualizado, aos poucos, ocorre
um distanciamento crescente dos estados essenciais, a tal ponto que, tais estados ocorrerão
apenas em momentos especiais, quando se está em condições externas e internas muito ideais.
Por exemplo, o indivíduo pode ter acessos a tais estados essenciais quando em contato com a

7
imagoMundi_Versão junho/2021

natureza, em momentos de contemplação em lugares especiais, ou em estados atingidos


através de técnicas meditativas, que podem reconduzir a uma sensação de integração do
indivíduo com tudo o que está ao seu redor. Nesse estado, o tempo parece que para e há uma
fusão com o momento presente; o fluxo de pensamento cessa, a emoção se neutraliza e
aprofunda, e tudo parece estar em harmonia. O indivíduo acessa um estado puro de existência,
de ser. Geralmente, esses estados são dependentes do acaso e são fugazes, pois desaparecem
quando a pessoa submerge novamente em sua rotina. Como o contato com a sensação básica e
universal de simplesmente ser é perdida com o amadurecimento, tal experiência permanece
restrita a um estado muito básico, quase infantil. No entanto, as experiências dos estados
essenciais podem se tornar muito amplas e sofisticadas17; mas, para isso é necessário um
trabalho intenso feito de forma consciente e voluntária, que permitirá compreender e vivenciar
o ser com uma profundidade que é transformadora.
Porém, para se compreender o processo citado acima, em que ocorre a separação e
distanciamento do núcleo essencial de sentimento de ser, é útil analisar o desenvolvimento
natural da personalidade e do ego, e como esse desenvolvimento se associa à formação gradual
da identidade.

Personalidade e Ego
Concomitante ao surgimento de um eu individualizado, dá-se início ao desenvolvimento do que
é chamado aqui de personalidade. Essa faceta do eu surge aos poucos, a partir da interação da
criança com seu meio. A personalidade fundamenta-se numa série de aprendizados e
experiências que, com o tempo, de forma cumulativa, vão se cristalizando à medida que o
indivíduo atinge sua fase adulta. Em si, esse tipo de desenvolvimento não seria um problema, já
que a capacidade de aprender e voltar a realizar as mesmas tarefas de forma rápida é uma
vantagem sem precedentes, que traz eficiência e prontidão nas respostas. Porém, isso acontece
em detrimento da consciência. Ou seja, no momento em que se repete condicionadamente as
tarefas do dia a dia, a consciência acaba não sendo mais requisitada e essas repetições acabam
acontecendo de forma automática e quase inconsciente. Essa é justamente a característica
central da personalidade, que no contexto aqui presente, se refere a um conjunto de reações
habituais e condicionadas que, com a repetição, tornam-se mecânicas e inconscientes. Essas
reações são amplas e complexas e envolvem visões de mundo, formas de pensamento, ideias,
convicções e também, padrões emocionais reativos diante dos eventos.
Como a consciência é pouco solicitada, a pessoa, conforme vai ingressando na vida adulta, vai
mergulhando no que é chamado de estado de adormecimento, onde muito raramente ela está
de fato consciente de si e do que está acontecendo ao seu redor. Quando a pessoa atinge a
maturidade - o ponto onde sua personalidade está plenamente desenvolvida - ela atinge
também o ponto máximo de adormecimento, e assim, ela acaba não desenvolvendo todas as
suas capacidades plenas de consciência. Nesse ponto, a sensação primordial e essencial de ser
é substituída por uma noção de eu semiconsciente, particularizado, e fundamentalmente
baseado na personalidade. Assim, com o tempo, a sensação de identidade que o indivíduo

17 Reflexões sobre o Ser. Volume 2: Modelos de Consciência. ImagoMundi, São Paulo.

8
imagoMundi_Versão junho/2021

apresenta, passa a estar associada com os conteúdos da personalidade, sua autoimagem,


fantasias e os papeis que ela atua diante das situações corriqueiras. Nesse contexto, o ego é aqui
definido como a fonte instintiva de onde brota o sentimento de um eu individualizado, baseado
na personalidade e na semiconsciência. Ele se condensa à medida que o núcleo de sentimento
de ser individualizado se desconecta da essência, e gradualmente, se confunde, ou se identifica,
com os elementos que foram aprendidos durante o crescimento. A intensidade da
identificação18, ou seja, a associação rígida que se estabelece do sentimento de eu com as
estruturas da personalidade, é uma das características do que está sendo chamado aqui de ego.
A identidade forjada ao longo do processo natural de desenvolvimento é referida, como citado
acima, como sendo um falso eu. Esse falso eu, constituído por um conjunto de hábitos
mecânicos associados com um padrão muito básico de consciência (ou adormecimento)
constitui, na maioria dos casos, a sensação básica de identidade para as pessoas que atingem a
idade adulta.

Uma das consequências associadas ao processo de formação do falso eu, consiste na dificuldade
em se estabelecer um contato objetivo com a realidade. Afinal, nesse ponto, a relação que cada
indivíduo estabelece consigo mesmo e com o meio tem como base as forças de identificação do
ego e os padrões inconscientes e repetitivos característicos da personalidade. Assim, a forma
como se percebe a realidade passa a ser tingida pelas representações internas baseadas em
visões de mundo, experiências anteriores, e padrões emocionais cristalizados que estão
fundamentados no falso eu. Disso nasce a noção de que a realidade acaba sendo um espelho do
que cada um é. Quanto mais predominante for tal estrutura de identidade, menor será a
capacidade de se interagir com as coisas como elas de fato são. Mesmo que se queira mudar
certas atitudes, visões ou padrões emocionais dessas relações entre si e a realidade, a pessoa se
vê aprisionada a elas, o que gera frustração e sensação de ausência de controle ou de liberdade.
Como consequência dessa limitação, o contato com o momento presente é perdido e fica-se
aprisionado a uma perspectiva muito restrita e enviesada da realidade. As estruturas da
personalidade passam então, a ser os elementos que moldam a forma como cada indivíduo
sente sua própria identidade e, ao mesmo tempo, moldam as perspectivas com as quais cada
um contempla a vida.
As estruturas que compõem a personalidade são complexas e muitas vezes, se apresentam
como se fossem pseudo-identidades fragmentárias, ou personagens que se substituem
dependendo do contexto externo. Por exemplo, em uma situação de estresse, a pessoa pode
assumir uma identidade passageira radicalmente diferente da identidade assumida em uma
situação em que tudo está tranquilo. Ou ainda, uma decisão tomada fervorosamente diante de
uma situação qualquer, pode desaparecer por completo quando o contexto muda. Assim, o
Quarto Caminho sugere que o falso eu é formado por Múltiplos Eus19,20, identidades temporárias

18 Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pp. 175
e seguintes.
19 “O homem não tem um ‘Eu’ individual. Em seu lugar há centenas de milhares de ‘eus’ separados [...]. A cada minuto,

a cada momento, o homem diz ‘Eu’. E a cada vez seu ‘eu’ é diferente.” Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um
ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pp. 78.
20 “[...] o homem deve saber que ele não é um, mas múltiplo. Não tem um Eu único, permanente e imutável. Muda

continuamente.” Ouspensky, P.D. 1981. Psicologia da evolução possível ao homem. Pensamento, São Paulo, pp. 9.

9
imagoMundi_Versão junho/2021

e personagens que se sucedem ao acaso, dando uma falsa impressão de continuidade da


identidade. Mas, na verdade, essas estruturas da psique mascaram o fato de que inexiste um eu
estrutural que seja central, permanente, conectado com um núcleo de sentimento essencial,
em que a sensação de identidade permanece imutável, independentemente das condições do
meio externo.
Portanto, ao longo da maturidade, quanto mais o indivíduo se identifica com tais estruturas,
mais ele perde contato com as experiências universais que se originam do estado essencial.
Além disso, o desenvolvimento de uma noção mais profunda de um eu pessoal e individual
também cessa e mais distante fica a possibilidade de percepção da realidade fora das
representações que o falso eu projeta sobre ela. Para se reverter esse processo, é necessário
compreender o papel que a consciência tem para o ser humano.

A Consciência e o eu
Como analisado acima, sem a expressão da consciência, um sentido pessoal de individualidade
poderia talvez nunca surgir. Mesmo em outras espécies animais, o sentimento de
individualidade - em diferentes níveis de acordo com cada espécie - está ligado a algum grau de
consciência capaz de gerar uma percepção pessoal que o distinga do ambiente e dos demais
seres. Porém, a complexidade da mente humana confere à consciência uma gama imensa de
possibilidades que irão definir as formas da identidade de cada indivíduo. É por essa razão que
a consciência constitui o elemento principal que define a origem da pergunta fundamental sobre
o que é o eu, e também a natureza da resposta.
De acordo com o modelo apresentado acima, postula-se que um núcleo de ser surge e se
diferencia da essência à medida que os primeiros níveis de consciência se expressam, pois, é a
ela que se vincula o sentimento de identidade, ainda que muito tênue, nas primeiras fases de
crescimento. Ainda assim, o contato desse sentimento de ser, que desperta junto com a
consciência, é marcado pela experiência oceânica e universal já citada, e esta será a base
essencial e original a qual o ser irá se referir. A partir desse ponto, gradualmente se desenrola a
formação da personalidade e, gradualmente, sob a influência do ego, o sentimento de eu se
desloca da experiência essencial para formar um sentimento de identidade vinculado aos
conteúdos aprendidos. Esse processo natural se estabelece pelo baixo grau de consciência inata
do ser humano, que fica à mercê dos aprendizados e condicionamentos, fazendo com que a sua
identidade seja um subproduto de forças inconscientes e não a protagonista de uma história.
Ainda assim, mesmo essa expressão basal da consciência é capaz de manter um sentimento de
individualidade que irá se configurar no falso eu, conferindo uma sensação de continuidade da
identidade conforme os múltiplos eus se alternam.
Assim, forma-se um vínculo entre a consciência e o sentimento de individualidade para então
reconhecer como a identidade é formatada pelos elementos e condicionamentos aprendidos
pela personalidade. O sentimento basal de identidade e o baixo grau de consciência, para a
maioria das pessoas, servirão de base para a fundamentação do eu, sem gerar questionamentos
profundos sobre o sentimento central de identidade, mesmo diante de crises.

10
imagoMundi_Versão junho/2021

Porém, algumas pessoas irão se deparar durante a vida com questionamentos muito profundos
acerca de sua própria identidade. Esse questionamento, inicialmente, pode adotar o formato de
um sentimento difuso, onde algo dentro delas se pergunta: quem sou eu? Porém, para que esse
tipo de sentimento surja, uma esfera interna deve despertar e gerar essa dúvida. Ou seja, algum
aspecto de si mesmo deve romper sua identificação, mesmo que momentaneamente, e
dissociar seu sentimento de ser da identidade estruturada no falso eu. Mas, devido ao baixo
grau de consciência natural, nem sempre é possível diferenciar os conteúdos que estruturam a
personalidade, e nem se desassociar facilmente da força do ego, que foi forjado ao longo do
crescimento. Assim, para que seja possível expandir a experiência acerca do próprio eu e de seus
limites, o primeiro passo consiste em, através de um esforço volitivo, expandir a consciência,
libertando-a de seus níveis mais basais.
É por essa razão que esses níveis mais básicos da consciência são relacionados com o sono, como
uma forma de inconsciência, conforme já foi discutido, pois esses níveis são mantidos sem
qualquer volição, sem qualquer poder de decisão do indivíduo. Esse é o sentido do estado de
adormecimento, citado por Gurdjieff21 e associado à condição natural do ser humano. Nessa
perspectiva, cada indivíduo está dormindo; sua consciência está praticamente ausente, e ele
vive uma fantasia projetada internamente, a partir de conteúdos aprendidos, e baseada em
repetições de estímulos-respostas fundamentadas nos múltiplos eus e em seus padrões
emocionais e mentais.
No presente contexto, e visando os propósitos práticos de desenvolvimento almejados aqui, a
consciência é então definida como a capacidade de se estar ciente das coisas, estando, ao
mesmo tempo, ciente de si mesmo. Assim, a ciência que se tem de si pode estar fundamentada
em processos quase inconscientes, ou ser fruto de uma ação consciente e volitiva de cada
indivíduo. Colocando de outra forma, a diferença no grau de consciência afetará profundamente
a noção que se tem do próprio eu, ou seja, de si mesmo. Assim, vários desenvolvimentos em
termos da consciência humana são possíveis e foi sugerido por diversos autores e escolas que
tais gradações, em termos de uma consciência mais ampla, estão também associadas às
gradações da experiência do eu22. Para alguns autores, a experiência do eu pode ser expandida
em muitos níveis23, desde que, os níveis de consciência associados sejam também
desenvolvidos.
No processo, os estados que envolvem a sensação de identidade que se descola do falso eu e a
experiência de uma existência essencial confluem para um mesmo ponto. Isto confere uma
experiência de identidade que é bastante abrangente e a pessoa está plenamente consciente
de si mesma e do mundo ao seu redor. Sua sensação de ser, ou sua identidade, não mais está à

21 Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. 9ª edição. Pensamento, São Paulo, pgs. 166
e seguintes.
22 Dentro do sufismo, por exemplo, o modelo dos nafs (termo árabe para designar eu, self ou alma) descreve sete

níveis de ser, em que cada um deles representa uma ampliação da própria noção de eu. Para detalhes sobre nafs,
consultar Reflexões sobre o Ser. Volume 2. Modelos de consciência. ImagoMundi, São Paulo.
23 Alguns autores sugerem que os modelos cosmológicos de tradições antigas eram mapas representativos para esse

caminho de expansão do ser e da consciência, indicando assim que, cada nível de realidade está associado a um nível
de ser. Ver por exemplo, Sohravardi Y.S. Strophes liturgiques et offices divins. In: Corbin, H. 1976. L’Archange
Empourpré. Fayard, Paris, pp. 471-512.

11
imagoMundi_Versão junho/2021

mercê do acaso e dos eventos rotineiros. Ao contrário, ela permanece como um pano de fundo
mais estável e livre, que confere um novo significado aos eventos vividos ao longo do dia a dia.
Vale notar que Gurdjieff, assim como diversas outras escolas e tradições, citava que o Trabalho
deve ser feito na vida24. Assim, a vida do dia a dia deve representar também um meio para o
aprendizado. Experiências dentro do dia a dia podem oferecer infinitas oportunidades para que
as metas de mudança de perspectiva em termos de identidade sejam atingidas e consolidadas.
Por outro lado, é importante também compreender que a pessoa deve, necessariamente,
alterar gradativamente sua forma de viver o dia a dia, consolidando estados mais permanentes.
Ou seja, o objetivo é alcançar uma profunda alteração na presença que cada pessoa exerce
dentro do mundo, na sua rotina do dia a dia, possibilitando uma nova forma de viver, interagir
e saborear a realidade.

Processo de desenvolvimento
O processo que conduz cada indivíduo até sua maturidade, em que sensação de identidade se
vincula aos conteúdos da personalidade ou falso eu, constitui a primeira parte do diagrama
abaixo (Figura 1), representado do lado direito, que sintetiza o arco do crescimento. Esse arco
mostra a fase de desenvolvimento que se inicia no nascimento do indivíduo onde o sentimento
essencial, oceânico e universal predomina, já que ainda não há a estruturação da consciência de
si. Aos poucos, com o surgimento da consciência e de uma noção de eu, a personalidade se
estrutura e o ego exerce sua força, até que na vida adulta o indivíduo perde o contato com o
núcleo essencial de seu sentimento de ser ao restringir sua identidade às expressões do falso
eu. Assim, sua interação consigo mesmo e com a realidade passa a ser regida por
condicionamentos e por padrões emocionais e mentais da personalidade.

24 “O Quarto Caminho não pede que uma pessoa se retire do mundo, não exige que abandone tudo aquilo de que
tinha vivido até então.” Ouspensky P.D. 1993. Fragmentos de um ensinamento desconhecido. 9ª edição.
Pensamento, São Paulo, pp. 66.

12
imagoMundi_Versão junho/2021

Figura 1. Diagrama representando o desenvolvimento da identidade

Através de um trabalho ativo, novos desenvolvimentos da sensação de si mesmo se tornam


possíveis. Isso está representado no lado esquerdo da Figura 1, através do arco do
desenvolvimento de uma identidade que passa a estar consciente de si mesma. Porém, em
primeiro lugar, deve-se considerar que a mudança não acontecerá exatamente apenas em
detrimento do descolamento das estruturas do falso eu, mas também, restabelecendo a
sensação de ser vinculada aos estados essenciais. Através desse processo, a pessoa desenvolve
uma identidade mais permanente, que já não está mais ao sabor das reações mecânicas e
inconscientes da personalidade. Ela já não mais está fragmentada nos múltiplos eus que, de
forma quase inconsciente, se alternam em termos de humores, desejos e necessidades, e em
reações mecânicas frente aos eventos do dia a dia. Essa nova forma de identidade, aos poucos,
torna-se mais consistente, profunda e permanente, livre da reatividade mecânica.
Como citado acima, o desenvolvimento do ser não consiste apenas, em resgatar o contato com
a essência. A experiência desse elemento universal presente em tudo o que existe,
praticamente, cessa na infância em um período em que ainda há pouca consciência desses
estados. Na vida adulta, as experiências de estados essenciais se resumem a sensações muito
básicas e elementares, que envolvem um sentimento de integração com tudo ao redor, um
silêncio interno mais profundo, e como já citado, esses estados aparecerão por acaso,
dependendo de condições fortuitas do momento, e desaparecerão quando tais condições
mudarem.
Assim, é necessário que nos estágios iniciais de desenvolvimento da consciência, a sensação de
ser baseada na essência seja resgatada e estendida ao longo do tempo, independentemente das
condições externas. Uma vez que se torne mais fácil acessar um estado essencial de
simplesmente ser, aos poucos, é necessário reconhecer esse sentimento como a verdadeira

13
imagoMundi_Versão junho/2021

fonte de sua sensação de existência e torná-lo a base para a exploração dos diversos níveis e
dimensões de ser, possíveis à consciência humana.
O desenvolvimento dos níveis de ser e a expansão dos graus consciência25 visam libertar o ser
humano dos limites do falso eu, em direção a plenitude de seu próprio ser. Como já foi citado
acima, esses níveis não são totalmente desenvolvidos ao longo da vida comum devido,
principalmente, às mecanicidades e condicionamentos da vida adormecida, e à preponderância
da personalidade e seu modo de atuação praticamente inconsciente. Assim, é necessário que
haja um conjunto de técnicas que busquem, em primeiro lugar, conscientizar o indivíduo do
modo de funcionamento e da natureza do falso eu. Em seguida, o trabalho visa libertar a pessoa
dessa ilusão permanente, visando atingir a plenitude inerente à identidade possível ao ser
humano.
Através de uma sequência didática de técnicas que visam tornar a experiência de todos os níveis
de consciência possível ao ser humano, pode-se atingir uma experiência profunda de uma nova
sensação de identidade. Nos níveis superiores, a ilusão de um eu separado e individualizado vai
aos poucos sendo substituída por uma experiência de integração, onde o indivíduo sente-se
fazendo parte de um todo que o contém e justifica. Nesse ponto, a identidade individual está
agora totalmente unida à essencial, de forma harmônica e profunda. A pessoa nesse estado é
perfeitamente capaz de responder às demandas comuns da vida rotineira, mas ao mesmo
tempo, ela está imersa numa realidade nova. Assim, como já citado anteriormente, essa nova
sensação de ser confere uma nova capacidade de perceber a realidade.
O trabalho ativo que busca resgatar os estados essenciais do ser e, ao mesmo tempo,
desenvolver a consciência e as gradações do eu têm início no ponto mais inferior do diagrama
apresentado acima (Figura 1) apenas se houver um esforço voluntário nesse sentido. Do
contrário, essas capacidades permanecerão apenas como potencialidades não desenvolvidas.
Se esse trabalho for feito, a identidade, ao invés de ser restringida pelos conteúdos
condicionados e inconscientes do falso eu, será definida pelo nível de ser que a consciência for
capaz de contemplar, realizar e expressar. Assim, no final do processo, os aspectos essenciais do
ser e as capacidades da consciência humana terão sido desenvolvidos em toda sua plenitude, e
o indivíduo em questão será profundamente consciente de si mesmo - e de todas as dimensões
que o ser abarca - e da realidade ao seu redor.

A totalidade do ser
Uma das potencialidades que o ser humano apresenta consiste justamente em desenvolver suas
capacidades de consciência para permitir que o ser possa expressar-se em sua totalidade. Pois,
na vida adormecida, a essência universal permanece oculta de si mesma, de tal forma que, sua
real abrangência permanece incessível. Cada vez que alguém confunde a si mesmo com os
papeis que são representados no dia a dia, com as máscaras que são usadas frente às várias
situações da realidade, com o estado de sono-acordado, com suas emoções e pensamentos
reativos, esse alguém impedirá a plena expressão do ser em sua totalidade. Como já pontuado

25
Ver Reflexões sobre o Ser. Volume 2: Modelos da Consciência. ImagoMundi, São Paulo.

14
imagoMundi_Versão junho/2021

acima, todos os elementos que constituem o falso eu, apenas impedem cada indivíduo de
contemplar dentro de si sua verdadeira dimensão infinita.
A essência, devido a suas características universais, apresenta como um de seus atributos, a
qualidade da unidade, ou seja, ela é sempre única e indivisível, e tudo o que existe compartilha
desse mesmo elemento. No entanto, é preciso que fique claro, que essa qualidade de ser una
obrigatoriamente engloba e justifica cada elemento existente, que manifestará certas
particularidades que lhe são próprias. Assim, o acesso à unidade a partir da individualidade é
algo possível a cada ser, desde que ele se desenvolva até atingir todas as gradações da
consciência que lhe são inerentes. No caso do ser humano, seus graus de consciência podem
abarcar níveis cada vez mais amplos, de forma a revelar uma individualidade que engloba uma
experiência muito profunda de ser.
Nesse ponto, a individualidade é justificada pela unidade, e o homem ou a mulher em questão
já não mais se sentem como algo isolado. Ele/ela é uma partícula que participa dessa unidade,
em perfeita integração. Nesse ponto, a experiência que cada partícula deverá possibilitar ao ser,
será sempre única e preciosa, uma singularidade perfeita, sem igual em nenhum outro ponto do
Universo. É como se cada elemento fosse um pequeno espelho, capaz de refletir uma
particularidade desse todo, e será a soma de todos os pequenos reflexos que conterá a real
dimensão da totalidade. Na tradição sufi diz-se que a criação nada mais é que um
transbordamento de um tesouro que ansiava por conhecer a si mesmo26. Cada joia preciosa
desse tesouro contém, em si, um mesmo elemento que a unifica com as demais. Ao mesmo
tempo, cada uma delas é única e perfeita em si, e é na aventura chamada de existência que cada
ser é plenamente único, mas também se funde à matriz una e indiferenciada do ser. Dentro
dessa respiração, a existência se expressa e subsiste. Unidade e multiplicidade se alternam,
conduzindo à consciência plena das possibilidades contidas na existência.

26 Essaideia está ligada a uma frase, frequentemente utilizada para várias reflexões no Sufismo, onde Deus teria dito:
“Eu era um tesouro escondido e amei ser conhecido. Por isso, criei o mundo para ser conhecido.” Essa frase indica o
próprio horizonte da jornada pessoal, onde o ser humano tem por função ser a testemunha através da qual o criador
pode contemplar a si mesmo. Para compreender o impacto desse conceito nas ideias de Ibn Arabi, ver: Chittick, W.C.
1998. The self-disclosure of God. Principles of the Ibn al-Arabi’s cosmology. State University of New York, Albany.

15

Você também pode gostar