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1. ABORDANDO JEREMIAS
A revelação da salvação divina ao longo dos séculos da História humana não
aconteceu como um calmo nascer do sol em um dia claro, gradual, mas
permanentemente dissipando as trevas e espalhando seu calor. Embora o curso dos
acontecimentos esteja indubitavelmente se movendo em direção à sua consumação,
sempre há tempos de trevas que colocam em dúvida se os propósitos de Deus serão
alcançados. Foi em um desses períodos de trevas que Jeremias serviu como profeta do
Senhor, do fim do sétimo e início do sexto séculos a.C., quando a expansão do império
neobabilônico, sob o governo de Nabucodonosor, levou à destruição de Jerusalém, em
586 a.C.
Séculos antes, o propósito de Deus para o seu povo tinha envolvido uma intervenção
em seu favor para libertá-lo da opressão no Egito. Subsequentemente, o povo foi
divinamente conduzido para a terra da promessa, e recebeu a oportunidade de servir a
Deus e desfrutar das bênçãos da aliança. A terra em que Israel habitou era precursora de
um retorno ao paraíso, e concebida como uma escola de treinamento para aqueles que
desejam viver em obediência ao Senhor. Porém, na época de Jeremias, a história do povo
não era mais a história de seu esforço para realizar este potencial; em vez disso, tinha se
tornado uma história de fracasso. Em termos humanos, a nação tinha se tornado um beco
sem saída. A presença de um povo espiritualmente insensível e rebelde não podia mais
ser tolerada na terra de bênção e promessa, e a cidade de Jerusalém, que, por séculos,
tinha sido o foco da presença divina na terra, seria abandonada por Deus e capturada por
seus inimigos. O povo de Deus seria deportado da terra que lhe fora dada em aliança,
como um símbolo da criação restaurada, porque era incoerente e injusto que aqueles que
tinham se afastado tão flagrantemente de Deus ocupassem e desfrutassem da terra da
sua bênção. Este foi um período de desordem e tragédia, que gerou questões urgentes e
perplexas no coração do remanescente fiel entre o povo. “Rejeita o Senhor para sempre?
Acaso, não torna a ser propício? Cessou perpetuamente a sua graça? Caducou a sua
promessa para todas as gerações? Esqueceu-se Deus de ser benigno? Ou, na sua ira, terá
ele reprimido as suas misericórdias?” (Sl 77.7–9; cf. Sl 79.5). Foi nesse período que
Jeremias foi chamado para ser profeta.
O ministério de Jeremias envolveu a proclamação de um julgamento iminente. O que
estava para acontecer ao povo não era um acontecimento casual na História humana,
nem a consequência de forças econômicas e sociais fundamentais e subsequentes. Era a
expressão do governo soberano de Deus, que determina o fluxo da História humana e cuja
aliança foi violada. Se o povo não respondesse em arrependimento à situação que tinha
surgido por causa de seu pecado, então ele seria varrido para o exílio. Ao longo dos anos,
os repetidos chamados de arrependimento foram rejeitados, e, assim, a catástrofe se
tornou cada vez mais inevitável para a nação. Contudo, mesmo assim, houve
oportunidade para indivíduos escaparem ou mitigarem o impacto do que estava
acontecendo. O que se procurava era fé – um compromisso com o Senhor e uma
aceitação pessoal de que seus propósitos eram determinantes para a vida.
No entanto, o ministério de Jeremias não foi um ministério de trevas sem alívio.
Anunciar de antemão a explicação para o trauma que estava prestes a cair sobre o povo
forneceu a estrutura para a fé sobreviver durante os anos sombrios do julgamento divino.
A capacidade de enfrentar o desastre não seria alcançada mediante um irracional voo
imaginário que nasce da negação da realidade, mas pela aceitação da perspectiva divina
sobre o que estava acontecendo e por quê. Ainda mais significativamente, Jeremias foi
privilegiado por lhe ter sido revelado que a restauração seguiria o julgamento. O Senhor
não permitiria que o pecado, nem mesmo pecado de seu povo, tivesse a palavra final em
seu destino. Seu compromisso pactual com o povo permaneceu mesmo depois de eles
descumprirem suas obrigações para com ele. Por isso ele comissionou Jeremias para
descrever a restauração que aconteceria, e para apresentar a nova aliança que seria
divinamente inaugurada para garantir a permanência das disposições que seriam
instituídas depois que o impacto da catástrofe tivesse sido sentido na vida da nação.
Esta visão da nova aliança é um aspecto da profecia que lhe dá especial importância
para a igreja hoje. Embora tenha havido um cumprimento parcial das promessas da nova
aliança no final dos setenta anos de cativeiro que Jeremias predisse, esse cumprimento
parcial foi substituído pela consumação inaugurada pela vinda de Cristo. A era da nova
aliança é, agora, revelada como tendo duas fases principais, mas já houve uma realização
inicial dela na notável transformação realizada pela obra redentora de Cristo, e no
entendimento e apropriação da igreja dessa salvação mediante o envio do Espírito. A
conceituação dessa mudança como “nova aliança” deve ser traçada até os dias sombrios
do ministério de Jeremias, e, olhando para ela, podemos chegar a uma compreensão mais
profunda dos nossos privilégios.
Ao lado da dupla mensagem que Jeremias tinha de entregar, havia outro aspecto de
seu chamado profético. De uma forma que foi parcialmente antecipada por Oseias e o
casamento que ele fora instruído a contrair (Os 1–3), Jeremias devia tanto viver sua
mensagem quanto proclamá-la. O livro de Jeremias é mais que o registro da história da
nação; e o registro da experiência de rejeição, privação, sofrimento e eventual justificação
do profeta, que é paralela à do povo como um todo. Jeremias viveu em um período de
trevas pessoais e de catástrofe nacional, por isso se deve dar atenção à importância do
próprio homem, juntamente com a mensagem que ele proclamou. Isto também assume
um significado mais profundo à luz da revelação do Novo Testamento, porque não é difícil
detectar os paralelos que existem entre a recepção que Jeremias recebeu e a que foi dada
àquele que “veio para o que era seu, e os seus não o receberam” (Jo 1.11).
Nesta introdução, começamos considerando a natureza da evidência que temos no
livro de Jeremias sobre a vida e o ministério do profeta (§2). Então, visto que o profeta
não falou afastado do mundo de seus dias, mas dirigiu-se diretamente a suas
circunstâncias e necessidades, é feita uma descrição da situação geral que prevalecia em
Judá e nas nações vizinhas na época de Jeremias (3). Depois disso, o curso de sua vida e
sua experiência pessoal são esboçados em termos de eventos contemporâneos (4)
Certamente, Jeremias era, antes de tudo, um profeta. Portanto, é apropriado considerar o
que estava implícito nisso e, em particular, perguntar como ele sabia o que tinha a dizer
(5). Depois que um esboço dos principais elementos da mensagem de Jeremias for
apresentado (6), a seção final da Introdução (7) traz várias observações metodológicas
sobre o conteúdo do comentário. Também deve ser mencionado o Apêndice (encontrado
no final do volume 2), no qual os problemas relacionados ao estabelecimento da
cronologia deste período são examinados mais detalhadamente.
3. O MUNDO DE JEREMIAS
3.1. Introdução. A geografia do Oriente Médio sempre exerceu grande influência
sobre a política da região, e isso aconteceu, sem dúvida, no tempo de Jeremias. O
Crescente Fértil se estende do Golfo Pérsico pelos vales do Tigre e do Eufrates
(Mesopotâmia), desce ao longo da costa oriental do Mediterrâneo (Síria-Palestina) e vai
até o vale do Nilo, no Egito (veja o mapa 2). O controle da estratégica zona central da
Síria-Palestina, onde havia vários pequenos Estados, inclusive Judá, sempre foi importante
no programa das superpotências ao norte ou ao sul, visto que competiam pelo domínio
total da região. Isso requeria consideráveis habilidades diplomáticas e militares por parte
dos governantes dos Estados-tampão, para saberem como adaptar suas políticas às
circunstâncias inconstantes ao seu redor. Isso foi particularmente verdade nos dias de
Jeremias, quando houve uma sucessão de importantes revoltas políticas na região: o
declínio e o fim do império assírio, um fascínio temporário da independência por parte de
Judá, um breve período de domínio egípcio e, a seguir, o domínio cruel do império
neobabilônico sob Nabucodonosor. Saber a quem apoiar e quando fazer isso exigia o
exercício de considerável perspicácia e sagacidade, algo que os governadores de Judá se
mostraram incapazes de realizar e, como resultado, seu estado foi varrido do mapa em
585 a.C.
Também aconteceu que Judá, nos dias de Jeremias, experimentou rebelião interna
quando o rei Josias introduziu amplas reformas religiosas, que tiveram apoio apenas
parcial de seus súditos, de maneira que, durante os reinados subsequentes, as reformas
caíram no esquecimento e várias influências estrangeiras ressurgiram. Embora Josias
tenha reinado com sabedoria e justiça, o mesmo não pode ser dito de seus sucessores.
Uma pressão externa cada vez maior, e uma inquietação e confusão internas constantes
demonstram que, em seus anos finais, Judá foi jogado de uma crise para outra.
Foi neste contexto que Jeremias exerceu seu chamado profético. Os profetas não se
engajaram em discussões teológicas abstratas, mas foram divinamente instruídos a aplicar
a lei do Senhor revelada às especificidades da situação de seus dias. Sua teologia era
intensamente prática, aplicada, e muitas lições ainda podem ser extraídas dela e aplicadas
hoje. Fazer isso sensivelmente requer uma apreciação das circunstâncias contextuais da
época, muitos aspectos dos quais não estão expressamente declarados na literatura
profética, porque seus contemporâneos já estavam familiarizados com eles. Quando nos
tornamos conscientes desta informação compartilhada pelo profeta e seus ouvintes, não
apenas ficamos em posição de entender melhor a mensagem original do profeta, mas
também descobrir as semelhanças e as diferenças entre sua época e a nossa, podendo
aplicar essa mensagem mais seguramente à nossa própria situação. Dessa forma,
podemos desenvolver uma ponte hermenêutica entre as épocas, o que nos capacita a
entender a relevância da mensagem de Jeremias para o presente.
O leitor moderno é favorecido pela considerável quantidade de detalhes disponíveis
sobre o mundo da época de Jeremias. Em muitos pontos, o livro faz contato com eventos
históricos sobre os quais temos outras informações, e aos quais podemos atribuir datas
precisas (para uma discussão mais detalhada sobre a informação cronológica, veja o
Apêndice do volume 2). O que está contido no livro é completado pelas narrativas de
2Reis 21–25 e 2Crônicas 33–36, e há mais material contextual disponível nos escritos dos
profetas contemporâneos: Sofonias, Naum, Habacuque e Ezequiel. Aos dados
escriturísticos foi acrescentado, durante todo o século passado, informação produzida
pela arqueologia. Em 1923, dados das Crônicas Babilônicas de 616–609 a.C. foram
publicados, e, em 1953, a obra foi aumentada pela publicação de mais material da mesma
fonte, sobre os anos 626–623 a.C., 608–595 a.C. e 556 a.C. (Wiseman, 1956). As Crônicas
Babilônicas não são um único documento, mas um conjunto de textos registrados em
escrita cuneiforme bem compacta em prismas de cerâmica. Elas foram compostas no
estilo de um observador imparcial, que apresenta resumos honestos de reinados,
aparentemente baseados em registros anuais de eventos corridos na Babilônia. Assim,
temos um esboço dos principais eventos de partes dos reinados dos reis Nabopolassar
(626–605 a.C.) e Nabucodonosor (605–562 a.C.). Descobertas arqueológicas de um tipo e
outro, incluindo alguns escritos pequenos, mas importantes, aumentam nosso
conhecimento. Embora ainda existam muitas lacunas, somos capazes de apresentar uma
descrição notavelmente completa do que ocorreu. Nesta seção, veremos a história geral
da época e, na próxima, tentaremos colocar a vida de Jeremias nesta moldura.
3.2. A queda de Samaria. Quando Tiglate-Pileser III assumiu o trono assírio, em 745
a.C., teve início um período de expansão imperialista muito bem-sucedido que levou esta
potência mesopotâmica a dominar, por mais de um século, o Oriente Próximo
(confusamente, esta é a mesma região hoje conhecida como Oriente Médio). Por volta de
740 a.C., Tiglate-Pileser tinha conquistado todo o norte da Síria e, em 738 a.C., ele
subjugou a cidade-Estado aramaica de Hamate, forçando outros pequenos reinos da
região a pagar tributo. Entre eles estava Israel, sob o reinado de Menaém (2Rs 15.19–20).
Isto representou o primeiro estágio do controle assírio, no qual uma relação de
vassalagem era estabelecida com o Estado menor, obrigando-o a pagar tributo e a
fornecer soldados quando exigido. O Estado-satélite continuava a ser governado por seu
rei, mas se ele se engajasse em qualquer atividade subversiva, haveria imediata
intervenção militar assíria para depô-lo e instalar um governante mais submisso
(geralmente, ainda da casa real nativa). Neste ponto, o território do Estado seria reduzido,
o valor do tributo aumentado, a política externa do governante monitorada mais de perto
e vários membros da nobreza transportados para partes distantes do império, a fim de
serem usados como reféns contra o comportamento futuro do país e seu regime. O
terceiro estágio da dominação assíria acontecia rapidamente ao menor sinal de
inquietação no território vassalo. Então, seu governante era removido e sua
independência, completamente eliminada. Um governante assírio, com uma equipe de
apoio, era designado para aquilo que era, agora, uma província totalmente integrada ao
império, e havia substanciais deportações adicionais, particularmente das classes mais
altas da nação, e também a introdução de povos estrangeiros na região para diluir a
possibilidade de rebelião eficaz contra a Assíria.
Diante do avanço do poder assírio, Damasco foi capturada em 732 a.C. e o território
do Reino ao Norte, Israel, foi corroído aos poucos mediante a anexação assíria, sob a qual
foi dividido em três províncias. A Oseias, o último rei de Israel, foi confiado um pequeno
reino centralizado em Samaria, mas então, em um ato de grave insensatez,
provavelmente incitado pelos egípcios (2Rs 17.3–4), Oseias decidiu suspender o
pagamento de tributo a Salmaneser V (727–722 a.C.). Isto provocou a inevitável resposta
assíria. O próprio Oseias foi rapidamente capturado, mas sua capital resistiu ao cerco por
três anos antes de ser tomada, em 722 a.C., e incorporada à província assíria de Samerina.
Houve deportações imediatas de Samaria para várias partes da Babilônia e da Média
(2Rs 17.6), seguidas pelo estabelecimento forçado de estrangeiros na terra (2Rs 17.24).
Anos mais tarde, nos reinados de Esar-Hadon (681–669 a.C.; Ed 4.2) e Assurbanípal (669–
627 a.C.; Ed 4.10), houve outros assentamentos de povos estrangeiros. Todos trouxeram
seus próprios deuses e criaram santuários para eles no antigo território de Israel (2Rs
17.29–33). Embora os assírios tenham patrocinado um sacerdote do Senhor que morava
em Betel (2Rs 17.25–28), a situação no norte era de confusão religiosa.
3.3. Assíria e Judá. Judá não foi assolado na mesma época que Samaria porque, em
733 a.C., já era um Estado vassalo da Assíria. Acaz, de Judá (743–715 a.C.), recusou-se a
unir-se à coalizão de nações que se organizaram para resistir à Assíria, e quando a coalizão
se voltou contra Judá, Acaz rejeitou o conselho do profeta Isaías e buscou auxílio em
Tiglate-Pileser III (2Rs 16.7–9). Como resultado desta política, Judá foi obrigado a assumir
os deveres de um vassalo normal. O tributo foi pago ao governante assírio mediante a
retirada do ouro e da prata encontrados no Templo e no tesouro real (2Rs 16.7–9).
Também houve o reconhecimento dos deuses assírios no templo de Jerusalém. Acaz foi
obrigado a comparecer perante Tiglate-Pileser, em Damasco, e prestar reverência aos
deuses assírios em um altar de bronze que havia lá. Uma cópia deste altar foi feita e
colocada no Templo de Jerusalém (2Rs 16.10–15). Quando Acaz morreu, em 715 a.C., ele
deixou para seu filho, Ezequias, um reino basicamente cercado pelo território assírio e no
primeiro estágio de vassalagem ao império.
Em 729 a.C., quando tinha 11 anos de idade, Ezequias subiu ao trono como corregente
com seu pai. Ao assumir o reinado sozinho, iniciou imediatamente várias reformas
religiosas, reabrindo o templo e reinstituindo a Páscoa. Ele se empenhou para integrar os
israelitas remanescentes do norte à adoração em Jerusalém (2Cr 30.1), e também teve
algum sucesso em reivindicar o território filisteu, que fora consideravelmente
enfraquecido pela invasão assíria (2Rs 18.8). Depois de fazer extensas preparações
diplomáticas e militares, Ezequias, encorajado pela inquietação que ocorreu em todo o
império por ocasião da ascensão de Senaqueribe (705–681 a.C.), rebelou-se contra a
Assíria. A resposta demorou a vir enquanto Senaqueribe lidava com problemas em outros
lugares, mas quando veio, foi devastadora.
Em uma forte campanha, Senaqueribe esmagou vários Estados na Síria–Palestina que
eram aliados de Judá. Ele esmagou Sidom e fez Asdode, Amom, Moabe e Edom pagarem
tributo. Os registros assírios relatam que ele conquistou quarenta e seis fortes cidades
fortificadas em Judá. Laquis foi cercada (o que é mostrado em um relevo no palácio real
de Nínive), Ezequias foi “aprisionado como um pássaro em uma gaiola” (ANET, 288) e
forçado a pagar tributo a Senaqueribe (2Rs 18.13–16). Mais uma parte de sua terra foi
anexada e dada aos reis filisteus, e Padi, rei de Ecrom, que tinha sido aprisionado por
Ezequias, foi liberto. Mas os relatos bíblicos e assírios concordam que Jerusalém não foi
tomada em 701 a.C. A preservação milagrosa da cidade se tornaria um elemento
importante no pensamento nacional durante o século seguinte. Isso foi interpretado como
indicação de um compromisso absoluto do Senhor com a preservação de Jerusalém,
independentemente de quão nefastas fossem as circunstâncias e de quão flagrante fosse
a má conduta de seus cidadãos. Isso os encorajou a pensar que eram diferentes do Reino
do Norte, e que tinham o Templo e a dinastia davídica para assegurar a bênção divina
sobre Judá.
Seria errado pensar que a retirada assíria de Jerusalém foi, em algum sentido, uma
vitória de Judá. Os esforços de Ezequias para se libertar da Assíria falharam e ele foi
deixado no trono judeu somente depois de concordar que tinha “agido errado” e que
pagaria tudo o que o rei assírio exigisse dele (2Rs 18.14). Surpreendentemente, à luz do
papel central que tinha desempenhado na revolta, o reino de Ezequias não foi reduzido ao
status de uma província assíria. Isso pode ter acontecido por causa do desejo assírio de ter
Estados-tampão entre seu território e o Egito.
3.4. O reinado de Manassés. Depois da morte de Ezequias, seu filho Manassés (687–
642 a.C.; ele já tinha sido corregente desde os 12 anos, em 697 a.C.) herdou uma terra que
ainda não tinha se recuperado economicamente da devastação causada pela invasão, e
que continuava sendo vassala da Assíria, pagando tributo e fornecendo soldados. Durante
o reinado de Manassés o império assírio alcançou seu ponto máximo. Os sucessores de
Senaqueribe, Esar-Hadon (681–669 a.C.) e Assurbanípal conseguiram invadir o Egito e até
mesmo saquear sua antiga capital, Tebas, em 663 a.C. Com maciças forças militares se
movimentando ao sul ou através de seu território, Manassés não teve opção a não ser
continuar sendo um leal vassalo da Assíria.
Porém Manassés fez mais do que isso. Ele voltou à política pró-Assíria de seu avô,
Acaz. Isso envolveu não simplesmente subserviência política, mas também o
reconhecimento dos deuses da Assíria. De fato, ele foi muito além disso e abriu as portas
para todos os tipos de prática religiosa irregular. Ele cancelou as medidas reformistas de
Ezequias; permitiu a restauração dos santuários locais, deu rédeas soltas às antigas
práticas cananitas, inclusive ao culto a Baal e à edificação de Aserá; e tolerou o culto da
fertilidade, com sua prostituição sagrada até mesmo nos recintos do Templo (2Rs 21.4–7;
Sf 1.4–5). Ao oferecer seu próprio filho, o rei foi ainda mais além, participando do culto a
Moloque, com sua prática de sacrifício humano (2Rs 21.6). Todas estas ações foram
ofensas abomináveis ao Senhor, e durante todo o longo reinado de Manassés houve uma
crescente abertura às práticas pagãs e sua adoção em todo o território de Judá. Este total
menosprezo pela aliança equivalia a uma rejeição da soberania única de Yahweh, o Deus
da aliança com Israel. Uma vez que a lei da aliança foi rejeitada, a violência e a injustiça se
alastraram por toda parte (2Rs 21.16). A enormidade da má conduta religiosa e social de
Manassés constituiu o fundamento adequado para o julgamento que subsequentemente
caiu sobre a nação (2Rs 21.9–15; 24.3–4).
Embora a vida de Manassés tenha terminado com um retorno pessoal ao Senhor (2Cr
33.12–13) e uma correção dos abusos religiosos na terra (2Cr 33.15–17), esta situação
predominou apenas por pouco tempo, porque seu filho Amom (642–640 a.C.)
evidentemente seguiu a política pró-Assíria de seu pai e promoveu sua antiga política
religiosa. Amom reinou por pouco tempo antes de ser assassinado, provavelmente por
oficiais de alto escalão, que podiam estar tentando organizar uma revolta antiassíria. O
“povo da terra” interveio e os assassinos foram executados e Josias, com 8 anos de idade,
neto de Manassés, foi colocado no trono (2Rs 21.23–24). Jeremias nasceu por volta desta
época.
3.5. O declínio do poder assírio. É sempre difícil apontar um evento específico que
marque o fim de um império. O que é óbvio à percepção tardia pode não ter sido tão
óbvio aos observadores da época. Mas quando os assírios mudaram sua política de
manter Estados-tampão entre si e o Egito, e decidiram atacar o Egito, eles
superestimaram a capacidade de sua eficiente máquina militar e administrativa.
Antes do início do reinado de Esar-Hadon, no início do século 7º a.C., a Assíria tinha
quebrado o poder do reino de Ararate, ao norte de seu território (veja 51.27), mas isso a
deixou diretamente exposta às incursões dos cimérios (Gomer) e depois dos citas
(Asquenaz), cujo território fica muito ao norte. Por meios militares e diplomáticos, Esar-
Hadon conseguiu desviar estes povos em direção ao oeste, para a Ásia Menor, e, então,
tendo algum sucesso contra os medos, a nordeste, e tendo feito um tratado com Elão, a
sudeste da Mesopotâmia, o que mais havia para um imperador ativo e agressivo fazer
senão voltar-se para a outra extremidade do Crescente Fértil, em uma campanha contra o
Egito? As batalhas que travou foram, por seu próprio relato, muito sangrentas, mas ele
venceu. Quando o faraó Tiraca fugiu para sua terra natal, a Etiópia, muitos egípcios
nativos ficaram satisfeitos em ver a expulsão da dinastia do sul, e vários deles foram
reconhecidos como príncipes locais, leais à Assíria. Porém os assírios não conseguiram
manter o Egito sob controle. Sempre que seu exército se retirava, Tiraca voltava e, dois
anos mais tarde, Esar-Hadon teve de voltar a lutar no Egito – mas ficou doente e morreu
no caminho. Ele deixou seu reino dividido entre seus dois filhos, Assurbanípal, como rei
em Nínive, e Shamash-shum-ukin como um rei independente, mas subordinado, na
Babilônia.
Assurbanípal continuou a campanha de seu pai, expulsou Tiraca novamente para o sul
e tomou Tebas, no Alto Egito, uns 700 km do Mediterrâneo. Mas foi impossível para a
Assíria manter o Egito sob controle, por mais batalhas que vencessem. As linhas de
suprimento eram muito extensas, as tropas assírias eram insuficientes para guarnecer a
terra eficazmente e havia revolta após revolta. Psamético I (Psamtek, 664–610 a.C.), um
dos príncipes locais, por meio de quem os assírios esperavam controlar o Egito, expandiu
sua influência a partir da cidade de Sais, no delta, por todo o Egito, expulsou os últimos
soldados assírios em 655 a.C. e assumiu o controle do Egito, estabelecendo a 26ª dinastia.
Nesta época Assurbanípal estava totalmente ocupado em uma nova guerra contra
Elão, pois um rei hostil tinha subido ao trono. Mal os elamitas foram esmagados, em 651
a.C., houve uma revolta na Babilônia liderada pelo irmão de Assurbanípal que, embora
fosse estrangeiro, tinha a lealdade do povo local. Shamash-shum-ukin também tinha
tomado providências para criar uma conspiração de amplo alcance, e há aqueles que
sugerem que o aprisionamento de Manassés na Babilônia (2Cr 33.11) indica que até
mesmo Judá estava participando dela. Foram necessários três anos de duras batalhas para
Assurbanípal assegurar a vitória. Shamash-shum-ukin morreu nas chamas de seu próprio
palácio na Babilônia (648 a.C.). Logo depois ele tratou das tribos árabes que tinham se
unido à confederação, mas não com facilidade. Elão foi finalmente esmagado (639 a.C.) e
sua capital, Susã, saqueada. Mas embora Assurbanípal tenha restaurado um aparente
controle sobre seus domínios dispersos, tudo isso tinha cobrado seu preço da Assíria,
militar, econômica e politicamente.
Muito pouca coisa se sabe sobre a última década do reinado de Assurbanípal, mas o
exército assírio estava exausto com as constantes batalhas difíceis, e o imperador não
tinha amigos verdadeiros em nenhum lugar. A Babilônia, em particular, era muito hostil e,
além das montanhas orientais, os medos faziam pouca questão de esconder sua
hostilidade. A guerra civil eclodiu na Assíria provavelmente antes da morte de
Assurbanípal, em 627 a.C.
O último governador da Assíria na Babilônia, um caldeu chamado Nabopolassar,
rebelou-se logo que ouviu sobre a morte de Assurbanípal, e, depois de derrotar as forças
assírias, em outubro de 626 a.C., declarou-se rei da Babilônia. Os reis subsequentes da
Assíria, Ashur-etil-ilani (627–623 a.C.) e Sin-shar-ishkun (623–612 a.C.), lutaram contra
Nabopolassar com toda a agressividade que puderam, mas gradualmente ele provou ser
mais forte. A antiga capital, Assur, foi sitiada por breve tempo, em 616 a.C., e a Assíria, em
desespero, buscou a ajuda do Egito, mas ela não chegou a tempo de mudar a situação. Os
exércitos da Babilônia foram repentinamente reforçados pelos medos, cujo rei, Ciaxeres,
invadiu a Assíria sem aviso, em 615 a.C. Ciaxeres capturou Assur em 614 a.C. e, então, os
dois exércitos aliados uniram forças para o ataque final a Nínive, que capturaram em 612
a.C. Com a morte de Sin-shar-ishkun, um oficial do exército se fez rei com o nome de
Ashur-uballit, e estabeleceu sua corte em Harã, na Síria, com apoio do Egito. Dois anos
mais tarde, esta última fortaleza caiu diante dos babilônios e seus aliados, que
subsequentemente rechaçaram um contra-ataque, em 609 a.C., e com esta derrota as
últimas brasas do império assírio foram extintas. Os povos de toda a região não
derramaram lágrimas pela morte de um conquistador cruel e odiado, mas esperaram, em
confusão, pelo que viria depois.
3.6. As reformas de Josias. Foi durante o período do rápido colapso do poder assírio
que Josias se tornou rei, em 640 a.C., quando tinha apenas 8 anos de idade. Durante sua
menoridade, o governo da terra deve ter ficado nas mãos dos principais membros da
corte. Até onde podemos averiguar, esses homens não apenas tinham sentimentos
antiassírios (e por isso estavam dispostos a qualquer coisa que afirmasse a identidade
nacional de Judá em oposição aos seus odiados dominadores), mas também simpatizavam
genuinamente com a adoração ao Senhor.
Há duas extensas narrativas sobre Josias em 2Reis 22–23 e 2Crônicas 34–35, as quais
se concentram principalmente em suas reformas religiosas. Embora ambos os relatos
mencionem a remoção do culto pagão promovida por ele, a descoberta do Livro da Lei, a
renovação da aliança e a celebração da Páscoa, este último item recebe maior atenção em
Crônicas, enquanto que Reis enfatiza o primeiro. “O escritor de Reis não tenta fazer um
relato consecutivo e exaustivo do reinado de Josias. Ele reinou por trinta e um anos, mas o
tema do escritor é suficiente e admiravelmente ilustrado por holofote colocado sobre um
importante incidente que ocorreu perto da metade de seu reinado” (Robinson, 1951:5). A
partir do relato de Crônicas, porém, fica evidente que as reformas de Josias aconteceram
em estágios.
No oitavo ano do reinado de Josias (633/32 a.C.), quando tinha 16 anos de idade, ele
começou a buscar ao Senhor, e quatro anos mais tarde, no décimo-segundo ano de seu
reinado (629/28 a.C.), aos 20 anos de idade, ele começou a purificar Judá e Jerusalém (2Cr
34.3). Depois de outros seis anos, no décimo-oitavo ano de seu reinado (623/22 a.C.), a
reforma do Templo teve início (2Rs 22.3; 2Cr 34.8) e foi encontrado o “Livro da Lei” (2Rs
22.8) ou “o Livro da Lei do Senhor, dada por intermédio de Moisés” (2Cr 34.14). “O
cronista torna explícito o que provavelmente está implícito no relato de Reis, a saber, que
o livro foi, na verdade, encontrado antes da reforma do Templo começar, e
presumivelmente no lugar, ou próximo dele, onde o dinheiro tinha sido guardado”
(Robinson, 1951:7). O livro era um único rolo, que provavelmente continha o livro de
Deuteronômio. Embora as descrições dadas sobre ele sejam idênticas àquelas
frequentemente empregadas para todos os cinco livros de Moisés, o fato de que o relato
se refere a um único rolo faz com que seja provável que ele tivesse apenas um livro. Pela
reação das pessoas envolvidas, fica óbvio que o livro tinha autoridade inquestionável e
que seu conteúdo não tinha sido lido em nenhuma assembleia de Israel durante a vida das
pessoas presentes (Robinson, 1951:31–2). “A principal ênfase no relato de Reis da
descoberta do livro não é a exigência de uma revolução na prática religiosa, mas a
revelação da condenação que é iminente por causa do pecado de Manassés, mesmo
apesar da humildade de Josias. Ele não manda perguntar o que devia fazer, mas se a
ameaça é realmente verdadeira. Hulda não dá ordem a Josias para começar uma grande
reforma, simplesmente reconhece que a ameaça é exatamente como o livro afirma”
(Robinson, 1951:11).
Quando Josias se interessou pelos assuntos religiosos, podemos presumir que foi
informado sobre as exigências essenciais da Lei mediante a instrução de uns poucos
remanescentes fiéis entre os sacerdotes e profetas, mas esses homens estavam se
baseando apenas no ensino e na tradição oral. Quando foi feita a descoberta do rolo,
parece terem sido as maldições da quebra da aliança, encontradas em Deuteronômio 27–
28, que mostraram ao rei o terrível perigo que a nação corria por causa da apostasia dos
setenta anos anteriores. Ele, por isso, continuou e ampliou seus esforços reformistas
anteriores. O uso de lugares altos para a adoração ao Senhor foi suprimido. Fazendo uma
analogia com o que Moisés tinha feito nas planícies de Moabe, Josias solenemente
renovou a aliança do povo com o Senhor e exigiu que todos em Judá e Jerusalém se
comprometessem com ela (2Rs 23.1–3; 2Cr 34.29–32). Ele convocou uma Páscoa em
Jerusalém, para lembrar o povo sobre o modo pelo qual foi divinamente liberto do Egito.
Sem dúvida, o tema da liberdade também se encaixava ao sentimento nacionalista
predominante da nação enquanto ela reconquistava o controle sobre seus próprios
negócios durante a retirada dos assírios. Josias também procurou ampliar sua purificação
para o território do antigo Reino do Norte, destruindo os ídolos encontrados ali (2Rs
23.15–20; 2Cr 34.6–7, 33). Isto, é claro, só foi possível por causa do colapso do controle
assírio naquela região. Mesmo assim, de modo algum isto significa que Josias conseguiu
anexar essa área; apenas que exerceu influência sobre ela. A evidência arqueológica
também sugere que Josias conseguiu fazer sua presença ser sentida na região da Filistia.
Isto, é claro, não aconteceu da noite para o dia. Na medida em que a influência assíria
diminuía, Josias se tornava mais confiante e expansivo.
É provável que esta influência estendida seja um fator a ser levado em conta ao se
buscar uma explicação para o embaraçoso incidente no final da vida de Josias, quando
encontrou seu fim nas mãos do Faraó Neco II (610–595 a.C.). O Egito, sob Psamético I, por
muitos anos, foi levantando recursos para restabelecer sua influência na Síria-Palestina.
Seu objetivo, ao contrário de demonstrar simpatia pelos assírios, era arrastar o Egito para
o conflito com a Babilônia, e as forças egípcias começaram a ajudar os assírios já em 616
a.C. Josias provavelmente entendeu a importância disso a longo prazo para a
independência de Judá. Embora Neco tenha lhe assegurado de que não tinha intenções
hostis contra Judá (2Cr 35.21), Josias insistiu em atacá-lo quando ele avançou para o
norte, em 609 a.C. Este pode ter sido um gesto pró-Babilônia, na esperança de que,
quando a Babilônia fosse vitoriosa (ela já tinha imposto um severo golpe sobre os egípcios
e seus aliados no ano anterior), ela respeitaria a independência de Judá e a soberania de
Josias sobre o território israelita e filisteu. Seu movimento falhou tragicamente, Josias foi
morto e Judá caiu sob a hegemonia egípcia.
3.7. O reinado de Joacaz/Salum (609 a.C.). Com a morte de Josias, o “povo da terra”
colocou seu filho Salum no trono (2Rs 23.30–31), ignorando seu irmão mais velho (2Rs
23.36). Salum assumiu o trono com o nome de Joacaz, mas seu reinado durou apenas três
meses. Conquanto Neco não tenha tido sucesso em seu objetivo de retomar Harã dos
babilônios, estes estavam ocupados demais com outros assuntos para levar adiante sua
vitória e o controle egípcio sobre a Síria-Palestina permaneceu por vários anos. Quando
Neco retornou do norte da Síria, Joacaz se apresentou a ele em Ribla, reconhecendo
voluntariamente a submissão de Judá ao Egito. Apesar disso, ele foi colocado em cadeias e
destituído de seu governo. Uma modesta multa de cem talentos de prata e um talento de
ouro foi imposta a Judá, e Joacaz foi levado ao exílio no Egito, onde morreu (2Rs 23.33–
34). Ainda que Joacaz não tenha favorecido a reforma religiosa (2Rs 23.32), Jeremias
expressou compaixão por seu destino (Jr 22.10–11).
3.8. O reinado de Jeoaquim/Eliaquim (609–598 a.C.). O irmão mais velho de Joacaz,
Eliaquim, foi, então, colocado no trono como um nomeado egípcio e recebeu o nome de
Jeoaquim. Ele era um homem irreligioso e determinado, cujo foco estava em seu próprio
poder e prestígio. A nação já estava consciente de seu caráter e de suas políticas, e o tinha
deixado de lado deliberadamente três meses antes. Sua postura pró-Egito e seu governo
tirânico foram profundamente impopulares, uma atitude intensificada pelo imposto que
ele criou para pagar o tributo exigido de Judá por Neco. Jeoaquim não usou o tesouro real
ou do Templo, mas, em vez disso, tirou a prata e o ouro do povo da terra mediante um
imposto especial (2Rs 23.35).
Completamente consciente de como tinha chegado ao poder e do desgosto que seus
conterrâneos sentiam por ele, Jeoaquim procurou aumentar seu prestígio cercando-se
com a pompa da monarquia. Em algum ponto de seu reinado, provavelmente durante os
primeiros anos, quando era um vassalo do Egito, ele começou a construção de um novo
palácio real, mas não à sua própria custa (Jr 22.13). Um selo, provavelmente desta época,
foi encontrado com a inscrição: “Pertencente a Palayahu, que está sobre o trabalho
compulsório”. Provavelmente Jeoaquim, procurando competir com as realizações
arquitetônicas de Salomão, também tenha recorrido à prática de usar trabalho
compulsório. Seja como for, Jeremias foi rigoroso em sua denúncia (Jr 22.13–19).
O estado religioso da nação se deteriorou rapidamente sob o governo de Jeoaquim.
Mesmo durante o governo de Josias, o movimento de reforma já tinha perdido a força,
mas agora ela foi interrompida, talvez até revertida. Jeoaquim não tentou introduzir
práticas pagãs específicas. Em 2Reis 23.37, ele é condenado na frase geral de fazer o que
era mau aos olhos do Senhor, como seus pais, e nenhuma acusação específica de
malversação religiosa é feita contra ele. Por exemplo, não há acusação de que ele tenha
restaurado os lugares altos e encorajado a adoração ali. O santuário central continuou a
ser o foco da vida religiosa organizada e reconhecida na nação. Mas Jeoaquim não era um
homem religioso; ele teve pouco interesse em promover ou em se opor a qualquer
opinião religiosa em e por si mesma. Sua posição política era o seu foco de interesse.
Quando extraditou o profeta Urias do Egito e o assassinou (Jr 26.20–23), foi porque
considerou suas declarações sediciosas (não heréticas), capazes de minar o regime.
O ímpeto por trás do programa de reforma de Josias sempre foi o envolvimento
pessoal do rei. Sem ele, o povo logo mostrou quanto seu compromisso com o Senhor era
superficial, e quão pequeno foi o impacto que sofrera, apesar dos esforços de Josias. As
práticas pagãs, que provavelmente nunca foram totalmente suprimidas, foram
novamente expostas abertamente. Embora Judá alegasse aderir à aliança, a
superficialidade e o nominalismo de sua prática religiosa revelavam a extensão em que a
mentalidade nacional foi desvirtuada durante os anos da apostasia de Manassés. O
ressurgimento de outros cultos, porém, não era algo que preocupava Jeoaquim.
Nos quatro primeiros anos do reinado de Jeoaquim, o campo de batalha entre Egito e
Babilônia fica ao norte da Palestina, ao longo do rio Eufrates. Durante este período,
Jeoaquim permaneceu leal ao Egito, mas tudo mudou abruptamente com a derrota
egípcia na Batalha de Carquemis, no verão de 605 a.C. A vitória esmagadora do príncipe
babilônico Nabucodonosor reverteu completamente o equilíbrio de poder na Síria-
Palestina, e ele aproveitou cruelmente esta vantagem, derrotando os egípcios novamente
em Hamate e empurrando os sobreviventes de volta às suas próprias fronteiras. “O rei do
Egito nunca mais saiu da sua terra; porque o rei da Babilônia tomou tudo quanto era dele,
desde o ribeiro do Egito até ao rio Eufrates” (2Rs 24.7). O modo pelo qual a feroz invasão
babilônica enfraqueceria o moral dos habitantes locais foi previsto na descrição de
Habacuque 1.6–11. Diante desta potência, Jeoaquim não tinha opção, senão submeter-se.
Seguindo a antiga prática assíria, esta submissão parece ter ocorrido em dois estágios. Na
primeira perseguição de Nabucodonosor aos egípcios em direção ao sul, ele tomou reféns
e exigiu tributo dos Estados que anteriormente tinham estado sob o governo do Egito, e
Judá não foi isento disso. Seus reféns incluíam o jovem Daniel (Dn 1.1–3; veja também o
Apêndice 7, no volume 2). Depois de ser entronizado, Nabucodonosor parece ter voltado
anualmente à Síria-Palestina, muito notavelmente no final de 604 a.C., quando conquistou
a cidade filisteia de Ascalom, que tinha se recusado a render-se, e levou seu rei para o
cativeiro. Durante uma dessas campanhas, os acordos com Judá e Jeoaquim foram
colocados em bases mais formais, porque 2Reis 24.1 registra que Jeoaquim se tornou
vassalo de Nabucodonosor por três anos. Como isso terminou em 601 ou 600 a.C., o texto
provavelmente se refere às circunstâncias de 604 ou 603 a.C.
O relato babilônico da campanha que Nabucodonosor empreendeu no quarto ano de
seu reinado (primavera de 601 – primavera de 600 a.C.) é importante porque narra um
ataque ao Egito, no qual os dois exércitos impuseram grandes danos um ao outro, no
inverno de 601/600 a.C. Nenhum dos dois pôde reivindicar vitória, como a Crônica
Babilônia implicitamente reconhece, ao registrar que, no ano seguinte, Nabucodonosor
não saiu em campanha, mas ficou na Babilônia restaurando suas forças e reequipando
seus carros de combate. Os egípcios, enquanto isso, sentiram-se suficientemente
confiantes para fazer uma demonstração de força no sul da Palestina. Esses eventos
levaram Jeoaquim a transferir sua submissão da Babilônia para o Egito. Nabucodonosor
não conseguiu responder diretamente à rebelião judaica pelos dois anos seguintes,
usando, em vez disso, incursões punitivas realizadas por seus aliados (2Rs 24.2). Sua
reação principal veio no inverno de 598/597 a.C., quando o exército babilônico levantou
cerco contra Jerusalém. Parece, porém, que Jeoaquim morreu antes de o cerco começar,
em dezembro de 598 a.C. Os eventos que envolvem sua morte não são claros, e há a
possibilidade de traição. Seu governo tirânico tinha feito com que ele fosse odiado por
todos, e sua morte, seja qual for o motivo, foi pouco pranteada (Jr 22.18; 36.30).
3.9. O reinado de Joaquim (597 a.C.). O reinado de Joaquim, filho de Jeoaquim
(também conhecido como Jeconias ou Conias), durou apenas três meses e dez dias. Um
dos aspectos mais notáveis da Crônica Babilônica é o relato que faz do fim de seu reinado.
No sétimo ano, no mês de Quisleu, o rei de Acade reuniu suas tropas, marchou até a
terra de Hatti e acampou contra a cidade de Judá, e, no segundo dia do mês de Adar,
ele conquistou a cidade e capturou o rei. Ele designou ali um rei de sua própria
escolha [literalmente, “de seu próprio coração”], recebeu seu pesado tributo e os
mandou para a Babilônia (Wiseman, 1956:73).
“O rei de Acade” é o termo empregado nas Crônicas para designar o rei da Babilônia,
neste caso Nabucodonosor, e, pela datação babilônica, o sétimo ano desse rei começou
na primavera de 598 a.C., de modo que o mês de Quisleu, no sétimo ano, caiu entre 18 de
dezembro e 15 de janeiro de 597 a.C. “Terra de Hatti” é um termo geográfico babilônico
usado para designar a região Síria-Palestina (aqui, obviamente, incluindo Judá). A distância
que o exército de Nabucodonosor teve de marchar para chegar a Judá torna improvável
que ele tenha levado mais de uma semana cercando Jerusalém (certamente menos de um
mês) antes que a cidade fosse conquistada. O fato de a Crônica excepcionalmente
registrar a data exata enfatiza a importância, para os babilônios, da captura desta cidade
rebelde ou a rapidez com que isso foi feito. Nabucodonosor foi à cidade uma vez, quando
seu exército a sitiava (2Rs 24.11) e capturou a “cidade de Judá” (i.e., Jerusalém; cf. 2Cr
25.28 para a expressão) em 16 de março de 597 a.C. Visto que Joaquim preferiu se
entregar a continuar resistindo aos babilônios, ele foi deposto, mas sua vida foi poupada.
Sua rendição também significou que Jerusalém não foi saqueada e destruída. Joaquim,
juntamente com a família real e muitos nobres e líderes de Judá, incluindo o profeta
Ezequiel, foi levado para o exílio. Embora o rei tenha permanecido em confinamento na
Babilônia, parece que ele recebeu um tratamento especial e a família real não foi
separada (ANET, 308). De fato, os babilônios podem ter continuado a considerá-lo como o
rei de Judá. No trigésimo-sétimo ano de seu exílio, ele foi liberto da prisão (52.31–34),
mas não teve permissão para voltar a Jerusalém.
3.10. Zedequias/Matanias (597–586 a.C.). Nabucodonosor não deixou Judá sem um
rei, designou Matanias, outro filho de Josias e tio do exilado Joaquim, para o trono, e
passou a chamá-lo de Zedequias. Ele surge como um governante indeciso e ineficaz, e foi
colocado em uma situação basicamente insustentável. Grande parte do povo de Judá,
assim como aqueles no exílio na Babilônia, continuaram a considerar Joaquim como seu
rei, e surgiu a expectativa de seu restabelecimento (Jr 28.4). A terra perdera sua elite
administrativa e muitos de seus habilidosos artífices, de modo que a economia estava
fraca. Além disso, havia um profundo dilema interno entre aqueles que eram favoráveis à
aceitação do domínio babilônico e um grupo, que incluía os oficiais do exército e muitos
profetas, que eram favoráveis ao Egito e incitavam a rebelião. Durante a primeira parte de
seu reinado, Zedequias procurou conter o partido pró-Egito (sem dúvida, a necessidade de
reunir homens e material o ajudou a refrear sua beligerância), mas eventualmente esse
partido conseguiu arrastar o rei para a rebelião contra a Babilônia. No quarto ano de seu
reinado (594–593 a.C.), houve uma conspiração com vários Estados vizinhos (Jr 27.3), com
a conivência do recém-entronizado Faraó Psamético II (595–589 a.C.). Porém, por motivos
desconhecidos, os planos fracassaram, e Zedequias renovou seu compromisso de lealdade
a Nabucodonosor, indo pessoalmente à Babilônia (Jr 51.59).
Em 592 a.C., logo depois de voltar de uma campanha vitoriosa contra a Núbia
(Etiópia), Psamético II fez uma espécie de passeio pela Palestina, onde Nabucodonosor
não fazia campanhas desde 594 a.C. Talvez isso tenha sido mais uma celebração de vitória
do que uma incursão militar, mas deve ter sido interpretado como uma reafirmação do
interesse egípcio na região. Ezequiel se refere a Zedequias, por volta deste período, como
tendo voltado atrás em seu compromisso solene com Nabucodonosor e recorrendo ao
Egito em busca de ajuda (Ez 17.11). Parece que ele não conseguiu os homens ou as armas
que pediu, mas certamente recebeu promessas e, encorajado por isso, em 590 ou 589 a.C.
Zedequias não enviou o tributo anual à Babilônia (2Rs 24.20), e deste modo declarou
rebelião aberta. A Ostraca de Laquis III mostra a extensão do envolvimento egípcio, pois
registra a visita de um general judeu ao Egito para negociar a ajuda (ANET, 322). Josefo diz
que Tiro se uniu a esta revolta (Ag. Ap. 1.21) e Amom também se rebelou (Ez 21.18–23).
Nabucodonosor não demorou a reagir à rebelião de Zedequias. O cerco a Jerusalém
começou no décimo dia, do décimo mês, do nono ano de Zedequias (2Rs 25.1), o que é
equivalente a 15 de janeiro de 588 a.C. Nesta ocasião, as forças babilônicas se espalharam
por todo o território de Judá, capturando e destruindo suas cidades fortificadas e
saqueando a terra. A Ostraca de Laquis nos dá uma noção da tensão experimentada neste
período. O comandante de uma das fortalezas escreveu ao seu superior em Laquis,
dizendo: “E que [meu senhor] saiba que estamos esperando os sinais de Laquis, de acordo
com todas as indicações dadas pelo meu senhor, pois não conseguimos ver Azeca”
(Ostracon IV; ANET 322; cf. Jr 34.7). Parece que Azeca já tinha sido tomada pelos
babilônios. A situação foi agravada pelos conselhos divididos dentro da cidade, do que a
Ostraca IV fornece evidência (ANET 322; cf. Jr 38.4). Durante o cerco, o Egito, sob o Faraó
Ofra (Apries, 589–570 a.C.), fez um gesto de apoio enviando tropas à Palestina, e também,
segundo parece, preparando sua frota (Heródoto, Hist. 2.161). Para enfrentar esta
ameaça, os babilônios temporariamente suspenderam o cerco a Jerusalém (Jr 37.6–10),
mas depois de alguns meses os egípcios se retiraram sem que houvesse uma grande
batalha contra os babilônios e o cerco foi retomado e mantido até julho de 587 ou de 586,
quando os suprimentos acabaram totalmente. Quando a queda de Jerusalém é datada em
587/86, isto não é um exemplo de um ano antigo sobrepondo dois dos nossos anos. Há
uma dúvida genuína quanto ao ano em que Jerusalém caiu, e sobre se o cerco durou
dezoito ou trinta meses. Para mais detalhes, veja volume 2, Apêndice, §§11–12.
Quando o muro da cidade foi rompido, Zedequias conduziu um grupo de soldados, à
noite, pela brecha do muro (Jr 39.4; 52.7), provavelmente tentando fugir para Amom, do
outro lado do Jordão, que também havia se rebelado nessa época. O rei não foi muito
longe antes de ser capturado e levado a Ribla, na Síria, onde Nabucodonosor tinha seu
quartel general. Ali os filhos de Zedequias foram mortos na sua frente, e seus próprios
olhos foram arrancados antes de ser levado para a Babilônia (Jr 39.5–7).
Jerusalém foi sistematicamente saqueada e destruída antes do Templo e outros
edifícios importantes serem queimados, em 17 de agosto de 586 a.C. (Jr 52.12), um mês
depois da queda da cidade. Os babilônios deram continuidade à prática assíria de
deportação em massa dos povos rebeldes, por isso, muitos dos que foram capturados em
Jerusalém e muitos dos que tinham sido anteriormente se renderam aos babilônios e
foram levados ao exílio (Jr 39.9). Contudo, diferentemente da política assíria, colonos não
foram trazidos de outras regiões e um governador nativo foi designado para a terra.
Muitas das pessoas mais pobres, que não tinham as habilidades que eram necessárias na
Babilônia, foram deixadas na terra de Judá para manter ali uma economia de subsistência.
3.11. O governo de Gedalias (586 a.C.). O governador que os babilônios designaram
sobre a terra foi Gedalias, membro de uma preeminente família de Jerusalém que tinha
uma postura pró-Babilônia. Gedalias tinha exercido anteriormente uma alta posição na
administração de Zedequias, e parece ter desempenhado a tarefa que lhe foi confiada
com considerável habilidade. Ele encorajou os sobreviventes que não foram exilados e
também os que fugiram como refugiados para Estados vizinhos a formarem uma
comunidade viável na terra (Jr 40.7–11). Ele mesmo ficou residindo em Mispa, no
território de Benjamim, porque era um local que não tinha sido destruído nas recentes
batalhas. Todavia, o governo de Gedalias foi breve, porque ele foi assassinado por Ismael,
membro da família real de Davi, que estava provavelmente agindo em comum acordo
com Baalis, o rei amonita. Ismael não conseguiu ganhar o apoio dos que foram deixados
na terra, e fugiu novamente para Amom (Jr 41.1–14). Como os remanescentes defensores
de Gedalias ficaram com medo das represálias babilônias, eles seguiram para o sul, para o
Egito, e se estabeleceram lá (Jr 43.4–7). Não é clara a situação que deixaram para trás, em
Judá. Presumivelmente havia algumas pessoas vivendo com dificuldade nas ruínas da
terra, cujas defesas e economia estavam totalmente destruídas. Viviam passivamente sob
controle babilônio, preocupadas em sobreviver, não em rebelar-se. “Todo o seu povo
anda gemendo à procura de pão; deram eles as suas coisas mais estimadas a troco de
mantimento para restaurar as forças” (Lm 1.11).
3.12. A comunidade do exílio. Mesmo antes do período de Nabucodonosor, havia
uma grande comunidade de Israel e de Judá na Mesopotâmia. Tiglate-Pileser II havia
começado o processo de deportação de israelitas de Gileade e da Galileia em 732 a.C. (2Rs
15.29), e os registros assírios listam 27.290 exilados em conexão com a queda de Samaria.
Não muito tempo depois, Senaqueribe removeu 200.150 pessoas de Judá (ANET 288).
Esses grupos foram assentados em várias partes da Mesopotâmia (2Rs 17.6). Quase nada
se sabe sobre sua história subsequente, mas pode-se presumir que, enquanto a maior
parte foi absorvida em seu novo ambiente, alguns, de alguma forma, uniram-se aos
grupos daqueles que foram posteriormente deportados pelos babilônios. Depois desta
primeira deportação em escala razoavelmente pequena, em 605 a.C. (Dn 1.1–3),
deportações mais substanciais ocorreram em 597 a.C. e em 586 a.C., e houve a
deportação de outros grupos menores, inclusive um em 582 a.C. (Jr 52.28–30).
A própria Babilônia foi o principal centro receptor destes que foram deportados
posteriormente (Sl 137.1; Ez 1.3). Nabucodonosor estava empenhado na realização de
grandes obras públicas na região, e as habilidades de artesãos podiam ser usadas
prontamente. Surgiu, assim, uma comunidade viável, reunida ao redor do deposto rei
Joaquim, e que mantinha sua própria organização social, que incluía anciãos (Jr 29.1) e
certa medida de autonomia. A comunidade parece ter desfrutado de uma boa medida de
prosperidade. Os artesãos que eram empregados nos projetos do Estado recebiam do
tesouro real. Inicialmente, os exilados receberam doações de terras, as quais eles
cultivavam como arrendatários (Jr 29.5), e sabe-se, a partir de outros registros, que muitos
logo se engajaram no comércio. A quantidade de ofertas enviadas a Jerusalém depois do
exílio mostra uma comunidade que de modo nenhum era empobrecida (Ed 1.6; 2.68–69).
Aliás, o fato de que muitos não retornaram, mas se contentaram em permanecer na
Babilônia, mostra quanto se consideravam confortáveis ali. A comunidade adotou a língua
aramaica como seu meio habitual de comunicação, e desistiu do seu o velho modo
hebraico de escrever. Outra assimilação cultural inclui a adoção de nomes babilônios para
os meses do ano e o uso de muitos nomes próprios ao estilo babilônio. Entretanto,
mantiveram sua identidade étnica e nacional, basicamente porque conservaram suas
práticas religiosas como a circuncisão e a guarda do sábado. Muitos atribuem a origem da
sinagoga ao modo de adoração organizado entre os exilados.
3.13. A queda da Babilônia. Os detalhes sobre os últimos anos de Nabucodonosor são
incompletos porque as Crônicas Babilônicas do período não foram encontradas. Josefo
(Ant. 10.9.7) menciona que, no vigésimo-terceiro ano de seu reinado (582/81 a.C.), depois
de derrotar Moabe e Amom, Nabucodonosor atacou o Egito, matou seu rei, instalou outro
governante ali e levou os refugiados judeus para a Babilônia. Este relato tem problemas;
por exemplo, não há registro de nenhuma transição de poder nessa época no Egito.
Porém, a continuação da atividade babilônica não é improvável. Um texto cuneiforme
fragmentário de mais de uma década mais tarde (Wiseman, 1985:39–41) indica que
Nabucodonosor tirou vantagem da confusa transição de poder de Ofra para Amose II
(Amasis) para invadir o Egito, por volta de 568 a.C.; não para ocupar o país, mas para
impedi-lo de se envolver mais em aventuras além-mar, em Chipre e na Fenícia (cf. Jr
43.13). Assim, até onde podemos dizer, Nabucodonosor manteve até o fim uma forte
presença em toda a região.
Contudo, depois da sua morte, em 562 a.C., o império neobabilônico se desintegrou
rapidamente. Ele foi sucedido por seu filho, Amel-Marduque (Evil-Merodaque, 52.31), que
governou por dois anos, em 562–560 a.C., durante cujo tempo tratou bondosamente a
Joaquim (52.31–34). Ele foi assassinado por seu cunhado, Nergal-šar-ucur (Neriglissar,
560–556 a.C.), que provavelmente deve ser identificado com o Nergal-Sarezer de Jeremias
39.3. Durante seu reinado, ele fez uma campanha na Ásia Menor, mas no caminho para
casa sucumbiu a uma misteriosa enfermidade. Seu jovem filho, Labashimarduque, reinou
por apenas nove meses, antes de ser desapossado por um golpe militar.
Nabonido (556–539 a.C.), comandante militar de Harã, no norte da Síria, era muito
impopular na Babilônia por causa de suas políticas religiosas, que se concentravam em
substituir a tradicional adoração babilônica do deus-sol Marduque pela adoração à deusa-
lua Sin, que era a principal divindade de sua terra natal e de muitos outros lugares do
império. De fato, Nabonido não se importava muito com a Babilônia, ou achava as
condições ali hostis demais para se ter conforto. Viveu em Tema durante a maior parte de
seu reinado (Jr 25.23), um oásis na fronteira ocidental do norte do deserto da Arábia, e
deixou a condução dos assuntos da Babilônia entregue a seu filho Belsazar.
Militarmente, Nabonido e Belsazar não estavam à altura de um dos maiores reis e
conquistadores da História, Ciro II, que herdou o trono da Pérsia e de Ansã, dois pequenos
Estados no Golfo Pérsico, em 559 a.C. Em 550 a.C., ele derrotou o muito maior Estado da
Média, ao norte, para criar o império medo-persa e, a seguir, consolidou passo a passo
sua posição ao norte da zona de influência babilônica (veja Jr 51.27), alcançando as
cidades gregas da Ásia Menor, conquistando Sardes, a capital da Lídia, em 547 a.C., e
então estendendo seus domínios para o oriente até a Índia. Depois disso, Ciro estava em
posição de se mover para o sul, contra o império babilônico. Embora Nabonido tenha
tardiamente retornado à Babilônia, nem ele nem Belsazar tiveram apoio de seus súditos.
A principal batalha contra as forças medo-persas foi travada e perdida em Ofir, no Tigre,
no fim de setembro de 539 a.C., e, em 12 de outubro, as tropas de Ciro entraram na
Babilônia sem encontrar real oposição (veja Jr 50.24). Belsazar foi morto e Nabonido,
capturado e exilado. Em 29 de outubro (datas como na ISBE 3:469), o próprio Ciro entrou
na cidade em procissão triunfal, sendo recebido por seus habitantes como seu libertador.
A política religiosa de Ciro era notavelmente tolerante para a época. Ele instituiu um
programa de repatriamento de povos deportados e restauração das imagens de seus
deuses aos seus templos. Como parte desta política lúcida, os judeus tiveram permissão
para voltar a Jerusalém e começar a obra de restauração do Templo (Ed 6.13). Ciro
também lhes devolveu os artigos de prata e de ouro que os babilônios tinham saqueado
dele (Ed 1.9–11; 6.14). Assim ocorreu a profetizada libertação dos judeus e começou uma
nova era em sua história.
4. AVIDADE JEREMIAS
Embora saibamos mais sobre as circunstâncias da vida de Jeremias do que da vida de
Isaías ou Ezequiel, e muito mais do que sabemos sobre qualquer um dos profetas
menores, isto ainda não é suficiente para nos permitir compor algo como uma biografia
no sentido moderno do termo. Por outro lado, não é possível rejeitar os detalhes da vida
de Jeremias como altamente irrelevantes alegando que o que realmente importa é a
mensagem que ele anunciou, não seu curriculum vitae. O registro que temos nos dá um
acesso relevante à vida interior do profeta, e mostra Jeremias como a encarnação viva de
sua proclamação. Nisto, ele se assemelha muito ao profeta anterior Oseias, cujas
circunstâncias ligadas ao casamento são parte da mensagem que ele tinha de comunicar.
Também no caso de Jeremias, o homem desempenha um papel importante na
apresentação profética da mensagem do Senhor ao seu povo rebelde.
Jeremias registra muito pouco sobre o início de sua vida. Sabemos que era filho de
Hilquias, um sacerdote que viveu em Anatote, e que, quando seu pai foi informado sobre
seu nascimento, isso foi motivo de grande alegria para ele (Jr 20.15). Como foi para
Anatote que o sumo sacerdote Abiatar foi enviado ao exílio interno por Salomão (1Rs
2.26–27), existe a possibilidade de que Hilquias e Jeremias sejam descendentes dele, mas
outras famílias levíticas também teriam residido em uma cidade sacerdotal tão próxima
de Jerusalém. De qualquer forma, a família possuía uma propriedade nesta região (Jr
32.9), e não há razão para supor que tenha vivido em circunstâncias economicamente
limitadas.
Porém, quando Jeremias nasceu? Este é um fator crucial para a reconstrução de sua
vida e na determinação do pano de fundo para as profecias dos capítulos 1–20. O conceito
tradicional é que 1.2, 4 nos diz que Jeremias foi chamado para ser profeta no décimo-
terceiro ano de Josias, isto é, 627 a.C., e que esta data é confirmada pela evidência de
25.3. Há outros dois versículos (3.6 e 36.2) que mencionam os dias de Josias em conexão
com o ministério de Jeremias e corroboram com esta impressão geral.
Para estabelecer a idade de Jeremias quando ele foi chamado, a atenção é dirigida ao
fato de que ele descreve a si mesmo como “uma criança” na época de seu chamado (1.6).
Contudo, a palavra hebraica empregada para “uma criança” tem uma aplicação muito
ampla. Um limite superior em torno de vinte anos para o termo como aplicado por
Jeremias é sugerido por duas considerações. (1) Embora Jeremias fosse de uma família
sacerdotal, não há indicação de que ele tenha atuado como sacerdote. Vinte anos era a
idade em que os levitas começavam seu ofício (cf. Nm 4.3; 8.24; 1Cr 23.3, 24), por isso,
podemos concluir que Jeremias estava abaixo desta idade limite. (2) Levando-se em conta
que Jeremias não era casado (16.2) e que o casamento era esperado em uma família
sacerdotal quando o homem atingia a idade de 20 anos, geralmente se conclui que
Jeremias tinha cerca de 18 anos por ocasião do seu chamado, tendo nascido em 645 a.C.,
nos anos finais do reinado de Manassés.
Desde a década de 1920, esta reconstrução do nascimento e do chamado de Jeremias
tem sido questionada frequentemente sobre a base de que é difícil encontrar passagens
na profecia que se encaixam naquilo que sabemos sobre as condições do reinado de
Josias. O quadro desolador apresentado no início da profecia não corresponde facilmente
às condições sob Josias, cuja purificação da idolatria começou um ano antes do chamado
de Jeremias. Em particular, argumenta-se que é surpreendente que Jeremias não fale
nada sobre os eventos significativos centrados na descoberta do Livro da Lei no Templo,
em 622 a.C., e sobre a Grande Páscoa realizada alguns meses depois. Também é
salientado que, quando Josias procurou auxílio profético para elucidar a importância do
rolo encontrado no Templo, a delegação real não foi a Jeremias, mas a Hulda (2Rs 22.14;
2Cr 34.22). De fato, é somente por inferência e conjecturas que algo pode ser dito sobre a
atitude do profeta em relação ao movimento de reforma de Josias. Também se argumenta
que, agora que a hipótese citada foi rejeitada (veja Introdução 4.5.), não há identificação
provável para o inimigo de Jeremias que vem do norte durante seus primeiros anos. Além
disso, o evento internacional mais importante da época do reinado de Josias, a queda de
Nínive, não é sequer mencionado na profecia.
Estes silêncios e aparentes inconsistências levaram vários estudiosos a suspeitar, com
diferentes ênfases, que o chamado de Jeremias aconteceu muito antes e que seu
ministério não começou realmente até o reinado de Jeoaquim. As poucas passagens que
indicam algo diferente disso foram rejeitadas como adições posteriores ao texto ou foram
corrigidas. Uma mudança pitoresca é a de “décimo-terceiro”, em 1.2, para “vigésimo-
terceiro”, de modo que o ministério de Jeremias é datado como iniciando uma década
mais tarde. Mas quando a alteração textual arbitrária saiu de moda entre os estudiosos, as
propostas para a datação posterior do ministério de Jeremias passaram a ser baseadas na
aceitação de “décimo-terceiro” em 1.2 e na aceitação de 627 a.C. não como o início do
ministério público de Jeremias, mas como o ano de seu nascimento, visto que ele foi
separado por Deus para ser profeta desde o ventre. Seu ministério profético, então,
começou no final de sua adolescência, por volta da época da morte de Josias. Este
conceito é defendido, com várias hipóteses de apoio bem trabalhadas, por Holladay
(1986, 1:1–10). Ele supõe que Jeremias começou a pregar em 615 a.C., aos 12 anos.
Baseado em seu entendimento de que houve uma cerimônia setenial de renovação da
aliança iniciada em 622 a.C., na qual Deuteronômio foi formalmente recitado, Holladay
argumenta que os sermões de Jeremias foram pregados na mesma ocasião em 615, 608,
601, 594 e 587 a.C. Este é o tipo de precisão que os dados não nos permitem confirmar.
Uma revisão mais significativa do início da carreira de Jeremias é a apresentada por
Lundbom (1993; 1999:107–109). Ela é baseada em uma análise literária do capítulo 1 que
separa 1.4–12 de 1.13–19, e alega que o chamado de Jeremias ocorreu em 627 a.C.,
quando tinha cerca de 13 anos de idade, mas que ele só aceitou esse chamado depois que
o rolo foi encontrado no Templo, quando tinha 18 anos. Foi neste palco que o Senhor
falou com ele pela segunda vez para comissioná-lo (1.13–19) e, assim, o ministério de
Jeremias começa em 622/21 a.C. Com base nisso, Lundbom salienta que Jeremias foi
chamado por Deus com a mesma idade que Samuel (1Sm 3.1, em que “jovem” é a mesma
palavra que Jeremias usa em 1.6; Josefo, Ant. 5.10.4).
Não se pode dizer que a datação posterior do início do ministério de Jeremias tem sido
aceita pela maioria dos estudiosos críticos. Porém, os argumentos de que a idade de
Jeremias, em 627 a.C., era de cerca de 12 anos parecem ter algum valor. Isto não precisa
ser acompanhado pela aceitação da análise particular do capítulo 1 defendida por
Lundbom. Não há uma boa razão para negar que, desde o início de seu ministério,
Jeremias foi informado sobre o teor geral da mensagem que tinha de anunciar. O jovem
Samuel também recebeu a revelação de uma mensagem solene sobre o futuro de Eli e de
sua linhagem (1Sm 3.11–14). Jeremias começou a apresentar essa mensagem nos anos
subsequentes, de modo que não parece improvável um ministério que se desenvolveu
gradualmente a partir de 627 a.C.
Os argumentos que favorecem o início de seu ministério nos anos finais do reinado de
Josias são inadequados para se opor a evidência do texto. A falta de um referente
imediato para o inimigo que vem do norte deriva das percepções críticas modernas que
veem o profeta mais como um comentarista político dos eventos da época do que como
um recipiente da revelação divina. Uma vez que seja descontada a predisposição crítica de
estreitar o abismo entre o anúncio profético e o evento histórico, não há dificuldade em
se datar 1.13–19 em 627 a.C. Além disso, a relativa juventude de Jeremias em 622 a.C.
explica por que a delegação real foi para outro lugar. Naquele tempo, ele provavelmente
ainda era um aluno na escola de escribas em Jerusalém. A dificuldade percebida a respeito
da atitude de Jeremias em relação a Josias e suas reformas provavelmente reflete a
natureza do Primeiro Rolo. Ele não foi escrito como um documento histórico
contemporâneo, mas como um tratado para todos os tempos, e aqueles tempos eram a
situação de deterioração no reinado de Jeoaquim. O teor do ministério de Jeremias
permaneceu notavelmente constante nos primeiros vinte e três anos, e ele resumiu sua
mensagem de modo a aplicá-la claramente a Jeoaquim, em vez de dar uma crônica de sua
pregação ao longo do reinado de Josias.
A educação de Jeremias. Jeremias parece se lembrar de sua infância como um tempo
de alegria (Jr 8.18). Sendo Hilquias um sacerdote, Jeremias teria recebido, desde os seus
primeiros dias, instrução sobre as tradições sagradas de Israel. Visto que Anatote estava
dentro do território de Benjamim e não era longe de Siló, é provável que Jeremias tenha
aprendido a história do norte e do sul, bem como tenha se familiarizado com a
advertência solene dada por Siló sobre as consequências da apostasia. Ele também deve
ter estado consciente, em seus anos de formação, da história mais recente de seu povo,
inclusive sobre o que ocorreu durante o reinado de Manassés e Amom.
O que faziam os sacerdotes de Anatote? É improvável que ministrassem nos lugares
altos. Sua proximidade de Jerusalém sugere que eles participavam no serviço do Templo. É
provável que, durante os anos depois de 627 a.C., Jeremias, como aprendiz de sacerdote,
tenha frequentado a escola de escribas em Jerusalém, que era presidida por Safã.
Provavelmente foi nesta época que foi forjado o vínculo entre Jeremias e a família de Safã,
que lhe foi vantajoso em anos posteriores (Jr 26.24; 29.3; 36.11–12, 25; 39.14; 40.5–6).
Não sabemos se durante este período Jeremias ficou permanentemente em Jerusalém,
mas quanto mais se empenhava em seu ministério profético mais provável é que vivesse
na cidade, onde o Templo lhe proporcionava a principal plataforma para suas declarações.
Em sua formação, Jeremias teria se familiarizado com as tradições da comunidade da
aliança. Em particular, ele revela um amplo conhecimento dos salmos que eram cantados
no Templo, e uma apreciação por eles. Durante este período, Jeremias deve ter tomado
conhecimento do ministério profético de Sofonias, que estava em atividade em Jerusalém.
4.2. Durante o reinado de Josias. Jeremias apoiou as reformas de Josias? Rowley
argumenta que, depois de inicialmente apoiar as reformas, o profeta as criticou e se opôs
a elas. “Não há nada inerentemente improvável em sua esperança inicial de que a reforma
de Josias levaria à pureza na religião e na vida ser seguida pela desilusão e transformar-se
em oposição, quando ele descobriu que as pessoas estavam colocando sua confiança na
lei escrita e na obediência à letra, em vez da aceitação do seu espírito” (1950:173). Ellison
observa, porém, que não há evidência clara nem a favor do apoio do profeta às reformas
nem a favor de sua oposição a elas. Ele argumenta que, desde o início, Jeremias percebeu
que as reformas oficiais nunca poderiam satisfazer as exigências de Deus. Embora o
conceito de desenvolvimento do pensamento do profeta seja atraente, “este conceito é,
de fato, baseado no esquecimento daquele fator estranho e indefinível que produzia um
profeta. Ele era mais do que um homem piedoso e temente a Deus de profundo
discernimento espiritual. Ele tinha estado no conselho de Deus (Jr 23.18, 22), e tinha
obtido um ponto de vista totalmente diferente, do qual podia ver as lutas e os esforços
humanos” (1962:161). “Não tenho dúvida de que o primeiro impulso do coração de
Jeremias foi pular de alegria, quando ouviu pela primeira vez a notícia de que todo o
paganismo seria varrido. Mas como profeta, olhando do ponto de vista de Deus, ele podia
ver que isso não teria qualquer chance de sucesso” (1962:162).
O ensino de Jeremias era coerente com a revelação antecedente, e visto que o
movimento de reforma de Josias estava baseado em uma apreciação renovada da
instrução de Deuteronômio, há uma similaridade básica na estrutura do ensino
encontrado em ambos. Isso é visto na ênfase à lealdade à aliança. Jeremias e
Deuteronômio insistem que o caminho que o povo deve seguir é em termos de obediência
às estipulações da aliança (Jr 6.16–21; 7.1–15; 11.1–5; 34.14–22; Dt 5.1–33; 7.12–16;
18.9–14). Esta obediência é minada por qualquer tentativa de sincretismo, que associa a
adoração ao Senhor com o culto prestado a outros deuses (Jr 1.16; 2.9–13, 27–28; 3.9, 24;
7.6–10; 16.10–20; 22.9; 25.6; Dt 12.1–7,29–32; 13.1–18; 17.2–7; 18.9–14). Ao expor o
pecado da nação, Jeremias visa obter a mesma reação que Deuteronômio, a saber, o
arrependimento mediante o qual o povo se volta para o Senhor e tem a permissão para
continuar desfrutando das bênçãos da aliança, especialmente a ocupação da terra da
promessa (Jr 7.3, 7; 25.5; 35.15; Dt 11.8–12; 12.1; 16.20; 19.8–9; 23.21; 25.15; 26.1–11;
30.4–5). É verdade que Deuteronômio é escrito mais em termos de instrução das
estruturas básicas da sociedade israelita, particularmente sua prática cúltica, enquanto
que Jeremias é frequentemente crítico da instituição religiosa (Jr 6.16–21; 7.21–23; 11.15;
14.11–12). Contudo, isto se deve grandemente a questões de situações históricas
diferentes, não a uma divergência fundamental sobre qual seria o papel do rei, do
sacerdote e do sacrifício. É necessário insistir nesta harmonia essencial entre Jeremias e
Deuteronômio, por causa da variedade de hipóteses que têm sido propostas sobre a
relação entre eles. O profeta edifica sobre a visão mosaica de como o povo da aliança
deve viver perante o Senhor, e procura aplicá-la.
Durante o reinado de Josias, portanto, parece que o ministério de Jeremias foi
amplamente favorável à política oficial de reforma religiosa. Não que a política pública
estivesse indo na direção errada; era antes que ela não iria, de fato, não podia ir,
suficientemente longe. O profeta sempre esteve consciente de que a mudança nas
estruturas religiosas externas não substituía a mudança interna do coração. O registro do
início de seu ministério mostra que este aspecto espiritualmente fundamental era a
essência da mensagem de Jeremias quando ele clamava por arrependimento e pela
reorientação interna em direção a Deus. Somente dessa forma a cerimônia de renovação
da aliança de Josias chegaria ao verdadeiro gozo nos níveis individual e nacional de
reconsagração ao Senhor. Jeremias tinha compreendido a estrutura bipartida da aliança. A
bênção flui da obediência. Mas se houvesse apenas uma mudança superficial, nominal,
então a desobediência à exigência básica da aliança de completa lealdade ao Senhor
resultaria em julgamento divino. Jeremias tinha sido conscientizado por Deus das terríveis
perspectivas que esperavam pelo povo se ele não demonstrasse verdadeira lealdade. A
iminência do inimigo que vem do norte dava urgência à proclamação do profeta. Porém, a
nação estava contente com as pompas da religião e não conseguia enxergar a necessidade
de arrependimento. Afinal, a terra já não tinha sido purificada das práticas ofensivas de
tempos passados e o Templo não tinha sido restaurado? A rededicação de um edifício
tinha tomado o lugar da devoção pessoal ao Senhor.
Um ministério no norte? Como foi observado em 3.6, quando o poder assírio começou
a declinar, Josias estendeu sua influência ao território do antigo Reino do Norte, Israel. É
uma questão não resolvida se, em conexão com isso, Jeremias se engajou em um
ministério voltado especificamente à população que permaneceu no norte. Os
argumentos em favor desse ministério têm se baseado em passagens como 3.12–18; 4.1–
2; 30.10; 31.1–21. O foco, nestes versos, sobre Israel ou Efraim como distintos de Judá,
sugere que Jeremias pode estar se lembrando de ocasiões anteriores em que tinha falado
diretamente aos sobreviventes do norte. Porém, a linguagem não precisa envolver mais
do que uma vívida tentativa de apresentar a Judá as lições do que tinha acontecido há
Israel um século antes. Em uma época em que o renovado interesse em Deuteronômio
trazia de volta memórias do reino unido, havia um ponto de contato óbvio na experiência
do norte para mostrar ao sul o que a história lhes havia ensinado.
As circunstâncias pessoais de Jeremias. Durante este período, Jeremias não estava
sozinho, ele compartilhava com outros a esperança de que Judá aproveitaria a
oportunidade proporcionada pela reforma de Josias e voltaria verdadeiramente à fé de
seus pais. Havia um grupo de membros da corte que compartilhava da visão do rei. Havia
profetas como Sofonias e Habacuque. Contudo, Jeremias é uma figura que está, em parte,
distanciando-se de seus contemporâneos. Sem dúvida, os políticos pensavam que suas
políticas fariam diferença; Jeremias estava consciente da necessidade de mudança do
coração. O profeta já tinha sido proibido de se casar e não participava das reuniões sociais
comuns em Anatote ou em Jerusalém. Mesmo neste período, Jeremias teria conhecido a
oposição despertada pelas exigências espirituais de sua vida e pregação. Aqueles que
eram desafiados, fossem grandes ou pequenos, não se sentiam confortáveis com sua
acusação (Jr 2.8; 3.12–14; 5.30–31; 6.13), e suas advertências sobre um julgamento
iminente eram rejeitadas por um povo que queria ser parabenizado por sua conduta e
tranquilizado de que tudo estava bem (Jr 5.12–13,31; 6.14–15). Não há menção da queda
de Nínive porque o foco de Jeremias é sobre a queda iminente de sua própria nação.
Parece que Jeremias se sentiu frustrado pela falta de sucesso de seus chamados ao
arrependimento (Jr 6.10–11, 16–17). Nenhum arrependimento real aconteceu (Jr 5.20–21;
8.4–7).
Cada vez mais o profeta anunciava que o julgamento do Senhor viria sobre a nação se
ela demonstrasse obstinação em sua rejeição à mensagem que ele trazia, embora ele
ficasse pessoalmente angustiado pelo que tinha a dizer. Ele não podia antever a queda de
seu povo com serenidade, e lhes fala de sua angústia para intensificar a compaixão das
advertências que lhes comunicava (Jr 4.19–21). Jeremias não repete automática e
irrefletidamente as mensagens que lhe eram dadas. O impacto do que ele estava
predizendo o atingia e lhe causava aflição. A invasão levaria a um grito de lamento por
toda a terra e não somente o profeta participaria dessa aflição, ele já conhecia a dor do
que cairia sobre seu povo. Nesta época, também há divisões cada vez maiores entre
Jeremias e seus contemporâneos, pois estava proclamando paz para a terra com base em
uma análise superficial de sua condição espiritual (Jr 4.9–10; 5.12–13, 30–31; 6.13–15). Há
um elemento de insatisfação e desilusão no ensino de Jeremias (Jr 6.16–21).
A profecia nada diz sobre a morte de Josias. Este foi um evento que causou
consternação na época, e tem causado perplexidade desde então. Foi por intermédio do
rei pagão Neco que veio a palavra de advertência do Senhor a Josias (2Cr 35.20–22) – não
havia profetas em Judá? Jeremias compôs um lamento ao rei morto (2Cr 35.25), mas teria
lhe dado algum aviso para apoiar o Egito ou a Babilônia? Provavelmente, neste período, a
postura de Jeremias era de não envolvimento nas crises internacionais da época. Durante
o reinado de Josias, o ministério de Jeremias foi, se não parte do movimento oficial de
reforma, de alguma forma amplamente apoiador de seus objetivos. Em parte, isto pode
explicar a ausência de relatos de contato direto com Josias. Com a morte de Josias, porém,
isso mudaria, porque a lealdade de Jeremias aos objetivos espirituais da reforma o levou a
um conflito cada vez maior com as instituições religiosa e política.
4.3. Durante o reinado de Joacaz. O curto reinado deste rei, escolhido pelo povo após
a morte de Josias, deu pouca oportunidade para a intervenção profética. Na medida em
que ele representava uma política antiegípcia, e assim continuou a ação adotada por
Josias, Jeremias provavelmente teve tanta simpatia por ele quanto teve por seu pai. É em
tom de tristeza respeitosa que o profeta fala de seu exílio (Jr 22.10), o que contrasta
nitidamente com o tom em que se dirige ao seu sucessor (Jr 22.13–19).
5. PROFETAS E PROFECIA
5.1. O ofício profético. Quando o Senhor informou ao jovem Jeremias que ele seria
seu profeta, não houve necessidade de explicar em que isso acarretava, porque os
profetas desempenhavam um papel importante na vida do povo da aliança de Deus por
séculos. De fato, as nações pagãs também alegavam possuir vultos proféticos que agiam
como porta-vozes dos deuses. Porém, em Deuteronômio, Moisés tinha colocado as
práticas adivinhatórias de Canaã (Dt 18.9–12) em contraste direto com o que o Senhor
instituiu no ofício profético para Israel (Dt 18.13–22). A função do profeta era dupla: ser o
recipiente da revelação divina e ser o comunicador desta revelação ao povo da aliança. A
necessidade de uma figura como esta remonta ao Sinai, onde Israel foi esmagado pela
proximidade da presença teofânica do Senhor e se sentiu incapaz de suportar a realidade
da revelação divina direta. Por isso eles pediram que Moisés fosse autorizado a agir como
seu intermediário (Êx 20.18–19; Dt 5.23–31; 18.16). Subsequentemente, o Senhor
levantou uma série de homens aos quais foram concedidos privilégios proféticos que, em
certa medida, refletiam os que foram dados a Moisés (Nm 12.6–8).
No estágio inicial da história de Israel como o povo da aliança, o ofício profético
frequentemente forneceu liderança para a nação nos períodos em que ela se esforçava
para lidar com dificuldades imprevistas. Isto é mais marcantemente evidente na pessoa de
Moisés, mas também mais tarde em personagens como Débora (Jz 4–5) e Samuel (1Sm 3–
16). Porém, com o estabelecimento da monarquia, o foco da atividade profética mudou.
Ele passou a se encarregar de trazer o conselho do Senhor ao rei como aquele que foi
colocado sobre seu povo, e cuja conduta influenciaria a nação para o bem ou para o mal.
Os profetas da corte, como Natã (2Sm 7.2; 12.1–14) e Gade (2Sm 24.11–14) atuavam
como conselheiros políticos do rei e, neste papel, aproximavam-se das figuras proféticas
das nações ao redor. Contudo, quando os reis posteriores se tornaram cada vez mais
resistentes à palavra divina, os profetas passaram a falar diretamente ao povo. Eles ainda
eram emissários do rei da aliança, mas as condições tinham se tornado tão terríveis que
toda a nação precisava ouvir a palavra do Senhor sobre sua má conduta e a condenação
correspondente a ela. Os profetas clássicos ou escritores receberam, assim, um ministério
que se dirigia a toda a terra de um modo que era único no mundo antigo tanto em seu
alcance quanto em sua mensagem. O Senhor, como governante soberano da criação,
tinha um propósito que ele estava cumprindo através da História humana. A posição
privilegiada de Israel como a nação à qual ele tinha se revelado não lhe garantia isenção
de julgamento, mas antes era uma convocação para promover o programa divino. Quando
Israel persistentemente interpretou erradamente sua eleição, o Senhor enviou os profetas
para repreender o povo por seu desvio da aliança e para adverti-lo sobre o iminente
desastre e o exílio.
Os homens que o Senhor usou como seus porta-vozes para proclamar sua mensagem
vieram de vários contextos dentro do povo da aliança. Ser chamado para ser profeta não
era uma questão de hereditariedade ou de educação. Os arautos divinos eram escolhidos
individualmente por Deus e comissionados diretamente por ele quando os chamava. O
chamado de um profeta era, portanto, o evento que definia sua vida, e colocava sobre ele
novas e solenes responsabilidades, bem como o iniciava no privilégio de acesso especial à
mente e aos propósitos de Deus.
O chamado profético também conduzia o indivíduo para uma vocação que duraria
toda a sua vida. Ser um profeta não era uma ocupação que podia ser deixada para trás
quando o expediente terminasse. Ela exigia dedicação total do pensamento e da vida do
profeta. O mensageiro representativo do Senhor tinha de estar em harmonia com as
exigências da aliança e a proclamação a ser feita. A substância da mensagem podia, às
vezes, afligi-lo pessoalmente, mas ele não podia negar sua conveniência ou a justiça das
advertências que fazia. Da mesma forma, sua vocação exigia que o profeta dedicasse toda
a sua vida ao serviço do Senhor. Oseias, por exemplo, foi orientado a entrar em um
casamento que estava destinado ao fracasso por causa da infidelidade de sua esposa (Os
1–3). Assim, seu casamento refletiu a relação entre o Senhor e Israel, e mostrou à nação
sua ingratidão e sua atração desleal pelos deuses pagãos, ao mesmo tempo em que
retratou a constância graciosa de Deus e sua determinação em trazê-la de volta. Com
Jeremias, o chamado divino ao ofício profético interpôs em sua vida pessoal uma
exigência oposta, a saber, que ele se abstivesse do casamento (16.2), de modo que sua
vida e suas palavras anunciassem o iminente julgamento divino.
Além disso, embora o profeta pudesse reunir ao seu redor um grupo que o apoiasse e
que tivesse simpatia por sua mensagem (1Sm 19.20; 2Rs 4.38; Is 8.16), o profeta era
sempre uma figura solitária, pois era pessoalmente a ele que vinha a palavra do Senhor.
Mas a sucessão de profetas que o Senhor levantou ao longo dos séculos constituiu um
movimento profético genuíno, e isso não simplesmente porque eles foram chamados por
Deus individualmente e experimentaram essa inevitável compulsão de declarar a palavra
do Senhor. Em vez disso, a progressão no modo do Senhor lidar com seu povo significa
que havia uma continuidade correspondente na mensagem que os profetas deviam
anunciar. Sua proclamação se baseava no que o Senhor já tinha dito ao seu povo
anteriormente, e frequentemente parece que eles estavam conscientes disso. Eles tinham
um compromisso comum com a manutenção da aliança e com a exortação aos seus
contemporâneos para que vivessem de acordo com os seus termos, condenando os
afastamentos dos seus padrões, tanto na área da ética social e também no desvio cúltico
ao adorar a deuses estranhos. Eles percebiam quanto eram vazios os rituais prescritos do
santuário se não fossem acompanhados pela fidelidade de coração ao Senhor. Mas os
temas de seu ministério não eram todos negativos, pois eles também podiam vislumbrar a
provisão futura que o Senhor tinha decidido fazer por seu povo em termos da era
messiânica de bênçãos que viriam.
5.2. Revelação profética. O profeta era aquele que recebia a revelação direta de Deus.
“Nenhuma profecia da Escritura provém de particular elucidação” (grego epilusis,
“soltura”, “desprendimento”), isto é, a verdadeira declaração profética não era o produto
do discernimento pessoal do profeta sobre o significado de eventos atuais e de qual seria
seu resultado. “Porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana;
entretanto, homens [santos] falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2Pe
1.20b–21). Não era uma questão de discernimento humano superior que gerava a
substância do que os profetas tinham a dizer; sua mensagem era proveniente diretamente
de Deus. Eles possuíam informação privilegiada porque tinham recebido acesso ao
conselho do Senhor para ver e ouvir sua palavra (23.18).
Muitas analogias para a experiência profética no recebimento da revelação foram
buscadas entre os anormais ou os psicóticos. Faz-se referência frequente ao “êxtase
profético”, mas deve-se tomar o cuidado de observar que o sentido em que diferentes
escritores analisam este termo varia enormemente. Certamente os profetas clássicos não
entravam em um tipo de estado semelhante a um transe, durante o qual murmuravam
palavras sem que eles mesmos tivessem consciência do que estavam fazendo. Por outro
lado, eles experimentaram uma profunda experiência sobrenatural, cuja natureza
podemos conceber apenas vagamente. Uma analogia que parece ter algum poder
explicativo é a da oração. Aqui há um aumento de nossa percepção espiritual comum, mas
de baixo nível, para permitir comunicação genuína, conversa genuína, entre Deus e o
indivíduo. É possível pensar neste processo sendo intensificado no caso de um profeta
quando ele se tornava internamente consciente da realidade da presença de Deus e da
mensagem que lhe está sendo comunicada. A experiência podia ser tão focada e intensa
para o profeta que ele não tinha consciência de seu ambiente físico como normalmente
teria, sendo absorvido naquilo que estava sendo comunicado a ele internamente. Porém,
sua personalidade e sua consciência não eram suprimidas, antes sensibilizadas a um grau
extraordinário. Seus processos mentais não eram suspensos, como algumas definições de
êxtase implicam, e ele era capaz de interagir com o que lhe estava sendo revelado. Visto
que o profeta não controlava o conteúdo ou o ritmo do que lhe era revelado, isso
intensificava sua convicção e certeza quanto à origem divina de sua mensagem.
Assim, não havia supressão da personalidade e do ser do profeta. Ele era passivo no
recebimento da mensagem, mas não era inerte. Em vez disso, seu potencial era usado
plenamente porque o processo de recebimento da revelação não era mecânico, mas
orgânico, envolvendo todo o ser psíquico do profeta. Como ele não dava origem a
substância da mensagem, seu conteúdo era revelação também para ele, a qual ele devia
absorver e entender. Isso podia deixá-lo em luta para compreender o significado do que
tinha ouvido. Na verdade, havia momentos em que o profeta ficava perplexo com o que
lhe tinha sido revelado (Is 21.3–4; Dn 10.16–17); de fato, era possível que o profeta não
entendesse completamente o que tinha visto (Dn 8.15, 27).
5.3. Inspiração profética. Porém, a tarefa profética não se esgotava com a recepção da
revelação divina. Afinal, essa revelação era uma mensagem, uma mensagem que não era
dirigida primeiramente ao profeta, mas a outras pessoas. O profeta era, acima de tudo,
um porta-voz divino que foi comissionado para revelar tudo o que o Senhor lhe ordenava
(1.7). Inicialmente, essa comissão era cumprida mediante a proclamação à sua própria
geração, e também por um ministério escrito destinado a alcançar gerações futuras.
A inspiração profética se refere ao processo pelo qual o profeta comunicava a
revelação a outros, oralmente ou por escrito. Em muitos escritos proféticos, isso não
difere nitidamente do processo de inspiração que forma a base de outras partes da
Escritura. Por exemplo, nos capítulos 37–44 há uma narrativa histórica referente a
eventos que aconteceram nos dias imediatamente anteriores e posteriores à queda de
Jerusalém. A maior parte dos fatos registrados ali pode ter sido produzida pela observação
direta, e seria possível a um historiador registrar aqueles fatos da forma como são
encontrados hoje. Porém, a narrativa da Escritura é mais que história comum. Ela vem a
nós como parte da Palavra de Deus, e o testemunho que a Escritura dá de si mesma
quanto à sua origem “inspirada” por Deus (2Tm 3.16) nos informa que o escritor da
narrativa foi especialmente guiado pelo Espírito Santo para escrever como escreveu. Não
apenas a precisão da narrativa é garantida, mas o que está registrado também se
harmoniza com o que o Espírito Santo desejou registrar. Toda apresentação histórica
envolve seleção e ênfase. Esse processo ocorreu sob o controle do Espírito, de maneira
que até mesmo nas porções históricas do Antigo Testamento, inclusive as narrativas dos
escritos proféticos, há uma revelação genuína que dá testemunho do que Deus quis
relatar a respeito desses eventos.
Todavia, há, obviamente, outro tipo de escrito profético em que o assunto não foi
obtido mediante pesquisa histórica. Quando os profetas repetidamente usam expressões
como “a palavra do Senhor veio a mim, dizendo”, “assim diz o Senhor” ou “assim declara
o Senhor”, fica evidente que eles estão reivindicando acesso a mais do que está disponível
a um espectador contemporâneo ou a um investigador histórico. Sua proclamação foi
especialmente revelada a eles pelo Senhor e eles estão afirmando explicitamente que não
são os originadores de sua mensagem. Mas estariam eles alegando que são apenas
reprodutores, declarando literalmente o que ouviram? Estariam eles se apresentando
como escribas que estão lendo em voz alta uma mensagem que extraíram de um ditado
divino? Este conceito mecanístico do processo de inspiração não faz justiça a essas
passagens proféticas. Por exemplo, ao ler os vários relatos proféticos que possuímos, fica
evidente que o estilo de cada profeta é diferente. Fica claro, por exemplo, que os três
profetas maiores, Isaías, Jeremias e Ezequiel, deixaram em suas profecias a marca de seu
caráter pessoal e de seu estilo pessoal. Mas como isso foi feito?
Realmente não sabemos. O conceito de inspiração concursiva cobre aquelas formas de
revelação em que nenhuma atividade humana – nem mesmo o controle da vontade – é
anulada. Quando analisamos uma epístola de Paulo ou um salmo de Davi, podemos
prontamente perceber que estamos seguindo o pensamento de Paulo ou Davi. Ficamos
felizes em dizer que “Paulo argumenta assim porque…” ou “Davi, então, passa a dizer, ou
acrescenta esta palavra, porque…”. O nível de envolvimento humano é evidente, e é
possível considerar a participação ativa do autor humano combinada com a atividade do
Espírito não somente guiando os processos de pensamento do autor, mas assegurando
que ele tivesse exatamente aquele caráter e aquela experiência que, na operação da
providência de Deus, o levaram a pensar e a dizer exatamente o que pensou e disse.
É, contudo, difícil estender a inspiração concursiva ao que é exclusivamente profético.
Certamente isso pode ser feito se o que estiver envolvido for o profeta dando uma
descrição verbal de uma cena que lhe foi revelada em visão; e igualmente ela pode ser
aplicada à ordem profética dos oráculos já existentes, de maneira que sua forma escrita
tenha impacto e forma retórica. Mas o nó do problema é a declaração distintamente
profética, a declaração do propósito divino. É difícil conceber isso como já existente,
mesmo na mente do profeta, sem ser incorporado em uma forma verbal. Uma explicação
é argumentar que o que foi revelado ao profeta foi expresso por um ato de
condescendência divina e de suprema habilidade comunicativa precisamente nas formas
de discurso que o próprio profeta usaria. A revelação divina veio não apenas na língua
hebraica que Jeremias falava, mas no vocabulário e no modo de falar que eram
naturalmente seus. Isso é um testemunho do conhecimento íntimo que Deus tinha do
profeta, e também do modo como o profeta tinha sido preparado para estar em posição
de comunicar a mensagem exatamente como Deus queria. Uma ênfase alternativa é
argumentar que o profeta estava ativamente envolvido no relato do que lhe foi
comunicado em termos gerais. Visto que ele foi divinamente escolhido desde o
nascimento e foi concursivamente gerado pelo Espírito, isto significa que o relato que ele
nos deu é precisamente aquilo que Deus queria que ele nos desse. Quando um
embaixador comunica a política de seu governo a outra nação, ele não fica restrito às
palavras exatas daquilo que lhe foi falado, mas não tem permissão para adicionar nada à
substância da mensagem que está transmitindo.
Nenhuma destas explicações é totalmente satisfatória. A primeira se aproxima demais
das teorias de inspiração como ditado que não fazem justiça à individualidade do profeta
e ao seu envolvimento inteligente na comissão que lhe foi dada. A segunda parece
implicar que o profeta está geralmente consciente dos propósitos divinos, enquanto
afirmações como “eis que ponho na tua boca as minhas palavras” (Dt 18.18; cf. Jr 1.9;
5.14) discutivelmente parecem requerer um envolvimento divino mais específico de um
modo que vai além do estilo apostólico de interpretação.
Entretanto, não importa como lidamos com a análise do modo de inspiração divina, a
realidade está inegavelmente presente. A Palavra de Deus, que é revelada pelo profeta,
vem como uma palavra pura e genuína da parte de Deus ao profeta, e é também pela
operação do Espírito, registrada para nós, de forma que também tenhamos a Palavra de
Deus. Ao longo desse processo de recebimento e anúncio da revelação, a inteligência do
profeta está em alerta. O processo não é meramente mecânico e, por isso, a declaração
do profeta também se torna sua mensagem pessoal, a qual ele anuncia mediante a
autoridade de Deus.
5.4. Falsa profecia. Visto que o chamado profético era experimentado na vida interior
do profeta, ele não era diretamente acessível a outros. Isso abria a possibilidade de que
indivíduos alegassem fraudulentamente ter recebido esse chamado, ou de que
sinceramente entendessem mal sua própria experiência espiritual, interpretando-a como
constituindo um chamado divino. Foi o problema da falsa profecia que Jeremias teve de
enfrentar de forma severa e prolongada.
Não é apenas o leitor moderno que deve refletir sobre a genuinidade dos profetas.
Talvez, hoje, tenhamos questões que não teriam causado perplexidade ao antigo israelita,
para quem não havia dúvida de que o Senhor existia e falava através dos profetas. Sua
perplexidade surgia das alegações conflitantes daqueles que diziam ser porta-vozes do
Senhor, mas que não traziam a mesma mensagem. Certos testes poderiam ser aplicados
para se averiguar a autenticidade do profeta e de sua mensagem. Os israelitas tinham sido
advertidos há muito tempo de que, se um profeta falasse em nome de qualquer outro
deus que não o Senhor, mesmo que substanciasse suas alegações com a predição de um
sinal e esse sinal acontecesse, ou pela realização de algum milagre, não se deveria crer
nesse profeta (Dt 13.1–5; 18.20). A palavra de um verdadeiro profeta não contradiz a
revelação anterior, e ele, por sua conduta, devia mostrar-se leal aos padrões da aliança.
Da mesma forma, se as predições de um profeta não se cumprissem, ele não podia ser um
profeta verdadeiro (Dt 18.21–22).
Mas esses testes não abrangem todas as situações. Esperar pelo cumprimento de uma
profecia sobre o futuro distante não é um método praticável para determinar a
genuinidade de um profeta hoje. Além disso, havia o fenômeno da profecia condicional,
na qual o anúncio absoluto de julgamento podia ter uma condição implícita de
arrependimento (18.7–10). Um exemplo claro disso é a proclamação de Jonas, “Ainda
quarenta dias e Nínive será subvertida” (Jn 3.4). Um falso profeta podia facilmente usar
isso para alegar que circunstâncias mudadas tinham levado sua mensagem a não se
cumprir. Naqueles tempos, detectar o falso profeta era geralmente uma questão de
perceptividade espiritual, e quando aqueles a quem o profeta se dirigia eram acusados de
falta de discernimento e julgamento espiritual, era mais fácil procurar outro profeta que
os bajulasse com palavras atrativas e agradáveis.
6. A TEOLOGIA DE JEREMIAS
Tendo refletido sobre como Jeremias recebia sua mensagem, devemos agora
considerar o conteúdo dessa mensagem. Isso envolve identificar os temas principais do
que ele proclamou, e avaliar como eles se encaixam no fluxo da revelação profética. Ao
fazer isso, precisamos lembrar que os profetas não eram teólogos sistemáticos. Eles
falaram em situações muito específicas e sua teologia era sempre aplicada. Há, portanto,
um elemento de artificialidade ao abstrair e resumir os princípios que eles expuseram.
Também deve ser observado que, embora o ministério profético fosse, em muitos
aspectos, um ministério individual, os profetas também eram parte de um movimento
dirigido por Deus que tinha ligações com o passado e com o futuro, especialmente com a
vinda do Messias. Essas interconexões são componentes essenciais da mensagem de
Jeremias.
6.1. Deus. Os profetas não estavam tanto interessados em comunicar uma nova
verdade quanto na execução da verdade existente. Na prática, isso significa que eles
exortavam o povo a retornar aos padrões da aliança entregue por intermédio de Moisés e
a se manter neles. A teologia de Jeremias era, por isso, a teologia da aliança aplicada, e
isso sugere que é apropriado apresentar seu pensamento em termos dos participantes da
relação pactual que foi divinamente instituída entre o Senhor e Israel.
O Deus da criação. O fato de Jeremias ter o mesmo ponto de vista que o Pentateuco
significa que é fundamental para o seu pensamento a compreensão do papel do Senhor
como Criador do universo. “O SENHOR fez a terra pelo seu poder; estabeleceu o mundo por
sua sabedoria e com a sua inteligência estendeu os céus. Fazendo ele ribombar o trovão,
logo há tumulto de águas no céu, e sobem os vapores das extremidades da terra; ele cria
os relâmpagos para a chuva e dos seus depósitos faz sair o vento” (10.12–13; 51.15–16). O
Criador não abandonou sua criação, mas age como seu sustentador, particularmente com
relação à dádiva da chuva, que é muito valorizada nas condições secas do oriente.
O uso repetido do termo Senhor, “SENHOR dos Exércitos” (2.19) reforça o fato de que
ele está no controle de todas as forças e seres que existem no reino criado. Por exemplo,
em uma encenação, Jeremias é instruído a informar aos embaixadores que tinham vindo
das nações vizinhas: “Assim diz o SENHOR dos Exércitos, o Deus de Israel: Assim direis a
vossos senhores: Eu fiz a terra, o homem e os animais que estão sobre a face da terra,
com o meu grande poder e com o meu braço estendido, e os dou àquele a quem for
justo” (27.4–5). O Senhor que criou o mundo é soberano sobre as nações, sejam elas
fracas ou fortes. É somente ele quem determina o destino delas.
Tão fundamental era a compreensão de Deus como Criador no pensamento israelita
que Jeremias usou esta verdade como base para argumentar com seus compatriotas a
respeito da inconstância deles. Era o Senhor que podia dizer verdadeiramente: “Pus a
areia para limite do mar, limite perpétuo, que ele não traspassará? Ainda que se levantem
as suas ondas, não prevalecerão; ainda que bramem, não o traspassarão” (5.22). Ao dizer
isso, ele faz um contraste marcante entre o mar tempestuoso, que, contudo, fica dentro
dos limites que lhe foram impostos, e a conduta dos contemporâneos de Jeremias, que
não reconheciam nenhum limite dado por Deus. A ordem permanente da natureza
também oferecia uma garantia para a continuidade de tudo o que o Senhor faz (31.35;
33.20). De modo supremo, a realidade da obra do Senhor na criação fornecia um
contraste marcante com a ineficácia e a impotência dos deuses pagãos e seus ídolos. Em
sua polêmica contra a idolatria, Jeremias ridicularizou a adoração aos ídolos, porque eles
eram incapazes de agir para o bem ou para o mal. Aliás, eles não tinham poder sequer
para se mover, mas tinham de ser carregados; são penas como espantalhos, incapazes de
falar; ficam de pé somente porque foram fixados com pregos. “Os deuses que não fizeram
os céus e a terra desaparecerão da terra e de debaixo destes céus” (10.11). “Mas o SENHOR
é verdadeiramente Deus; ele é o Deus vivo e o Rei eterno; do seu furor treme a terra, e as
nações não podem suportar a sua indignação” (10.10).
Além disso, Jeremias mostra como Deus é transcendente – aquele que está separado
da humanidade e que enche o céu e a terra – e imanente, o Deus que está sempre perto
(23.23–24). Ele é o Deus que é onipresente, e de quem nenhum segredo humano pode ser
escondido, porque ele prova o coração e a mente (11.20) e, por isso, pode dizer sobre a
má conduta humana: “Eu o sei e sou testemunha disso” (29.23). Ele também é o Deus que
é onipotente – para ele, nada é difícil demais (32.17, 27).
O Deus do amor que elege. Porém, a aliança que o Senhor fez com Israel introduz
novas dimensões do caráter divino que não são óbvias mediante um exame da criação.
Jeremias vale-se da mensagem de Oseias para mostrar o amor que o Senhor revelou ao
eleger Israel, “a que mais eu amava” (12.7) e “minha amada” (11.15), para ter um
relacionamento especial com ele. “Com amor eterno eu te amei; por isso, com
benignidade te atraí” (31.3). Repetidamente Jeremias lembra seus ouvintes de como Deus
expressou esse amor no que ele fez pela nação no período do êxodo: “Tiraste o teu povo
de Israel da terra do Egito, com sinais e maravilhas, com mão poderosa e braço estendido
e com grande espanto; e lhe deste esta terra, que com juramento prometeste a seus pais,
terra que mana leite e mel” (32.21–22; cf. também 11.5). De fato, a atividade do Senhor
continuou até ao presente (32.20). Jeremias reconheceu os privilégios concedidos a Israel
como a nação querida por Deus, “o manancial de águas vivas” (2.13), e se a nação tivesse
bebido profundamente desta fonte, teria compreendido seu potencial para se transformar
em “árvore plantada junto às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro e não receia
quando vem o calor, mas a sua folha fica verde; e, no ano de sequidão, não se perturba,
nem deixa de dar fruto” (17.8).
No entanto, embora reconhecesse o papel especial atribuído a Israel no propósito
divino, Jeremias é fiel à nota universal da aliança mosaica (“toda a terra é minha”, Êx 19.5;
cf. Gn 12.3; 22.18). O Senhor não é uma mera divindade nacional, mas o “Rei das nações”
(10.7) e o “Deus de todos os viventes” (32.27). De fato, o chamado do profeta se estende
“às nações” (Jr 1.5, 10). Sem dúvida, o Senhor tem autoridade e conhecimento para fazer
acusações contra nações por sua má conduta (25.31), e Jeremias teve de anunciar
repetidamente esse julgamento nos Oráculos contra as Nações (caps. 46–51). Mas tanto
nesses oráculos (46.26; 48.47; 49.6, 39) quanto em outros pontos (3.17; 12.16; 16.19), ele
mantém a perspectiva da intervenção graciosa do Senhor em favor daqueles que não
pertencem ao povo da aliança. Este é um aspecto importante, embora pequeno, da
proclamação de Jeremias.
O Deus dos padrões da aliança. A eleição de Israel não era um exemplo do favoritismo
divino destinado a assegurar sua paz e prosperidade independentemente de sua conduta.
A essência do pensamento pagão era que uma divindade nacional estava obrigada, em
todas as ocasiões, a promover os interesses daqueles que ocupavam sua terra. Desde que
continuassem a trazer ofertas ao seu templo e a participar de todas as cerimônias cúlticas,
a divindade estava comprometida em promover a felicidade e a segurança deles. Esta
ilusão pagã fascinou o coração de Judá nos dias de Jeremias, e ele se empenhou
honestamente para corrigir este conceito supersticioso de Deus. Repetindo “Templo do
SENHOR, templo do SENHOR, templo do SENHOR é este” (7.4) e venerando a arca da aliança
(3.16), eles tinham substituído um relacionamento vivo com o Senhor por meros objetos
como o foco de sua segurança. Sião seria inviolável somente se fosse obediente. A
negligência aos padrões da aliança despertava a ira divina. Até mesmo os ritos instituídos
pelo Senhor eram ineficazes se não houvesse obediência. “Porque nada falei a vossos pais,
no dia em que os tirei da terra do Egito, nem lhes ordenei coisa alguma acerca de
holocaustos ou sacrifícios. Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu
serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; andai em todo o caminho que eu vos ordeno,
para que vos vá bem” (7.22–23).
Jeremias teve repetidamente de lembrar ao povo que a aliança o obrigava a ter uma
vida santa porque ela apresentava a estrutura exigida por Deus para o
relacionamento/obrigação que o Senhor havia instituído entre si mesmo e seu povo. Ao
longo dos anos, o Senhor enviou profetas para exortar o povo: “Não façais esta coisa
abominável que aborreço” (44.4). Mas o povo sucumbiu ao fascínio da adoração a Baal
(2.20), à rainha do céu (7.18; 44.17–19) e coisas piores (7.31). Sua conduta se deteriorou
quando eles abandonaram os imperativos morais da aliança, os quais não eram
arbitrários, mas baseados no caráter do próprio Senhor como aquele que “faz
misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado” (9.24). Quando isso
fosse esquecido, o Senhor agiria contra aqueles que não levaram a sério suas exigências.
Jeremias não tinha dúvida de que o Senhor puniria aqueles que violassem seus
padrões. “O SENHOR, Deus que dá a paga, certamente retribuirá” (51.56). Ele afirma sua
majestade e poder sobre todos que se opõem a ele. Isso é visto particularmente na
imposição da vingança divina sobre Babilônia pela profanação do Templo (50.28) e pela
atitude que teve em relação às nações, especialmente Judá e Jerusalém. “É tempo da
vingança do SENHOR; ele lhe dará a sua paga” (51.6). Contudo, não eram apenas as
potências estrangeiras que estavam sob escrutínio judicial de Deus. Ele punirá seu próprio
povo por sua má conduta, pois isso também era uma afronta à sua dignidade (5.29).
O Deus da salvação. Pode parecer que a ira santa do Senhor contra o pecado de seu
povo seria o fim da mensagem que Jeremias tinha a trazer-lhes. Quando o Senhor diz:
“Porque deste povo retirei a minha paz, a benignidade e a misericórdia” (16.5), parece
não haver meios de evitar a catástrofe da invasão inimiga, que era o meio pelo qual o
Senhor puniria seu povo. Após a terra ser devastada, o Templo queimado e o povo
deportado, que futuro poderia haver?
Porém é exatamente neste ponto que Jeremias é levado a ver o surpreendente
impacto da graça do Senhor. Verdadeiramente ele é o Deus da salvação, aquele a quem
podemos nos dirigir assim: “Ó Esperança de Israel e Redentor no seu tempo da angústia”
(14.8). Uma vez que sua ira ardente tenha cumprido seu propósito (30.24), ele age para
edificar novamente (31.4), uma verdade que estava implícita até mesmo na comissão de
Jeremias (1.10), mas que foi apresentada mais claramente nos dias sombrios antes da
queda de Jerusalém e registrada no Livro de Consolação (caps. 30–33). “Desta cidade
escondi o meu rosto, por causa de toda a sua maldade, eis que lhe trarei a ela saúde e
cura e os sararei; e lhes revelarei abundância de paz e segurança” (33.5–6). O vínculo
pactual não era um fenômeno temporário (31.35–36) e não seria ignorado por Deus. O
Senhor ainda ansiava por Efraim e sofria por sua insensatez (31.20). Embora a aliança
trouxesse a maldição do céu sobre aqueles que a infringiram (“castigar-te-ei em justa
medida”, 30.11), ela também mantinha a possibilidade de restauração pela graça divina
(“de ti, porém, não darei cabo”, 30.11). “Buscar-se-á a iniquidade de Israel, e já não
haverá; os pecados de Judá, mas não se acharão; porque perdoarei aos remanescentes
que eu deixar” (50.20). A perspectiva de restauração futura surge não da realização
humana, mas era consequência do amor e da graça de Deus.
6.2. O povo da aliança. Voltando-nos para a outra parte da relação pactual,
descobrimos que a aliança instituída no Sinai colocou obrigações especiais sobre o povo a
quem o Senhor disse: “Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo” (7.23; 11.4; 24.7;
31.33; 32.28). Na época das reformas de Josias, a nação se comprometeu novamente com
os termos da aliança. “O rei se pôs em pé junto à coluna e fez aliança ante o SENHOR, para
o seguirem, guardarem os seus mandamentos, os seus testemunhos e os seus estatutos,
de todo o coração e de toda a alma, cumprindo as palavras desta aliança, que estavam
escritas naquele livro; e todo o povo anuiu a esta aliança” (2Rs 23.3). Mas o triste fato
sobre Judá e Jerusalém é que eles não estavam vivendo de acordo com os termos dessas
obrigações. A aliança tinha dois lados não apenas porque estruturava o relacionamento
entre duas partes, mas porque determinava o curso deste relacionamento em direção a
um dos dois resultados: bênção divina sobre o povo se ele fizesse o que Deus exigia dele, e
maldição divina e abandono da parte de Deus caso quebrassem os termos dessa relação
(5.15). Jeremias repetidamente chamou a atenção do povo para as violações da aliança
mediante discursos formais (7.1–15) e mediante lições objetivas, inclusive no incidente do
cinto de linho (13.1–11) e no incidente envolvendo os recabitas (cap. 35).
O ideal pactual. Jeremias mostra que tinha consciência de como Israel devia responder
as propostas de Deus. Houve um tempo em que Israel verdadeiramente pôde chamar a
Deus de: “Pai meu, tu és o amigo da minha mocidade” (3.4; cf. também 3.19). Efraim (as
tribos do norte) foi o filho precioso de Deus, o filho em quem ele tinha prazer (31.20). Se
seu comportamento tivesse se conformado ao que Deus desejou encontrar neles, isso os
teria levado a desfrutar das bênçãos da aliança. “Dai ouvidos à minha voz e fazei tudo
segundo o que vos mando; assim, vós me sereis a mim por povo, e eu vos serei a vós
outros por Deus; para que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma
terra que manasse leite e mel, como se vê neste dia” (11.4–5). Porém, em vez de viver
como filho obediente, o povo de Israel e de Judá, como o filho pródigo da parábola de
Jesus (Lc 15.11–31), afastou-se do caminho de seus pais.
Frequentemente é ao relacionamento entre esposo e esposa que Jeremias compara a
relação entre o Senhor e Israel (3.1). Ele apresenta a consagração que manifestaram por
ocasião da sua saída do Egito como sua noiva (2.2), porque não apenas o Senhor os tinha
escolhido soberanamente para ser seu povo, mas eles de boa vontade se associaram a ele.
Eles abandonaram todos os outros deuses e se comprometeram totalmente com ele. Ele
providenciou para seu povo um lar agradável na terra da promessa. Jeremias reconheceu
que houve um tempo em que a terra e todas as suas cidades estiveram cheias com a “voz
de júbilo e de alegria, e a voz de noivo, e a voz de noiva, e a voz dos que cantam: Rendei
graças ao SENHOR dos exércitos, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para
sempre; e dos que trazem ofertas de ações de graças à casa do SENHOR” (33.11).
O ideal arruinado. Porém, embora o Senhor tenha providenciado que Israel fosse uma
“oliveira verde, formosa por seus deliciosos frutos” (11.16), e ele se tornou uma “planta
degenerada, como de vide brava” (2.21), o povo virou-se contra o Senhor e tornou-se
corrupto, uma vide brava. Eles não foram fiéis a seus compromissos pactuais, não apenas
abandonaram a verdadeira fonte de saúde e vitalidade espirituais, mas colocaram no lugar
de sua afeição pelo Senhor a lealdade a ídolos inúteis (2.11). Eles não viam mais a
singularidade do Senhor e falharam em apreciar tudo o que ele tinha feito por eles.
Os principais aspectos da quebra da aliança por Judá eram sua rejeição da
singularidade do Senhor e sua violação da exigência de adorar somente a ele. A adoração
aos ídolos era uma trajetória de sua absoluta insensatez, porque eles eram totalmente
incapazes de suprir as necessidades de seus adoradores. Várias divindades e práticas
pagãs se mostraram particularmente atrativas ao povo. Eles se voltaram aos deuses dos
cananitas e se perderam nas práticas licenciosas associadas à adoração a Baal (2.8). Eles
até mesmo ofereceram seus filhos no fogo, em sacrifício a esse deus (19.5) e a Moloque
(32.35). As influências mesopotâmias parecem ter dado origem à adoração à Rainha dos
Céus, que envolvia assar bolos com sua imagem sobre eles, queimar incenso nos telhados
e fazer libações (7.18; 44.17–19, 25). Esta prática causou tanta influência sobre o povo
que eles deram continuidade a ela no Egito, depois da queda de Jerusalém, alegando que
o abandono deste ritual é que tinha causado a calamidade (44.15–19).
Jeremias empregou a imagem de prostituição e adultério (3.10), a qual tinha sido
usada anteriormente por Oseias (Os 1.2; 2.2), para enfatizar quanto o comportamento do
povo era abominável. Sua adoração a Baal sob a folhagem das árvores sagradas nos
lugares altos era como uma adúltera se entregando aos seus amantes (2.19). Em razão da
natureza dos ritos nesses lugares, a comparação era oportuna. O Reino do Norte, Israel, já
tinha adotado esse comportamento desobediente e sofrido as consequências inevitáveis,
mas Judá demonstrou ser incapaz de aprender a lição que fora dada tão tragicamente.
Paganismo desenfreado. As exigências da aliança eram contrárias à filosofia do
paganismo, que era amoral e imoral. Os rituais pagãos eram humanamente planejados
para satisfazer os desejos ardentes da natureza humana e, como consequência, a
adoração a uma divindade pagã dava origem a exigências não morais sobre a conduta do
adorador. Com o ingresso do pensamento pagão no caráter de Judá, a injustiça social e o
nominalismo religioso se tornaram desenfreados na terra. Alguns outros profetas
(particularmente Amós e Miqueias) falaram mais sobre a injustiça social do que Jeremias,
mas ele estava consciente de que a nação que tinha efetivamente abandonado o Senhor
também tinha deixado de lado os padrões sociais da aliança. Ele observa que os ricos
oprimiam violentamente os pobres e não mantinham os padrões de justiça social (2.34;
5.26–28; 7.5–6). Em particular, ele atacou severamente Jeoaquim pelo modo como se
conduzia como rei, obrigando os artífices a edificarem um palácio para ele sem lhes pagar
por seu trabalho (22.13–14). No cerco final de Jerusalém, a ação de Zedequias e da classe
alta em soltar os escravos e voltar atrás quando isso não lhes era mais conveniente foi um
claro exemplo do oportunismo desavergonhado que caracterizava a comunidade (34.8–
20).
Da mesma forma, a conduta religiosa de Judá foi corrompida pelas atitudes pagãs.
Embora tenham continuado a adorar ao Senhor no Templo recém-reformado, os judeus
pensavam que a essência da religião estava no cumprimento de rituais externos, e não
percebiam que os atos externos deviam ser expressões da fidelidade interna do coração.
Eles pensavam que o Templo em seu meio (7.4), com seus objetos sagrados (3.16), a
quantidade e o preço elevado dos sacrifícios (6.20) e a posse da lei de Deus (8.8) eram
suficientes para assegurar sua boa posição perante o Senhor. De modo muito pernicioso,
esta perspectiva foi promovida pelos sacerdotes e profetas que davam o tom da vida
religiosa nacional. Contra essas corrupções pagãs na pretensa adoração ao Senhor,
Jeremias lembrou ao povo que a obediência sempre foi mais importante que o sacrifício
(7.21–22), e que a simples posse da lei era insuficiente sem seu cumprimento (8.7–9). O
que causou maior ofensa aos eclesiásticos de seus dias foi a observação de Jeremias de
que a presença do Templo não era garantia da preservação do povo por Deus. “Lembrai-
vos de Silo”, foi uma mensagem que lhes pareceu uma blasfêmia total (7.12–14; 26.6, 9).
Corrupção do coração. Um aspecto marcante da profecia de Jeremias é a extensão de
sua ênfase no desvio moral e espiritual da humanidade, que ele atribui à corrupção
humana interior. “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e
desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (17.9). Essa inclinação interior também
é aludida na frase “andaram nos seus próprios conselhos e na dureza do seu coração”
(7.24; cf. 13.10; 23.17).
Como a vida interior do indivíduo não está apenas manchada, mas contaminada, ela
precisa de uma mudança interna radical (não meramente a purificação do Templo e de
seus rituais, como a promovida por Josias) antes que o povo possa se conformar às
exigências da relação pactual. Somente por meio dessa transformação pessoal a reforma
pode se tornar avivamento. Jeremias apresentou a mudança necessária nos termos da
metáfora da circuncisão do coração (novamente uma figura extraída de Dt 10.16; 30.6),
para enfatizar a necessidade de verdadeira dedicação interior ao Senhor. “Circuncidai-vos
para o SENHOR, circuncidai o vosso coração, ó homens de Judá e moradores de Jerusalém,
para que o meu furor não saia como fogo e arda, e não haja quem o apague” (4.4).
Foi a falta de lealdade interior ao Senhor, isto é, a falta de fé, que arruinou todos os
atos de devoção religiosa de Israel e a posse dos símbolos religiosos. Eles tinham a casca
da religião, mas não a semente, e sem corações profundamente comprometidos com o
Senhor, as expressões externas da religião não tinham valor. A falta de consciência do
Senhor no coração os deixou confortáveis com suas ideias diluídas sobre a verdadeira
religião. Ao limitar a presença do Senhor ao Templo e vendo-o como irrevogavelmente
comprometido com seu bem-estar, eles se consideravam livres para viver como
quisessem, mas sua segurança era um engano (3.10; 13.25).
Arrependimento. Porém, embora o povo tenha se tornado fundamentalmente
corrompido por sua condição interior, ainda havia a possibilidade de restauração se
apenas houvesse uma resposta correta à mensagem do profeta. Jeremias tem muito a
dizer sobre o tema do arrependimento, que ele caracteristicamente expressa em termos
da metáfora espacial do “retorno”, isto é, um retorno dos caminhos que o povo tinha
escolhido para si para os caminhos que o Senhor lhes tinha ordenado.
Jeremias mostrou que o veredito do Senhor sobre a nação reflete o que ela faz. O
modo como o oleiro pode remodelar o barro até que esse tome a forma que ele tinha em
mente (18.1–11) forneceu uma ilustração de como o Senhor reagiria. Se uma nação
pecaminosa se arrependesse de sua perversidade, então o Senhor graciosamente a
aceitaria. Com base nisso, o Senhor, por intermédio do seu profeta, estimulou seu povo
desobediente a abandonar seus caminhos ímpios e retornar a ele. O aspecto mais básico
disso era a adoração somente ao Senhor. Se o povo retornasse a isso, o Senhor lhes
mostraria misericórdia (3.12), curaria suas rebeliões (3.22) e evitaria o desastre que estava
vindo sobre eles (26.3). Sua conduta externa em questões como a guarda do sábado
forneceria um teste para suas convicções internas (17.19–27). Jeremias informou ao povo
sobre como devia se arrepender, oferecendo-lhe, em três ocasiões, exemplos do tipo de
confissão que deveria fazer de seu pecado (3.22–25; 14.7–10; 14.19–22).
Mas o chamado para esta mudança foi ignorado, e ao longo dos anos a mensagem de
Jeremias mudou de uma advertência sobre a condenação que sua conduta traria sobre
eles para a inevitabilidade do julgamento do Senhor, do qual ele não voltaria atrás (4.28).
Isso foi dramaticamente indicado pela proibição do Senhor a que Jeremias intercedesse
pelo povo (14.11). Sua conduta tinha se degenerado tanto que nem jejuns nem sacrifícios
seriam suficientes para evitar a catástrofe vindoura (14.12). Nos últimos dias de
Jerusalém, tudo o que Jeremias pôde fazer foi aconselhar o rei Zedequias a submeter-se
aos babilônios. De modo algum a destruição da cidade seria evitada (21.1–7), mas a
submissão mitigaria o desastre, evitando muitas mortes e muita destruição (21.8–10;
27.11, 13).
6.3. O futuro. Porém o compromisso pactual do Senhor com o povo que ele tinha
chamado era irrevogável (31.36–37). Embora devesse punir seu povo por causa de sua
iniquidade, ele não abandonou seu compromisso com ele e graciosamente mostrou, por
intermédio do profeta, à perspectiva de restauração. Ao longo dos anos de seu ministério,
Jeremias cada vez mais reconheceu que não haveria uma resposta imediata à sua
proclamação, e sua esperança focou-se no futuro, depois da imposição de julgamento.
Restauração. O banimento do povo da terra era o sinal mais óbvio de seu afastamento
do Senhor. Era também um sinal de sua graça de que o domínio babilônico estava limitado
a setenta anos (25.11), e então viria um tempo em que o Senhor mostraria compaixão
para com seu povo e o traria de volta à Palestina. O choro do povo em sua desgraça por
ser deportado da terra teria um fim (31.15). Uma grande multidão voltaria, até mesmo
aqueles normalmente considerados inaptos para viajar (31.7–8). Ainda mais: haveria um
tempo em que as antigas hostilidades e tensões seriam removidas, e Israel e Judá
participariam do retorno do exílio (30.3–4). Este ato de libertação seria colocado ao lado
do êxodo; de fato, ele o substituiria no pensamento do povo como o exemplo da ação
redentora do Senhor em seu favor (16.14–15; 23.7–8).
Também neste ponto Jeremias foi chamado para reforçar sua mensagem por meio de
uma ação profética. Para mostrar quanto era certo que a terra voltaria a ser possuída pelo
povo, o profeta foi instruído a comprar um campo, mesmo quando o cerco estava
levantado, e a terra envolvida provavelmente já estava sob o controle babilônico. Até
mesmo Jeremias pareceu ficar confuso com o significado da ação que tinha de realizar,
mas novamente o Senhor apontou para as bênçãos que forneceria na aliança eterna que
faria com o povo (32.40). O povo teria colheitas frutíferas e rebanhos em abundância
(31.4–5; 33.10–13). O povo estaria unido em adoração em Jerusalém (31.6), que seria
reconstruída e purificada (30.17; 31.38–40). A cidade seria repovoada e ficaria cheia de
sons de alegria (30.17,19–20). Jeremias descreve vários aspectos do retorno. As cidades
de Judá seriam reocupadas por seus legítimos habitantes. Acima de tudo, a Cidade Santa
seria reconstruída em suas próprias colinas (31.38–40). O Templo, com seus sacrifícios e
serviços, seria restaurado, bem como a casa real (33.17–26). Também haveria um
sacerdócio renovado e purificado.
A nova aliança. Tudo isso seria parte da provisão da nova aliança (31.31–34). Não que
as exigências básicas da aliança iriam mudar: a mesma lei permaneceria como antes. A
relação básica também não seria alterada: eles seriam o povo de Deus e ele seria seu
Deus. O foco é colocado na capacidade de obediência do povo, a qual o Senhor assegura
ao colocar dentro deles o desejo de permanecer leais a ele e ao fortalecê-los para fazerem
isso.
Isso solucionaria aquilo que provou ser a fraqueza da antiga aliança. Deus tinha sido
fiel ao relacionamento que ele instituiu, mas Israel tinha deixado de amar e obedecer. A
infidelidade de Israel tinha quebrado os termos da aliança. Mas a reinstituição da aliança
seria mais duradoura que a antiga? Nenhuma mudança era necessária da parte de Deus,
mas, quanto à resposta do povo, uma influência mais forte para com o compromisso seria
necessária. Essa influência é fornecida pela declaração: “Na mente, lhes imprimirei as
minhas leis, também no coração lhas inscreverei” (31.33). A deficiência do coração de
Israel seria tratada diretamente pela efetiva mudança interior efetuada por Deus. “Eles
serão o meu povo, e eu serei o seu Deus. Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho,
para que me temam todos os dias, para seu bem e bem de seus filhos” (32.38–39).
Haveria uma internalização da aliança, e a obediência fluirá da afeição. A lei da antiga
aliança foi escrita externamente em tábuas de pedra, mas na nova aliança Deus produzirá
internamente uma nova disposição em relação a si mesmo, a qual assegurará submissão à
sua lei.
Isso é reforçado pela descrição adicional da nova aliança: “Não ensinará jamais cada
um ao seu próximo, dizendo: Conhece ao SENHOR, porque todos me conhecerão, desde o
menor até ao maior deles” (31.34). Isso não significa que haverá um dia em que a
instrução religiosa será desnecessária, mas que a comunidade da aliança será
caracterizada por uma profunda e genuína intimidade interior com o Senhor. O
conhecimento de Deus foi enfatizado por Oseias para distinguir a verdadeira fidelidade
pactual ao Senhor do “conhecimento” que Israel adquiriu através do envolvimento na
prostituição cúltica de adoração a Baal (Os 2.20; 4.1, 6; 5.4; 6.6). Jeremias repete a mesma
afirmação de que o povo não conhecia o Senhor (2.8; 4.22; 9.3, 6, 24; 22.16). Mas as
condições serão totalmente mudadas na era da nova aliança.
Não pode haver dúvida de que a nova aliança não foi plenamente instituída
imediatamente depois do exílio. É verdade que muitos sobreviventes de Israel e de Judá
retornaram à terra, e que houve sinais da bênção divina, mas isso ainda era compreendido
como “o dia dos humildes começos” (Zc 4.10). Foi somente com a vinda de Jesus Cristo
que a nova aliança foi apropriadamente inaugurada, porque somente então se tornou
evidente como seu componente final seria realizado: “Perdoarei as suas iniquidades e dos
seus pecados jamais me lembrarei” (31.34). Na noite em que o Filho do Homem foi
entregue nas mãos dos pecadores, ele tomou o cálice e, distribuindo-o, disse: “Este é o
cálice da nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vós” (Lc 22.20). Assim ele
mostrou que a profecia de Jeremias foi cumprida em sua cruz, onde seu sangue foi
“derramado em favor de muitos, para remissão de pecados” (Mt 26.28). A nova era foi
introduzida, trazendo para a igreja de Cristo todos aqueles que são verdadeiros filhos de
Abraão, independentemente de seu contexto nacional. Porém, a consumação da nova
aliança ainda não está completa, pois aguarda o retorno de Cristo.
O Renovo justo. Intimamente relacionado à proclamação de uma nova aliança por
Jeremias está sua esperança messiânica. Embora, de fato, Jeremias não mencione o
Messias em sua profecia da nova aliança (31.31–34), ele mostra que, na época da
restauração, o Senhor fornecerá um rei para governar seu povo restaurado. “Servirá ao
SENHOR, seu Deus, como também a Davi, seu rei, que lhe levantarei” (30.9). Não que Davi
vá ressuscitar, mas o rei concretizará o ideal de Davi, governando no espírito de seu ilustre
ancestral. Ele será um “Renovo justo; e, rei que é, reinará, e agirá sabiamente, e executará
o juízo e a justiça na terra” (23.5; 30.9; 33.15). Sua conduta fará um forte contraste com os
governantes injustos encontrados no ministério de Jeremias, e inaugurará um tempo de
prosperidade e segurança para Israel e Judá.
Jeremias dá mais detalhes sobre a vinda do rei em 30.21, em que ele é descrito como
um “príncipe” e “como aquele que há de reinar” sobre o povo. Sua origem de entre o
povo é enfatizada, de acordo com os requerimentos anteriores (Dt 17.15; 2Sm 7.12), de
modo que ele será totalmente diferente dos estrangeiros que os oprimiam. De modo
muito surpreendente, Jeremias continua descrevendo os privilégios divinamente
concedidos a esta figura real em termos que são geralmente associados ao sacerdócio:
“Fá-lo-ei se aproximar, e ele se chegará a mim; pois quem de si mesmo ousaria aproximar-
se de mim?” (30.21). Isto antecipa a obra sacerdotal do Messias.
Visto que Jeremias estava ensinando a respeito da futura provisão do Senhor, esses
assuntos lhe foram apresentados em termos de realidades já existentes, e é na mesma
linguagem que ele deve necessariamente descrevê-las aos seus contemporâneos. Mas a
forma que o governo de Deus sobre a terra assumiu foi movida para frente, de forma a
preservar sua continuidade essencial com as promessas do passado e, no entanto, romper
a perspectiva restrita que existira anteriormente. A vinda do Messias e a inauguração da
nova aliança cumpriram perfeitamente o que o Senhor tinha prometido ao seu povo, e, ao
mesmo tempo, ultrapassa até mesmo sua mais profunda antecipação.
7. TRADUÇÕES E TRADUÇÃO
7.1. Neste comentário, o texto em português citado é a versão Almeida Revista e
Atualizada (ARA), que é uma tradução vigorosa e acessível. Para economizar espaço, as
divisões dos versículos nas seções poéticas não são reproduzidas. Além disso, há casos em
que uma tradução alternativa, geralmente mais literal, é oferecida depois de uma oblíqua.
Outras importantes traduções inglesas foram consultadas e, em certas ocorrências, são
citadas.
Contudo, o comentário se interessa principalmente pelo significado do texto hebraico
de Jeremias. Estima-se que muitos leitores não terão acesso a isso, mas, para aqueles que
têm, as notas contêm detalhes de como ele pode ser entendido, inclusive discussões
sobre importantes variações textuais ou obscuridades, e também passagens onde o
Kethib (o texto consonantal hebraico tradicional) é acompanhado por um Qere (uma
anotação marginal que oferece a leitura preferida pelos massoretas).
Quando é o som da palavra hebraica que importa ou quando a referência é facilitada
pela citação da palavra hebraica básica empregada, isso é feito no texto usando-se uma
forma padrão de transliteração. Também se deve atentar para o uso do símbolo √ para
indicar a forma básica ou raiz de uma palavra hebraica, especialmente na combinação <√
para indicar que uma palavra é derivada de uma raiz específica. Colchetes são usados para
indicar palavras que foram acrescentadas como suplemento em português para mostrar o
significado do texto.
Também é conveniente mencionar, aqui, duas características comuns do texto que
requerem comentário adicional.
7.2. O perfeito profético. Ao contrário do que acontece em português, em que a
forma de um verbo é alterada pelo uso de tempos verbais para indicar diferenças no
tempo em que a ação ocorre, o verbo em hebraico é flexionado para distinguir o aspecto
ou a modalidade da ação que está sendo descrita. Embora os detalhes do que está
envolvido sejam uma questão de contínua controvérsia, a principal distinção presente é
entre uma ação que é vista como completa e uma ação que é vista como incompleta. A
forma perfeita do verbo hebraico representa uma ação que é considerada completa; a
imperfeita, uma ação que é considerada como não completa. Em muitos casos, isso pode
ser comunicado em português pelo uso do passado para traduzir uma forma verbal
perfeita e do futuro para traduzir uma forma verbal imperfeita; porque a maioria das
ações completas são aquelas que já ocorreram (isto é, foram completadas) no passado, e
a maioria das ações não completas estão no futuro (ou estão atualmente em execução e
aguardam conclusão).
Porém, há muitas exceções a esta simples regra de tradução, e uma delas que é
importante para a tradução de passagens proféticas é conhecida como “perfeito de
certeza” ou “perfeito profético”. Isto não se refere a uma mudança na forma gramatical
do verbo que é usado, mas a um artifício retórico no qual um evento futuro é concebido
como sendo tão certo e completo em si mesmo que é expresso pelo uso de uma forma
verbal perfeita. Isto é feito para dar ao ouvinte a certeza do que foi predito, e o uso do
perfeito profético não era um modo peculiar de expressão limitado ao discurso profético.
O principal problema com o perfeito de certeza é identificá-lo com certeza! Há
passagens em que o contexto torna inquestionável o significado da forma verbal, mas
geralmente há considerável ambiguidade. Traduções padrão frequentemente diferem
entre si. Por exemplo, em 2.35, o verbo šāb está na forma perfeita. Isso pode indicar uma
ação finalizada no passado: “Certamente a sua ira se desviou de mim” (ARA). Muitas
traduções usam o presente para comunicar o sentido de uma ação passada definitiva
(“sua ira tem se desviado de mim”) com consequências permanentes: “Ele não está irado
comigo” (NIV). Mas é possível identificar o verbo como um perfeito profético, no qual o
povo sem arrependimento descaradamente declara sua inocência e afirma: “Certamente
sua ira será desviada de mim” (como na NKJV). É parte da habilidade exegética e
percepção do sentido de uma passagem por parte do tradutor escolher entre as opções
que são gramaticalmente plausíveis.
7.3. A partícula hebraica kî. A NIV geralmente não traduz a comum e versátil partícula
hebraica kî. Nem sempre fica claro se essa política de tradução é motivada por um
entendimento de como kî funciona em hebraico ou por exigências do estilo moderno –
talvez as duas coisas. Porém, de um ponto de vista exegético, é frequentemente
conveniente lidar com o modo preciso como esta partícula funciona seguindo de uma
afirmação para outra, e, para facilitar isso, indiquei no comentário onde a partícula kî é
encontrada no original.
Para uma breve apresentação das opções a respeito de sua função, veja IBHS §39.3.4e
ou NIDOTTE 4:1030. Uma excelente discussão é encontrada em Aejmelaeus (1986), que
distingue entre (a) funções conectivas de kî e (b) funções não conectivas, enfáticas. O
grupo (a) é dividido em (i) aquelas em que a cláusula kî precede a cláusula principal e
apresenta circunstâncias (condicionais, temporais ou causais) ligadas à cláusula seguinte
(e.g., em 2.26; 5.19) e (ii) aquelas em que a cláusula kî segue a cláusula principal. O grupo
(ii) pode ser subdividido em três categorias principais.
(1) Onde a cláusula kî funciona como uma oração subordinada substantiva, depois, por
exemplo, de um verbo de discurso ou de percepção, seu significado geralmente é claro e
pode ser traduzido pela conjunção subordinativa “que” (como em 2.19).
(2) kî também pode ser encontrada introduzindo uma alternativa positiva depois de
uma declaração negativa, em cujo caso, a tradução como “mas” pode ser apropriada
(como em 1.7; 2.25; 18.15; 22.17).
(3) Em cláusulas causais, kî tem sido tradicionalmente traduzida como “para”. Ela pode
indicar um vínculo que é estritamente causal (como em 1.6), motivacional (como em 1.8)
ou vago e indireto. Neste uso, kî não pode introduzir a razão para aquilo que é afirmado
na cláusula precedente, mas também pode funcionar indiretamente para expressar a
razão pela qual a declaração na cláusula anterior foi feita.
Há divergência quanto à medida que (b), a função enfática de kî ocorre, possivelmente
podendo ser traduzida como “de fato” (cf. 2.20; 14.13). Muitos estudiosos modernos
consideram a proporção de ocorrências enfáticas mais alta do que é tradicionalmente
identificado. Porém, Aejmeleaus em geral acha que é limitado o escopo para o uso
enfático da partícula, e tendo a concordar com essa conclusão. Mas seja qual for o ponto
de vista adotado, considerável discernimento sobre as nuanças do texto pode ser obtido
tentando-se identificar a função realizada por kî.
Mackay, John L., Jeremias, trad. Vagner Barbosa, Comentários do Antigo Testamento, 1a
edição (São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2018), I, 13–105