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O Casamento Tob-Ra’

O Mito de Tobias1

Chamada de Pandora, esposa de Prometeu, entre os gregos, ‘Ishah, feminino do ‘Adam


na Bíblia, esse outro lado velado de todo ser humano é um vazio infinitamente rico de um
potencial destinado a ser visto e realizado, para ver. Nós voltaremos à relação íntima que me
parece muito significativa entre estes dois verbos latinos, viduare, “esvaziar”, e videre, “ver”. Por
enquanto, notemos que esse potencial ainda é chamado de “dívida” que todo ser humano deve
pagar. A “paz”, Shalom, é essencialmente o verbo “pagar a dívida”. Só haverá paz profunda para
aquele ou aquela que poderá dizer em uma mutação final: “Tudo está realizado”.
Em hebraico, Nashim é plural de Neshe, a "dívida", e também plural de 'Ishah. Profunda
relação íntima entre essas duas realidades! Antigamente toda mulher tinha que trazer um dote
para o marido, cabendo a este último realizá-lo... Memória antiga, mas confusão...
Hoje, cada um de nós é convidado a sair da confusão e a realizar o dote que lhe traz sua
esposa interior, ou seja, a dívida. Um texto hebraico ilustra bem isso, o livro de Tobias.

Ainda que o texto original infelizmente tenha sido perdido (temos apenas uma
retroversão dele vindo do grego), a história em si já é muito bonita. O nome de Tobias, Tobihou,
é construído sobre a raiz Tob, o “realizado” da Árvore do Conhecimento. O nome do Homem2
bíblico é seu programa de vida. Chamado a se realizar completamente Tobias certamente será
conduzido durante a sua vida para o seu não realizado, isto é, para o seu feminino interior para
celebrar suas núpcias com seu 'Ishah num caminho de trevas.
Tobias é um israelita deportado para a Babilônia para por volta do século VI aC. A primeira
imagem de seu 'Ishah é sua esposa, Ana, também deportada; mas eu prefiro dizer que o exílio
deste casal tem sua causa no feminino das profundezas de Tobias que Ana simboliza. O exílio de
de Tobias é apenas um face à face historicamente significativo.
No início da história, ela volta do trabalho trazendo seu salário e, além disso, um cabrito
que lhe foi oferecido como recompensa pela excepcional qualidade de seu trabalho. Tobias não
acredita nela e acusa sua esposa de ter roubado o cabrito.
A história que se segue nos permite dizer desde já que este homem já percorreu um
grande caminho interior, mas a prova a que foi submetido – prova sua e de seu povo – despertou
nele a ferocidade de um animal obscuro até então desconhecido, que o torna amargo, injusto e
até mau. Ele compensa sua situação de exílio obedecendo mais rigorosamente do que nunca a
lei de seu povo, embora ela seja proibida pelo rabino3 e embora ele mesmo já tenha sido preso

1
N.T.: foi mantida a referência aos nomes tal como feita no livro, ou seja: a autora se refere ao pai como
Tobias (Tobie em francês) e ao filho como Tobit.
2
N.T.: na introdução da obra a autora esclarece que usa a palavra Homem (com ‘h’maiúsculo), ao se
referir à humanidade inteira (homens e mulheres).
3
N.T.: maître des lieux no original. A expressão usada pela autora parece traduzir uma outra, Mara de-
atra, usada para se referir ao rabino com autoridade local. Vide Kirschenbaum.
por ter se esquivado à essa lei que julga caduca perante a lei de seu Deus. Mas essa violência que
desafia o vencedor e transborda sobre os seus próximos o une a um coletivo que o descentra de
si mesmo. E o exílio vivido como uma afronta ao povo escolhido de Deus o revolta a ponto de ter
perdido a retidão interior e se deixado invadir por uma sombra insuspeita. Ele acredita não ter
mais direito à felicidade simbolizada pelo “cabrito”, Gedi em hebraico, que também pode ser
traduzido por “minha alegria”; ele rejeita violentamente a alegria oferecida pelo vencedor, por
ter sido para ele uma provocação insuportável; toda alegria é como um insulto, uma infidelidade
ao seu Deus. Ele se deita e quer morrer. A continuação da história nos revelará que este homem
já visitou sua selva interior e realizou uma grande dimensão de si mesmo, mas por ora talvez
possamos dizer que o inconsciente coletivo que atua nele ainda não foi explorado...
Uma noite, enquanto Tobias está deitado em seu jardim, mais amargo do que nunca e
chamando a morte, um pássaro aninhado acima dele faz seus excrementos que caem em cima
dos olhos Tobias. Ele perde a visão! Nenhum remédio pode curá-lo. Sua provação é grande e sua
oração se eleva em direção a Deus para livrá-lo desse opróbio. Mas ao mesmo tempo se eleva a
oração de uma jovem mulher, nos diz o texto: Sara, viúva de sete maridos sucessivos, suplica a
Deus para que a liberte dessa provação. A história nos levará até ela.
Sentindo sua morte se aproximar, continua o texto, Tobias quer colocar seus negócios em
ordem e lembra de uma dívida contraída por um homem chamado Gabael – esse nome evocando
um lugar importante, em profundidade ou em altura, ou ainda um espaço vertical e divino. Tobias
tem uma cópia do documento de reconhecimento da dívida e deseja resolver isso rapidamente.
Ele chama seu filho – de mesmo nome que ele, na forma em que é construído – Tobit, e pede
que ele vá até Gabael. Mas ele mora em um país distante e o jovem está preocupado, pois não
conhece o caminho. Como chegar lá ?
“Procure um homem fiel que irá acompanhá-lo mediante salário”, disse-lhe o pai. Ao sair
Tobit se vê diante de um homem jovem e muito bonito; ele está de pé, com os panos de sua
veste presos em volta de sua cintura, pés calçados, como se estivesse pronto para sair em viagem;
além disso, ele conhece o caminho e também conhece Gabael! Seu nome? ‘Azarias, do hebraico
‘Ezer, o “auxiliar”, que também se refere ao feminino, o outro lado do ‘Adam do Gênese.4 Na
verdade ‘Azarias é o anjo Rafael, “aquele que cura”, mas não é reconhecido por Tobit que, além
disso, ainda é incapaz de lhe “ver”.
O pequeno grupo partiu, acompanhado pelo “cachorro”, Keleb, o animal que “pega pela
mão, assume (letra Kaf) o coração, Leb”. Assim como o pássaro que veio testar Tobias, ele é o
símbolo do anjo; ambos presidem os mistérios do coração, mas o cachorro acompanha o ser ao
fim de si mesmo na matriz de fogo; de uma fidelidade perfeita ao seu mestre, ele perfila uma
qualidade de amor indefectível e sabe guiar o cego. Porque essa grande viagem não é outra senão
a do cego Tobias, descendo verticalmente, “vertical divina” que designa o nome de Gabael, nas
maiores profundezas de si mesmo, sob a imagem de seu Filho interior, o Filho divino que
começou a crescer nele.
Na primeira noite, Tobit, ‘Azarias e o cachorro param perto de Ḥideqel, um dos nomes do
“rio UM, divino, que flui do leste do Jardim do Éden para regar todo o jardim, e que é dividido
em quatro cabeças”.5 Este rio é a seiva da Árvore da Vida plantada com a Árvore do

4
Tobias 5,3.
5
Gênese, 2, 10.
Conhecimento no meio do jardim; ele é de fogo, fogo divino que desce das águas do Alto, passa
pela matriz do crânio sob o nome de Pishon, depois pela matriz de fogo na qual ele é o Guiḥon
(“Géhenne” em francês); quando ele sai da matriz de fogo, ele é chamado de Ḥideqel e se faz
menos ardente para tentar extrair das águas de Baixo a seiva da Árvore do Conhecimento que
nascerá da semente Yod que no início estava submersa nelas; essas águas de Baixo são aquelas
da matriz de água na qual o rio penetra incógnito sob o nome de Phrat.
‘Azarias e Tobit, sem esquecer o cachorro, descansam à beira do Ḥideqel, o que confirma
a situação interior do pai de Tobit: ele saiu das primeiras águas matriciais e já fez, como
pressentimos, um grande caminho interior, mas ele deve retornar conscientemente a essa matriz
para identificar o nome do demônio que ainda o devora e que se expressa por meio da cegueira.
O Ḥideqel é a parte do rio que ilumina e fecunda o profeta, aquele que “vê os céus abertos” (as
águas das quais acaba de se diferenciar e cujas mensagens são então reveladas a ele).
A história continua com ‘Azarias convidando seu jovem companheiro para lavar os pés no
rio antes da refeição. Tobit obedece e de repente, quando ele se aproxima, um enorme peixe
emerge das águas e o põe em pânico. Esse peixe é o monstro que devorava Tobias e que agora
ainda o ameaça na pessoa do jovem. Mas como Jonas que, no ventre do grande peixe devorador,
suplicou a seu Deus que o livrasse e foi vomitado dele, Tobias, sem que ele saiba ainda, está no
caminho da cura. O anjo está presente...
‘Azarias disse então a Tobit: “Não tenha medo, mas pegue o peixe pelas guelras e puxe-o
em sua direção; então tira-lhe o coração, o fel e o fígado; eles serão de grande ajuda na cura de
teu pai.” Tobit obedeceu, pegou o peixe pelas guelras. O verbo “ouvir”6 contido nesta palavra
não é anódino: “Escuta, Israel...”. E o Senhor ouve e ajuda Tobit a penetrar no peixe que, em um
primeiro momento, tinha comido seu pai; ele remove os três itens solicitados e traz o peixe de
volta ao acampamento; cozido no fogo, o peixe é comido na mesma noite na refeição que nossos
três amigos compartilham. É a vez do peixe ser comido. E o pequeno grupo reparte no dia
seguinte de manhã, munidos com os preciosos remédios.
Mas na noite seguinte, onde dormir? O jovem está inquieto. ‘Azarias o tranquiliza: “Há
aqui um homem de sua família aqui Raguel; ele tem uma filha, Sara; todo o seu bem vira a ti
mas você deve se casar com Sara”. De repente o jovem treme porque, diz ele, “ouvi dizer que
ela já se casou com sete maridos e que todos morreram”...
Mais uma vez ‘Azarias o tranquiliza: “Quando você entrar em seu quarto, viva com ela em
continência durante três dias e permaneça em oração. Na primeira noite, entregue ao fogo o
fígado do peixe e o demônio fugirá. Na segunda noite entregue o coração do peixe ao fogo e a
purificação se realizará. Na terceira noite você tomará Sara com temor ao Senhor”. Tobit
manteve suas guelras bem abertas!
Todos os três chegam à casa de Raguel e sua esposa, que reconhecem em Tobit um de
seus parentes e o acolhem com alegria. Ana, esposa de Raguel, e Sara, filha deles, até
derramaram lágrimas de tão emocionadas. Uma refeição festiva é preparada para a qual um
carneiro é morto.O “carneiro”, Aïl, ‫ איל‬, é o animal que tomou o lugar de Isaac no altar
preparado por Abraão para o sacrifício de seu filho.7 Seu nome é composto de El ‫אל‬, ‘Elohim,
compreendendo o Yod ‫י‬, o Filho. Símbolo admirável do amor do Pai que recebe o Filho no altar

6
N.T.: A autora se refere ao verbo francês ouïr (ouvir), contido na palavra ouïes (guelras).
7
Gênese 22, 13.
da matriz de fogo. Se a primeira etapa dos três viajantes acabou se revelando como a do profeta
saindo das águas matriciais e andando ao longo do Ḥideqel, esta segunda etapa é a da realeza;
esta parte real do rio, o Guiḥon, não é nomeada, mas podemos adivinhar que ela escoa no jardim
de Raguel, tornando esta casa o símbolo da matriz de fogo cujo altar será o santuário das núpcias
de Tobias com a parte de seu feminino interior ainda não esposada, e das núpcias de Tobit e Sara.
Tobit disse aos seus anfitriões: “Hoje não comerei nem beberei nada aqui se vós antes
não me concederdes Sara como minha esposa”. Raguel é então tomado de medo e prevê um
novo infortúnio. Mas ‘Azarias lhe diz: “Não tenhas medo de dar tua filha a este jovem porque ela
deve pertencer como esposa àquele que teme a Deus, por isso nenhum outro a pôde possuir”.
Meio tranqüilizado, Raguel põe a mão de sua filha na de Tobit e redige a certidão de casamento.
A refeição não é menos alegre e o jovem se conduz junto à a Sara. No entanto Raguel pede a seus
criados para cavar uma cova... De madrugada, Ana, por sua vez, pede à sua criada que vá procurar
o cadáver para enterrá-lo antes do amanhecer... Mas a criada encontra os jovens dormindo. Tobit
obedeceu escrupulosamente a ‘Azarias!
Podemos então ver em Sara – cuja oração tinha sido endereçada a Deus em uma mesma
ascensão de incenso com a oração de Tobias – uma outra dimensão do feminino, ‘Ishah, de
Tobias. Os sete maridos de Sara que morreram depois de sua união com a jovem simbolizavam
as sete mutações do homem antes que um último demônio apareça. Estas sete etapas da “grande
viagem noturna” na parte Ra’ ‫ רע‬de seu ser, assim como a presença já quase adulta do filho
divino, Tobit, dentro dele e nascido dessas etapas, nos permitiram de identificar a santidade de
Tobias. Mas era preciso ir ainda mais longe...
Prossigamos nessa história fabulosa. O jovem Tobit expressa a ‘Azarias sua imensa
gratidão, mas lhe pede ainda um favor: “Leve com você estas bestas de carga e criados e vá
encontrar Gabael; você dará a ele seu documento, por escrito, receberá o dinheiro dele e pedirá
que ele venha ao meu casamento, porque você sabe que o meu pai está contando os dias e não
posso me demorar”. ʻAzarias faz isso Imediatamente e regressa poucos dias depois, tendo a
dívida sido quitada, e acompanhado por Gabael. Este último abençoa Tobit e lhe disse: “Você é
o filho de um homem excelente, temente a Deus e que faz muita caridade... Que tua posteridade
seja abençoada pelo Deus de Israel”.
Na realidade, o casamento de Tobit e Sarah e o pagamento da dívida são uma coisa só.
Os dois eventos marcam a integração da energia que tinha começado a devorar Tobias; então, a
energia nomeada, simbolicamente pelo peixe, foi penetrada por Tobit que removeu a bílis, o
coração e o fígado, antes de comer a carne. Esses órgãos, que testemunham os elementos da
forja (matriz de fogo) em que trabalhava o “cozedor divino”, serão estudados mais adiante ao
tentar abordar o mistério divino-humano da alquimia secreta deste processo de integração. Mas
já compreendemos que esse é desempenhado, por sua parte humana, através do casamento dos
jovens – o de Tobias e sua ‘Ishah – e , por sua parte divina, através da liquidação da dívida.
A história nos levará de volta ao Tobias cego. Após a celebração do casamento de Tobit
e Sara – e embora Raguel queira manter o jovem casal por mais tempo – Tobit deixa a casa que
foi o santuário de integração do último demônio de seu pai e retorna a ele com Sara, ‘Azarias e
o cachorro, assim como numerosos criados que os pais da jovem lhe concederam.
Tobias e Ana aguardam o retorno de seu filho com grande preocupação. Mas tão logo o
cachorro vem correndo – arauto da vitória da luz sobre as trevas, Tob sobre Ra’; a vitória de
Tobias sobre si mesmo.
Assim que chegaram, Tobit abraçou o pai e a mãe e todos derramaram lágrimas de
alegria. Depois de ter dado graças, o jovem obedece às últimas instruções de ‘Azarias: pegando
o fel do peixe, ele espalha sobre os olhos do cego. Pouco depois, uma textura branca parecida
com a pele de um ovo começa a se desprender dos olhos doentes; Tobit a pega e a puxa para
fora e imediatamente seu pai enxerga. E assim que ele recupera a visão, ele vê em ‘Azarias o
arcanjo Rafael. A energia integrada dá conhecimento, visão-conhecimento da maior
profundidade. Rafael, “curandeiro divino”, confirma a sua identidade celestial: “Eu sou o anjo
Rafael, um dos sete que estamos na presença do Senhor”.
O anjo abençoa a todos e sai de suas vistas.

Ao tomar esta história bíblica – que é muito prolixa para ser de pura essência hebraica –
eu quis ir ao essencial e libertá-la de seus acentos moralizantes. Seus tradutores e recitadores
tiveram que adorná-la com detalhes edificantes confortando sua visão das coisas que é apenas
cegueira, no sentido da cegueira de Tobias.
Tobie tem os olhos fechados para os valores do mundo para tornar seus olhos sensíveis
aos valores de seu Senhor. Nisso ele é irmão de todos aqueles, históricos ou míticos, como Isaac,
Sócrates, o apóstolo Paulo, mas também Édipo quando deixa Tebas para ir a Colono, todos
aqueles que, de pé, seguem o caminho celeste. Enquanto aqueles a quem nós devemos esta
história – que sejam abençoados! – estão cegos para esse caminho. Mas hoje que o Espírito Santo
nos permite abrir nossos olhos, com Tobias, sobre um outro registro de leitura desses textos
sagrados, nós podemos nos perguntar se nossos países tão dramaticamente endividados não
objetivam o fato de que ninguém começou a pagar suas dívidas interiores e ninguém foi instruído
sobre os casamentos que devem ser realizados dentro das profundezas do ser. Isso me parece
ser uma grande praga do nosso Egito Ocidental atual!
Além disso, muitos acontecimentos objetivam nossas misérias interiores. Mas não os
sabemos ler. Não vendo nada no interior, mais não vemos no exterior! Surfamos sobre tudo!
É por isso que eu gostaria de voltar à noção de ver. No capítulo anterior eu disse que o
verbo “criar”, Bara’ em hebraico, pode ser lido como “colocado às vistas”. Os céus e a terra são
assim colocados desde o início por ‘Elohim no ver. Isso se liga diretamente à um célebre hadiz
dos sufis, onde Deus diz: “Eu era uma pérola escondida; eu quis me fazer conhecer, então eu criei
o mundo para ver e ser visto”. E numa espécie de orgasmo divino, Deus se esvazia de si mesmo
e coloca a criatura no ver.
Fico muito impressionada pela relação íntima que se impõe aqui entre os verbos “ver”,
videre em latim, e se esvaziar, viduare, tão próximos um do outro. Toda a criação que o Homem
percorre é o vazio de Deus! Isso se junta, me parece, ao que também diz a Bíblia sobre o ‘Adam
que se revela ser ‘Ishah de Deus, feminino-esposa de Deus, e, neste sentido, arquétipo de ‘Ishah
– feminino, esposa de Adam. E o ‘Adam tem vocação para ver seu ‘Ishah e casar-se com ele para
ser visto por seu Senhor e se casar com ele. Lembremo-nos do Cântico dos Cânticos em que o
Senhor suplica à sua amada:

“Vire-se, vire-se, Sulamita, vire-se, vire-se e nós veremos em você! O que será visto em
Sulamita é capaz de dançar dos dois lados”.8

8
Cânticos 7, 1.
“Os dois lados” significa: “Deus que vê nela e ela que vê em Deus”. “O mesmo olho”, dizia
Mestre Eckhart, e com ele todos os sufis...
Não é também o mesmo olho que vê no olhar de dois amantes? Um mesmo desejo! Ver
e ser visto um do outro, fazer abraçar os olhares que carregam a alma e atravessam o céu! Tudo
isso arranca nossos corações e ao mesmo tempo nos deixa um vazio trágico porque a natureza
infinita do amor só pode se quebrar no vazio... no infinito do amor.
E é nesse vazio que é preciso ir para ver e ser visto, nós que somos feitos à imagem...
Quando o Senhor-Deus da Bíblia passa à diferenciação entre o ‘Adam e seu outro lado,
esta palavra “lado”,910 Tsela’ ‫ ץלע‬em hebraico, contém o verbo “esvaziar”, Tsa’o, feito das duas
letras que abraçam a letra Lamed, o “ensinamento”. O ‘Adam, imagem de Deus, é, por sua vez,
criador quando, consciente desse vazio nele, se volta para ele; então ele vê e é ensinado. Pois
esse vazio é seu feminino velado; a palavra “fêmea” da dialética macho-fêmea que qualifica
‘Adam é um “buraco”, Nqebah, um abismo, um poço, o pólo Ra’ de seu ser no qual ele deve
descer – fazer obra masculina para se casar com ela.
Este vazio, o lado Ra’, é portanto esse feminino velado, rico das energias potenciais que
o ‘Adam, em seus partos, atualizará gradualmente e que fornecerão suas informações, o lado
Tob. Nós somos isso para Deus! Também Deus se lembra de nós:

“O que é o Homem para que tu te lembres dele e o Filho do Homem para que tu lhe
procures?”.11

Deus nos chama a nos tornarmos Filhos! “Mulher, eis teu Filho", diz o Senhor expirando
na cruz a Maria, ‘Ishah de todo ser, ‘Ishah cósmico, apresentando a ela seu discípulo João.
“João, eis tua sua mãe”, acrescenta ele,12 limpando a lágrimas de Raquel que, diz o profeta
Jeremias, “chora os Filhos que ainda não o são”.13
Eu retifico aqui a tradução corrente deste versículo que, obedecendo a uma lógica
elementar, reduz seu sentido, Raquel então só pode chorar pelos filhos que não o são mais. Na
realidade Raquel se lamenta que seus filhos “estão no nada”, ou seja, numa presença semelhante
a uma semente presa em sua casca e que permanece estéril.
Tirar a casca dessa semente para se tornar Filho é, portanto, sair das nossas cegueiras e
pagar a dívida; ajudados pelo anjo, escalaremos os degraus luminosos de Tob depois de ter
assumido o mergulho nas trevas de Ra’; cada energia animal integrada nos terá feito participar
dos mundos angélicos (o mundo imaginal da qual nossa imaginação é a sombra) que se perfilaram
junto a Tobias no pássaro que o cegou para que ele visse, no cachorro que o guiou até o coração
do mais profundo de si mesmo, no peixe ainda demônio antes de se tornar um anjo de
conhecimento e finalmente no Arcanjo Rafael, o divino servidor.

9
N.T.: côté, no original.
10
Gênese 2, 18-24.
11
Salmos 8, 5.
12
João 19, 26-27.
13
Jeremias 31, 15.
Cada um têm um papel teofânico no acompanhamento do Homem indo em direção a si
mesmo, em direção a aquisição do NOME, no UM de seu ser, em seu oriente. Mas é certo que o
arcanjo Rafael domina a narrativa do livro de Tobias. Já encontramos esse misterioso estrangeiro
na história de Abraão, o primeiro homem da Bíblia a ter ouvido de seu Senhor esta ordem de ir
em direção a si mesmo; tendo obedecido, o patriarca recebeu durante sua jornada a visitação
angélica. No meio dos carvalhos de Mamré, três homens lhe apareceram à entrada da sua tenda.
A tradição os nomeia, eles são Miguel, Gabriel e Rafael.

“Senhor, Abraão disse a eles, se eu encontrei favor em seu olhos, por favor, não se afaste
do seu servidor”.14

Três homens, um só Senhor!

A Tobias ele se revela como “um dos sete que estão perto do trono de Deus”, e esses sete
são nomeados na tradição de Hékalot, “palácios” sobre os quais se abrem os degraus da escada;
recebendo o Homem, cada um deles o introduz em uma nova terra, iluminada de um
conhecimento mais elevado e ampliado de uma relação íntima cada vez mais amorosa com seu
Senhor.

14
Gênese, 18, 3.

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