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AS MÚLTIPLAS FACES DA FORMAÇÃO EM LEITURA

Simone Bueno Borges - UFBA


Mesa redonda CELSUL 2010

... é o leitor que confere a um objeto, lugar ou


acontecimento uma certa legitimidade possível... Todos
lemos a nós ao mundo a nossa volta para vislumbrar o
que somos e onde estamos...(Manguel, 1997)

Introdução

Tenho defendido a leitura como uma das atividades mais importantes na


contemporaneidade, se não a mais importante mesmo. A sociedade contemporânea
caracteriza-se como altamente letrada, uma vez que está alicerçada em práticas de
escrita que demandam, de todos os seus membros, refinadas habilidades em leitura. É
a leitura que possibilita a compreensão da complexa organização social humana no
mundo contemporâneo, de modo que, ser um bom leitor se tornou condição
necessária à efetiva participação social. É por isso que a formação de leitores
competentes, uma das atividades mais difíceis de se empreender com sucesso, tem
sido objetivo primordial em muitas agências educativas.
Observe-se que, para me expressar, utilizei os adjetivos bom e competente
qualificando leitor, visto que precisava fazer pressupor uma diferença qualitativa na
acepção ordinária designada pelo substantivo em foco. Segundo Dicionário Aurélio
da Língua Portuguesa, leitor é “aquele que lê”, definição vaga e imprecisa quando se
pensa na competência leitora. É legítimo, pois, perguntar-se: lê o quê? como? por
que? e para quê?
  Como   contribuição   para   o   debate   da   mesa   Múltiplos   Letramentos   na  
formação  inicial  do  professor  de  português1,  proponho-­‐me  a  tematizar  a  formação  
em   leitura   abordando   três   questões   centrais,   quais   sejam:   1.   Quais   as   relações  
entre  o  conceito  de  leitura  e  as  práticas  de  formação  de  leitores?  2.  Como  a  escola  
contemporânea  tem  concebido  e  trabalhado  a  leitura?  3.  Como  formar  o  professor  
com  as  competências  necessárias  ao  ensino/aprendizagem  da  leitura?    
Para discutir a primeira questão, retomarei brevemente o conceito de leitura ao
longo da história para fazer evidenciar as relações entre as práticas escolares de leitura
                                                                                                               
1
Agradecemos o convite feito pela organização do CELSUL 2010 e pelo Professor Marcos Baltar, para
compor a mesa Múltiplos Letramentos na formação inicial do professor de português.
e as concepções de leitura que as embasam. Com o breve percurso que farei, pretendo
salientar a multiplicidade de concepções, com suas variadas nuanças, ao longo da
história social e cultural da humanidade, com a pretensão de compreender as
concepções e práticas de leitura atuais. Na segunda questão, pretendo trazer alguns
dados coletados numa escola pública para discutir o cotidiano escolar em relação à
formação dos leitores, enfocando as relações entre o conceito de leitura e as práticas
de leituras a que são expostos os alunos no ambiente escolar. A formação do professor
de Português será, então, enfocada na última parte deste texto, com vistas a pensar
sobre as práticas formadoras dos professores e as práticas de formação de leitores.

1. História da leitura (ou a leitura na história?)


O ato de ler nem sempre designou uma atividade complexa e múltipla
conforme se observa atualmente. Ao longo da história o conceito se transformou.
Saímos da compreensão do termo como um processo de oralização da escrita, nos
primórdios, quando o homem inventou a escrita alfabética, e passamos a compreendê-
la a partir de toda a subjetividade e historicidade que envolve o homem.
Assim, visitaremos, brevemente, a história da leitura para rememorar algumas
de suas transformações, focando as mais relevantes à compreensão do conceito em
suas relações com o perfil do leitor. Evidentemente, faremos uma rápida passagem em
períodos da história social do homem, condensados em instantes pregnantes, para
indicar, com base em Chartier (1996, 1999) e Manguel (1997), que as diferentes
maneiras de conceber a leitura têm uma história e uma estreita relação com as práticas
sociais de uso da escrita.
Comecemos, pois, pela leitura quando da invenção da escrita alfabética. Esta
leitura nasceu da necessidade indispensável de pronunciar em voz alta os documentos
escritos, para tornar público o seu conteúdo. O texto era uma linha contínua que
terminava no final da folha e o conteúdo só era acessível através de sua
oralização/escuta. Leitura era, então, sinônimo de “oralização” da escrita, portanto,
uma atividade pública.
Com a expansão do Império Romano, a igreja, que dominava as atividades de
leitura e escrita e o ensino delas, passou a receber seminaristas que não falavam o
latim fluentemente. Ainda assim, a instituição religiosa precisava formar bons
oradores para os cultos realizados em língua latina. Então, por motivos didáticos, os
monges começaram a introduzir, no texto, marcas gráficas diferente das letras para
facilitar a leitura oral (cf. ILLICH, 1995). Não havia, contudo, neste momento da
história, qualquer preocupação com o sentido, uma vez que este era acessível apenas a
poucos, aos escolhidos, como se fosse um dom divino. O sentido não estava no texto,
tampouco no leitor, estava, antes, na vontade divina que se revelava através dos
sacerdotes autorizados a “falar”em nome de Deus. A ação didática visava apenas à
formação do orador, função indeclinável no culto religioso.
Ocorre que a segmentação e a inclusão de marcas gráficas no texto escrito
transformaram-no em um objeto visual, para os olhos, não mais para os ouvidos.
Desta transformação nasceu a leitura silenciosa. Com o desenvolvimento da leitura
silenciosa, o conceito de leitura passou a designar uma atividade subjetiva. De uma
atividade pública, a leitura passa a ser privada e o sentido, que pertencia aos iniciados,
começa a habitar o texto. Consequentemente, na atividade de leitura, o leitor passa a
buscar o sentido e não apenas a pronúncia da palavra. A leitura silenciosa transformou
a ordem social, pois, criou novas funções para a escrita, reformulou e introduziu
comportamentos, desestabilizou antigos conceitos como o de biblioteca. Ela esteve na
base da Reforma de Lutero e da Santa Inquisição. Fez desencadear novas práticas de
letramento que fomentaram, por sua vez, a formação de novos leitores e escritores, a
criação de novos gêneros e novos portadores de textos. Em outros termos, a
ampliação das funções sociais da escrita advindas com a leitura silenciosa fez
emergir, crescentemente, novos leitores e escritores2.
Contudo, os manuscritos ainda eram objetos caros e raros e, portanto,
acessíveis a um diminuto número de leitores. Foi somente no século XVIII, com a
invenção da imprensa que se desencadeou, de fato, um processo de popularização da
leitura. A imprensa possibilitou a reprodução de textos em larga escala, o que fez
transformar a relação do leitor com o objeto de leitura. Tal invenção proporcionou
significativo crescimento na produção dos livros, inclusive os de pequeno porte, a
multiplicação e transformação dos jornais e a proliferação de instituições que
tornaram possível o empréstimo do objeto de leitura (bibliotecas, clube do livro,
sociedades de leitura etc). Esta nova relação leitor/texto, estabelecida a partir da
invenção da imprensa, resignificou o conceito de leitura, antes intimamente vinculado
ao sagrado e ao raro, para agregar o cotidiano, o rotineiro, o popular. A atividade de
ler passa a ser atravessada pela história contada e a história vivida (cf. Goulemot,
                                                                                                               
2
O termo “escritores”, neste texto, não designa a profissão ou o fazer artístico, mas sim as diversas
práticas de escrita.
1996), pelas crenças e valores do leitor, bem como pela situação imediata de leitura, o
que fez instituir categorias de leitura e de leitores, de modo que a noção de
pluralidade incorporou-se ao conceito.
Por fim, na história mais recente, temos a complexa atividade de ler
virtualmente. Chartier (1999) discute a leitura na era virtual mostrando que, mais uma
vez, a inovação tecnológica afeta profundamente a leitura ao transformar suas
concepções e alterar as suas práticas. A mudança no suporte físico da escrita força o
leitor a novas atitudes, transforma a noção de contexto ao substituir a materialidade
física do texto (o papel e a tinta) pelo arquivo virtual. Além disso, o leitor
contemporâneo trabalha com mais uma variável que passa a ser constitutiva da noção
de leitor, a saber, o tempo, a velocidade. Hoje, ao pensarmos num leitor competente
cogitamos, necessariamente, uma delimitação temporal.
Para finalizar este tópico, vamos sintetizar os conceitos de leitura, na tabela
abaixo, relacionando-os às características sócio- históricas que os envolvem.

Características sócio-históricas Características conceituais


A invenção da escrita alfabética Leitura equivalia a oralização da escrita. Uma atividade pública
de fala/escuta.
Texto segmentado e com marcas Leitura silenciosa que caracterizou-se por ser atividade para os
gráficas diferentes das letras olhos, privada, que incluí a reconstrução do sentido (o texto para
a guardar o significado).
Invenção da imprensa Leitura passou a ser uma atividade plural que se diferenciava
conforme se diferenciavam os textos e as práticas. Edificaram-se
os conceitos de boa e de má leitura, legítimas e/ou clandestinas...
O texto virtual (papeis e arquivos Leitura é uma atividade ímpar, subjetiva, múltipla. O significado
virtuais coexistem). está menos no texto e mais no leitor. Leitura é construção de
sentidos que integra a significação do sujeito no mundo.
Tabela 1 síntese das relações entre história da leitura e conceito de leitura

2. As faces das leituras:


O objetivo de apresentarmos este breve histórico da leitura foi, justamente, o
de fazer entrever a estreita relação que se estabelece entre as práticas de leitura e o
conceito que esta assume, em face de seu papel social. Quanto mais complexa a
atividade de ler no âmbito social, também mais complexo vai se tornando o conceito
de leitura. O leitor contemporâneo lida com múltiplas linguagens combinadas em um
único texto, vale-se de uma infinidade de gêneros para suas mais variadas
necessidades e desejos em relação à leitura, o que o impele a decisões leitoras
bastante diferentes a cada prática. Os mais variados segmentos sociais esperam de
seus leitores esta habilidade de ajustar-se ao formato específico de cada prática.
Assim, quando o professor universitário indica a leitura de um texto, ele espera que
seus alunos levantem questões, sintetizem conceitos, relacionem o texto com outros
textos já lidos e com a vivência, entre outras habilidades. Entretanto, quando o
proprietário de um salão de beleza oferece uma revista à cliente que aguarda a sua vez
de ser atendida, ele espera outras coisas desta prática e, portanto, pressupõe outras
habilidades desta leitora. Quando uma mãe lê para seu filho antes de dormir,
diferentemente das duas situações referidas, outros fatores relativos à prática de
leitura entram em jogo. De cada leitor e de cada leitura espera-se, portanto,
habilidades diferenciadas.
Os estudiosos contemporâneos da leitura definem-na como uma atividade de
produção ou construção de sentidos (cf. CHARTIER, 1996, 1999; FOUCAMBERT,
1994, 1997; FREIRE 1994; KLEIMAN, 1989, 1993, 1995 entre outros). Este ponto
de partida está para marcar que, ao leitor, já não cabe a tarefa de reconstruir o sentido
do texto (pretendido pelo autor), mas cabe a ele construir, a partir da situação
comunicativa instaurada na ato da leitura, um sentido que lhe seja possível e
pertinente em face da tarefa que lhe colocada.
Para Foucambert (1997, p.105) a leitura é uma “atividade eminentemente
polimorfa” que abrange tanto a desmontagem de um texto filosófico, quanto a
degustação de um poema, ou o olhar descompromissado a uma revista de variedades.
Desta forma, o autor se pergunta: o que haveria em comum nestas atividades? Como
resposta, Foucambert anuncia ser o fato de todas as atividades de leitura esboçarem
um projeto. Isto faria dela uma atividade única, lhe imprimiria uma unicidade. Para
nós, no entanto, cada projeto de leitura demanda do leitor habilidades e
conhecimentos diferentes, de modo que nem todos os leitores se sairiam igualmente
bem sucedidos na leitura de qualquer texto. Parece-nos, então, que a multiplicidade de
leituras faz coexistir a multiplicidade de leitores.
Quando Freire (1994) escreve que “a compreensão do texto a ser alcançada
por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto”
(grifos nossos) faz pressupor que pode haver outros modos, não críticos, de leitura.
Assim, para que a leitura seja de fato uma atividade crítica, na perspectiva do autor,
seria necessário que se estabelecesse uma relação mais direta e reflexiva entre o leitor
e o texto, tanto do ponto de vista da situação comunicativa, quanto do ponto de vista
da vivência do sujeito.
É chegada, então, a nossa vez de propor uma questão, qual seja: existe a
leitura acrítica? Entendemos que sim. E sua existência reside nas práticas que não
colocam em jogo uma ação reflexiva da parte de seus atores. Pode-se ler um jornal de
forma acrítica, com o propósito de informar-se dos acontecimento da atualidade, mas
pode-se ler o mesmo jornal procurando compreender os modos como os
acontecimentos são apresentados e em que (e como) eles afetam o sujeito leitor.
Ainda, a leitura crítica é a que faz mobilizar a compreensão de si e do mundo. Assim
como existe a “leitura prazer”, aquela que nos serve para o deleite, a “leitura
instrucional”, aquela que demanda de seu leitor o cumprimento dos passos a ser
seguido, a “leitura oral”, aquela em que as habilidades ligadas à oratórias são
prementes, existem, também, as práticas de “leitura crítica” relacionadas ao ser/estar
no mundo letrado, em que as tensões do sujeito são constituídas, referidas e/ou
afetadas pelas linguagens. Manguel (1997), na epígrafe deste trabalho, enfatiza o ato
de ler como forma de dar sentido à própria existência. Esta perspectiva está
relacionada às práticas de leitura crítica, em nosso modo de entender.

3. As leituras e o leitor na escola


Não é ao acaso que, até hoje, quando perguntamos aos professores “Como
vocês fazem para saber se seus alunos estão bons em leitura o suficiente para passar
de ano?” a resposta mais comum é algo como “eu vejo se ele está gaguejando ou se
faz a pontuação corretamente” – resposta que faz pressupor uma concepção de leitura
mais próxima da oralização da escrita, como foi quando da invenção da escrita
alfabética, conforme mostramos. Também, ainda hoje podemos observar propostas de
atividades de compreensão em leitura pautadas na pressuposição de uma única
resposta correta, conforme veremos mais adiante, o que remete a uma concepção de
leitura típica da idade média, quando ler significava buscar o sentido no texto.

Disse, no início, que a leitura é uma das atividades mais difíceis de serem
ensinadas na escola e, apesar dos esforços, ainda não alçamos resultados satisfatórios.
Os indicadores de desempenho que avaliam a qualidade do ensino brasileiro vêm
apontando problemas com a leitura e a formação de leitores. Os testes vêm mostrando
resultados pouco satisfatórios em relação às habilidades leitoras. O Sistema Nacional
de Avaliação da Educação Básica (SAEB), um teste que visa a medir habilidades de
leitura, em 2001, por exemplo, revela que apenas 10% dos alunos de 8ª série
obtiveram resultado satisfatório na prova de Língua Portuguesa, enquanto cerca de
84% ficaram aquém do esperado para o nível de leitura da 8ª série. (cf. INEP, 2003).
Em relação ao Ensino Médio, observa-se que os indicadores são ainda piores, pois
apenas 5% dos alunos conseguiram resultado satisfatório. Ainda, no período de 1995
a 2001, registrou-se uma queda de 10% no desempenho dos alunos do Ensino Médio
na prova do SAEB (cf. INEP, 2004).
Outro indicador, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) mostra que, em
2002, apenas 2,5% dos participantes obtiveram nota entre 70 a 100 na parte objetiva
da prova que testa o conhecimento nas diversas áreas e 11,6% obtiveram nota
satisfatória na redação (cf. INEP, 2002). Os resultados de 2003 apresentam um índice
pouco mais favorável na prova objetiva – 14,9%, mas a média nas notas de redação
não revela aumento significativo - 13,7%3. Segundo relatório do ENEM 2003, os
maiores problemas referentes ao mau desempenho dos alunos vinculam-se à má
formação na área da leitura:
Do ponto de vista pedagógico, mais uma vez parece ter sido a ausência de
domínio de leitura compreensiva a causa principal de o desempenho da
maioria dos participantes situar-se na faixa de insuficiente a regular (cf.
INEP, 2003).
Os dados nos permitem observar que, no tocante ao ensino da leitura, a escola
deve aperfeiçoar-se. Estes dados nos motivaram a tomar a leitura na escola pública
como campo de investigação, em 20084. O principal objetivo do estudo foi o de
conhecer as práticas de leitura que a escola vinha desenvolvendo para, a partir da
realidade escolar, identificar as variáveis necessárias ao desenvolvimento de um
trabalho eficiente de formação de leitores, considerando as especificidades da escola
pública. Os dados desse estudo possibilitaram algumas observações importantes no
que respeita a relação entre o conceito de leitura e a prática de formação de leitores.
Do ponto de vista discursivo, os professores, direção e auxiliares de biblioteca
– profissionais da escola que participaram do estudo5 – pareciam compreender a
leitura segundo a dimensão que o conceito abrange na atualidade. Eles tinham claro,
                                                                                                               
3
O ENEM estabelece a seguinte escala de conceitos: Bom a Excelente para os intervalos de nota de 70
a 100; Regular a Bom, para o intervalo 40 a 70 e Insuficiente a Regular para o intervalo 0 a 40.
4
Agradecemos ao CNPq, processo nº 152032/2007-0, pelo financiamento da pesquisa Formação de
leitores em escola pública: desafios e viabilidades.
5
O estudo desenvolveu-se numa escola pública central da cidade de Florianópolis. A escola reunia as
características que tipificam a escola pública brasileira: alunos as camadas sociais menos favorecidas,
mais de 50% de seu quadro de professores substitutos, salas superlotadas etc. Participaram
voluntariamente do estudo doze profissionais entre professores diretores, auxiliares de biblioteca,
alfabetizadores, e professores das diversas áreas (física, artes, geografia, história, inglês e português).
para si, o perfil de leitores que a sociedade contemporânea demanda, qual seja: o
leitor autônomo e crítico. Vejamos alguns excertos extraídos das gravações, em áudio,
da entrevista que realizamos com os participantes, em que os professores falaram
sobre o conceito de leitura e sobre as práticas que esperavam de seus alunos.
(1) PA6 - Eu esperava que meus alunos lessem sozinhos (...) trabalho com apostila + já tenho
o material para história da arte e eles sabem que devem ler em casa o texto para depois
eu explicar na aula, mas isso nunca acontece7

Pesq – o que é leitura pra você?


PA – ((risos)) é:: pegar um texto e entender alguma coisa ++ quando você vê uma obra
de arte:: e admi::ra aquilo você compreende o que ela diz pra VOCÊ ((faz um gesto
apontando para si mesmo)) + não importa se eu vejo outra coisa ++ isso é leitura ++ eu
queria que meus alunos fizessem isso + pegassem um texto e soubessem dizer alguma
coisa + sabe?+ que sentissem/ que tivessem uma noção da data, do lugar ++ coisas assim
++ mas eles não sabem ++ como vão ter opinião? + acho que eles não querem nem saber
+ opinião que nada

Neste excerto, o professor espera do aluno uma autonomia leitora- Eu esperava


que meus alunos lessem sozinhos. Ao falar da leitura da obra de arte, agrega ao conceito a
dimensão subjetiva, particular. Há, também, uma relação com a criticidade, quando
ele espera a formação de uma opinião como constitutiva desta atividade - como vão ter
opinião?
8
(2) PP - Eu queria que os alunos lessem e entendesse ++ mas não/ se eu não fizer a leitura
na sala ++ ((faz um sinal de negação com a cabeça)) não adianta, eles não entendem/ nem
precisa ser um romance + um conto ou uma poesia++ eu tenho que ler ++eles precisam
ler sozinhos
Pesq9 - mas o que é leitura pra você?
PP - Leitura é quando você tem um objetivo + assim quando você quer alguma coisa aí
você procura ++ assim + quando você quer saber das notícias você vai ler o jornal +
quando você quer se distrair você vai e pega um livro de literatura e também quando você
compreender aquilo que lê/ a leitura não é desvinculada de qualquer coisa + aí não é
válida

Novamente a autonomia é invocada como uma condição leitora eles precisam ler
sozinhos - e a compreensão parece estar na base das dificuldades apontadas pelo
professor, quando fala sobre a leitura dos alunos. Ao conceituar leitura, o professor
menciona os objetivos como constitutivos da atividade de ler - Leitura é quando você tem
um objetivo - a leitura não é desvinculada de qualquer coisa. Vai se delineando um perfil de

                                                                                                               
6
Professor de artes.
7
Normas da transcrição: + equivale a pausa breve; ++ pausa longa; (( )) comentários do pesquisador;
::alongamento de vogal; / ruptura brusca; LETRAS MAIÚSCULAS ênfase na entonação; (...) corte na
seqüência dos dados.
8
Professor de português.
9
Pesquisador.
leitor desejado no contexto escolar, que combina a autonomia à capacidade de
construir sentidos.
10
(3) PF - Eu preciso fazer duas distinções + uma seria a leitura do texto escrito + e:: aquela
leitura mais geral que é a leitura de mundo ++ nós não lemos só palavra, não lemos só
texto, lemos imagens lemos é:: lemos tudo ++ a leitura reconstrói tudo que vê e através da
linguagem também + tudo aquilo que nos é::: dado ++ a nossa interação com o mundo+
ela se dá sempre através de algum tipo de leitura

Neste segmento o professor traz a pluralidade conceitual de leitura


distinguindo duas acepções, sendo uma referente à leitura da palavra e outra a leitura
de mundo, numa clara influência freireana. Faz também uma relação da leitura
enquanto atividade constitutiva da própria existência do homem em sociedade - a nossa
interação com o mundo+ ela se dá sempre através de algum tipo de leitura. Agrega-se, então, ao
perfil de leitor pretendido a capacidade de ler a si mesmo ao tempo que se lê a palavra
no mundo.
Contudo, as aulas observadas na escola mostraram ações que certamente
desembocariam na formação de um leitor com outro perfil, mais próximo, talvez, do
oralizador, de um sujeito passivo diante do texto, daquele que apenas busca, na
melhor das hipóteses, reconstruir o sentido.
Pudemos verificar que a leitura perpassava todas as atividades desenvolvidas
pelos professores; no entanto, eles eram quem desempenhavam o papel do leitor. Ao
aluno cabia apenas a escuta da leitura, fosse de uma tarefa de física a ser
desenvolvida, fosse da apostila ou de trechos do livro didático, fosse do poema a ser
analisado. Não pudemos observar se quer uma atividade em que o aluno tivesse como
tarefa a leitura autônoma do texto, por pequeno que fosse, a fim de que dissesse ou
fizesse algo a partir de sua própria compreensão. Então, na aula de física, por
exemplo, os alunos só iam resolver a tarefa proposta depois que o professor lesse o
enunciado em voz volta, levantasse os dados e dissesse o que deveriam calcular. Na
aula de artes, o professor também fazia a leitura em voz alta de parágrafos do material
de referência e seguia explicando o que o trecho significava. O mesmo pôde ser
observado na aula de português e de história.
Kleiman (1993) discute três concepções escolares da leitura, as quais
transcrevo resumidamente: 1. a leitura como decodificação, aquela que não leva em
conta o sentido do texto. Nela, para resolver a atividade proposta, o aluno não
precisaria compreender nada, bastaria localizar visualmente a palavra-chave da

                                                                                                               
10
Professor de física.
pergunta em algum trecho do texto para, então, copiar a resposta. 2. A leitura como
avaliação relacionada com a aferição da capacidade de leitura, com aulas que se
reduziriam à leitura em voz alta para que o professor, ao escutar a entonação e
fluência, avaliasse a compreensão do texto. 3. A concepção autoritária da leitura, em
que haveria apenas uma maneira de abordar o texto e somente uma interpretação a ser
alcançada.
As práticas de formação de leitores na escola, observadas em 2008, estavam
bastante próximas das concepções discutidas por Kleiman em 1993. Estas concepções
aproximam-se do que foi a leitura antes da imprensa. Há, de fato, uma relação
histórica com as práticas de ensino, cristalizadas no contexto escolar, que se
prestaram a formar leitores capazes de localizar informações, de dizer um texto em
voz alta e de reconstruir “o” sentido do texto. Mas elas dificilmente levariam o aluno
à autonomia em leitura, pois ao estudantes cabe apenas o papel de passivo ouvinte.
Tais práticas tampouco formariam leitores críticos, aptos a atribuir sentidos e a
significar a si mesmos através da leitura.
Há, entre o conceito e a prática, um hiato resultante, em parte, de uma
concepção de leitura ultrapassada que, por vezes, ainda vigora no ambiente escolar,
em que se entende que o leitor é aquele capaz de decodificar a escrita, ou de falar em
voz alta o texto escrito; em parte, pelas opções política que tomamos na formação dos
nossos professores.

4. Aspectos da formação de professores e de leitores

Desde a divulgação dos PCN, preconiza-se que a formação em leitura deve ser
compromisso de todas as áreas. Mas, sem ações concretas que viabilizem tal tarefa, o
compromisso não passa da esfera discursiva. Os professores participantes do estudo,
mesmo o de português, declararam nunca terem tido uma disciplina, quando da
graduação, específica em leitura ou em formação de leitores. Quando foram
confrontados com as incoerências entre o que esperavam dos alunos e as atividades
formadoras, começaram a dar-se conta da dimensão do problema:
(4) PP – eu sempre achei que estava ajudando ++ que estava facilitando para eles
aprenderem
Este dado nos instigou, no ano da pesquisa, a observar alguns currículos das
licenciaturas em instituições federais de ensino11. Das oito instituição observadas,
verificamos que em apenas duas Licenciaturas em Português constava uma disciplina
específica de leitura. As demais licenciaturas (em História, em Física, Biologia e em
Geografia) não possuíam qualquer disciplina voltada para a leitura e formação de
leitores.
Trouxe este dado para o debate a fim de salientar que, quando, no meio
acadêmico, não raro afirmamos que “o professor é mal formado” tendemos a entender
tal afirmação apenas do ponto de vista do professor, quase que apagando a dimensão
da instituição formadora. Antes, deveríamos afirmar “não estamos preparando
adequadamente nossos professores para a formação de leitores”12 . Pensar em como a
instituição formadora de professores poderiam contribuir para aperfeiçoar o fazer
docente, nos parece uma proposição mais proativa e, do nosso ponto de vista, mais
interessante. Estamos diante de um desafio político que é a formação de professores
capazes de estruturar, com solidez, projetos de ensino que contemple as múltiplas
práticas de letramento presentes no cotidiano social. Nossos estudos têm mostrado
que uma formação sólida do professor no campo da leitura deveria ser introduzida em
todas as licenciaturas e ainda mais aperfeiçoada na formação do professor de
Português, pois ele tem como principal objetivo, para toda a escolarização básica,
formar usuários competentes da língua escrita (cf. MEC, 1997).

5. À guisa de conclusão
As reflexões levantadas neste trabalho foram feitas com o propósito de pensar
os conceitos de leitura em suas relações com a formação de leitores. Primeiramente
revisitamos a leitura através da história com a finalidade de observar as sofisticadas
mudanças conceituais engendradas pelas também sofisticadas práticas sociais da
leitura, que foram sendo desenvolvidas pelos homens organizados em sociedade. Em
seguida, discutimos, através da multiplicidade conceitual da leitura, a existência da
pluralidade de leitores para pensar um processo formativo nas escolas que contemple
a pluralidade leitora. Enfatizamos, pois, uma compreensão do que seria a “leitura

                                                                                                               
11
A pesquisa não tinha como objetivo estudar os currículos das licenciaturas, por isso não desenvolveu
um estudo aprofundado do assunto. Objetivou-se, com a observação dos currículo, confirmar uma
queixa dos professores participantes em relação à formação docente no campo da leitura.
12
Apesar da generalidade proposta na premissa, estamos nos referindo especificamente à formação em
leitura e ao ensino da leitura, conforme nossos dado autorizam.
crítica”. Nas terceira parte apresentamos dados de pesquisa em que se investigou a
formação de leitores na escola pública. No ambiente escolar, pudemos verificar que a
formação de leitores críticos e autônomos era desejada, na dimensão discursiva; mas,
as práticas de formação desenvolvidas dificilmente resultariam na formação do
leitores críticos e autônomos. Por fim, na quarta parte, falamos brevemente da
formação de professores para defender ajustes curriculares, com disciplinas
inovadoras, capazes de preparar o professor para a tarefa de formar leitores
competentes.
Formar leitores, na contemporaneidade, significa trabalhar com a
multiplicidade de práticas que, para muito além do processo de decodificação e de
reconstrução do sentido, abrange a significação do mundo e do sujeito leitor do/no
mundo. Entendemos que as escolar, principal agência de formação de leitores, precisa
implementar, também no processo de formação, a multiplicidade imbricada nas
práticas sociais da leitura. Ou seja, entendemos que as múltiplas faces da leitura
demandam processos de formação múltiplos. Ao desenvolver, no contexto escolar,
práticas uniformes de uma atividade multiforme, a escola dificulta ou inviabiliza a
formação para a pluralidade demandada ao leitor contemporâneo. Por fim, urge que o
contexto escolar se aproprie das novas tecnologias para desempenhar, de fato, uma
formação em leitura coerente com a demanda social de leitores.

5. Referencias bibliográficas

CHARTIER. R. (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.


________. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP/
Imprensa Oficial do Estado, 1999.
FERREIRA, Aurélio B. H. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 1a.
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