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Apontamentos

de
Direito Internacional Privado I
Elaborados na regência do Professor Dário Moura Vicente

por

Henrique Simões | n.º 60906

Os apontamentos não dispensam a leitura dos manuais obrigatórios, nem a presença nas
aulas teóricas. É possível (ou melhor, é certa) a existência de erros (quer de direito, quer
ortográficos).
Direito Internacional Privado

1. Introdução 1
1.1 Objeto do Ramo 1
1.2 Valores e Princípios 3
1.2.1 Dignidade da Pessoa Humana 4
1.2.2 Autonomia Privada 4
1.2.3 Tutela da Confiança 4
1.2.4 Igualdade Perante a Lei 5
1.2.5 Valores Sociais e Públicos 6
1.2.6 Metodologia 6
1.2.6.1 Orientação Jurisdicionalista 7
1.2.6.2 Orientação Substancialista 7
1.2.6.3 Método Conflitual ou da Conexão 8
1.3 Relação com outras Áreas do Direito 9
1.3.1 Direito Constitucional 9
1.3.2 Direito Internacional Público 10
1.3.3 Direito da União Europeia 11
1.3.3 Direito Comercial Internacional 12
1.3.4 Direito Comparado 12
2. Teoria Geral do Direito Privado 13
2.1 Regras de Conflitos 13
2.1.1 Previsão 13
2.1.2 Estatuição 13
2.1.2.1 Conexão 14
2.1.2.1.1 Conexão Singular 14
2.1.2.1.2 Conexão Plural ou Cumulativa 15
2.1.3 Elemento de Conexão 15
2.1.4 Interpretação, Integração e Aplicação 16
2.1.4.1 Interpretação 16
2.1.4.2 Integração 17
2.1.4.3 Aplicação das Regras de Conflitos 17
2.1.4.3.1 Aplicação no Tempo 17
2.1.4.3.2 Conflito Móvel 17
2.1.4.3.3 Aplicação no Espaço 17
2.2 Qualificação 18
2.2.1 Alcance da Lei Designada 18
2.2.2 Operação da Qualificação 19
2.2.2.1 Interpretação do Conceito-Quadro 19
2.2.2.1.1 Com Fonte no Direito Interno 20
2.2.2.1.2 Com fonte no Direito Internacional ou no Direito da União Europeia 20
2.2.2.2 Caraterização do Objeto da Qualificação 21
2.2.2.3 Qualificação em sentido estrito 22
2.3 Interpretação e Concretização do Elemento de Conexão 22
2.3.1 Interpretação dos Conceitos Técnico-Jurídicos enquanto Elementos de Conexão 22
2.3.2 Concretização do Elemento de Conexão 23
2.3.3. Concurso ou Ausência de Conteúdo Concreto do Elemento de Conexão 23
2.3.3.1 Concurso de Conteúdo do Elemento de Conexão 23
2.3.3.2 Ausência de Conteúdo do Elemento de Conexão 24
2.3.3.3 Elemento de Conexão “Nacionalidade” 24
2.3.3.4 Elemento de Conexão “Residência Habitual” 26
2.3 Reenvio ou Devolução 27
2.3.1 Reenvio de 1.º Grau ou Retorno 28
2.3.2 Reenvio de 2.º Grau ou transmissão de competência 28
2.3.3 Orientações Gerais 29
2.3.3.1 Teoria da Referência Material 29
2.3.3.2 Teoria da Referência Global 30
2.3.3.3.1 Devolução Simples 30
2.3.3.3.2 Teoria da Dupla Devolução 31
2.3.4 Regime Vigente em Portugal 31
2.3.4.1 Princípio Geral 32
2.3.4.2 Desvios ao Princípio Geral 32
2.3.4.2.1 Regime do Artigo 18.º CC 33
2.3.4.2.2 Regime do Artigo 17.º CC 34
2.3.4.2.3 Exceção do Artigo 19.º CC 35
2.3.4.2.4 Regulamentos da União Europeia 36
2.3.5 Remissão para Ordenamentos Jurídicos Complexos 37
2.3.5.1 Artigo 20.º CC 38
2.3.5.1.1 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Territorial 38
2.3.5.1.2 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Pessoal 40
2.3.5.1.3 Outros Elementos de Conexão 41
2.3.5.2 Regulamentos 41
2.4 Fraude à Lei 42
2.4.1 Pressupostos 43
2.5.2 Sanção da Fraude 43
2.5.3 Regime Vigente 43
2.5.4 Incidência do Direito da União Europeia 44
2.6 Cláusulas Exceção 45
2.6.1 Novo Método 46
2.6.2 Cláusula de Exceção sem Previsão Legal 46
2.7 Normas Internacionalmente Imperativas 47
2.7.1 Eficácia 49
2.7.1.2 Normas Internacionalmente Imperativas do Foro 49
2.7.1.3 Normas Internacionalmente Imperativas de um outro Estado 49
2.7.1.4 Outras Regras 50
2.7.1.5 Título de Aplicação 51
2.7.2 Valoração pelo Julgador 51
2.7.3 Efeitos 52
2.7.4 Novo Método 52
2.7.5 Incidência do Direito da União Europeia 53
2.8 Estatuto do Direito Estrangeiro 53
2.8.1 Valores e Interesses em Presença 54
2.8.2 Oficiosidade 54
2.8.3 Conhecimento e Prova do Direito Estrangeiro 55
2.8.3.1 Oficiosidade do Conhecimento do Teor e Vigência 55
2.8.3.2 Apuramento do Teor e Vigência 55
2.8.3.2.1 Convenção de Londrês 55
2.8.3.2.2 Redes Judiciárias 56
2.8.3.3 Impossibilidade de Determinar o Conteúdo e Teor do Direito Estrangeiro 56
2.8.4 Aplicação, Interpretação e Integração do Direito Estrangeiro 57
2.8.4.1 Aplicação do Direito Estrangeiro 57
2.8.4.2 Interpretação do Direito Estrangeiro 57
2.8.5 Admissibilidade do Controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da Aplicação do Direito
Estrangeiro feita pelas Instâncias Inferiores 58
2.9 Ordem Pública Internacional 59
2.9.1 Figuras Afins 60
2.9.1.1 Fraude a Lei 60
2.9.1.2 Clausulas de Exceção 60
2.9.1.3 Normas Internacionalmente Imperativas 60
2.9.1.4 Reserva de Ordem Pública Interna 60
2.9.2 Caraterização 61
2.9.3 Pressupostos 61
2.9.4 Efeitos 62
2.9.5 Regime Vigente em Portugal 62
2.9.6 Evolução Contemporânea 63
3. Estatuto Pessoal 63
3.1 Estatuto Pessoal das Pessoas Singulares 63
3.1.1 Determinação da Lei Pessoal 64
3.1.1.1 Início e Termo da Personalidade 64
3.1.1.2 Direitos de Personalidade 64
3.1.1.3 Dados Pessoais 65
3.1.1.4 Capacidade 65
3.1.1.4.1 Artigo 28.º CC e Artigo 13.º Regulamento Roma I 65
3.1.1.4.2 Artigo 31.º/2 CC 66
3.1.1.4.2.1 Pressupostos 66
3.1.1.4.3 Artigo 47.º CC 66
3.2 Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas 67
3.2.1 Interesses em Jogo 67
3.2.2 Determinação da Lei Aplicável 67
3.2.2.1 Teoria da Incorporação 68
3.2.2.2 Aplicação da Lei da Sede Estatutária 68
3.2.2.3 Aplicação da Lei da Sede Real 68
3.2.3 Regime Vigente em Portugal 69
3.2.4 Âmbito do Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas 69
3.2.5 Impacto do Direito da União Europeia 70
4. Parte Especial 70
4.1 Obrigações Contratuais 70
4.1.1 Fontes Aplicáveis 70
4.1.2 Princípios do Regulamento Roma I 70
4.1.2.1 Autonomia Privada 70
4.1.2.2 Conexão Mais Estreita 71
4.1.2.3 Proteção da Parte Mais Fraca 72
4.1.3 Existência e Validade do Contrato 73
4.1.4 Validade Formal do Contrato 73
4.2 Obrigações Não Contratuais 74
4.2.1 Responsabilidade Pré-Contratual 74
4.2.2 Enriquecimento Sem Causa 77
4.2.3 Gestão de Negócios 79
4.3 Direitos Reais 81
4.3.1 Regra Geral 81
4.3.2 Exceções 82
4.3.3 Âmbito da Lei Aplicável 82
4.3.4 Qualificação 83
4.3.5 Delimitação entre o Estatuto Contratual e o Estatuto das Coisas 83
4.4 Propriedade Intelectual 84
4.4.1 Direito de Autor 84
4.4.2 Propriedade Industrial 87
1. Introdução

1. Introdução
O Direito Internacional Privado é uma disciplina de Direito Privado diferente das restantes
disciplinas de Direito, pelo facto que se carateriza por um objeto particular: as situações
jurídicas internacionais: isto é, situações jurídicas onde intervém sujeitos desprovidos de
poderes de autoridade que se encontram em contacto com dois ou mais ordenamentos
jurídicos. Para designar estas situações, utiliza-se igualmente a expressão situações
plurilocalizadas.

Exemplo:

“Compra-e-Venda de um imóvel sito no Algarve, celebrado entre um cidadão português,


domiciliado em Portugal, e um cidadão inglês, domiciliado no Reino Unido”

Trata-se de uma situação com carater internacional, na medida em que poem em contacto
duas pessoas com nacionalidades e domicílios diferentes.

Porém, são ainda reconduzíveis outras situações que, mesmo não sendo plurilocalizadas, no
sentido de terem conexões com duas ou mais ordens jurídicas, se apresentam face ao
ordenamento jurídica nacional/Estado do foro como uma situação estrangeira. Por exemplo:

“Compra-e-Venda celebrada por dois portugueses no Reino Unido de um imóvel sito em


Portugal, porém o comprador, inadimplente, mudou o domicílio para Portugal”

Trata-se de uma situação que está ligada a uma ordem jurídica estrangeira.

Daqui é possível identificar dois tipos de situações jurídicas internacionais:

i) situações absolutamente internacionais – aquelas em que estão ligadas a duas ou


mais ordens jurídicas;

ii) situações relativamente internacionais – aquelas em que estão ligadas a uma ordem
jurídica estrangeira face ao Estado do Foro.

Há, ainda, no entanto, situações que, apesar de se apresentarem como aparentemente


internas, indiretamente põem em jogo interesses do comercio nacional. Por exemplo:

“Compra-e-Venda celebrada por dois portugueses, em território português, estando o bem


objeto sito, à data da celebração do contrato, em território nacional. Porém, este bem vendido
é um bem importado. Sendo este bem defeituoso, o vendedor nacional poderá vir a exercer o
seu direito de regresso contra o fornecedor.”

Cabe questionar se este contrato, celebrado entre portugueses, em território nacional, pode
ser submetido a uma lei estrangeira, por forma a que o direito de regresso que o vendedor
possa vir a exercer o seu direito de regresso contra o fornecedor.

1.1 Objeto do Ramo


Se o Direito fosse igual em toda a parte, não haveria qualquer tipo de dificuldades especificas
nestas situações plurilocalizadas. Porém, a realidade é que, mesmo em espaços
economicamente integrados (como é o caso da União Europeia), as soluções oferecidas variam
de Ordem Jurídica para Ordem Jurídica. Podendo inclusive variar dentro do mesmo Estado,
como sucede com os Estados Unidos.

1
1.1 Objeto do Ramo

Tal facto é uma manifestação da natureza cultural do Direito. Isso significa que o Direito varia
consoante a comunidade que o produziu e aplica. Pelo que, por mais esforços que haja no
âmbito da harmonização de legislações, a verdade é que o Direito Interno irá sempre
diferenciar-se de algum modo.

A questão que cabe a colocar numa situação plurilocalizada é: saber qual o regime jurídico a
aplicar aquela situação.

Exemplo:

“Numa Compra-e-Venda de um imóvel sito no Algarve, celebrado entre um cidadão português,


domiciliado no Reino Unido, e um cidadão inglês, domiciliado no Reino Unido. O comprador
incumpre o preço, sendo que interpõe que não o irá fazer porque descobriu que depois de
realizada a Compra-e-Venda vai ser construído um aeroporto, facto que era conhecido pelo
vendedor, o qual o omitiu dolosamente.”

Perante o Direito Nacional, está-se perante uma situação de culpa in contrahendo, por violação
dos deveres de informação pré-contratuais. Porém, uma das partes é domiciliada no
estrangeiro, no Reino Unido, pelo que cabe questionar se o Direito Português é aqui aplicável.

É certo que o imóvel é sito em Portugal, o que concede a lei portuguesa um título de aplicação,
mas tão somente ao que se refere à produção dos chamados efeitos reais (transmissão da
propriedade; condições da transferência da propriedade).

Porém, a indemnização a título de responsabilidade pré-contratual requer a violação de


deveres de pré-contratuais – a existência destes deveres vai depender de qual a lei aplicável: a
portuguesa ou a inglesa? Com a particularidade que no Direito Inglês não existem tais deveres
pré-contratuais, e como tal não haveria lugar a responsabilidade civil.

A questão aqui que se deve colocar é se se deve aplicar o Direito do local onde as partes
celebraram o contrato? Ou aquele em que as partes são domiciliadas?

Tal situação é objeto de Direito Internacional Privado. Trata-se de um conflito de leis no


espaço, o qual deverá ser resolvido à luz das regras de resolução de conflito. Estas regras têm
como fonte:

i) o Direito Interno, em particular os Artigos 14.º a 65.º do CC;

ii) Convenções Internacionais;

iii) Direito da União Europeia (regulamentos).

Tratam-se de Regras de natureza formal, indireta ou secundárias (regras sobre regras): antes
não identificam a solução material a conceder ao caso, mas antes qual a regra material a
aplicar – se a regra que resoluta do ordenamento jurídico X ou do Y.

Porém, o Direito Internacional Privado tem um objeto muito mais amplo, não se reduz,
apenas, as regras de conflito, antes também engloba:

i) normas sobre a competência internacional dos tribunais – que visam saber se os


tribunais nacionais são internacionalmente competentes em relação aquele caso: terá o
tribunal português competência para julgar relativo a uma ação de cumprimento de uma

2
1.2 Valores e Princípios

compra-e-venda celebrada no Reino Unido, por um português domiciliado em Portugal, de um


imóvel sito em Portugal?

ii) mecanismos de cooperação judiciária internacional – os tribunais nacionais poderão


ter de solicitar cooperação dos tribunais estrangeiros; por exemplo: a inquirição de
testemunhas por estes tribunais; a realização de atos processuais como citações; havendo
inclusive mecanismos que permitem aos tribunais comunicar diretamente uns com os outros;

iii) reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras – pode a causa ter sido


julgada e decidida por tribunal estrangeiro, porém, uma vez que o réu é domiciliado em
Portugal, estando neste sito todos os seus bens, o autor pretende instaurar em Portugal uma
ação de carater executivo; este ramo do Direito Internacional Privado clarifica as condições,
segundo as quais é possível reconhecer as sentenças decididas por tribunais estrangeiros.

De referir ainda que na eventualidade de confronto entre duas ordens jurídicas


estruturalmente diferentes, em que não reconhecem os mesmos princípios estruturantes,
podem os tribunais do Estado do Foro recusar-se a aplicar a lei estrangeira ou a reconhecer
sentença estrangeira com base nesta distinção fundamental: a chamada Reserva de Ordem
Pública Internacional.

1.2 Valores e Princípios


A determinação da lei aplicável poderá ser resolvida através de um dos seguintes métodos:

i) aplicação sistemática da lei do Estado do Foro (lex fori);

ii) devia-se criar regulação específica para as situações internacionais (por convenções
internacionais);

iii) deve-se optar pela lei aplicável conforme determinada através das regras de
conflito.

Porém, para poder optar por uma metodologia, é necessário primeiro compreender quais os
valores e os interesses do Direito Internacional Privado, de forma a adotar aquele que se
mostre mais adequada.

A determinação dos valores e princípios do Direito Internacional Privado serve 3 propósitos


fundamentais:

i) uma função de síntese – ao aferir dos valores do Ramo permite-se identificar o


dogma do mesmo, isso é a sua essência e as traves-mestras;

ii) uma função hermenêutica – toda a interpretação deve ser feita à luz do sistema, tal
não será possível se não se tiver em consideração os valores e princípios do Ramo;

iii) uma função heurética – na ausência de regulação legal e na impossibilidade do


recurso à analogia, o interprete-aplicador deve criar uma norma ad hoc dentro do espírito do
sistema; ou seja, sendo os valores e os princípios o espírito do sistema, esses permitem
integrar lacunas.

Os valores a que o Direito Internacional Privado presta tributo não são diferentes daqueles que
se encontram previsto no Direito Privado Geral, antes são os mesmos com projeções
diferentes em virtude do objeto específico do Ramo, as situações internacionais. Assim,
Professor Dário Vicente conclui que não se pode falar de uma Justiça própria do Direito
3
1.2.1 Dignidade da Pessoa Humana

Internacional Privado, uma vez que os valores subjacentes são comuns ao Direito Privado
Geral.

O Professor Dário Vicente defende a existência de 5 valores fundamentais à luz do


Ordenamento Jurídico de Direito Internacional Privado vigente em Portugal:

i) Dignidade da Pessoa Humana;

ii) Autonomia Privada;

iii) Tutela da Confiança;

iv) Igualdade perante a Lei;

v) Valores Sociais ou Públicos.

1.2.1 Dignidade da Pessoa Humana


Consagrada no Artigo 1.º da CRP, sendo o princípio fundamental da Ordem Jurídica
Portuguesa: trata-se de uma expressão da conceção personalista do Direito; isso é a conceção
que coloca a pessoa humana como fim último do Direito.

No Direito Internacional Privada, a dignidade da pessoa humana aflora na existência de uma lei
pessoal em determinadas matérias, nos termos do Artigo 25.º CC. Em regra, nos termos do
Artigo 33.º/1 CC, a lei pessoal é a lei da nacionalidade da pessoa.

A alternativa a esse sistema, seria a sujeição das pessoas à lei territorial: isso significaria que a
pessoa alteraria o seu Estatuto pessoal conforme o país onde estivesse, naturalmente, com
consequências gravíssimas, que iria dificultar a atividade dos indivíduos. Por exemplo, uma
pessoa seria tida como casada num país e quando passasse a fronteira deixaria de o ser, ou
uma pessoa detida como capaz no país de origem passaria a ser incapaz.

A ideia de que há uma lei pessoal, que se aplica ao indivíduo onde quer que este se encontre, é
uma expressão do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

1.2.2 Autonomia Privada


No Direito Internacional Privado é, hoje, possível aos particulares escolherem a lei aplicável;
existe igualmente um espaço de liberdade de determinação das partes.

Do Artigo 3.º do Regulamento de Roma I resulta que “[O] contrato rege-se pela lei escolhida
pelas partes.” Isso é algo muito importante no comercio internacional: a maioria dos contratos
de comercio internacional contêm uma cláusula onde as partes escolhem a lei a que vão estar
sujeitas.

Isso tem a enorme importância também das partes conhecerem qual a lei que será aplicada
em caso de conflito, invés de deixar tal escolha ao critério do tribunal.

1.2.3 Tutela da Confiança


Trata-se de um corolário do princípio do Estado de Direito, previsto no Artigo 2.º CRP. As
relações privadas internacionais pela circunstância de estarem ligadas a várias ordens jurídicas
cria a expectativa, as partes podem ter pautado as suas condutas segundo a lei que contavam
como aplicável.

4
1.2.4 Igualdade Perante a Lei

É o princípio da Tutela da Confiança que justifica a aplicação de leis estrangeiras: a aplicação


de uma lei diferente daquela que as partes consideravam aplicável poderá defraudar as
expectativas das partes.

Esse princípio justifica igualmente o reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.

Esse princípio permite que, por vezes, ainda que a lei aplicável seja uma, se aplique a lei
estrangeira com o intuito de melhor proteger as expectativas das partes. Uma concretização
desse princípio consta do Artigo 31.º/2 CC, nos termos do qual são, porém, reconhecidos em
Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em
conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.

Exemplo:

“Nacional português celebrou um testamento em França, observando para o efeito todos os


requisitos e formalidades exigidas pela lei francesa para a validade do testamento.”
O Artigo 31.º/1 determina aplicar como regra a lei da nacionalidade, o que implicaria a
invalidade do mesmo. Porém, a observância de todas as formalidades exigidas pela lei francesa
gerou no testador a expectativa que todas as suas sucessões por morte fossem regidas por
aquele testamento, daí que o n.º 2 do Artigo 31.º preveja essa derrogação de aplicação da lei
da nacionalidade em favor da aplicação da lei da residência habitual.
Uma vez que se entendeu que não se justifica que os cidadãos deslocados sejam obrigados a
vir a Portugal tratar de todos os seus atos pessoais.

1.2.4 Igualdade Perante a Lei


Consagrado no Artigo 13.º CRP, esse valor implica que as situações internacionais devem ter
uma ponderação uniforme independente do país em que a questão for colocada. Esse
princípio visa evitar o foro shopping, isso é o fenómeno que se verifica quando o interessado
escolhe colocar a ação num tribunal onde existe mais probabilidade de ganhar. Esse problema
do foro shopping resulta do facto que, por via de regra, são internacionalmente competentes
vários tribunais.
A forma de resolver esse problema é através da harmonização das regras de resolução de
conflitos através de convenções internacionais ou, no âmbito do Direito da União Europeia, a
existência de regulamentos: se todos os países aplicarem as mesmas regras de conflito, então
a lei aplicável à situação internacional será a mesma onde quer que a ação seja instaurada.
Sem prejuízo, diferentes países podem optar por sistemas de regras de conflito diferentes.
Por exemplo:
“Portugal considera aplicável a lei da nacionalidade da pessoa, enquanto um outro país
considera aplicável a lei do domicílio.”
A existência de um conflito desse gênero gera o chamado “Reenvio ou Devolução”.
A forma de combate desse fenómeno é através da harmonia jurídica internacional, previsto
nos Artigos 17.º a 19.º CC, que visa que os vários sistemas apliquem a mesma lei àquela
situação internacional. Para atingir tal harmonia é necessário fazer conceções aquilo que o
outro sistema defende.

5
1.2.5 Valores Sociais e Públicos

1.2.5 Valores Sociais e Públicos


Trata-se, por exemplo, da proteção da parte mais fraca nas relações jurídicas (exemplo, a
proteção do consumidor ou do trabalhador).
No Direito Internacional Privado tal manifestas nas regras de conflito em matérias de contratos
de consumo. Nos termos do Artigo 6.º do Regulamento de Roma I, verificados determinados
requisitos, deve-se aplicar a lei da residência habitual do consumido.
Algo semelhante acontece em matéria de contrato individual de trabalho, nos termos do
Artigo 8.º do Regulamento de Roma I o qual determina que é aplicável a lei do local onde o
trabalhador preste habitualmente a sua prestação, sempre que essa for mais favorável à lei
escolhida no contrato individual de trabalho.
Por exemplo:

“No contrato de trabalho consta que é aplicável a lei irlandesa, sendo as prestações
habitualmente realizadas em Portugal. Em tudo o que a lei portuguesa for mais favorável, essa
prevalece sobre a lei irlandesa.”

Também está em jogo valores sociais a sujeição dos direitos reais sobre imóveis à lei onde o
imóvel é sito. Assim, mesmo que o contrato esteja sujeito a uma lei estrangeira, em tudo o que
tenha a ver com direito reais é aplicável a lei portuguesa. Tal deve-se ao facto que os bens
imóveis são fatores de produção que integram a riqueza nacional.

Para além desses, resta ainda as regras que determinam a aplicabilidade imediata ou direta:
tratam-se de regras que são de tal modo importante que devem ser aplicadas, mesmo que o
contrato se encontre sujeito a uma lei estrangeira. Isso resulta do Artigo 9.º/1 do Regulamento
de Roma I: As normas de aplicação imediata são disposições cujo respeito é considerado
fundamental por um país para a salvaguarda do interesse público, designadamente a sua
organização política, social ou económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer
situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro
modo seria aplicável ao contrato, por força do presente regulamento, acrescentando o n.º 2
que as disposições do presente regulamento não podem limitar a aplicação das normas de
aplicação imediata do país do foro.

Assim, por exemplo, mesmo que o contrato se encontrei sujeito a uma outra lei, se a prestação
é proibida pela lei portuguesa, então a lei portuguesa tem aplicação imediata.

1.2.6 Metodologia
O método do Direito Internacional Privado visa promover a regulação das situações privadas
internacionais. Contudo, do plano doutrinal, não há unanimidade quanto ao método que
deveria ser adotado a este propósito. Havendo, porém, três grandes orientações:

i) a orientação jurisdicionalista – preconiza a aplicação da lei do Estado do foro às


situações jurídicas internacionais;

ii) a orientação substancialista – avoga a criação de um regime próprio de direito


substantivo para regular as situações internacionais;

iii) o método conflitual ou da conexão – prevê que as situações privadas internacionais


sejam reguladas através da lei designada por uma regra de conflitos de lei no espaço.

6
1.2.6.1 Orientação Jurisdicionalista

1.2.6.1 Orientação Jurisdicionalista


Remonta a idade média, onde existia o fracionamento dos Direitos na Europa, que variavam de
cidade para cidade: os chamados estatutos. Os estatutos tinham uma aplicação puramente
territorial: os tribunais aplicavam estritamente os estatutos locais. A tarefa de regulação das
situações internacionais tornava-se fácil.

Porém, com o desenvolvimento da ciência do Direito, essa orientação foi sendo superada,
passando-se a admitir a aplicação em certas situações de lei estrangeira, nomeadamente
relativo ao Estatuto Pessoal das Pessoas.

No século XX essa ideia de aplicação sistemática da lei do Estado do foro foi recuperada por
um setor da doutrina, sobretudo no Ordenamento Jurídico dos EUA. Os tribunais americanos
com grande frequência limitam-se a aplicar o seu Direito: nos EUA colocam-se problemas de
aplicação da lei no espaço a nível interno.

Essa orientação é apoiada pelo Professor António Menezes Cordeiro: argumentado que os
juízes, por via de regra, só são versados no Direito do seu próprio país – se aplicar Direito
estrangeiro, corre o risco de o aplicar mal.

Essa orientação é, no entanto, contrária aos valores que o Direito Internacional Privado visa
atender, desde logo:

i) Tutela da Dignidade Humana – que preconiza que os Estatutos Pessoais da Pessoa


devem ser regulados por uma lei pessoal; à luz dessa orientação, a lei aplicável seria a lei do
Estado de Foro, não existindo qualquer estatuto pessoal (exemplo, uma pessoa deixaria de ser
capaz de exercer os seus Direitos por atravessar as fronteiras);

ii) Autonomia Privada – os particulares devem poder escolher a lei aplicável aos
contratos internacionais; à luz dessa orientação, a liberdade contratual seria limitada sem
qualquer razão atendível;

iii) Tutela da Confiança – a qual reclama que as pessoas possam ver as suas relações
internacionais reguladas pela lei, segundo a qual pautaram as suas condutas. Exemplo, alguém
encomenda por via online um produto, segundo a lei portuguesa é necessário haver para
vincular o consumidor a confirmação da encomenda. Acontece que A e B celebraram um
contrato por via eletrónica, ambos domiciliados nos EUA, sendo que mais tarde A passa a ser
domiciliado em Portugal e interpõe aí a ação: a aplicação da orientação jurisdicionalista
determinaria a aplicação da lei portuguesa, defraudando as legitimas expectativas
relativamente a lei aplicável.

É de referir ainda que nos EUA os tribunais têm a prerrogativa de se considerarem forum non
conveniens, podendo assim declinar a sua competência com fundamento que a lei aplicável
seria outra. Ou seja, existem outros mecanismos para garantir a tutela da confiança.

1.2.6.2 Orientação Substancialista


Segundo essa, deveria existir um Direito próprio para regular as situações jurídicas privadas
internacionais, ou então, no limite, defende a harmonização dos Direitos. Trata-se de uma
solução questionável, na medida em que o Direito como uma manifestação da cultura, aquilo
que se tem como adequado e justo num Estado não o é noutro.

7
1.2.6.3 Método Conflitual ou da Conexão

Por outro lado, a nível europeu, pode-se questionar se a União Europeia tem atribuições para
tal harmonização; na medida em que essas são niveladas à luz do princípio da subsidiariedade.

Por fim, deve referir-se que tal unificação é também questionável do ponto de vista prático:
não existe uma base comum a todos os ordenamentos jurídicos; na medida em que existem
valores fundamentais e estruturais que variam de país para país – em especial, face ao
confronto entre Common Law e Civil Law.

Não sendo possível a harmonização geral dos Direitos, será, em tese possível, criar um regime
próprio substancial para regular as situações jurídicas internacionais, sendo que parte da
doutrina defende que esse ordenamento tem vindo a ser constituído com a celebração de
convenções internacionais. Exemplo:

“A Convenção de Viena de 1980 sobre a Compra-e-Venda Internacional de Mercadorias, a qual


procura regular os contratos mais importantes do comércio internacional, sobre a formação e
obrigações decorrentes desses contratos: porém, não regula todas as matérias, questões como
a validade ou invalidade do contrato, a sua execução especifica, os efeitos reais resultantes
desse contrato.”

Há um conjunto significativo de relações internacionais onde é particularmente crítico as


partes conhecerem qual a lei aplicável; porém, apenas há uma harmonização pontual, e não
global.

Alguns autores defendem que as causas quando submetidas aos Tribunais Arbitrais, esses
deveriam aplicar a lex mercatoria, constituídas pelos usos, costumes, contratos típicos, etc.
Porém, está-se longe de demonstrar que essa lex mercatoria é uma verdadeira ordem jurídica,
na medida em que não existe verdadeira completude.

A Unidroit procurou colmatar as limitações da lex mercatoria adotando um texto não


vinculativo sobre Principles of International Commercial Contracts: não são normas jurídicas
vigentes em parte alguma, antes as partes podem optar, ao abrigo da autonomia privada,
submeter a relação aos Principles.

1.2.6.3 Método Conflitual ou da Conexão


Essa é o método que o Direito positivo adota, assenta no conflito de leis no espaço: trata-se de
regras indiretas, não determinado qual a solução para aquela situação jurídica internacional,
mas antes qual a lei aplicável. Exemplo, o regime da posse, propriedade e demais direitos reais
é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem situadas, nos termos do
Artigo 46.º/1 CC, ou a responsabilidade extracontratual fundada, quer em ato ilícito, quer no
risco ou em qualquer conduta lícita, é regulada pela lei do Estado onde decorreu a principal
atividade causadora do prejuízo; em caso de responsabilidade por omissão, é aplicável a lei do
lugar onde o responsável deveria ter agido, nos termos do Artigo 45.º/1 CC.

Essas regras de conflito remetem para a lei aplicável com base num elemento de conexão:
esse elemento no Artigo 46.º é o sítio onde a coisa está sita e no Artigo 45.º o sítio onde o
facto gerador de responsabilidade civil teve lugar.

Esse método foi criado nos meados do século XIX, tendo tido por base o Pensamento de
Savigny, que no tomo VIII do Sistema de Direito Romano Atual defendeu a ideia de que as
relações jurídicas devem ser reguladas pela lei do país da sua sede; isso é, a lei do país com
uma relação mais estreita com a relação jurídica.
8
1.3 Relação com outras Áreas do Direito

Esse método assenta na ideia em que há uma Comunidade de Direitos: naquilo que Savigny
chamava de nações cristãs haveria algo em comum que justificaria a aplicação da lei
estrangeira. Esse método foi adotado pelo BGB em 1900.

Trata-se do método hoje consagrado em Portugal, bem como nos instrumentos da União
Europeia em matéria de Direito Internacional Privado.

Esse método permite coordenar os Direitos, sem os unificar; permite preservar a identidade
desses mesmos Direitos. Assim, permite-se, de igual modo, salvaguardar os valores
fundamentos a que o Direito Privado Internacional deve acautelar.

Deve-se referir que é possível que as regras de conflito excluam a aplicação da lei estrangeira:
é o que acontece com a chamada Cláusula Geral da Ordem Pública Internacional, nos termos
do Artigo 22.º, segundo a qual não são aplicáveis os preceitos da lei estrangeira indicados pela
norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da
ordem pública internacional do Estado português.

Exemplo:

“A lei do domicílio das partes permite ao marido repudiar o seu cônjuge repetindo três vezes a
mesma frase. Ainda que em relação ao Estatuto das Pessoas se devesse aplicar a lei do
domicílio, essa viola princípios fundamentais do Estado Português, sendo por isso inaplicável.”

Assim, o Direito do Estado do Foro tem uma certa primazia, porque não só é ele que
determina qual a lei aplicável, como tem uma espécie de poder de veto em caso da lei
estrangeira ser contrária a ordem pública internacional.

1.3 Relação com outras Áreas do Direito


O Direito Internacional Privado relaciona-se com diversas áreas do Direito, nomeadamente
com:

i) Direito Constitucional;

ii) Direito Internacional Público;

iii) Direito da União Europeia;

iv) Direito Comercial Internacional;

v) Direito Comparado.

1.3.1 Direito Constitucional


A relação pode ser analisada à luz de diferentes prismas.

Num primeiro momento cabe questionar qual a incidência que as normas constitucionais
podem ter nas regras de conflitos; sobre esta matéria a doutrina clássica defendia que as
regras de conflitos de leis no espaço, sendo axiologicamente neutras, não estariam sujeitas a
nenhum crivo de aferição de constitucionalidades; porque seriam regras instrumentais ou
normas sobre normas.

Este ponto de vista clássico está hoje superado, em especial desde o Acórdão do Tribunal
Constitucional Alemão, no qual o Tribunal se pronunciou sobre a inconstitucionalidade por

9
1.3.2 Direito Internacional Público

violação da igualdade entre os cônjuges das normas que determinavam a regra aplicável as
relações conjugais como sendo a lei da residência habitual do marido.

Ao que acresce que, hoje, o Direito Internacional Privado sujeita-se a critérios de justiça
material, nomeadamente, em sede de relação de consumo ou de trabalho que visam proteger
a parte mais fraca nestas relações.

As regras de conflito operam a escolha da conexão em função de critérios de justiça pelo que
devem estar sujeitas à constituição.

Num segundo momento cabe questionar em que termos: após a aprovação da CRP de 1976 foi
necessário atualizar o Código Civil de forma que este estivesse conforme à constituição; de
entre as normas alteradas foram alteradas as regras de conflitos:

i) os Artigos 52.º e 53.º que determinava que a lei aplicável a situação conjugal era a lei
pessoal do marido; sendo substituído para a lei que a relação matrimonial se encontre mais
próxima;

ii) os Artigos 58.º e 59.º foram suprimidos em virtude da violação do princípio da não
discriminação de filhos nascidos fora e dentro do matrimonio, conforme o Artigo 36.º/4 CRP.

Num terceiro momento cabe saber se a lei estrangeira deve-se sujeitar as normas
constitucionais portuguesas; a doutrina clássica remete este problema para a reserva de
ordem pública internacional. Porém, cabe questionar se o Tribunal Português pode, invocar o
Artigo 104.º CRP, recusar a aplicação de lei estrangeira com fundamento da violação da CRP:
Dário Vicente defende que esta solução poderá ser excessiva, mas devera-se admitir esta
recusa em certos casos independentemente do funcionamento da reserva de ordem pública
internacional, tal é o entendimento de Moura Ramos.

Trata-se de algo que se deve admitir em virtude da necessidade de prosseguir determinados


fins do Estado: trata-se, porém, de situações raras, sendo que a CRP opera a nível de Direito
Internacional Privado por via da reserva de ordem pública internacional.

Num quarto momento cabe saber se se pode recusar aplicar a lei estrangeira por esta ser
contrária a constituição do país estrangeiro. Segundo Dário Vicente:

i) se no país estrangeiro em questão, a norma foi declarada inconstitucional com força


obrigatória geral: então não se deve aplicar, até em virtude do princípio da harmonia dos
julgados;

ii) se não tiver havido declaração inconstitucionalidade, então cabe distinguir:

a) se no país estrangeiro é admitida a fiscalização difusa da


constitucionalidade, então deve-se admitir que não se deve aplicar se o juiz entender pela
inconstitucionalidade;

b) se no país estrangeiro não se admitir a fiscalização difusa, então, em virtude


do princípio da harmonia dos julgados, o juiz deve aplicar a lei estrangeira independentemente
destas questões de constitucionalidade.

1.3.2 Direito Internacional Público


Existem regras de Direito Internacional Privado cuja fonte são regras de Direito Internacional
Público (exemplos Convenções Internacionais e Tratados). Questão diferente é, porém, saber
10
1.3.3 Direito da União Europeia

se o Direito Internacional Privado se pode considerar como parte do Direito Internacional


Público: esta tese já foi defendida por um setor da doutrina que via nas regras do Direito
Internacional Privado regras que desempenhavam uma função própria do Direito Internacional
Público, isto porque ao determinar espacialmente a aplicação de uma lei a uma questão
privada internacional, estas regras estariam a resolver problemas de soberania – a
coordenação da soberania dos vários estados é uma função especifica de Direito Internacional
Público, pelo que neste sentido o Direito Internacional Privado seria Direito Internacional
Público: e daqui extraiu-se um corolário que as regras de conflito apenas podem delimitar o
âmbito de aplicação da lei do próprio Estado do foro e nunca determinar lei estrangeira.

Foi precisamente neste pressuposto que assentou a redação original da lei de aprovação do
BGB em matéria de Direito Internacional Privado: as normas aí constantes eram unilaterais,
limitavam-se a determinar quando é que o Direito Alemão era aplicável. Este corolário está
relacionado com ideia de que ao aplicar-se uma lei estrangeira coloca-se em causa a soberania
do Estado, daí que as leis internas nunca poderiam determinar quando é que uma lei
estrangeira era aplicável, mas apenas a do próprio Estado.

Esta tese foi superada; já não havendo defensores: o Direito Internacional Privado não trata de
soberania dos Estados; quando se aplica a lei estrangeira, não se está a fazer atuar a soberania
do país estrangeiro: aplica-se a lei estrangeira porque o Estado julga ser a lei mais adequada
para regular a situação por a ela ser-lhe mais próxima.

Mais a solução de que as regras de conflito devem ser unilaterais, poderia gerar situações em
que dois Estados julgavam que a sua lei era aplicável, gerando também problemas
indesejáveis. Devendo antes adotar-se a bilateralidade.

O Direito Internacional Privado é um ramo separado do Direito Internacional Público, ainda


que possa ter normas que têm como fonte o Direito Internacional Público.

1.3.3 Direito da União Europeia


Esta é uma questão relativamente recente em virtude de duas ordens de razões:

i) a União Europeia é relativamente recente;

ii) só nos últimos anos tem vindo a adotar normas de Direito Internacional Privado.

Porém, hoje, o Direito Internacional Privado tem cada vez como fonte maioritária o Direito da
União Europeia, isso deve-se a necessidade de assegurar a existência e o bom funcionamento
do mercado interno europeu e das suas quatro liberdades económicas fundamentais; sendo
este um dos grandes pilares da União Europeia.

Para que o mercado interno possa funcionar corretamente é necessário saber a regulação de
situações internacionais dentro destes, em particular, as relações de cariz contratual. Exemplo:

“Uma empresa portuguesa celebra contratos de fornecimento de bens com empresas de outro
Estado-Membro da União Europeia”

Saber qual a lei aplicável a esta situação é importante para a empresa: uma vez que é a
determinação desta lei que vai permite saber como é que a empresa deve pautar a sua
conduta, nomeadamente em sede de responsabilidade por defeitos; é precisamente por essa
razão que foi elaborado o Regulamento Roma I. O Artigo 4.º/2 desse Regulamento determina
que, em último caso, os contratos são regulados pela lei do país em que o contraente que deve
11
1.3.3 Direito Comercial Internacional

efetuar a prestação característica do contrato tem a sua residência habitual. Neste caso, seria
a lei portuguesa, na medida em que a prestação típica do contrato de compra-e-venda é a
entrega do bem, sendo o devedor da prestação a empresa portuguesa.

Uma externalidade desta solução é que as empresas não precisam de consultar advogados,
bastando conhecer a lei do seu próprio país, diminuindo custos e, em última análise,
beneficiando os consumidores.

Verifica-se aqui uma subordinação do Direito Internacional Privado, às finalidades típicas do


Direito da União Europeia, no caso na construção do mercado interno, sem, no entanto,
perder a sua autonomia; há quem na doutrina aludisse a este propósito à “Revolução Europeia
do Direito Internacional Privado” em contraposição a Revolução Americana do Direito
Internacional Privado dos Estados Unidos.

A título de exemplo deve-se ainda referir que as normas de Direito da União Europeia que
determinam as regras de competência internacional dos tribunais e o reconhecimento de
sentenças; algo importante para qualquer agente económico, existindo um espaço judiciário
único onde as decisões judiciais circulam livremente com base na mútua confiança; ao ponto
que alguma doutrina fala numa quinta liberdade económica fundamental, a liberdade de
circulação de sentenças.

A ligação entre o Direito da União Europeia e o Direito Internacional Privado é hoje bastante
estreita.

1.3.3 Direito Comercial Internacional


O Direito Comercial Internacional trata-se de um conjunto de normas heterogéneo que
regulam o comercio internacional através de normas materiais: normas que disciplinam
diretamente as relações jurídicas internacionais. Um exemplo destas normas é a Convenção de
Viena sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias e a Convenção de Montreal.

O Direito Comercial Internacional também tem como objeto relações jurídicas internacionais,
porém, regulam-nas de forma diferente do Direito Internacional Privado. Sem prejuízo, pode-
se referir que esse ramo integram uma acessão ampla do Direito Internacional Privado.

1.3.4 Direito Comparado


Ao contrário do Direito Internacional Privado, o Direito Comparado não é um ramo do Direito,
é antes uma ciência auxiliar do Direito.

O Direito Comparado é instrumental a aplicação de regras do Direito Internacional Privado, na


medida em que este último leva, por vezes, à aplicação de leis estrangeiras; porém, para
aplicar essas leis é necessário interpretar, integrar e até aferir da constitucionalidade dessas
mesmas leis. Não é possível aplicar corretamente o Direito Francês sem conhecer qual a
relevância da jurisprudência enquanto fonte de Direito na ordem jurídica francesa.

A instrumentalidade do Direito Comparado é nítida numa operação que o Direito Internacional


Privado faz; a qualificação, regulada no Artigo 15.º CC.

Também é necessário recorrer à comparação, quando em determinada questão é invocado um


Direito Subjetivo que a ordem jurídica portuguesa não consagra; isto é a operação da
transposição. Exemplo:

12
2. Teoria Geral do Direito Privado

“A hipoteca automobilista é uma figura que existe no Direito Italiano. Pode o titular desta
situação invocar esta garantia perante os tribunais portugueses em relação a um bem que se
encontre em Portugal, sendo a lei italiana aplicável no caso?”

Não existe uma correspondência direta desta figura na ordem jurídica portuguesa, porém é
possível transpor a hipoteca automobilista para o seu correspondente funcional na ordem
jurídica portuguesa: tal, porém, pressupõe uma comparação jurídica.

2. Teoria Geral do Direito Privado

2.1 Regras de Conflitos


O Direito Internacional Privado não goza de um método único para regular as situações
jurídicas privadas internacionais; porém, o método prevalecente consiste em definir como
aplicável uma ou mais leis que vão regular a situação: isto é, por norma, o Direito Internacional
Privado não dá a solução diretamente para as situações jurídicas internacionais.

As regras que determinam qual a lei ou as leis aplicáveis são as chamadas regras de conflitos.
Ou seja, regras que se caraterizam pela remissão para uma ordem jurídica com vista a regular
a situação jurídica privada internacional.

Como qualquer regra jurídica, estas podem ser decompostas em dois elementos essenciais:

i) previsão – a situação jurídica privada que a norma visa regular;

ii) estatuição – a conexão/chamamento das normas de certa ordem jurídica a fim de


regularem a situação jurídica privada internacional – essa conexão não se confunde com a
conexão, enquanto elemento que permite aferir qual a lei aplicável.

2.1.1 Previsão
As previsões das regras de conflito delimitam o seu âmbito através de conceitos técnico-
jurídicos, sendo que de uma de duas formas:

i) uma categoria de situações jurídicas – por exemplo, Artigo 3.º/1 do Regulamento


Roma I que se ocupa com as obrigações contratuais ou o Artigo 46.º CC que se ocupa com a lei
aplicável à “posse, propriedade e outros direitos reais”;

ii) uma categoria de questões jurídicas parciais – por exemplo, Artigo 11.º do
Regulamento Roma I ocupa-se com um aspeto particular da relação jurídica, a forma do
contrato, ou o Artigo 49.º CC que se ocupa com saber qual a lei aplicável à capacidade
matrimonial, um aspeto parcial da relação matrimonial.

Estes conceitos técnico-jurídicos são “conceitos quadros”, capazes de incorporarem em si


várias e diferentes situações jurídicas dos diferentes ordenamentos jurídicos.

2.1.2 Estatuição
Esta pode assumir várias modalidades:

i) regras de conflitos unilaterais – se se limitar a determinar quando é que a lei do


Estado do foro é aplicável; apenas delimitam o âmbito de aplicação da lei do Estado do foro;
exemplos: Artigo 4.º/1 da Lei do Comércio Eletrónico, nos termos do qual os prestadores de
serviços da sociedade da informação estabelecidos em Portugal ficam integralmente sujeitos à
lei portuguesa, ou o Artigo 3.º/1 RGPD o regulamento aplica-se ao tratamento de dados
13
2.1.2.1 Conexão

pessoais efetuado no contexto das atividades de um estabelecimento de um responsável pelo


tratamento ou de um subcontratante situado no território da União, independentemente de o
tratamento ocorrer dentro ou fora da União, sendo que o n.º 2 acrescenta que o regulamento
se aplica ao tratamento de dados pessoais de titulares residentes no território da União;

ii) regras de conflitos bilaterais ou multilaterais – delimitam tanto o âmbito de


aplicação da lei do Estado do foro, mas também a de qualquer lei do Estado Estrangeiro; tanto
pode conduzir a aplicação da lei do Estado do foro como de uma lei estrangeira; exemplos: o
Artigo 25.º CC conjugado com o Artigo 31.º/1, nos termos do qual o Estado das pessoas é
regulado pela lei nacional dos indivíduos, ou o Artigo 21.º Regulamento n.º 650/2012, nos
termos do qual a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha
residência habitual no momento do óbito.

iii) regras de conflitos bilaterais imperfeitas – regras que tanto podem remeter para a
lei nacional como estrangeira, mas apenas se ocupam com certas hipóteses; exemplo: a
redação original do Artigo 51.º/1 CC que permitia que a forma a observar para o casamento de
dois estrangeiros em Portugal mediante agentes diplomáticos era a forma prescrita pela lei da
nacionalidade dos estrangeiros, sendo que o n.º 2 determinava que dois portugueses
emigrados podiam celebrar o casamento segundo a forma prescrita pela lei portuguesa
perante um consulado português – a lei não se debruçava sobre o casamento de dois
estrangeiros no estrangeiro; a doutrina aplicava por analogia a lei nacional dos nubentes.

O unilateralismo e o biliteralismo são duas formas do mesmo método, a única diferença é o


grau de completude destas mesmas normas.

2.1.2.1 Conexão
O chamamento da lei ou a conexão pode assumir uma de duas modalidades:

i) conexão singular – trata-se da regra; as regras de conflito limitam-se a reportar uma


única lei como aplicável;

ii) conexão plural ou cumulativa – as regras de conflito mandam aplicar ou mandam ter
em consideração duas ou mais leis para regular a mesma situação.

2.1.2.1.1 Conexão Singular


Estas podem revestir uma de 5 modalidades:

i) conexão singular simples – é aquela que se verifica quando existe uma e só uma lei
aplicável à situação jurídica privada internacional; exemplo, o Artigo 46.º CC que manda aplicar
a lex rei sitae, ou seja, a lei do lugar onde está sito a coisa;

ii) conexão singular subsidiária – é aquela que só funciona quando outra não funcionar;
esta ocorre, nomeadamente, em sede de contratos internacionais, na medida em que as
partes podem escolher qual a lei aplicável ao contrato: na ausência desta manifestação de
vontade, o Artigo 4.º/1 do Regulamento Roma I determina que é aplicável a lei da
nacionalidade do devedor da prestação típica do contrato;

iii) conexão singular alternativa – existem várias leis que se podem aplicar
alternativamente; exemplo é o Artigo 11.º/1 do Regulamento Roma I que manda aplicar uma
série de leis, valendo aquela segundo a qual o contrato é formalmente válido: trata-se de uma
manifestação do princípio favori negoti;

14
2.1.2.1.2 Conexão Plural ou Cumulativa

iv) conexão singular optativa – dá-se uma opção ao interessado quanto à lei aplicável;
exemplo é o Artigo 7.º do Regulamento Roma II que manda aplicar à responsabilidade
extracontratual por danos ambientais a lei onde ocorreu o dano, nos termos do Artigo 4.º,
salvo se a pessoa que requer a reparação do dano escolher basear o seu pedido na lei do país
onde tiver ocorrido o facto que deu origem ao dano – exemplo:

“Uma fábrica espanhola emite determinados produtos poluentes que danificam culturas
agrícolas sitas em território português.”

O Regulamento Roma II permite ao lesado optar entre a lei espanhola, lei do local
onde se verificou o facto que produziu o dano, ou a lei portuguesa, lei do local onde se
verificou o dano.

v) conexão singular acessória – em certa matéria vai-se aplicar a lei que se aplica a
certa matéria; exemplo o Artigo 4.º do Regulamento de Roma II que em regra manda aplicar a
lei do país onde se verifica o dano, mas o n.º 3 desse Artigo determina que se resultar
claramente do conjunto das circunstâncias que a responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito
ou no risco tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do
indicado nos n.ºs 1 ou 2, é aplicável a lei desse outro país. Uma conexão manifestamente mais
estreita com um outro país poderá ter por base, nomeadamente, uma relação preexistente
entre as partes, tal como um contrato, que tenha uma ligação estreita com a responsabilidade
fundada no ato lícito, ilícito ou no risco em causa.

“Empresa portuguesa que organiza viagens transporta num autocarro um conjunto de


passageiros portugueses numa viagem a França.”

Este contrato foi celebrado em Portugal, as partes são portuguesas, o país onde
ocorreu o dano, no caso França, tem uma conexão limitada com o caso; o Artigo 4.º/3 do
Regulamento Roma II dá a possibilidade ao tribunal de aplicar a lei portuguesa nesse caso.

2.1.2.1.2 Conexão Plural ou Cumulativa


Esta pode assumir uma de duas modalidades:

i) conexão plural simples – para se produzir determinados efeitos é necessário que


uma ou mais leis estejam de acordo; o Artigo 33.º/3 CC determina que a transferência, de um
Estado para outro, da sede da pessoa coletiva não extingue a personalidade jurídica desta, se
nisso convierem as leis de uma e outra sede: aplica-se duas leis, a lei da sede originária e a lei
da nova sede;

ii) conexão plural condicionante ou limitativa – em princípio há apenas uma lei


aplicável a uma situação jurídica privada internacional, mas uma segunda lei limita os efeitos
da primeira; exemplo: o Artigo 27.º determina que aos direitos de personalidade são regulados
pela lei pessoal da pessoa, porém o n.º 2 determina que o estrangeiro ou apátrida não goza de
qualquer forma de tutela jurídica que não seja reconhecida na lei portuguesa; assim, em
Portugal pode ser recusada qualquer forma de tutela que em Portugal é considerada
inadmissível – por exemplo, os chamados punitive damages.

2.1.3 Elemento de Conexão


A conexão, como chamamento de uma lei para regular a situação, não se confunde com o
elemento de conexão, o qual permite aferir qual a lei aplicável. Este pode revestir diferentes
modalidades:
15
2.1.4 Interpretação, Integração e Aplicação

i) pode atender a aspetos da pessoa – nacionalidade, residência habitual, sede da


administração efetiva de uma sociedade;

ii) pode atender ao objeto da situação em causa – por exemplo, onde é que este se
encontra sito como ocorre no Artigo 46.º CC;

iii) pode reportar-se ao lugar da prática do negócio jurídico – por exemplo, o Artigo
11.º do Regulamento Roma I manda aplicar a lei do local da celebração do negócio jurídico
para aferir da sua validade formal.

Podendo, igualmente, operar através de um elemento de conexão diferente, como sucede


quando:

iv) as próprias partes que escolhem a lei aplicável – a lei escolhida pode não conter
qualquer elemento de conexão com o contrato para além da vontade das partes em regê-lo
por esta lei;

v) a lei confere ao julgador em face das circunstâncias do caso determinar qual a lei
que tem conexão mais estreita com o caso e aplicá-la – é o que sucede com o Artigo 52.º/2 CC
ao determinar que não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é aplicável a lei da sua
residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache
mais estreitamente conexa.

2.1.4 Interpretação, Integração e Aplicação

2.1.4.1 Interpretação
As regras relativas à interpretação das regras de conflito vai depender qual a fonte desta
mesma regra. Tratando-se de uma regra de conflito interna aplica-se o Artigo 9.º CC. Sem
prejuízo, na interpretação das regras de conflito não se deve olhar para os conceitos quadros e
procurar-se interpretá-los no mesmo sentido que se faz noutros ramos do Direito.

Exemplo:

“O Código Civil de Seabra não previa a figura da adoção, sem prejuízo eram reconhecidas em
Portugal as adoções celebradas no estrangeiro segundo e reconhecidas por uma lei
estrangeira; o Artigo 27.º do Código de Seabra mandava aplicar ao “estado e capacidade civil
das pessoas” a lei da sua nacionalidade. O conceito-quadro “estado e capacidade civil”
abrangia o conceito de adoção, apesar desse instituto ser desconhecido no Direito Interno.”

“O atual Código Civil não reconhece a figura da filiação ilegítima, sem prejuízo o conceito de
filiação dos Artigos 57.º e 58.º CC abrange esta figura; ainda que depois, em virtude da reserva
de ordem pública internacional, possa-se não verificar a sua aplicação.”

Na interpretação das regras de conflitos é necessário ter em conta um princípio de autonomia:


o significado dos conceitos-quadro presentes nas normas de conflito não significam o mesmo
que os conceitos vertidos no direito substantivo.

Esse princípio é igualmente válido para as regras de conflitos de fonte internacional, até em
virtude do princípio da harmonia de julgados.

16
2.1.4.2 Integração

O Tribunal de Justiça da União Europeia já teve oportunidade de pronunciar-se em igual


sentido; devendo as regras de conflito ser interpretadas em virtude do seu conteúdo e das
suas finalidades.

2.1.4.2 Integração
As lacunas do Direito Internacional Privado são raras. Porém, a sua integração deve-se fazer
através das regras gerais do Artigo 11.º.

Por exemplo: o Artigo 31.º/2 CC apenas se reporta aos “negócios jurídicos” por analogia se
pode aplicar a “atos jurídicos”; da mesma forma, pode-se aplicar por analogia Regulamento
Roma I, que apenas se diz aplicável às obrigações de fonte contratual, às obrigações oriundas
de negócios unilaterais.

Não sendo possível recorrer a analogia, deve o interprete-aplicador criar uma regra ad hoc
dentro do espírito do sistema.

2.1.4.3 Aplicação das Regras de Conflitos

2.1.4.3.1 Aplicação no Tempo


A aplicação no tempo das regras de conflitos é normalmente feita através de regras de direito
transitório formal específico. Sem prejuízo, na ausência destas regras especificas há que
recorrer às regras gerais dos Artigos 12.º e 13.º CC: sendo o princípio fundamental o princípio
da irretroativadade da lei.

2.1.4.3.2 Conflito Móvel


O conflito móvel é o problema que surge quando o mesmo elemento de conexão conhece
várias concretizações ao longo do tempo. Exemplo:

“A, timorense com 17 anos de idade, resolve adquirir a nacionalidade portuguesa. A


maioridade em Timor atinge-se aos 16 anos. Antes de adquirir a nacionalidade portuguesa, A
vendeu a sua mota a B. Acontece que após adquirir a nacionalidade, surge um litígio relativo à
sua capacidade para celebrar o negócio.”

O Artigo 29.º determina que a mudança da lei pessoal não prejudica a maioridade adquirida
segundo a lei pessoal anterior, trata-se do chamado princípio semel maior, semper maior e
uma manifestação da tutela da confiança.

2.1.4.3.3 Aplicação no Espaço


As regras de conflitos são aplicadas independentemente do Direito para onde elas remetam.
As regras de conflitos são sempre aplicáveis; mas há exceções; há casos em que se pode
aplicar regras de conflitos estrangeiras – os chamados casos de reenvio ou devolução,
reguladas nos Artigos 17.º a 19.º CC.

Pode ser necessário que os tribunais tenham de ter em consideração regras de conflito
estrangeiras: é o que sucede com o Artigo 31.º/2 ao fazer depender a aplicação da lei da
residência habitual, a necessidade dessa lei se considerar competente para regular a situação.

17
2.2 Qualificação

2.2 Qualificação
A qualificação é uma operação intelectual necessária a aplicação de toda e qualquer regra
jurídica no caso concreto; é através desta que se integra um caso no âmbito de aplicação de
uma norma, isto é, se o caso se reconduz a previsão da norma que se pretende aplicar.

Assim, por exemplo:

Um Contrato celebrado por duas pessoas nos termos do qual uma fica vinculada a entrega de
um imóvel durante determinado tempo e a outra ao pagamento durante esse determinado
tempo e vinculada, também, a obrigação de restituir o imóvel.

Nesse exemplo podia-se estar perante um Contrato de Arrendamento, Contrato de Comodato


ou um Contrato de Cessação de Estabelecimento Comercial. Ao procurar qual a natureza da
situação contratual e a qual a norma a que ele se subsume, está-se, na verdade, a qualificar.

A qualificação é, assim, a operação intelectual necessária a toda e qualquer aplicação das


regras jurídicas aos casos concretos; não sendo um problema exclusivo do Direito
Internacional Privado.

Porém, dada a estrutura particular das regras de conflito, o problema da qualificação suscita
dificuldades especiais. Estas dificuldades resultam do facto que as previsões das regras de
conflito recorrem a conceitos-quadros para delimitar o seu âmbito de aplicação e que a
estatuição dessas regras é o chamamento de uma lei para aplicar ao caso concreto.

Assim, suscita-se dois problemas:

i) qual o alcance da lei designada – a regra de conflitos remete para determinada lei, a
qual prevê um conjunto de normas aplicáveis ao caso: pergunta-se se todas estas normas são
aplicáveis ao caso por força do chamamento ou só algumas destas normas é que serão
aplicáveis em virtude do conceito-quadro; a referência que é feita a lei designada é aberta ou é
seletiva, no sentido que só abrange certas normas reconduzíveis ao conceito quadro;

ii) operação de qualificação – saber quais os critérios que presidem à subjunção das
normas designadas ao conceito-quadro; como é que se decide a subjunção se esta é possível
ou não.

2.2.1 Alcance da Lei Designada


Para se compreender esse problema atente-se ao seguinte exemplo:

A, solteiro, nacional do Reino Unido, faleceu em Portugal, deixando como único bem um imóvel
sito no Algarve. No seu testamento, nos termos do Artigo 22.º do Regulamento n.º 650/2012,
determinou como aplicável à sua sucessão a lei inglesa, deixando os seus bens ao seu amigo, B.

B repúdio a herança, em virtude das elevadas dívidas de A.

Como faleceu em Portugal, a sucessão abre-se em Portugal e questiona-se quem é que vai
suceder a A.

Em virtude da escolha do autor, a lei aplicável é a lei inglesa. Porém, em virtude do repúdio de
B, não há outros sucessíveis de A segundo a lei inglesa.

18
2.2.2 Operação da Qualificação

Acontece que, nos termos da Administration of Property Act, os bens sem dono,
designadamente os bens deixados em sucessão mortis causa sem herdeiros, são da titularidade
da Coroa Britânica.

A Coroa Britânica reivindica, com base neste Act, os seus direitos aos imóveis.

A resposta a este caso vai depender da operação de qualificação: não é líquido que as normas
do Act vão ser chamada a aplicação neste caso; pois na verdade esta lei é uma lei sobre
Direitos Reais e não uma lei que atribui à Coroa Britânica direitos sucessórios. Sendo
qualificável como uma norma de Direitos Reiais, deve-se questionar se essa norma deve ser
chamada à luz do Regulamento n.º 650/2012. Alias, o Artigo 46.º CC manda aplicar, em
matéria de Direitos Reais, a lei do local da situação do imóvel, ou seja, a lei inglesa.

Através da qualificação é possível concluir que a norma do Act não cabe no objeto da regra de
conflitos do Artigo 22.º do Regulamento n.º 650/2012 por não ser uma norma sucessória, mas
antes de Direitos Reais. Aplicando-se esse Act estar-se-ia a desvirtuar o sentido da regra de
conflitos.

A referência que é feita à lei não é uma referência aberta, mas antes seletiva; apenas se aplica
as normas que sejam subsumíveis ao conceito-quadro.

Esta ideia encontra-se consagrada no Artigo 15.º CC, nos termos do qual a competência
atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que têm
nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos. Resulta daqui que
quando a regra de conflito remeta para determinada lei, só são aplicáveis aquelas normas que,
pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, são reconduzíveis ao instituto visado pela
regra de conflitos/conceito-quadro; trata-se da tal referência seletiva.

2.2.2 Operação da Qualificação


Este sistema de referência seletiva obriga o interprete-aplicador a verificar se as normas que
integram a lei designada pela regra de conflitos, efetivamente, correspondem, pelo seu
conteúdo ou pela sua função, ao conceito-quadro utilizado pela regra de conflitos. Ou seja,
quando a regra de conflitos atribui competência a determinada lei, esta competência é
hipotética; é necessário verificar através da qualificação se a regra ou as regras se subsumem
ao conceito-quadro da regra de conflitos.

Assim, a operação de qualificação pode-se dividir em três momentos fundamentais:

i) interpretação do conceito-quadro da regra de conflitos – qual o seu significado e


âmbito;

ii) caraterização do objeto da qualificação – caraterizar as normas da lei


eventualmente aplicáveis para aferir do seu conteúdo e função;

iii) qualificação, em sentido estrito, ou subjunção – decidir se estas normas, dado o seu
conteúdo ou função, são subsumíveis ao conceito-quadro da regra de conflitos.

2.2.2.1 Interpretação do Conceito-Quadro


O problema da interpretação do conceito-quadro é ilustrável com os seguintes exemplos:

i) os Artigos 49.º e ss. CC determinam as leis aplicáveis às relações familiares: o Artigo


49.º manda aplicar a lei da nacionalidade de cada nubente para aferir da capacidade
19
2.2.2.1.1 Com Fonte no Direito Interno

matrimonial; porém, quando se fala de “casamento” apenas se tem em vista aquilo que na
ordem jurídica portuguesa é qualificado como casamento ou deve-se também ter em vista
aquilo que noutras ordens jurídicas é tido como casamento (como seja, as uniões civis ou o
casamento poligâmico);

ii) os Artigos 56.º e 57.º CC tratam da filiação, nos termos da qual a lei reguladora da
constituição do vínculo de filiação é a lei pessoal do progenitor à data da constituição;
questiona-se se este conceito-quadro se refere a toda e qualquer forma de filiação, como seja
a filiação ilegítima;

iii) as regras de conflito do Regulamento n.º 1259/2010 relativas ao divórcio: deve-se


entender apenas a dissolução do casamento por autoridade pública, como se entende em
Portugal, ou é também o divórcio privado que existe em alguns ordenamentos jurídicos.

Suscita-se a dúvida de saber se os conceitos-quadro abrange apenas as realidades do


Ordenamento Jurídico do Estado do Foro ou também outras que não são por esse
reconhecidas.

A diretriz interpretativa que tem sido adotada pela doutrina é que estes conceitos devem ser
interpretados com autonomia relativamente aos conceitos do Direito Material do Estado do
Foro. Os conceitos-quadro não significam necessariamente o mesmo do que os mesmos
conceitos no Direito Material.

2.2.2.1.1 Com Fonte no Direito Interno


Sempre que se trate de regras de conflitos do Direito Interno pode-se partir que o conceito-
quadro abrange as realidades que são tidas com aquele conceito; porém, não se deve cingir o
alcance dos conceitos-quadro ao significado que estes conceitos têm no ordenamento jurídico
português, uma vez que assim estar-se-ia a excluir conceitos de outros ordenamentos que têm
a mesma função. Assim, preside a autonomia dos conceitos-quadro das regras de conflitos,
eles não têm de cingir o seu alcance ao seu significado no Estado do Foro.

Quando se colocou a questão se se devia reconhecer um divórcio privado decretado por um


Presidente da Câmara no Japão, a Conservatória do Registo Central Português reconheceu este
divórcio por força da lei designada pela regra de conflitos.

O mesmo é válido para os Artigos 56.º e 57.º CC, abrangendo realidades que o Direito Material
Português desconhece, como é o caso da filiação ilegítima.

2.2.2.1.2 Com fonte no Direito Internacional ou no Direito da União Europeia


A interpretação dos conceitos-quadro de regras de conflito com fonte no Direito Internacional
ou no Direito da União Europeia tem como ponto de partida uma interpretação à luz das
finalidades; neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, que tem
reiteradamente defendido que os conceitos-quadro adotados em matéria de regras de conflito
devem ser autónomos dos conceitos dos Direitos Nacionais de cada Estado-membro.

Abrangendo, assim, por esse motivo, realidades que o Direito Nacional desconhece. Por
exemplo, nos termos do Artigo 3.º/1, d) do Regulamento n.º 650/2012, para efeitos desse
regulamento por disposição por morte entende-se “um testamento, um testamento de mão
comum ou um pacto sucessório”.

20
2.2.2.2 Caraterização do Objeto da Qualificação

Os testamentos de mão comum são hoje proibidos em Portugal e em muitos outros


ordenamentos jurídicos, assim, o conceito-quadro vai para além da realidade que se conhece
nesses ordenamentos.

2.2.2.2 Caraterização do Objeto da Qualificação


Este problema de caraterização verifica-se no exemplo supra referido de saber se os direitos
conferidos à Coroa Britânica pelo Administration of Property Act são de natureza real ou de
natureza sucessória.

Mas verifica-se igualmente no seguinte exemplo:

A, perante Tribunal Português, peticiona a condenação de B ao pagamento de uma dívida


contratual. Esta dívida encontra-se sujeita à lei inglesa, por força do Regulamento de Roma I,
em virtude da escolha das partes.

Acontece que esta dívida resulta de um contrato celebrado há 6 anos, não tendo sido até então
intentada qualquer ação para o seu cumprimento.

Acontece, ainda, que no Direito Inglês existe uma norma no Limitation of Actions Act que
estabelece que se uma ação não for intentada no prazo de 6 anos fica precludida a
possibilidade de quem quiser intentar a ação.

Nos termos do Artigo 12.º/1, d) do Regulamento Roma I, a lei aplicável por força do
regulamento abrange as diversas causas de extinção das obrigações, bem como a prescrição e
a caducidade.

As normas inglesas podem ser caraterizadas como regras processuais, vedando a possibilidade
de intentar uma ação; enquanto a prescrição extintiva são regras substantivas que afetam
diretamente o direito subjetivo.

Este problema da caraterização pode se colocar também ao nível do Direito Interno:

A e B, ingleses, vendem ao seu filho, C, um imóvel sito em Portugal, sem a autorização de D,


também filho de A e B. D, em virtude disso, pede a anulação do contrato de compra-e-venda
com base no Artigo 877.º CC.

Nos termos do Artigo 4.º/1, c) do Regulamento Roma I, a lei portuguesa é aplicável ao


Contrato, uma vez que o imóvel está sito em Portugal.

Aqui suscita-se a questão de saber se o Artigo 877.º CC é uma norma de direito das
obrigações/contratos ou antes uma norma relativa as relações familiares; a caraterização
dessa norma vai afetar a decisão da causa, uma vez que a relação contratual está sujeita à
relação portuguesa, nos termos do Regulamento de Roma I, porém a relação familiar, está
sujeita à lei inglesa, em virtude do Artigo 58.º CC.

O Artigo 15.º dá uma diretriz para resolver esse problema da caraterização: as normas devem
ser caraterizadas e deve-se aferir a sua função social. Ora, é verdade que o Artigo 877.º
encontra-se sistematicamente inserido no Direito das Obrigações, porém a finalidade social
dessa norma é de evitar que os pais de forma simulada deserdem os filhos, tutelando assim a
relação familiar; trata-se de interesses familiares. Do ponto de vista funcional, o Artigo 877.º
deve ser interpretada como uma norma de relação familiar. E como tal o contrato seria válido,
não carecendo da autorização.

21
2.2.2.3 Qualificação em sentido estrito

2.2.2.3 Qualificação em sentido estrito


Uma vez delimitado o âmbito do conceito-quadro e uma vez caraterizadas as regras
eventualmente aplicáveis por força da regra de conflitos, deve-se ou não concluir pela
subjunção dessas regras à regra de conflitos.

É necessário aferir se existe correspondência funcional entre o conceito-quadro e a norma


aplicanda; trata-se de uma operação em que o interprete-aplicado disfruta de alguma
discricionariedade.

No caso da Limitation of Actions Act referido supra: embora a norma inglesa seja
estruturalmente uma norma processual, essa lei tutela finalidades similares à prescrição
extintiva: visa tutelar a segurança jurídica e resolver os problemas de incerteza quanto à
existência de um direito subjetivo.

Desta forma, por prosseguir a mesma finalidade das normas da prescrição extintiva, a
Limitation of Actions Act deve ser aplicável ao caso concreto, uma vez que o contrato é
regulado pela lei inglesa e nada obsta que esta norma seja subsumível à alínea d) do n.º 1 do
Artigo 12.º do Regulamento de Roma I, devendo o pedido ser, assim, improcedente.

Na qualificação não se verifica um verdadeiro silogismo jurídico; o interprete-aplicador é


obrigado a realizar um juízo de valor de correspondência funcional; é necessário proceder a
um juízo comparativo relativo as finalidades que a norma visa atender: o interprete-aplicador
não está vinculado à caraterização da norma como processual ou real, devendo olhar para a
sua função social ou política.

2.3 Interpretação e Concretização do Elemento de Conexão


À semelhança dos conceitos-quadro, que suscitam algumas dificuldades de interpretação por
serem designados na maioria das vezes por conceitos técnico-jurídicos, os elementos de
conexão, por vezes, também sofrem desse mesmo problema. Por conceitos técnico-jurídicos
entende-se aqueles cujo alcance só pode ser obtido por referência a outras normas jurídicas;
fala-se, por exemplo, de nacionalidade, residência habitual, “lugar da principal atividade
causadora do prejuízo”, só por referência a outras normas jurídicas é que é possível os
interpretar.

Sempre que se tenha uma norma de conflitos que tenha como elemento de conexão um
conceito técnico-jurídico, vai-se verificar 3 ordens de problemas:

i) interpretação destes conceitos;

ii) concretização do elemento de conexão;

iii) concurso ou ausência de conteúdo concreto do elemento de conexão.

2.3.1 Interpretação dos Conceitos Técnico-Jurídicos enquanto Elementos de Conexão


Aqui questiona-se face a qual ordem jurídica deve-se fixar o sentido e o alcance desses
conceitos que são utilizados como elementos de conexão das normas de conflitos; assim, por
exemplo, nos termos do Artigo 25.º, as matérias de estatuto pessoal do sujeito são reguladas
pela lei pessoal do individuo, sendo essa lei pessoal, nos termos do Artigo 31.º/1, a lei da
nacionalidade do individuo: cabe saber como entender “nacionalidade”, na medida em que
aquilo que é entendido por nacionalidade não tem de corresponder obrigatoriamente aquilo
que é entendido noutros ordenamentos jurídicos.

22
2.3.2 Concretização do Elemento de Conexão

Tratando-se de normas de Direito Interno, então deve ser interpretada à luz do Direito do
Estado do Foro; estando em causa uma regra de conflitos portuguesa interpreta-se o conceito
de nacionalidade à luz da ordem jurídica portuguesa.

Se, por outro lado, estiver em causa normas que constam de Regulamentos Europeus, então é
necessário verificar se o Regulamento goza de alguma definição para o conceito técnico-
jurídico.

2.3.2 Concretização do Elemento de Conexão


Por sua vez questiona-se face a qual ordem jurídica qual o conteúdo do elemento de conexão
na situação da vida a regular: esse problema, por exemplo, igualmente, se coloca quando se
procura saber qual a nacionalidade de uma pessoa, isto resulta do facto que nem todos os
Estados adotam os mesmos critérios de atribuição da nacionalidade1.

A concretização deve ser feita à luz da lei do ordenamento jurídico que é designado pela regra
de conflitos; para saber se um determinado cidadão é português ou francês é necessário
socorrer-se, respetivamente, a lei portuguesa ou francesa.

Esta solução previne que seja encontrada soluções distintas nos diferentes Estados, respeitado
assim o princípio da harmonia de julgados.

2.3.3. Concurso ou Ausência de Conteúdo Concreto do Elemento de Conexão


Nestes casos está-se perante um elemento de conexão que ora remete para uma pluralidade
de ordem jurídicas, ora não chegam sequer a remeter para qualquer ordem jurídica; assim, por
exemplo, cabe saber qual a nacionalidade a ter em conta quando uma pessoa tem várias
nacionalidades ou cabe saber qual a lei a aplicar a alguém que não tenha nacionalidade, ou
seja, alguém apátrida.

2.3.3.1 Concurso de Conteúdo do Elemento de Conexão


No caso do concurso é necessário determinar qual é o elemento relevante; com respeito a esta
questão, o legislador português, no que respeita ao concurso de nacionalidades, vem resolver
o problema, nos Artigos 27.º e 28.º da Lei da Nacionalidade.

Assim, nos termos do Artigo 27.º dessa Lei, se alguém tiver duas ou mais nacionalidades e uma
delas for portuguesa, só esta releva face à lei portuguesa; portanto, tem-se apenas em
consideração a nacionalidade portuguesa, se o cidadão tiver nacionalidade portuguesa e outra
ou outras nacionalidades.

Não se tratando de um cidadão com nacionalidade portuguesa, então nos termos do Artigo
28.º dessa Lei, considera-se apenas a nacionalidade do território onde o plurinacional tenha a
sua residência habitual.

Não tendo residência habitual em nenhum dos países onde tem nacionalidade, determina a
Parte Final do Artigo 28.º dessa lei que se considera a nacionalidade do Estado com o qual
mantenha uma vinculação mais estreita.

1
Mesmo existindo Convenções Internacionais sobre a matéria da nacionalidade.
23
2.3.3.2 Ausência de Conteúdo do Elemento de Conexão

2.3.3.2 Ausência de Conteúdo do Elemento de Conexão


No caso da falta de conteúdo do elemento de conexão, se se tiver, por exemplo, um apátrida,
então será necessário socorrer-se de um elemento de conexão subsidiário; assim, no Artigo
12.º da Convenção Relativa ao Estatuto dos Apátridas determina-se que o estatuto pessoal do
apátrida se rege pela lei do país do seu domicílio ou, na falta de domicílio, pela lei do país da
sua residência.

Por sua vez, o CC goza de idêntica regra em igual sentido, nos termos do Artigo 32.º CC.

2.3.3.3 Elemento de Conexão “Nacionalidade”


No caso de um cidadão nacional de um Estado-Membro da União Europeia, nos termos do
Artigo 20.º TFUE, este goza também de cidadania da União Europeia, a qual acresce a
cidadania nacional e não a substitui. Deste modo, um cidadão português é titular de um
vínculo jurídico-político ao Estado Português, a um Estado Soberano, mas também a um ente
supraestadual, a União Europeia.

À semelhança dessa situação, pode também existir um vínculo infra-estadual, tal ocorre nas
federações, onde um cidadão goza de cidadania do Estado Federal, mas também do Estado
Federado. Assim, um cidadão dos Estados Unidos da América será também cidadão do
respetivo Estado onde se encontre, por exemplo Nova Iorque.

Para efeitos do Artigo 31.º/1, não releva os vínculos supra ou infra estaduais.

Importa agora determinar como é que este vínculo deve ser concretizado: esta concretização
fara-se segundo a lei do Estado em causa da respetiva nacionalidade; assim, a nacionalidade
de um cidadão português será aferida segundo a Lei da Nacionalidade, enquanto que a
nacionalidade de um cidadão francês será aferida segundo a Lei Francesa: tal resulta do facto
que a nacionalidade é uma manifestação da soberania de cada Estado, e consequentemente é
um corolário da liberdade dos Estados poderem definir quem são os seus nacionais.

Tal princípio encontra-se consagrado no Artigo 3.º2 da Convenção Europeia sobre a


Nacionalidade. No entanto existem restrições a esta liberdade; deve haver um vínculo real e
efetivo entre o Estado e a pessoa que se tem como nacional, o chamado princípio da
efetividade. Desta forma, o Estado não pode determinar que todos os cidadãos do mundo são
nacionais portugueses.

A este prepósito suscita-se o Caso Nottebohm3, no qual um cidadão alemão tinha-se mudado
para o Guatemala, antes do início da segunda guerra mundial; com o início da segunda guerra,
esse cidadão adquiriu a nacionalidade do Liechtenstein, renunciado à nacionalidade alemã.
Acontece que o Guatemala aplicou ao cidadão Nottebohm todas as medidas que estava a
aplicar aos outros cidadãos alemães. O Liechtenstein suscitou que tal seria uma violação do
Direito Internacional Público, na medida em que o cidadão tinha adquirido a sua nacionalidade
e renunciado à cidadania alemã. Porém, à luz do princípio da efetividade, o Tribunal

2
Determina o n.º 1 que a cada Estado compete determinar quem são os seus nacionais nos
termos do seu direito interno, sendo que, acrescenta o n.º 2, que tal direito deverá ser aceite
por outros Estados na medida em que seja consistente com as convenções internacionais
aplicáveis, com o direito internacional consuetudinário e com os princípios legais geralmente
reconhecidos no tocante à nacionalidade.
3
Disponível em https://www.icj-cij.org/en/case/18.
24
2.3.3.3 Elemento de Conexão “Nacionalidade”

Internacional de Justiça considerou improcedente o pedido, uma vez que Nottebohm nunca
residiu no Liechtenstein, nem tinha lá bens – não havendo um vínculo real e efetivo.

Existem, essencialmente, dois critérios principais para a atribuição de nacionalidade:

i) ius soli – todas as pessoas que nascerem no território de determinado Estado, são
nacionais daquele Estado: trata-se de um critério adotado sobretudo por países frequente
emigração;

ii) ius sanguinis – todas as pessoas que forem filhos de nacionais de determinado
Estado, são nacionais daquele Estado: trata-se de um critério sobretudo adotado em países
com forte imigração.

Sem prejuízo, a maioria das leis acaba por combinar ambos os critérios; a lei portuguesa é
bastante generosa na atribuição de nacionalidade. Do Artigo 1.º da Lei da Nacionalidade
resultam os critérios de atribuição de nacionalidade originária4, sendo que nos Artigos 2.º a 5.º
constam os critérios de atribuição da nacionalidade derivada privados, e no Artigo 6.º
estabelece-se os critérios de atribuição da nacionalidade portuguesa por naturalização.

Tal permite concluir que existe a possibilidade de encontrar uma pessoa com mais de uma
nacionalidade. Tal é relevante, uma vez que a lei pessoal é a lei da nacionalidade, nos termos
do Artigo 31.º/1; sendo necessário aplicar-se os Artigos 27.º e 28.º da Lei da Nacionalidade,
segundo os quais:

i) se tiver nacionalidade portuguesa, esta prevalece;

ii) se não tiver nacionalidade portuguesa:

a) prevalece a nacionalidade do Estado onde tem residência habitual desde


que seja nacional deste; caso não seja,

b) prevalece a nacionalidade do Estado com o qual apresenta maior conexão.

Exemplo:

Cidadão Belga e Holandês com Residência Habitual em Espanha.

4
São esses: a) Os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no território
português; b) Os filhos de mãe portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro se o
progenitor português aí se encontrar ao serviço do Estado Português; c) Os filhos de mãe
portuguesa ou de pai português nascidos no estrangeiro se tiverem o seu nascimento inscrito
no registo civil português ou se declararem que querem ser portugueses; d) Os indivíduos com,
pelo menos, um ascendente de nacionalidade portuguesa originária do 2.º grau na linha reta
que não tenha perdido essa nacionalidade, se declararem que querem ser portugueses e
possuírem laços de efetiva ligação à comunidade nacional; e) Os indivíduos nascidos no
território português, filhos de estrangeiros, se pelo menos um dos progenitores também aqui
tiver nascido e aqui tiver residência, independentemente de título, ao tempo do nascimento; f)
Os indivíduos nascidos no território português, filhos de estrangeiros que não se encontrem ao
serviço do respetivo Estado, que não declarem não querer ser portugueses, desde que, no
momento do nascimento, um dos progenitores resida legalmente no território português, ou
aqui resida, independentemente do título, há pelo menos um ano; g) Os indivíduos nascidos
no território português e que não possuam outra nacionalidade.
25
2.3.3.4 Elemento de Conexão “Residência Habitual”

Como a residência habitual não é nenhum dos Estados onde é nacional, então é necessário
descobrir com que Estado o cidadão apresenta uma relação mais estreita.

Por fim, é ainda necessário ter presente que quando uma pessoa tem nacionalidade em dois
ou mais Estados e uma delas é em relação a um Estado-membro da União Europeia, o que se
tem entendido é que: se tiver em causa o exercício de liberdades económicas europeias, em
princípio será relevante a nacionalidade em relação ao Estado-membro da União Europeia. Tal
resulta do caso Micheletti5.

No caso Micheletti o que estava em causa era um cidadão argentino e italiano, com residência
habitual na Argentina, sendo que esse queria se estabelecer em Espanha: suscitou-se a
questão de saber qual a nacionalidade relevante, na medida em que se se considerar relevante
a nacionalidade italiana, então à luz das liberdades económicas europeias, ele não precisa de
qualquer autorização, por outro lado se a nacionalidade relevante for a argentina, então é
necessária autorização de residência.

Espanha defendeu que era necessária autorização de residência, porque a nacionalidade


relevante deveria ser a argentina, uma vez que o cidadão tem residência habitual na
Argentina. O tribunal deu razão ao cidadão, defendendo que no caso de concurso entre duas
ou mais nacionalidades, onde pelo menos uma delas é a nacionalidade de um Estado-membro
da União Europeia, prevalece a nacionalidade do Estado-membro, sempre que esteja em causa
o exercício das liberdades económicas6.

Alguns autores, como é o caso do Professor António Marques dos Santos e do Professor Lima
Pinheiro, consideram que à luz de um princípio de coerência interna não se justifica que uma
pessoa seja nacional de um Estado para o exercício das liberdades europeias e de um outro
Estado para outros efeitos; por este motivo estes autores aplicam analogicamente a
jurisprudência Micheletti.

Sem prejuízo, outros autores não admitem tal posição, que é o caso da Professora Elsa Dias.

A lei da nacionalidade pode também ser irrelevante para regular algumas matérias que
estejam incluídas no Estatuto Pessoal: é o caso dos refugiados, uma vez que segundo o Artigo
12.º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, o estatuto pessoal de um refugiado
será regido pela lei do país de seu domicílio, ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua
residência.

2.3.3.4 Elemento de Conexão “Residência Habitual”


A interpretação do elemento de residência habitual é bastante relevante na medida em que
este é um elemento de conexão utilizado por excelência nos Regulamentos da União Europeia;
tal resulta da liberdade de livre circulação entre os Estados-membros da União Europeia.

5
Acórdão de 7 de julho de 1992, Micheletti, C-369/90, ECLI:EU:C:1992:295.
6
“(…) não pode aceitar-se uma interpretação do artigo 52.° do Tratado nos termos da qual,
quando um cidadão de um Estado-membro possua simultaneamente a nacionalidade de um
Estado terceiro, os outros Estados-membros podem sujeitar o reconhecimento da qualidade
de cidadão comunitário a uma condição como a residência habitual do interessado no
território do primeiro Estado.” – idem, n.º 11.
26
2.3 Reenvio ou Devolução

Este elemento de conexão vai expressar o princípio da maior proximidade, na medida em que
as pessoas apresentam uma relação mais significativa com o país onde tem residência
habitual.

Por fim, acresce que a aplicação da lei do domicílio apresenta maiores dificuldades, uma vez
que é um conceito jurídico com difícil interpretação.

A concretização desse elemento de conexão é feita nos vários Regulamentos da União


Europeia, assim:

i) no Regulamento Roma I, o Artigo 19.º determina que a residência habitual de


sociedades e outras entidades dotadas ou não de personalidade jurídica é o local onde se situa
a sua administração central, sendo que a residência habitual de uma pessoa singular, no
exercício da sua atividade profissional, é o local onde se situa o seu estabelecimento principal;

ii) no Regulamento Roma II, o Artigo 23.º encontra-se semelhante disposição.

Nenhuma dessas disposições estabelecem critérios para definir a residência habitual de uma
pessoa singular que não esteja no exercício da sua atividade profissional, tal resulta do facto
que o critério de residência habitual é um critério fáctico que deve transmitir uma certa
estabilidade.

iii) no Regulamento n.º 650/2012, o considerando n.º 23 clarifica que a fim de


determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma
avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e
no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular
a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as
condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá
revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos
específicos do presente regulamento.

2.3 Reenvio ou Devolução


A temática do reenvio ou da devolução ainda se prende com a interpretação das regras de
conflito, aqui procura-se saber qual o sentido e âmbito da remissão para uma lei estrangeira,
ou seja, se quando uma regra de conflitos remete para determinada lei, se esta referência se
dirige apenas as normas materiais ou também abarca as regras de direito internacional privado
do Direito Estrangeiro7.

A relevância decorre do fenómeno que ocorreu a partir do século XIX a que se chamou
“nacionalização” do Direito Internacional Privado, isto é, cada Estado passou a ter o seu
próprio Direito Internacional Privado, sendo que as codificações do século XIX não adotaram
regras uniformes, havendo, por exemplo, uma cissão entre os países que em matéria de

7
Esquema utilizado para ilustrar o problema:

27
2.3.1 Reenvio de 1.º Grau ou Retorno

Estatuto Pessoal adotaram o elemento de conexão nacionalidade enquanto que outros


adotaram o domicílio ou entre os países que utilizam a lex rae sitae como elemento de
conexão apenas do estatuto das coisas e aqueles outros que o utilizam também para
determinar a lei aplicável à sucessão mortis causa de bens imóveis.

Estas divergências designam-se por conflitos de sistema de Direito Internacional Privados. Os


quais podem ser:

i) conflitos positivos – quando duas ou mais leis se acham competente para regular a
mesma situação jurídica internacional;

ii) conflitos negativos – quando quanto a uma determinada situação jurídica


internacional, duas ou mais leis não se consideram competentes para regulá-la, quer porque:

a) uma lei devolve a outra;

b) a lei designada transmite competência para uma terceira legislação.

É nesses casos de conflitos negativos que se suscita o problema do reenvio.

O reenvio pode assumir duas modalidades:

i) reenvio de 1.º grau ou retorno;

ii) reenvio de 2.º grau ou transmissão de competências.

2.3.1 Reenvio de 1.º Grau ou Retorno


Este encontra-se regulado no Artigo 18.º do CC e traduz-se na situação em que a regra de
conflitos portuguesa remete para uma lei estrangeira e essa lei estrangeira devolve a
regulação da matéria à ordem jurídica portuguesa8.

Exemplo:

“Saber se A, nacional brasileiro, residente em Portugal, é capaz para celebrar determinado


negócio jurídico. A lei portuguesa submete a matéria da capacidade à lei da nacionalidade;
porém, a lei brasileira submete a aplicação da lei do domicílio.”

A lei brasileira entende que é a lei portuguesa a aplicável, questiona-se se se deve aceitar esse
retorno ou se se deve aplicar a lei brasileira.

2.3.2 Reenvio de 2.º Grau ou transmissão de competência


Esta encontra-se regulada no Artigo 17.º CC e traduz-se na situação em que a regra de
conflitos portuguesa remete para uma lei estrangeira e essa, por seu turno, transmite
competência para uma terceira legislação9; questiona-se se se deve aceitar o reenvio da lei

8
Esquema utilizado para ilustrar o problema:

9
Esquema utilizado para ilustrar o problema:
28
2.3.3 Orientações Gerais

estrangeira e aplicar a lei que essa acha competente ou se se deve aplicar a lei que as regras de
conflitos portuguesas acham competente.

Exemplo:

“Saber qual a lei que regula a capacidade jurídica de A, se ele ao invés de ter residência em
Portugal, tivesse residência em Itália.”

Ora, a lei portuguesa remete a regulação da matéria para a lei da nacionalidade, porém a lei
brasileira remete para a lei do domicílio, ou seja, a lei italiana; deve-se aplicar a lei italiana ou a
brasileira.

2.3.3 Orientações Gerais


Antes de analisar os preceitos legais consagrados no CC sobre a temática do reenvio, cabe
analisar as orientações gerais a esse propósito. Podendo essa ser resumida a três:

i) teoria da referência material;

ii) teoria da referência global;

iii) teoria da devolução e a teoria da duplo devolução ou foreign court theory.

2.3.3.1 Teoria da Referência Material


Segundo essa a referência que é feita pela regra de conflitos a uma lei estrangeira se dirige,
única e exclusivamente, as normas materiais e não as regras de conflitos constantes dessa lei.
Segundo essa teoria, nos casos suprarreferidos, independentemente de A ter domicílio em
Portugal ou em Itália, vai-se sempre aplicar a lei a que as regras de conflitos portuguesas
remetem, a lei da nacionalidade, ou seja, a lei brasileira.

Esta teoria tem várias vantagens:

i) essa teoria permite respeitar o princípio da autonomia privada – se a lei estrangeira


não reconhecer a escolha das partes como elemento de conexão e remeter para outra lei, tal
podia defraudar a expectativa das partes;

ii) certas regras de conflitos optam pelo elemento de conexão da lei “com conexão
mais estreita”, se essa lei com conexão mais estreita remeter para outra lei, não faz sentido
aplicar essa outra lei, na medida em que não tem a ligação mais estreita com a situação
jurídica internacional e é atentatória da expectativa das partes;

iii) muitas das regras de conflitos resultam, ou do Direito Internacional Público, ou dos
Regulamentos da União Europeia, e havendo então uma certa harmonia, não faz grande
sentido a existência do reenvio.

Em qualquer caso, a teoria da referência material tem como maior desvantagem o facto que
não contribui para a Harmonia de Julgados Internacional.

29
2.3.3.2 Teoria da Referência Global

2.3.3.2 Teoria da Referência Global


Segundo essa a referência que é feita pela regra de conflitos a uma lei estrangeira se dirige
tanto às regras materiais como às regras de Direito Internacional Privado dessa mesma lei.

A grande vantagem dessa teoria é que permite respeitar o princípio estruturante do Direito
Internacional Privado que é o Princípio da Harmonia dos Julgados, na medida em que
aceitando o reenvio está-se a contribuir que seja aplicado à causa a mesma lei. Assim, nos
exemplos suprarreferidos, se A tiver residência em Itália, então deve-se aplicar a lei italiana,
sendo que esta solução seria a mesma quer a causa fosse julgada em Portugal ou no Brasil.

Sem prejuízo, há situações em que a referência global pode conduzir a hipóteses de círculo
vicioso: por exemplo, o confronto entre duas leis que aceitam o reenvio10. A teoria da
referência global não tem forma de resolver só por si esse problema, exceto se se parasse o
reenvio quando a lei estrangeira remete para a lei nacional, hipótese em que se estaria a
desvirtuar a teoria da referência global e não se estaria a contribuir para a Harmonia de
Julgados Internacional.

Semelhante problema pode acontecer nos casos de transmissão de competência, onde uma lei
estrangeira remete para outra lei que por sua vez remete para outra lei e assim adiante ad
infinito.

2.3.3.3.1 Devolução Simples


A referência global sem qualquer limitação é uma teoria que nem sempre dá solução aos
problemas de reenvio. Daí que certos ordenamentos jurídicos têm imposto limitações a esta
teoria, é o caso do ordenamento francês e o ordenamento alemão, surgindo assim a figura da
devolução simples.

Segundo a devolução simples quando se faz uma referência a uma lei estrangeira e essa
reenvia para a lei do foro, deve-se entender que esse reenvio é apenas uma referência
material, ou seja, apenas remete para as regras materiais da lei do foro11. O mesmo é válido
para a transmissão de competências12.

Sem prejuízo, a devolução simples não permite atingir o princípio da Harmonia de Julgados,
desvirtuando assim a Teoria da Referência Global.

Exemplo disso é o Caso Allard:

“Allard era um cidadão francês, que faleceu em Portugal, tendo esse deixado bens móveis e
imóveis em Portugal. Allard morreu sem descendentes, deixando apenas a mãe. À luz da lei
portuguesa, a mãe tinha direito à quota parte da herança enquanto herdeira legítima; já à luz
da lei francesa, a mãe não tinha direito à herança, uma vez que à data do óbito Allard era
considerado filho ilegítimo. A lei portuguesa mandava aplicar a lei francesa, no entanto a lei
francesa considerava que a sucessão dos bens móveis estava sujeita à lei do último domicílio
do de cuius e a dos bens imóveis a lex rei sitae.”

10
L1 remete para L2 e L2 remete por sua vez para L1.
11
Assim, se L1 remete para L2 e L2 remete por sua vez para L1, deve-se aplicar L1 na medida em
que a devolução por L2 apenas abrange as regras materiais de L1.
12
Se L1 remete para L2 e L2 remete por sua vez para L3, mesmo que L3 remeta para uma outra
lei, deve-se aplicar L3, na medida em que se entende que a referência feita por L2 é uma
referência material.
30
2.3.3.3.2 Teoria da Dupla Devolução

Assim, nesse caso a lei portuguesa remetia para a lei francesa e a lei francesa reenviava a
regulação para a lei portuguesa. O STJ entendeu nesse caso que dever-se-ia aceitar o reenvio
feito pela lei francesa e aplicar-se a lei portuguesa.

Se o caso fosse julgado em frança, a lei francesa reenviava a regulação do caso para a lei
portuguesa e, por sua vez, essa devolvia à lei francesa a regulação: aplicando-se a teoria da
devolução simples, deve-se aplicar a lei francesa.

O mesmo caso seria assim julgado segundo leis diferentes, dependendo do Estado onde fosse
colocada a questão; não se respeita assim o Princípio da Harmonia dos Julgados. Antes assiste-
se aqui a uma maximização da lei do foro; o que reduz o erro judiciário e respeita-se o
princípio da Boa Administração da Justiça.

2.3.3.3.2 Teoria da Dupla Devolução


Trata-se de uma teoria de origem inglesa segundo a qual quando um tribunal tem de decidir
uma causa que envolve uma situação jurídica internacional e a lei remete para uma lei
estrangeira, o tribunal deve decidir a causa como se fosse um tribunal do Estado dessa lei
estrangeira, ou seja, tem de atender à posição que o tribunal estrangeiro assumiria naquela
questão tendo em conta as regras de conflitos da lei estrangeira.

Um exemplo disso é o Caso Annesley, julgado nos anos 20:

“Annesley, súbdita britânica, faleceu em França, tendo deixado testamento. À luz da lei inglesa,
o testamento era válido, enquanto, à luz da lei francesa, o testamento era invalido. A lei
inglesa remetia para o Direito Francês na medida em que Annesley tinha falecido em França,
enquanto a lei francesa aplicava a lei da nacionalidade em matéria sucessória, pelo que
reenviava para lei inglesa.

Assim, a lei inglesa remetia para a lei francesa e a lei francesa, por sua vez, devolvia à lei
inglesa, perante essa situação o Tribunal Inglês entendeu que deveria decidir a causa da
mesma forma como decidiria um Tribunal Francês: se a causa tivesse sido colocada em França,
onde vigorava a devolução simples, a lei francesa remitiria para a lei inglesa, a qual devolvia a
lei francesa sendo essa então aplicável; assim, o Tribunal Inglês acabou por aplicar a lei
francesa13. Atingindo-se, assim, a Harmonia de Julgados.

Essa teoria falha se tiver em face-a-face dois sistemas que pratiquem o sistema de dupla
devolução, entrando-se num impasse.

2.3.4 Regime Vigente em Portugal


A regra geral encontra-se consagrada no Artigo 16.º CC, segundo o qual o princípio geral é o da
referência material. Esse princípio encontra-se hoje replicado na maior parte dos
Regulamentos da União Europeia sobre essa matéria14.

13
Se L1 remete para L2 e L2 para L1, então seria necessário averiguar como é que a causa seria
decidida se fosse julgada num Tribunal de L2: se L2 concluísse pela aplicação de L1, aplica-se L1,
por sua vez, se L2 concluísse pela sua aplicação, aplicava-se L2.
14
Artigo 20.º Roma I; Artigo 24.º Roma II; Artigo 11.º Regulamento n.º 1259/2010; Artigo 32.º
Regulamento n.º 2016/1103; e Artigo 32.º Regulamento n.º 2016/1104.
31
2.3.4.1 Princípio Geral

Sem prejuízo, o legislador acabou por admitir uma série de desvios a essa regra geral no
sentido da aceitação do reenvio, desvios que acabam por esvaziar o Artigo 16.º CC do seu
alcance. Esses desvios estão consagrados nos Artigos 17.º/1 e 18.º/1.

Ao que acresce que esses desvios também conhecem restrições, as quais estão consagradas
nos Artigos 17.º/2 e 18.º/2. Havendo, ainda, exceções a essas restrições, no Artigo 17.º/3.

Assim, a lei portuguesa desdobra o regime em 4 vertentes:

i) princípio geral – Artigo 16.º CC;

ii) desvios a esse princípio geral – Artigos 17.º/1 e 18.º/1 CC;

iii) restrições a esse desvio – Artigos 17.º/2 e 18.º/2 CC;

iv) exceção a uma dessas restrições – Artigos 17.º/3 CC.

2.3.4.1 Princípio Geral


Do Artigo 16.º resulta que se deve apenas atender as regras materiais de uma ordem jurídica
estrangeira. A razão de tal princípio geral deve-se ao facto que quando se manda aplicar uma
lei estrangeira é porque se entende que essa é a lei que está melhor posicionada para regular
o caso, tendo a conexão mais estreita com o caso e permitindo acautelar os diferentes
princípios de Direito Internacional Privado.

Pelo que o Direito Internacional Privado Português apenas cede perante o Direito
Internacional Privado Estrangeiro em casos excecionais.

2.3.4.2 Desvios ao Princípio Geral


Do Artigo 17.º/1 resulta que se o direito internacional privado da lei referida pela norma de
conflitos portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para
regular o caso, é o direito interno desta legislação que deve ser aplicado15. Trata-se de uma
solução que contribui para a Harmonia de Julgados Internacional.

Exemplo:

“Se estiver em causa a capacidade jurídica de A, cidadão brasileiro, domiciliado na Argentina.


Sabendo que a lei brasileira remete para a lei argentina e que a lei argentina se acha
competente.”

Então à luz desse Artigo 17.º/1 deve-se aplicar a lei argentina.

Do Artigo 18.º/1 resulta que se o direito internacional privado da lei designada pela norma de
conflitos devolver para o direito interno português, é este o direito aplicável, desde que a
referência for uma referência material16.

Exemplo:

15
Assim, se a lei portuguesa remeter para L1 e L1 remeter para L2, sendo que à luz de L2, L2 é
competente, então deve-se aplicar L2.
16
Assim, se a lei portuguesa remeter para L1 e L1 remeter para a lei portuguesa, e sabendo que
L1 não admite reenvio, deve-se aplicar a lei portuguesa.
32
2.3.4.2.1 Regime do Artigo 18.º CC

“Se invés de estar domiciliado na Argentina, A tiver domiciliado em Portugal. E sabendo que o
Brasil não admite o reenvio”

Então à luz desse Artigo 18.º/1 deve-se aplicar a lei portuguesa.

Já não haverá retorno se a lei designada aceitar o reenvio; seria o que aconteceria no Caso
Allard.

O mesmo se verifica se se estiver perante um sistema de dupla devolução. Tal aconteceu num
caso celebre o Caso Gulbenkian:

“Discutia-se a sucessão mortis causa do Senhor Gulbenkian que tinha falecido em Portugal. O
testamento de Gulbenkian institui uma fundação, tendo Gulbenkian designado toda a sua
coleção de obras de arte. Acontece que esse testamento foi contestado pelo seu primogénito,
afirmando que a instituição era inoficiosa por desrespeitar a legítima dos filhos segundo a lei
portuguesa.”

A resolução depende da solução do problema de Direito Internacional Privado: Gulbenkian era


inglês e tinha falecido com último domicílio em Portugal. A lei portuguesa remetia a regulação
para a lei inglesa, enquanto na ótica do Direito Inglês dava-se o reenvio para a lei inglesa.

Num parecer, Ferrer Correia defendeu que como a lei inglesa remete para a lei portuguesa a
título de dupla devolução e como tal qualquer que seja a lei aplicável segundo a lei
portuguesa, os tribunais ingleses teriam de chegar a mesma conclusão; pelo que se deve
considerar que a referência feita pela regra de conflitos portuguesa era uma referência
material.

2.3.4.2.1 Regime do Artigo 18.º CC


Conforme referido supra do n.º 1 do Artigo 18.º resulta que se o direito internacional privado
da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno português, é este o
direito aplicável. Tal é uma manifestação do princípio da harmonia internacional de julgados,
na medida em que se afasta a aplicação da lei que o Direito Internacional Privado português
considera aplicável, em virtude do facto do facto que essa lei considera mais adequada para
regular a situação a lei portuguesa17.

Por sua vez, nas situações de devolução indireta18 não existe qualquer diferença, na medida
em que o Artigo 18.º/1 determina que se a lei designada pelas regras de conflito aplicar o
direito material português, vai-se aplicar o direito português, independentemente se a
remissão é direta ou indireta19.

Sem prejuízo, do n.º 2 desse Artigo 18.º consta uma restrição a essa regra. Trata-se de uma
manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana que deve ser conjugado com o

17
Isso vai reconduzir a que tanto os tribunais portugueses como os tribunais do Estado da lei
estrangeira, apliquem a mesma lei.
18
A lei portuguesa remete para L2, por sua vez L2 remete a título de devolução simples para L3,
sendo que L3 considera competente a lei portuguesa.
19
Da mesma forma é irrelevante se em L3 vigorar o sistema da devolução simples, na medida
em que o objetivo do Artigo 18.º/1 é a harmonia de julgados entre Portugal e o Estado de L 2.
Mesmo considerando que se o litígio fosse colocado no Estado de L3 aplicar-se-ia o Direito
Material de L2.
33
2.3.4.2.2 Regime do Artigo 17.º CC

princípio da harmonia de julgados; assim, para poder operar o n.º 1 e estando-se perante
matéria compreendida pelo Estatuto Pessoal (Artigos 25.º e 31.º/1), o n.º 2 exige que o
interessado resida habitualmente em Portugal ou a lei do país desta residência considerar
igualmente competente o direito interno português.

O legislador português optou pela lei da nacionalidade para regular o Estatuto Pessoal, porém,
o reconhece que uma lei também adequada para regular essa matéria é a lei da residência
habitual – tal inclusive resulta dos Trabalhos Preparatórias20.

Assim, há para aplicar-se o n.º 2 do Artigo 18.º é necessário preencher 3 Requisitos:

i) o preenchimento do Artigo 18.º/1;

ii) tratar-se de matéria relativa ao Estatuto Pessoal;

iii) a residência habitual do interessado ser em Portugal ou a lei da residência habitual


considerar a lei portuguesa competente para regular a situação internacional.

2.3.4.2.2 Regime do Artigo 17.º CC


Do Artigo 17.º/1 resulta que se do direito internacional privado da lei referida pela norma de
conflitos portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para
regular o caso, é o direito interno desta legislação que deve ser aplicado; tal, à semelhança do
Artigo 18.º/1, é uma manifestação do princípio da harmonia internacional de julgados.

Assim, se a lei portuguesa tiver como competente uma certa lei e essa lei remeter para uma
outra, então a lei portuguesa deve aplicar essa outra21 22.

Do Artigo 17.º/2 resulta igualmente uma limitação em virtude do princípio da dignidade da


pessoa humana, nos termos da qual não se aplica a outra legislação, se a lei referida pela
norma de conflitos portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em
território português ou em país cujas normas de conflitos considerem competente o direito
interno do Estado da sua nacionalidade.

Assim, é necessário o preenchimento de 3 requisitos:

i) demonstrar o preenchimento do 17.º/1;

ii) estar-se perante matéria do Estatuto Pessoal;

iii) se o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas


normas de conflitos considerem competente o direito interno do Estado da sua nacionalidade
– o legislador consegue assim harmonia com a lei da residência habitual.

20
O Professor Ferrer Correia nos trabalhos preparatórios defendeu a existência de muitos
argumentos a favor da opção pela lei da residência habitual em matéria de Estatuto Pessoal,
porém, optou-se pela lei da nacionalidade, em virtude do argumento político de Portugal ser
um país emigratório.
21
Se L1 remete para L2, por sua vez L2 remete para L3. Deve-se aplicar L3.
22
Se L1 remete para L2, por sua vez L2 remete a título de devolução para L3 e presume que a
referência que L3 faz a L4 é material. À luz do Artigo 17.º/1 CC, deve-se aplicar a L4. O objetivo
do Artigo 17.º/1 CC é atingir a harmonia de julgados entre Portugal e o Estado de L 2; ou seja,
pode-se cingir a seguinte fórmula: se L2:Ln e se Ln:Ln então L1:Ln.
34
2.3.4.2.3 Exceção do Artigo 19.º CC

Sem prejuízo, do n.º 3 resulta uma exceção a essa limitação do n.º 2, nos termos da qual ficam
sujeito à regra do n.º 1 os casos da tutela e curatela, relações patrimoniais entre os cônjuges,
poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte, se a lei nacional
indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da situação dos bens imóveis e esta se
considerar competente.

Esta solução do n.º 3 é movida pelo princípio da efetividade ou da maior proximidade, na


medida em que se a outra legislação for a lex rei sitae e se essa se considere competente,
então deve-se aplicar essa outra legislação: trata-se, assim, de um encontro entre o princípio
da harmonia internacional de julgados e do princípio da efetividade, de forma a garantir uma
maior probabilidade da decisão portuguesa ser reconhecida no Estado da outra legislação.

Para a aplicação do Artigo 17.º/3 é necessário o preenchimento de 3 requisitos:

i) preenchimento do 17.º/2;

ii) tratar-se de matéria de: tutela e curatela, relações patrimoniais entre os cônjuges,
poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte;

iii) a lei aplicável segundo a regra de conflitos remeter para outra legislação e se essa
outra legislação for a lex rei sitae e se considere competente.

2.3.4.2.3 Exceção do Artigo 19.º CC


As soluções do Artigo 19.º resultam de um confronto entre o princípio da harmonia
internacional de julgados e outros princípios de direito internacional privado:

i) o n.º 1 resulta de um confronto com o princípio favori negotii;

ii) o n.º 2 resulta de um confronto com o princípio da autonomia privada.

Do n.º 1 resulta que os Artigos 17.º e 18.º não se aplicam, se da aplicação deles resulte a
invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra
fixada no artigo 16.º, ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo.

Exemplo:

“Estando em causa a capacidade matrimonial de A, sendo que para essa questão a lei
portuguesa remete para L2, porém essa remete a título de devolução simples para L3. Segundo
a legislação de L2 não há impedimentos matrimonias, mas segundo L3 o casamento não é
possível.”

Esse exemplo ilustra o âmbito de aplicação do Artigo 19.º/1, na medida em que sendo
aplicável o Artigo 17.º/1 a lei aplicável seria L3 que determina o negócio como inválido, porém,
a lei aplicável nos termos do Artigo 16.º (referência material) já permitiria a validade do
negócio, devendo essa prevalecer por força do Artigo 19.º/1. Porém, esse exemplo suscita
uma divergência doutrinária:

i) Ferrer Correia e Dário Moura Vicente – só se deve aplicar essa solução quando haja
razões para tutelar a confiança dos interessados, na medida em que o princípio da harmonia
internacional de julgados é um princípio estrutural do Direito Internacional Privado que deve
prevalecer sobre os restantes; isto é, quando o negócio já estiver celebrado;

35
2.3.4.2.4 Regulamentos da União Europeia

ii) Lima Pinheiro – por entender que o princípio internacional de julgados não deve ter
prevalência sobre os restantes princípios de Direito Internacional Privado, razão pela qual se
deve aplicar a solução do Artigo 19.º/1, independentemente, e se trata de um negócio já
celebrado ou a celebrar.

Para a aplicação do Artigo 19.º/1 é necessário o preenchimento de 3 requisitos:

i) demonstrar a aplicabilidade do Artigo 17.º e 18.º;

ii) à luz da lei aplicável pelo Artigo 17.º e 18º., o negócio seria inválido;

iii) à luz da lei aplicável por via do Artigo 16.º, o negócio seria válido.

Do n.º 2 resulta uma conexão adversa ao reenvio, isto é, uma conexão pela sua natureza obsta
o reenvio; nos termos desse n.º não se aplica os Artigos 17.º e 18.º, se a lei estrangeira tiver
sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida, ou seja, a
escolha das partes é sempre uma referência material.

2.3.4.2.4 Regulamentos da União Europeia


Todos os Regulamentos da União Europeia23, com exceção do Regulamento n.º 650/2012,
dispõem de uma regra de exclusão de reenvio, por exemplo o Artigo 20.º do Regulamento
Roma I dispõe que se entende por aplicação da lei de um país designada pelo presente
regulamento a aplicação das normas jurídicas em vigor nesse país, com exclusão das suas
normas de direito internacional privado, salvo disposição em contrário no presente
regulamento.

O Regulamento n.º 650/2012 é único regulamento que admite o reenvio no seu Artigo 34.º,
não sendo esse possível nos casos previstos no Artigo 34.º/224.

Nos termos do n.º 1 existem dois casos em que se admite o reenvio, sendo que ambos estão
sujeitos ao mesmo requisito comum de se aplicar uma lei de um Estado terceiro, isso é, um
Estado que não se encontra vinculado pelo Regulamento, abrangendo tanto os Estados-
membros não vinculados (Irlanda e Dinamarca), como os restantes Estados-membros.

Para além desse requisito da aplicação de uma lei de um Estado terceiro, no caso da alínea b)
desse Artigo 34.º/1, é necessário que essa lei remeta para a lei de um outro Estado terceiro,
desde que a lei desse outro Estado terceiro se considere competente; algo semelhante ao que
ocorre com o Artigo 17.º/1 CC, trata-se de um caso de transmissão de competências.

Por outro lado, é necessário, no caso da alínea a), para além do requisito comum, a lei do
Estado terceiro “remeta” para uma lei de um Estado-membro25; sucede que a doutrina diverge
qual o significado da expressão “remeter”:

i) a doutrina maioritária portuguesa, onde se inclui os nomes de Dário Vicente, Elsa


Oliveira Dias e Lima Pinheiro, a lei do Estado terceiro tem de aplicar a lei do Estado-membro,

23
Artigo 20.º Roma I; Artigo 24.º Roma II; Artigo 11.º Regulamento n.º 1259/2010; Artigo 32.º
Regulamento n.º 2016/1103; e Artigo 32.º Regulamento n.º 2016/1104.
24
São esses os do Artigo 21.º/2, do Artigo 22.º, do Artigo 27.º, do Artigo 28.º, alínea b) e do
Artigo 30.º.
25
Exemplo: “A morre com última residência habitual em Luisiana, sendo que a lei do Luisiana
aplica a regra do lex rei sitae remetendo para o Quebec que se considera competente.”
36
2.3.5 Remissão para Ordenamentos Jurídicos Complexos

em virtude do princípio da harmonia internacional de julgados e em virtude do próprio


Considerando n.º 5726;

ii) a doutrina italiana, defende que basta a mera remissão para a lei do Estado-
membro27.

2.3.5 Remissão para Ordenamentos Jurídicos Complexos


Por ordenamento jurídico complexo, por vezes designados ordenamentos jurídicos pluri-
legislativos, são aqueles ordenamentos jurídicos de Estados soberanos em que coexistem
diferentes sistemas jurídicos dentro desse mesmo Estado soberano.

Os ordenamentos jurídicos complexos dividem-se em ordenamento jurídico complexos:

i) de base territorial – onde a multiplicidade de sistemas jurídicos assenta numa divisão


territorial do Estado soberano;

ii) de base pessoal – onde a multiplicidade de sistemas jurídicos assenta numa divisão
em razão das diferentes categorias de pessoas.

A questão que se coloca a propósito dos ordenamentos jurídicos complexos é saber qual a lei
aplicável quando a regra de conflitos remete para o Estado soberano. Para que esse problema
se coloque é necessário estarem preenchidos 3 pressupostos cumulativos:

i) remissão para um ordenamento jurídico complexo;

ii) os vários sistemas jurídicos que coexistam nesse ordenamento jurídico complexo
ofereçam soluções distintas; assim, não se preenche este requisito se:

a) se houver uma harmonização interna entre todos os sistemas jurídicos;

b) se houver um regime que se aplica a todos esses sistemas jurídicos,


aprovado no âmbito do Estado Soberano;

c) se houver um regime material que regula a situação jurídica internacional


em caso de conflitos.

iii) a regra de conflitos deve remeter para o ordenamento jurídico complexo no seu
todo, ou seja, para a lei do Estado soberano; assim, se remeter diretamente para o Direito
Local então o problema já não se coloca – para aferir se uma regra de conflitos remete para a
lei do Estado soberano ou para o Direito Local é necessário, ou verificar a existência de alguma

26
Lê-se: “As regras de conflito de leis estabelecidas no presente regulamento podem resultar
na aplicação da lei de um Estado terceiro. Nesses casos, haverá que atender às regras do
direito internacional privado da lei desse Estado. Se essas regras previrem o reenvio para a lei
de um Estado-Membro ou para a lei de um Estado terceiro que aplicaria a sua própria lei à
sucessão, esse reenvio deverá ser aceite a fim de assegurar a coerência internacional. O
reenvio deverá, todavia, ser excluído nos casos em que o falecido tiver feito uma escolha de lei
a favor da lei de um Estado terceiro.”
27
Assim, se a L1 para L2 e L2 remete para a lei portuguesa: apesar de remeter para a lei de um
Estado-membro, a verdade é que não a vai aplicar, porque Portugal pratica o sistema de
devolução simples.
37
2.3.5.1 Artigo 20.º CC

norma que delimite o âmbito da remissão, ou através da interpretação do elemento de


conexão e através do entendimento relativo a cada elemento de conexão.

O problema resolve-se através de diversas normas28; a aplicação dessas normas vai depender
da fonte da regra de conflitos aplicável ao caso que remete para o Ordenamento Jurídico
Complexo29.

2.3.5.1 Artigo 20.º CC


É possível fazer uma divisão do Artigo 20.º CC:

i) o n.º 1 e o n.º 2 – que se reportam aos ordenamentos jurídicos complexos de base


territorial;

ii) o n.º 3 – que se reporta aos ordenamentos jurídicos complexos de base pessoal.

2.3.5.1.1 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Territorial


Nos termos do n.º 1 do Artigo 20.º CC, quando, em razão da nacionalidade de certa pessoa, for
competente a lei de um Estado em que coexistam diferentes sistemas legislativos locais, é o
direito interno desse Estado que fixa em cada caso o sistema aplicável, sendo que estabelece o
n.º 2 que na falta de normas de direito interlocal, recorre-se ao direito internacional privado
do mesmo Estado; e, se este não bastar, considera-se como lei pessoal do interessado a lei da
sua residência habitual.

É de notar que o Artigo 20.º só se aplica diretamente aquelas situações em que o elemento de
conexão é a “nacionalidade” do interessado; ora tal resultaria, alias, da noção de
nacionalidade, na medida em que esta é um vínculo jurídico-político entre o Estado soberano e
o cidadão.

À luz do Artigo 20.º deve-se:

i) utilizar o direito de conflitos interlocal unificado (aprovado no plano do Estado


soberano) do Estado soberano em ordem a encontrar qual o Direito Local competente, nos
termos do n.º 1;

ii) na ausência de direito de conflitos interlocal unificado, deve-se procurar a resposta


no Direito Internacional Privado Unificado do Estado soberano, nos termos do n.º 2, 1.º Parte;
isto decorre do princípio da harmonia de julgados, na medida em que o legislador presumiu
que havendo direito internacional privado unificado é provável que os tribunais desse
ordenamento jurídico complexo aplicassem o direito internacional privado unificado por
analogia para resolver a questão do conflito interlocal;

28
No âmbito do Direito Interno: o Artigo 20.º CC; e, no âmbito do Direito da União Europeia:
Artigo 21.º do Regulamento Roma I, Artigo 25.º do Regulamento Roma II, Artigo 14.º do
Regulamento n.º 1259/2010, Artigos 36.º e 37.º Regulamento n.º 650/2012, e Artigos 33.º e
34.º dos Regulamentos n.º 2016/1103 e 2016/1104.
29
Se se tratar de uma regra de conflitos do CC então aplica-se o Artigo 20.º CC, se, no entanto,
a remissão é operada por uma regra de conflitos do Regulamento Roma I, então aplica-se o
Artigo 21.º desse Regulamento.
38
2.3.5.1.1 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Territorial

iii) na ausência de direito de conflitos interlocal unificado e de direito internacional


privado unificado, então considera-se a lei pessoal do interessado a lei da sua residência
habitual, nos termos do n.º 2, 2.º Parte.

Assim, por exemplo:

“A, nacional dos Estados Unidos da América, com residência habitual em Nova Iorque, quer
casar em Portugal. Sabendo que cada Estado Federado estabelece requisitos diferentes para a
capacidade matrimonial; que os Estados Unidos não gozam de Direito Interlocal Unificado,
nem de Direito Internacional Privado Unificado.”

Nesse caso, a lei que regularia a capacidade matrimonial de A seria a lei da sua nacionalidade,
na medida em que o Artigo 49.º remete para a lei pessoal do interessado, a qual é a lei da
nacionalidade, nos termos do Artigo 31.º/1 ex vi Artigo 25.º, ou seja, a lei dos Estados Unidos
da América.

Acontece que os Estados Unidos são um ordenamento jurídico complexo de base territorial,
sendo que as soluções em matéria de capacidade matrimonial são várias e distintas entre os
Estados Federados.

No exemplo, deve-se concluir pela aplicação da lei de Nova Iorque, na medida em que essa é a
lei da residência habitual do interessado, nos termos do Artigo 20.º/2, 2.º Parte, sendo que o
Estados Unidos não goza, a nível federal, de regras de conflitos Interlocais ou de Internacional
Privado, afastando as soluções do Artigo 20.º/1 e 2, 1.º Parte.

A propósito do n.º 2 do Artigo 20.º existe uma divergência doutrinária que consiste em saber o
quê que acontece quando a residência habitual do interessado fica num outro Estado que não
o da sua nacionalidade:

i) Ferrer Correia e Baptista Machado defendem continuar-se a aplicar o Artigo 20.º/2,


independentemente se a residência habitual do interessado for no Estado da sua
nacionalidade ou num outro para tal os autores invocam:

a) o elemento histórico da interpretação, na medida em que nos anteprojetos


do disposto constava uma solução contrária a essa defendida por esses autores, sendo que a
atual redação e anteprojeto posterior aponta para a solução dos autores, então a vontade do
legislador é que fosse essa a solução;

b) elemento literal, na medida em que o artigo 20.º/2, 2.º Parte estabelece no


fundo que a lei pessoal deixa de ser a lei da nacionalidade e passa a ser a lei da residência
habitual30; no fundo essa doutrina vê uma regra de conflitos diferente/subsidiária, quando não
se consegue chegar a uma solução através do elemento de conexão nacionalidade.

Acontece, porém, que essa é a posição que foi seguida pela jurisprudência31 32.

30
O Artigo não faz qualquer ressalva se a residência habitual se encontra no Estado soberano
da nacionalidade do interessado, ao que acresce que as palavras da lei são “considera-se como
lei pessoal do interessado a lei da sua residência habitual”.
31
Ac. do STJ de 16/05/2018, proc. n.º: 2341/13.8TBFUN.L1.S1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/245364177A84CFA480258290004DB8B2
39
2.3.5.1.2 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Pessoal

ii) Isabel Magalhães/Dário Vicente/Lima Pinheiro entendem que o Artigo 20.º/2, 2.º
Parte só se pode aplicar se a residência habitual for dentro do Estado da Nacionalidade do
Interessado isso com base no facto que:

a) está-se a abdicar do elemento de conexão da nacionalidade se se admitisse


remeter para a lei da residência habitual nesse caso, quando o interessado tem nacionalidade;
no fundo a escola de Coimbra está a tratar o interessado como um apátrida, quando ele tem
nacionalidade;

b) o Artigo 28.º da Lei da Nacionalidade por analogia.

Sem prejuízo de concordarem nos argumentos, os professores não concordam quanto


ao resultado da interpretação:

a) segundo os professores Isabel Magalhães e Lima Pinheiro está-se no âmbito


de uma interpretação restritiva;

b) segundo o professor Dário Vicente está-se no âmbito de uma redução


teleológica, na medida em que a letra da lei vai para além do espirito/função da norma: o
Artigo 20.º tinha como propósito resolver a questão dos conflitos interlocais aquando da
remissão para um ordenamento jurídico complexo, pelo que o texto do Artigo ao permitir a
remissão para um outro Estado onde o interessado tem residência habitual está a ir para além
do espírito do disposto.

À luz dessa doutrina chega-se a uma verdadeira lacuna oculta; devendo o interprete-
aplicador proceder a criação de uma regra ad hoc dentro do espírito do sistema jurídico:
segundo os autores, dessa regra deve resultar a remissão o direito material local dentro do
ordenamento jurídico complexo com o qual o interessado tenha uma conexão mais estreita,
apurada através de laços objetivos e subjetivos33.

2.3.5.1.2 Ordenamentos Jurídicos Complexos de Base Pessoal


Nos termos do n.º 3 do Artigo 20.º, se a legislação competente constituir uma ordem jurídica
territorialmente unitária, mas nela vigorarem diversos sistemas de normas para diferentes
categorias de pessoas, observar-se-á sempre o estabelecido nessa legislação quanto ao
conflito de sistemas.

Assim, no caso de remissão para ordenamentos jurídicos complexos de base pessoal, então
para aferir a lei aplicável deve-se:

i) olhar para o Direito Interpessoal Unificado;

ii) na ausência de Direito Interpessoal Unificado, deve-se:

a) segundo Lima Pinheiro, aplicar-se a lei com a conexão mais estreita;

32
Assim, se A, nacional americano, com residência habitual em Portugal, se quiser casar: à luz
dessa doutrina, deve-se aplicar a lei portuguesa.
33
Assim, se A, nacional americano, com residência habitual em Portugal, se quiser casar: à luz
dessa doutrina, deve-se aplicar a lei do Estado Federado com o qual o interessado tem
conexão mais estreita; ou seja, se A tivesse vivido em Nova Iorque antes de vir para Portugal,
seria Nova Iorque.
40
2.3.5.1.3 Outros Elementos de Conexão

b) segundo Dário Vicente, aplicar-se a lei da conexão subsidiária, ou seja,


residência habitual.

2.3.5.1.3 Outros Elementos de Conexão


O Artigo 20.º só se aplica diretamente quando esteja em causa uma regra de conflitos que
tenha como elemento de conexão a “nacionalidade”, pelo que cabe saber qual a lei aplicável
quando a regra de conflitos utiliza outro elemento de conexão. Relativamente a isso a doutrina
divide-se:

i) Baptista Machado, Ferrer Correia e Dário Vicente defendem que quando é utilizado
outro elemento de conexão, então entendem que a remissão é feita diretamente para o
sistema jurídico local, se à luz do direito interlocal do sistema jurídico local esse sistema se
considerar competente; sem prejuízo, Dário Vicente não admite, porém, o reenvio quando as
regras de conflito utilizarem, ou a conexão mais estreita, ou a escolha de lei como elementos
de conexão;

ii) Lima Pinheiro e Isabel Magalhães defendem que como regras de conflito só podem
remeter para a lei do Estado Soberano; devendo-se aplicar o Artigo 20.º por analogia. Sendo
que a 2.º Parte do n.º 2 só se pode aplicar caso haja razões para o aplicar por analogia. Na
eventualidade de nenhum critério do Artigo 20.º CC não conseguir resolver a solução,
entendem os autores que se deve entender que a remissão é para o Direito Local, ou seja, os
autores adicionam o crivo do Artigo 20.º antes de remeter para o Direito Local34.

2.3.5.2 Regulamentos
Os Artigos 22.º do Regulamento Roma I e do 25.º do Regulamento Roma II estabelecem a
mesma regra, segundo a qual cada sistema jurídico local, para efeitos da remissão, é tratado
como se fosse um Estado soberano.

Os Regulamentos n.º 650/2012, 2016/1103, e 2016/1104 tem soluções distintas conforme se


trate:

i) de um ordenamento jurídico complexo de base pessoal – estabelecem os Artigos


37.º Regulamento n.º 650/2012 e 34.º Regulamento n.º 2016/1103, que se deve atender
primeiro ao direito interpessoal unificado e, na sua ausência/insuficiência, a lei da conexão
mais estreita;

ii) de um ordenamento jurídico complexo de base territorial – estabelecem os Artigos


36.º do Regulamento n.º 650/2012 e 33.º do Regulamento n.º 2016/1103 que se deve aplicar
o direito de conflitos interlocal para aferir da lei local aplicável, ou na insuficiência desse
direito:

a) se o elemento de conexão for a residência habitual, a lei da residência


habitual da unidade territorial;

b) se o elemento de conexão for a nacionalidade, deve-se aplicar a lei do


sistema local com o qual o interessado mostre uma relação mais estreita;

34
Assim, se estivesse em causa a constituição de um direito real sobre um imóvel em Nova
Iorque, iria-se aplicar a lei de Nova Iorque, independentemente da posição doutrinária
tomada; algo que pode, no entanto, não acontecer.
41
2.4 Fraude à Lei

c) se for outro elemento de conexão, deve-se aplicar a lei da unidade territorial


em que se encontra o elemento pertinente35.

Por fim, no Regulamento n.º 1259/2010 encontra-se uma solução mista. No caso dos:

i) ordenamentos jurídicos complexos de base pessoal – estabelece o Artigo 15.º que se


deve aferir o regime aplicável à luz das regras de conflitos interpessoais ou, na ausência delas,
a lei com o qual o cônjuge ou cônjuges tem uma relação mais estreita;

ii) ordenamento jurídicos complexos de base territorial – estabelece o Artigo 14.º que
a lei aplicável vai depender do elemento de conexão, se for:

a) a residência habitual, aplica-se a lei da residência habitual numa unidade


territorial;

b) a nacionalidade, afere-se a lei aplicável à luz das regras de conflito


interlocais ou, na ausência delas, aplica-se a lei da unidade territorial com a qual o cônjuge ou
cônjuges têm uma relação mais estreita;

c) outro elemento, aplica-se a lei da unidade territorial relevante.

2.4 Fraude à Lei


A fraude à lei não é uma figura privativa da disciplina de DIP, sendo antes uma figura geral do
Direito. Fala-se de fraude à lei quando existe uma violação indireta da própria lei, onde o
sujeito cria uma situação jurídica de forma a contornar a aplicação da norma legal36.

No Direito Internacional Privado a figura da fraude à lei tem a especificidade que se traduz na
utilização dos mecanismos típicos do Direito Internacional Privado, designadamente na
utilização das regras de conflitos: cria-se uma situação que provoca a estatuição da regra de
conflitos em exteriormente de outra, manipulando o seu elemento de conexão e
determinando a aplicação de uma lei que não seria de outra forma aplicável.

Um exemplo histórico de fraude a lei no Direito Internacional Privado é o Caso rolf, no qual

“Uma cidadã francesa estava casada, ainda que separada de pessoas e bens, e pretendia-se
divorciar. À data na frança, não era permitida o divórcio; mas na Alemanha era permitido. A
cidadã naturalizou-se alemã, de forma que a lei alemã lhe fosse aplicada, sendo que casou
novamente. Porém, a obtenção da nacionalidade alemã não correspondia a qual vontade real
de se integrar na sociedade alemã, pelo que com esse fundamento o tribunal francês
considerou tal casamento inoponível na França, uma vez que a naturalização tinha tido lugar
com o único propósito de beneficiar das normas da lei alemã em deterioramento da lei
francesa.”

Outros exemplos são:

35
O de cuius escolheu como competente a lei de Nova Iorque, a lei competente é então a lei
de Nova Iorque.
36
Sendo o exemplo clássico disso o pai que para vender um bem a um dos filhos, sem o
consentimento dos demais, vende a terceiro que por sua vez irá vender a esse filho – a
chamada interposição fictícia de pessoas.
42
2.4.1 Pressupostos

“Um determinado sujeito adquire a nacionalidade inglesa, mas manteve a sua residência em
Portugal, para poder afastar a sucessão legitimária do filho.”

“Uma sociedade com sede em Portugal que se dedica ao transporte de mercadorias no mar e
abre uma sucursal no Panamá. Essa empresa através da sucursal contrata os trabalhadores
para os seus navios de forma a beneficiar das leis laborais panamiana, porém toda a atividade
da empresa continua a ser dirigida em Portugal.”

Em todas essas situações verifica-se uma concretização irregular do elemento de conexão


regra de conflitos: a concretização é provocada por alguém que tem o intuito de determinar
aplicável determinada lei.

2.4.1 Pressupostos
Para estar-se perante uma situação de fraude a lei é necessário o preenchimento dos
seguintes pressupostos:

i) intenção fraudatória – vontade de aplicar uma lei diferente daquela que seria
normalmente aplicável de forma a fugir as disposições imperativas dessa lei;

ii) atividade fraudatória – manipulação do elemento de conexão por força do qual se


determina a aplicável determinada lei.

Não se verifica fraude à lei quando um dos pressupostos não esteja reunidos. Por exemplo:

“A e B mudam de país para se casar, adquirindo a nacionalidade desse Estado. Porém, passam
a residir nesse país.”

Não há fraude a lei na medida em que a mudança do elemento de conexão corresponde a uma
intenção real de se integrar no país onde se obteve nacionalidade.

“Uma sociedade comercial que tem uma administração que funciona habitualmente em Lisboa
fixa a sua sede em Gibraltar com o objetivo de lhe ser aplicável a lei desse local.”

Acontece que o elemento de conexão relevante para determinar o estatuto pessoal das
pessoas coletivas é o local da administração regular e efetiva da sociedade, nos termos do
Artigo 3.º/1 CSC. Aqui verifica-se uma intenção fraudatória, mas não uma atividade
fraudatória, na medida em que a mudança de sede em nada contribui para a aplicação da lei
gibraltina: não houve uma manipulação com êxito do elemento de conexão.

2.5.2 Sanção da Fraude


A existência da fraude a lei traduz-se na aplicação da lei que normalmente seria competente. A
fraude a lei é uma situação que desafia a boa fé nas relações privadas internacional, a qual não
permite que as pessoas manipulem livremente os elementos de conexão afim de provocar a
aplicação de uma outra lei.

Não está em causa a eficácia das situações constituídas, mas antes o julgador ao decidir o caso
deve ignorar a concretização do elemento de conexão artificialmente criada por via da
constituição dessa situação.

2.5.3 Regime Vigente


O Código Civil prevê no Artigo 21.º a figura da fraude a lei no Direito Internacional Privada,
trata-se de uma disposição rara em termos de Direito Comparado. Esse Artigo determina que

43
2.5.4 Incidência do Direito da União Europeia

na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito


criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias,
seria competente

Verifica-se os tais dois pressupostos:

i) intuito fraudulenta/requisito subjetivo;

ii) atividade fraudulenta/requisito objetivo.

Ao que acresce que para que o Artigo 21.º se possa aplicar é necessário existir uma lei
normalmente competente. Assim, não haverá fraude a lei, se:

“Uma empresa portuguesa e inglesa decidem formalizar através de um ato notarial em


Inglaterra, que foi negociado em Portugal e que as partes convencionaram ser aplicável o
Direito Inglês.”

Não há nada que nos diga que a lei portuguesa seria normalmente aplicável, pelo que não há
fraude à lei.

O Artigo 21.º determina que são irrelevantes, isso é a sanção da fraude a lei é a irrelevância da
situação jurídica criada para falsear a aplicação de uma lei aplicável. Essa irrelevância situa-se
apenas no plano das normas de conflitos – não se trata da substância das situações, essas são
válidas independentemente da fraude.

2.5.4 Incidência do Direito da União Europeia


As liberdades económicas estão na essência da união europeia: aquilo que se pergunta é se
essas liberdades económicas podem ter uma incidência nessa figura, limitando o seu
funcionamento.

Esse problema foi discutido no Caso Centros37:

“Uma sociedade comercial tinha sido constituída por dois dinamarqueses no Reino Unido,
porque as exigências de desembolso de capital social eram menores. Logo apos a constituição,
pediram as autoridades dinamarquesas a constituição de uma sucursal na Dinamarca através
da qual se pretendia exercer o grosso da atividade da sociedade.”

A sociedade em nada tinha relação com o Reino Unido, apenas foi constituída lá para
beneficiar desse direito. Por esse motivo, o Registo Comercial considerou manifesta a intenção
de fraude, pelo que recusaram a constituição da sucursal. Os dois dinamarqueses decidiram
recorrer.

O Supremo Tribunal Dinamarquês submeteu um reenvio prejudicial ao TJUE, esse veio


determinar que se um nacional de um Estado-membro pretende constituir uma sociedade
num outro Estado-membro, pode fazê-lo livremente, mesmo que apenas o faça por considerar
mais benéfico o Direito Societário desse Estado, podendo constituir sucursais em qualquer
outro Estado-membro38. Ou seja, para o Tribunal de Justiça tal é um exercício legítimo das
liberdades económicas.

37
Acórdão de 9 de março de 1999, Centros, C-212/97, ECLI:EU:C: 1999:126.
38
“(…) um Estado-Membro não poder recusar o registo de uma sucursal de uma sociedade
constituída em conformidade com a legislação de outro Estado-Membro, no qual aquela tem a
44
2.6 Cláusulas Exceção

O Direito da União Europeia ao estabelecer a liberdade dos interessados de usufruírem das


diferenças de regime dos vários sistemas nacionais limita o campo de aplicação da figura da
fraude à lei. Esse tem, assim, um impacto significativo no DIP, o qual foi pensado para as
relações entre Estados Soberanos que vivem em situações de autocracias; mas hoje não é
assim, há harmonização dentro da União Europeia em matéria de Direito Internacional
Privado.

2.6 Cláusulas Exceção


Por cláusulas de exceção entende-se regras que permitem ao julgador afastar a aplicação da lei
competente para regular a situação jurídica internacional sempre que essa situação tenha uma
conexão mais estreita com a lei de um outro Estado39.

Essas cláusulas podem revestir duas modalidades:

i) âmbito geral – a regra permite genericamente afastar a aplicação de uma lei


competente sempre que existir uma outra com conexão mais estreita; exemplo disso é o
Artigo 15.º da Lei Suíça de Direito Internacional Privado40;

ii) âmbito setorial – a regra permite afastar a aplicação de uma lei competente em
certas matérias para regular a situação jurídica internacional sempre que essa situação tenha
uma conexão mais estreita com a lei de um outro Estado; essas são proliferas no Direito da
União Europeia41.

Trata-se de casos de cláusulas exceção delimitadas a certas matérias especificas.

Não se deve confundir com a cláusula exceção a cláusula geral da conexão mais estreita, a qual
está prevista, por exemplo, no Artigo 52.º42: não se trata de uma cláusula de exceção, utiliza-se
o mesmo conceito, mas com fim diferente. No Artigo 52.º aparece como regra de conflitos
subsidiária, surge com o propósito de determinar qual a lei competente e não afastar uma
outra lei.

sua sede, não exclui que este primeiro Estado possa tomar qualquer medida adequada para
prevenir ou sancionar as fraudes, tanto no que se refere à própria sociedade, se necessário em
cooperação com o Estado- -Membro no qual esta foi constituída, como no que se refere aos
sócios que se provasse que pretendem, na realidade, através da constituição de uma
sociedade, eximir-se às suas obrigações perante credores privados ou públicos estabelecidos no
território do Estado-Membro em causa. Em qualquer circunstância, a luta contra a fraude não
pode justificar uma prática de recusa de registo de uma sucursal de uma sociedade que tem a
sua sede noutro Estado-Membro.” – Cfr. idem n.º 38.
39
A regra de conflitos remete para a L1, mas verifica-se que a situação tem uma conexão mais
próxima com a L2, mediante uma cláusula de exceção o Tribunal pode recusar a aplicação da L1
e aplicar L2.
40
O qual dispõe o n.º 1 que “Excecionalmente o direito designado pela presente lei não é
aplicável, se à luz das circunstâncias for manifesto que a causa apenas tem uma conexão muito
fraca com esse Direito e se encontra com uma conexão muito mais estreita com outro Direito”;
é concedido um grau de discricionariedade; essa figura expandiu-se para outros Estados.
41
Encontra-se no Artigo 4.º/3 do Regulamento Roma I, Artigo 4.º/3 do Regulamento Roma II, e
Artigos 21/2.º Regulamento n.º 650/2012.
42
A qual determina aplicável a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais
estreitamente conexa (lei onde família vive habitualmente).
45
2.6.1 Novo Método

As cláusulas de exceção são um tipo de regras que introduzem um elemento de flexibilidade


importante no Direito Internacional Privado; esse deixou de ser puramente regido e formal,
pelo que os julgadores, em face das circunstâncias do caso concreto, permite-se ponderar qual
a lei concretamente aplicável.

Há que reconhecer, no entanto, que essa figura veio introduzir uma certa incerteza na
regulação das situações jurídicas internacionais: numa matéria onde haja uma cláusula de
exceção não há garantia que se vá aplicar num litígio a lei que a regra de conflitos manda
aplicar. Por exemplo:

A celebra com B um contrato de compra-e-venda, sem determinar qual a lei aplicável. A,


vendedor, reside habitualmente em X, e B, comprador, em Y. A exige o pagamento com base na
lei A e B alega que o Contrato é Nulo, nos termos da Lei Y.

O Artigo 4.º/1 do Regulamento Roma I manda aplicar a lei X, porém B alega que o contrato
tem conexão mais próxima com o ordenamento jurídico em Y, porque foi nesse lugar onde o
contrato foi celebrado, é nesse que se deve as prestações, etc. Poder-se-ia dizer que a situação
tem uma conexão mais estreita com Y, estando-se perante uma situação do Artigo 4.º/3
Regulamento Roma I.

Só se saberá qual a lei aplicável, nesses casos, após sentença transitada em julgado.

Essas cláusulas devem ser aplicadas com prudência.

Essas cláusulas não se devem aplicar em dois tipos de situações:

i) as partes escolheram a lei aplicável;

ii) quando a regra de conflitos determina a aplicabilidade da lei com base num
princípio de justiça material43.

2.6.1 Novo Método


Questiona-se se as cláusulas de exceção correspondem a um método novo distinto do método
conflitual. Pode dizer-se que de facto as cláusulas de exceção surgiram como uma resposta às
críticas da doutrina norte-americana dos anos 50 que dizia que a metodologia tradicional era
demasiado formalista.

Não deixam as clausulas de exceção tomarem como ponto de partida o método conflitual; a lei
aplicável continua a ter uma conexão estreita espacial com a situação jurídica em causa. Por
esse motivo, Dário Moura Vicente defende que as cláusulas exceção não correspondem a um
método novo, mas antes uma flexibilização do método tradicional.

Não havendo cláusula de exceção pode o tribunal afastar a lei competente?

2.6.2 Cláusula de Exceção sem Previsão Legal


Questiona-se se num Estado onde não vigora uma cláusula de exceção geral, podem os
tribunais afastar a lei normalmente competente com fundamento na conexão mais estreita
com uma outra lei, fora do domínio de alguma cláusula de exceção setorial.

43
Por exemplo, a regra de conflitos determina competente a lei da residência da parte mais fraca –
normas mais protetoras que a partida estão numa situação desigualdade face ao cocontratante.
46
2.7 Normas Internacionalmente Imperativas

Podia-se dizer que tal seria uma violação do Artigo 8.º CC, o qual determina que a lei não pode
ser afastada com fundamento na sua injustiça, porém aqui não se está a afastar uma norma,
antes está-se a corrigir o resultado da sua estatuição com base em juízos de valores
subjacentes à própria norma, designadamente aplicar a lei que tenha uma conexão mais
estreita com a situação jurídica internacional44.

Tal aconteceu no caso de 27 de junho de 1978 do Supremo Tribunal de Justiça, no qual se


colocava o problema da sucessão por morte de um cidadão espanhol com última residência
habitual em Lisboa.

“Tinha sobrevivido ao de cuius a mulher, nacional português, residentes em Portugal, o seu


filho dessa mulher e outros 4 filhos, também português, de outra mulher. A lei espanhola
negava o direito à legitima dos filhos nascidos fora do casamento”

O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que numa situação como essa, negar aos 4 filhos do
de cuius seria algo lesivo das expectativas jurídicas legítimas daquelas pessoas com base na lei
espanhola, na medida em que todos os elementos da situação apontam para a lei portuguesa.

A aplicação da lei espanhola defraudava o sentido da regra de conflitos que pretende aplicar à
sucessão por morte a lei que tem uma conexão mais estreita com o de cuius e com a sua vida
familiar. Foi nessa linha, que o Supremo Tribunal de Justiça desaplicou a lei espanhola,
aplicando a lei portuguesa.

Em qualquer caso nesse caso a reserva de ordem pública internacional permitia afastar a lei
espanhola, na medida em que se violava o Artigo 36.º CRP.

Em razão dos valores fundamentais do DIP, pode-se afastar a lei competente em virtude da
conexão mais estreita. A fundamentação deve ser que mais que as regras o julgador deve
respeito aos princípios, na medida em que esses são a expressão normativa.

2.7 Normas Internacionalmente Imperativas 45


Essas normas têm origem em dois fenómenos do Estado Social:

i) o protecionismo do Estado nas relações entre privados – que se expressa em normas


que tentam defender o ambiente, a concorrência e os bens culturais;

ii) a tendência para a proteção da parte mais fraca na relação jurídica – exemplo o
consumidor.

As normas internacionalmente imperativas são um instrumento de excelência desse


protecionismo.

A questão que se coloca é saber se estas normas apenas pertencem às leis que são designadas
competentes por força das regras de conflitos gerais ou se também se pode admitir a aplicação

44
Pode acontecer que numa determina situação a regra de conflitos remeta para L1, porém em
face as circunstâncias do caso tal apresenta-se defraudatório das confianças legitimas das
partes que julgavam aplicável a L2.
45
Há quem as denomine por normas de aplicação imediata ou necessária. Nos Regulamentos
da União Europeia encontra-se consagrado a expressão normas de aplicação imediata. Dario
Moura Vicente defende a expressão normas internacionalmente imperativas.
47
2.7 Normas Internacionalmente Imperativas

de normas internacionalmente imperativas de outros ordenamentos jurídicos que não aqueles


designados pelas regras de conflitos gerais.

São normas imperativas de Direito Público ou de Direito Privado que reclamam a sua
aplicação, mesmo em situações que não estariam submetidas segundo as regras de conflitos
gerais.

Exemplo:

“Contrato celebrado entre um fornecedor e um consumidor. Por designação das partes, o


contrato é regulado pela Leix.”

Poderá se aplicar normas imperativas da lei do Estado da Residência Habitual do consumidor,


LeiY – em algumas circunstâncias pode acontecer, nos termos do Artigo 6.º Regulamento Roma
I.

Apesar do contrato ser regulado pela Lei do Estado X, admite-se que uma parte desse contrato
seja regulado por normas internacionalmente imperativas do Estado da Residência Habitual do
Consumidor, ou seja, a Lei do Estado Y.

Do Artigo 9.º/1 resulta uma definição de Normas Internacionalmente Imperativas nos termos
do qual essas são disposições cujo respeito é considerado fundamental por um país para a
salvaguarda do interesse público, designadamente a sua organização política, social ou
económica, ao ponto de exigir a sua aplicação em qualquer situação abrangida pelo seu
âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro modo seria aplicável ao
contrato, por força do presente regulamento46.

As normas internacionalmente imperativas são, assim, normas materiais, porém são normas
relativas à organização de um determinado Estado ao ponto que exige a sua aplicação em
qualquer situação abrangida pelo seu âmbito de aplicação, isto é, ao lado da regra material,
existe uma regra de conflitos unilateral, expressa ou não, que delimitam o seu âmbito de
aplicação47 48.

46
Ao que acresce que:
Nos termos do Artigo 30.º/2 dos Regulamentos n.º 2016/1103 e 2016/1104, estabelece-se que
as disposições imperativas são disposições cujo respeito é considerado fundamental por um
Estado-Membro para salvaguardar o interesse público, designadamente a sua organização
política, social ou económica, ao ponto de exigir que sejam aplicadas em qualquer situação
abrangida pelo seu âmbito de aplicação, independentemente da lei que de outro modo seria
aplicável ao regime matrimonial nos termos do presente regulamento.
Por sua vez, nos termos do Artigo 30.º do Regulamento n.º 650/2012 se a lei do Estado onde
estão situados determinados bens imóveis, determinadas empresas, ou outras categorias
especiais de bens incluir regras especiais que, devido a considerações económicas, familiares
ou sociais, imponham restrições quanto à sucessão ou a afetem no respeitante a esses bens,
tais regras especiais aplicam-se à sucessão na medida em que sejam aplicáveis, segundo a lei
daquele Estado, independentemente da lei que rege a sucessão.
47
Por exemplo as regras relativas à proteção dos consumidores, normalmente, dispõem que:
Determinado regime de proteção dos consumidores deve-se aplicar sempre que o Consumidor
tenha residência habitual nesse Estado.
48
2.7.1 Eficácia

2.7.1 Eficácia
Quanto ao problema da eficácia das normas internacionalmente imperativas cabe distinguir:

i) as normas internacionalmente imperativas do foro;

ii) as normas internacionalmente imperativas de outro Estado.

2.7.1.2 Normas Internacionalmente Imperativas do Foro


Nos termos do Artigo 9.º/2 Regulamento Roma I, as disposições do presente regulamento não
podem limitar a aplicação das normas de aplicação imediata do país do foro, ou seja, as
normas internacionalmente imperativas do foro, sendo aplicável segundo a regra de conflitos
ad hoc dessa mesma norma, iram se aplicar, sem limitações49.

Aqui terá se de verificar se a aplicação resulta de uma regra de conflitos expressa ou tácita,
sendo nesse caso inferida das finalidades que pela regra são prosseguidas.

Em igual sentido vai o:

i) Artigo 16.º do Regulamento Roma II, nos termos do qual o disposto no presente
regulamento em nada afeta a aplicação das disposições da lei do país do foro que regulem
imperativamente o caso concreto independentemente da lei normalmente aplicável à
obrigação extracontratual;

ii) Artigo 30.º/1 Regulamentos 2016/1103 e 1104, nos termos do qual as disposições
do presente regulamento não prejudicam a aplicação das disposições imperativas da lei do
foro.

2.7.1.3 Normas Internacionalmente Imperativas de um outro Estado


O Artigo 9.º/3 Regulamento Roma I determina que pode ser dada prevalência às normas de
aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do contrato devam ser ou
tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação imediata, a
execução do contrato seja ilegal, sendo que para decidir se se deve dar prevalência a essas
normas, devem ser tidos em conta a sua natureza e o seu objeto, bem como as consequências
da sua aplicação ou não aplicação.

Assim, a aplicação das normas internacionalmente imperativas de um outro Estado está sujeita
a um crivo apertado:

i) tens se de tratar de normas internacionalmente imperativas do país onde as


obrigações decorrentes do contrato devam ser ou tenham sido executadas;

ii) segundo essas normas imperativas a execução do contrato seja ilegal;

iii) devem ser tidos em conta a sua natureza e o seu objeto, bem como as
consequências da sua aplicação ou não aplicação.

48
Ou seja, ao conjunto de regra material e regra de conflitos ad hoc designa-se por Norma
Internacionalmente Imperativa.
49
As partes escolheram a Lei do Estado X para regular o Contrato, ao aplicar-se as normas
internacionalmente imperativas da Lei Y não se vai desaplicar a Lei do Estado X na sua
totalidade, mas apenas na parte em que é regulada pela Lei Y.
49
2.7.1.4 Outras Regras

Por sua vez, no Regulamento Roma II as Normas Internacionalmente Imperativas de um outro


Estado não estão previstas, pelo que a parte significativa da doutrina considera que não têm
aplicação.

Sem prejuízo, as normas relativas à segurança e conduta são relevantes para avaliar o
comportamento do agente, nos termos do Artigo 17.º do Regulamento Roma II50.

Por exemplo:

“Acidente de Viação ocorrido em Londrês entre dois portugueses residentes em Portugal.”

A lei competente será a lei portuguesa, pelo que se aplica os Artigos 483.º e ss. CC, porém para
aferir do comportamento do agente, a sua ilicitude e culpa, é necessário aplicar a lei inglesa.

2.7.1.4 Outras Regras


Para além dos Regulamentos da União Europeia, existem no ordenamento jurídico português
em vigor outras normas relevantes nessa matéria.

Nos termos do Artigo 16.º Convenção da Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação
e de Representação, na aplicação da presente Convenção poderá atribuir-se efeito às
disposições imperativas de qualquer Estado com o qual a situação apresente uma conexão
efetiva, se e na medida em que, segundo o direito desse Estado, tais disposições forem
aplicáveis, qualquer que seja a lei designada pelas suas regras de conflito.

Ou seja, o juiz português poderá, assim, atribuir relevância as normas internacionalmente


imperativas do Estado do Foro ou de Estado Terceiro, desde que a situação apresente uma
conexão estreita com o Estado onde vigoram essas normas internacionalmente imperativas e
se essas leis forem competentes51.

Por outro lado, também é relevante o Artigo 23.º/2 da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais,
nos termos do qual se o contrato apresentar uma conexão estreita com o território de outro
Estado membro da Comunidade Europeia, deve-se aplicar as disposições correspondentes
desse país na medida em que este determine a sua aplicação.

Ou seja, independentemente da lei que vai regular a situação, em virtude da conexão estreita
com outro ordenamento jurídico, poderá se aplicar regras desse ordenamento, desde que
essas se considerem competentes.

Nada se opõe ao reconhecimento de eficácia de regras imperativas estrangeiras, antes, em


virtude da coerência interna, deve-se admitir esse reconhecimento, mesmo que não existam
disposições que regulem em termos gerais à atribuição de efeitos às normas
internacionalmente imperativas de Estados Terceiros, hipótese em que é necessário procurar
nos princípios de Direito Internacional Privado a resposta para a situação.

50
O qual dispõe ao avaliar o comportamento da pessoa cuja responsabilidade é invocada, são
tidas em conta, a título de matéria de facto e na medida em que for apropriado, as regras de
segurança e de conduta em vigor no lugar e no momento em que ocorre o facto que dá origem
à responsabilidade.
51
Isto segundo a sua própria regra de conflitos ad hoc.
50
2.7.1.5 Título de Aplicação

Entre esses princípios são relevantes a tutela da confiança e a harmonia internacional de


julgados.

De acordo com o princípio da harmonia internacional de julgados, independentemente do sítio


onde a situação esteja a ser discutida, em princípio as leis aplicáveis devem ser a mesma. Se se
apenas conferir relevância às normas internacionalmente imperativas do Estado do Foro
levará a uma situação de forum shopping, pelo que se deverá dar relevância as normas
imperativas de Estados Terceiros52 que apresentem uma conexão significativa com a situação
internacional53.

Em qualquer caso, ao aplicar as regras estrageiras imperativas, o juiz português deve ponderar
devem ser tidos em conta a sua natureza e o seu objeto, bem como as consequências da sua
aplicação ou não aplicação.

2.7.1.5 Título de Aplicação


Em suma a aplicação das normas imperativas estrageiras não se faz sem a mediação:

i) de uma regra de conflitos do Estado do Foro, segundo Dario Moura Vicente, na


medida em que a regra de conflitos ao remeter para determinado ordenamento jurídico, está
a remeter também para as normas internacionalmente imperativas;

ii) de uma norma auxiliar que atribui relevância54; ou, na falta desses,

iii) dos princípios do direito internacional privado que justificam os casos em que se
admite a aplicação de normas internacionalmente imperativas de outros Estados.

Dario Moura Vicente defende que, como as normas internacionalmente imperativas carecem
de um título interno de eficácia, não podem ser chamadas de normas de aplicação imediata.

2.7.2 Valoração pelo Julgador


Na valoração que deve ser feita pelo julgador para aplicar a norma imperativa da lei
estrangeira relevam 3 aspetos fundamentais:

i) deve atender ao objeto e fins da norma internacionalmente imperativa;

ii) deve verificar se existe uma conexão estreita entre a situação a regular e a ordem
jurídica a que essa norma pertence;

iii) deve verificar se existe uma conformidade de atribuição de efeitos entre a norma
estrangeira e os valores e interesses do Direito Internacional Privado.

Assim, a aplicação das normas internacionalmente imperativas não decorre de um modo


direto das mesmas, ou seja, exclusivamente da sua vontade, é necessária essa ponderação.

Para além disso, as exigências que as finalidades sejam tidas por legitimas à luz do Direito do
Estado do Foro55.

52
De forma a evitar o fenómeno do forum shopping e, assim, salvaguardar o princípio da
harmonia internacional de julgados.
53
Ao apenas dar-se relevâncias as normas internacionalmente imperativas dos Estados
Terceiros que apresentem uma conexão significativa com a situação internacional está-se a
salvaguardar o princípio da tutela da confiança.
54
Por exemplo o Artigo 9.º/1 do Regulamento Roma I.
51
2.7.3 Efeitos

2.7.3 Efeitos
Os efeitos das normas internacionalmente imperativas não se resumem a sua aplicação, stricto
sensu, para além disso as normas internacionalmente imperativas podem surgir como
pressuposto de aplicação de outras normas matérias da lex causae.

Assim, por Exemplo:

“A lei portuguesa regula as obrigações contratuais resultantes de determinado contrato, o


qual, porém, deve ser executado em Espanha. Sendo que à luz da lei espanhola existe uma
regra que proíbe a importação de cogumelos. O contrato tem como objeto a entrega de uma
tonelada de cogumelos.”

A lei portuguesa parece concluir pela existência de uma impossibilidade jurídica, pelo que o
vendedor não teria de indemnizar. Porém, a impossibilidade resulta da aplicação da lei
espanhola. Ou seja, o Artigo 790.º CC é aplicado como consequência da aplicação da norma
internacionalmente imperativa da lei espanhola, aplicável por via do Artigo 9.º/3 do
Regulamento Roma I56.

2.7.4 Novo Método


Sabes se as normas internacionalmente imperativas correspondem a um novo método de
Direito Internacional Privado é objeto de divergência na doutrina:

i) há autores que defendem que as normas internacionalmente imperativas


constituem um método diverso do método clássico57;

ii) outros autores defendem que continua a haver uma regra de conflitos ad hoc pelo
que ainda é seguido o método da conexão.

iii) Dário Moura Vicente defende que a atribuição de eficácia às normas


internacionalmente imperativas não consubstancia um método novo distinto do método
conflitual, na medida em que essas não dispensam de recurso das regras de conflitos:

a) na medida em que se a lei do Estado onde essas vigoram forem


competentes segundo as regras de conflitos gerais, então as normas imperativas são
chamadas a esses títulos;

b) as normas internacionalmente imperativas não substituem a lei aplicável


segundo as regras de conflitos gerais;

c) a solução que é dada atualmente a esse problema revela 3 características


importantes do método de Direito Internacional Privado contemporâneo:

55
Em Portugal não se pode admitir a atribuição de efeitos às normas internacionalmente
imperativas, se dessa atribuição resultar um efeito contrário à ordem pública internacional,
isto é, que sejam contrárias aos princípios estruturantes do Direito Português.
56
O mesmo verifica-se no caso do acidente de viação em Inglaterra suprarreferido: na medida
em que, mesmo que sendo aplicável a lei portuguesa, e, portanto, os Artigos 483.º e ss. CC,
para aferir se existe ilicitude e culpa com base nesses preceitos é necessário ter em
consideração as regras de segurança e de conduta da lei inglesa aplicáveis por via do Artigo
17.º do Regulamento Roma II.
57
Nesse sentido, Marco dos Santos.
52
2.7.5 Incidência do Direito da União Europeia

i) regulação das situações plurilocalizadas não é indiferente ao


conteúdo das regras materiais em presença e ao resultado da sua aplicação;

ii) na regulação de situações internacionais avultam não só interesses


individuais e privados, mas interesses sociais, os quais as normas internacionalmente
imperativas visam tutelar58;

iii) o juiz tem um papel criador nessa regulação, na medida em que lhe
compete determinar a natureza e o alcance a atribuir as normas internacionalmente
imperativas em apreço, mas também o modo como essas se vão articular com a lei que é
competente, segundo as regras de conflitos gerais.

2.7.5 Incidência do Direito da União Europeia


Também aqui as liberdades económicas europeias têm incidência.

No Acórdão Arblade59 de 23 de novembro de 1999, no qual o Tribunal de Justiça da União


Europeia sustentou que da livre prestação de serviços resultam limitações das normas
internacionalmente competentes em matéria laboral. Isto porque se o empregador tiver de
respeitar as normas de outro Estado-Membro, poder-se-ia dizer que a sua liberdade está a ser
limitada, por esse motivo o Tribunal de Justiça da União Europeia defendeu que para os
tribunais poderem atribuir relevância é necessário que essa relevância se justifique por razões
imperativas de interesse geral e que esse interesse não se encontre salvaguardado por regras
essencialmente comparáveis, em razão da sua finalidade, a que o respetivo destinatário esteja
já submetido no Estado-membro onde se encontra estabelecido60 61.

2.8 Estatuto do Direito Estrangeiro


A maioria das normas de conflitos vigentes na ordem jurídica português tem uma dupla
função:

i) designar o direito material aplicável;

58
A ideia subjacente a essas normas é, precisamente, o protecionismo por parte do Estado.
59
Acórdão de 23 de novembro de 1999, Arblade, C-369/96 e C-376/96, ECLI:EU:C:1999:575.
60
“A este propósito, uma vez que as autoridades ou os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro
de acolhimento declarem, como fez o órgão jurisdicional de reenvio nos dois processos, que, no
que toca à existência dos documentos sociais ou de trabalho, tais como um regulamento de
trabalho, um registo especial do pessoal e, para cada trabalhador destacado, uma conta
individual, a entidade patronal está sujeita, no Estado de estabelecimento, a obrigações
comparáveis, em razão da sua finalidade, em relação aos mesmos trabalhadores e para os
mesmos períodos de actividade, a apresentação dos documentos sociais e de trabalho
mantidos pela entidade patronal em conformidade com a regulamentação do Estado-Membro
de estabelecimento deve ser considerada suficiente para assegurar a protecção social dos
trabalhadores, de modo que não pode ser exigida a essa entidade patronal a elaboração dos
documentos em conformidade com a regulamentação do Estado-Membro de acolhimento.” –
idem, n.º 66.
61
Essa jurisprudência foi desenvolvida noutros acórdãos, nomeadamente, o Acórdão de 25 de
outubro de 2001, Finalarte, C-49/98, C-50/98, C-52/98 a C-54/98 e C-68/98 a C-71/98,
ECLI:EU:C:2001:564, e o Acórdão de 17 de outubro de 2013, UNAMAR, C-184/12,
ECLI:EU:C:2013:663.
53
2.8.1 Valores e Interesses em Presença

ii) dar um título de aplicação da lei estrangeira.

Relativamente ao estatuto do Direito Estrangeiro coloca-se 4 questões:

i) devem os tribunais aplicar o direito estrangeiro oficiosamente;

ii) regime do reconhecimento e prova do teor do direito vigente aplicável;

iii) aplicação, interpretação e integração do Direito Estrangeiro;

iv) admissibilidade do controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da aplicação da lei


estrangeira pelas instâncias inferiores.

2.8.1 Valores e Interesses em Presença


Existem duas ordens de interesses e valores que pautam a questão do estatuto do Direito
Estrangeiro:

i) economia de meios, celeridade processual e prevenção do erro judiciário – todos


esses apontam na não aplicação do direito estrangeiro, na medida em que esse é de aplicação
mais demorosa e existe um maior risco de erro judiciário associado a sua aplicação,
necessitando, por isso, de mais recursos; esses interesses e valores apontam para que o direito
estrangeiro tenha um mero estatuto de facto;

ii) realização efetiva das finalidades prosseguidas pelo direito conflitual – há uma ideia
de adequação conflitual na resolução de determinada situação jurídica internacional, tendo o
estatuto de mero facto, a adequação fica em risco: quando se prossegue um determinado
valor social como a proteção da parte mais fraca, essa parte mais fraca não saber que tem o
ónus de alegar o direito estrangeiro, pelo que a adequação fica em risco; quem der maior
importância a esses valores defenderá que o direito estrangeiro deve ter o estatuto de
verdadeiro direito.

2.8.2 Oficiosidade
Os tribunais portugueses devem aplicar o direito estrangeiro designado competente pelas
regras de conflitos, mesmo que as partes não o aleguem, ou seja, as regras de conflitos não
estão na disponibilidade das partes. Tal resulta do princípio iura novit curia, previsto no Artigo
5.º/3 CPC, o juiz não está sujeito às alegações das partes no que toca a aplicação e
interpretação das regras de direito.

Tal ideia é confirmada pelo Artigo 348.º CC ao determinar que incumbe ao tribunal a prova do
direito estrangeiro, sempre que esse tenha decidido segundo o direito estrangeiro, ou seja,
esse pode decidir segundo esse direito, independentemente se as partes o invocam ou não.

O juiz tem o dever de o conhecer oficiosamente e, por sua vez, de aplicar oficiosamente esse
direito. Essa solução justifica-se por duas ordens de razões:

i) garantir a efetiva prossecução dos valores sociais subjacentes a algumas regras de


DIP;

54
2.8.3 Conhecimento e Prova do Direito Estrangeiro

ii) a solução oposta teria graves inconvenientes quanto à segurança jurídica do


comercio internacional62.

2.8.3 Conhecimento e Prova do Direito Estrangeiro


Aqui coloca-se três questões:

i) saber se o teor e vigência são de conhecimento oficioso;

ii) como deve o tribunal do foro informar-se sobre o conteúdo do direito estrangeiro
competente;

iii) como deve proceder o tribunal português quando o conteúdo não for percetível.

2.8.3.1 Oficiosidade do Conhecimento do Teor e Vigência


O Artigo 348.º/1 e 2 determinam que o tribunal deve conhecer oficiosamente, pelo que
verdadeiramente não existe um ónus de alegação de prova do direito estrangeiro.

Pelo que a parte que pretende beneficiar, não tem o ónus de alegar e provar o direito
estrangeiro, sem prejuízo, incumbe sobre esse o dever de colaboração, nos termos do Artigo
7.º CPC, sendo que a omissão grave desse dever pode levar à condenação em litigância de má-
fé, conforme o Artigo 542.º/2, c) CPC.

Resulta desse regime que o Direito Estrangeiro tem o estatuto de verdadeiro direito e não de
mero facto.

2.8.3.2 Apuramento do Teor e Vigência


Do Artigo 348.º também resulta que o tribunal não está limitado a determinados meios, pelo
que pode o juiz utilizar qualquer meio para obter o conhecimento do direito estrangeiro.

Os meios podem ser:

i) oficiais – dentro desses é de sublinhar as convenções internacionais63;

ii) não oficiais64 – não existindo um meio oficial, os tribunais podem:

a) solicitação de informação ao Ministério da Justiça, consulado, embaixadas


de Portugal no Estrangeiro; e,

b) consulta de textos jurisprudenciais e doutrina dos referidos países;

2.8.3.2.1 Convenção de Londrês


As Partes Contratantes comprometem-se a comunicar mutuamente, segundo as disposições
da presente Convenção, informações respeitantes ao seu direito no âmbito Civil e comercial,

62
Se a aplicação do direito estrangeiro estiver na disponibilidade das partes, então mesmo que
as partes escolheram o direito aplicável, essa escolha só seria eficaz se as partes alegarem o
direito estrangeiro.
63
Sendo de realçar a Convenção Europeia no Campo da Informação sobre o Direito Estrangeiro
e a Convenção sobre Informação em Matéria Jurídica com respeito ao Direito Vigente e sua
Aplicação, respetivamente Convenção de Londrês e Convenção de Brasília.
64
Alguns Estados, como é o caso da Alemanha, os tribunais podem socorrer-se a institutos de
Direito Comparado.
55
2.8.3.2.2 Redes Judiciárias

bem como no âmbito do processo Civil e comercial e no da organização judiciária, nos termos
do Artigo 1.º/1 dessa Convenção.

Os pedidos são dirigidos a um órgão de recessão, isso é, não são feitos tribunal a tribunal, mas
antes do tribunal que precisa de informação ao órgão de recessão do Estado que deve prestar
a informação, nos termos do Artigo 5.º.

Pode suceder que, invés do órgão de aplicação do direto que carece de informação fazer o
pedido ao órgão de recessão, pode antes fazer o pedido ao à autoridade central do seu Estado
para que essa peça a informação, nos termos do Artigo 3.º/1 e 2.

Em Portugal, funciona como órgão de recessão e autoridade central o Gabinete de


documentação e direito comparado da procuradoria geral da república.

A resposta aos pedidos de informação é obrigatória, devendo os Estados prestar a informação


requerida, nos termos do Artigo 10.º, não podendo exigir do Estado requerente qualquer tipo
de taxa ou prestação pecuniária, conforme o Artigo 15.º. Sendo que a informação prestada
deve ser objetiva, imparcial, neutra e incluir textos legislativos e jurisprudenciais, conforme o
Artigo 7.º: isto é, não se quer que a autoridade do estado que presta a informação decida o
caso concreto, mas antes que preste informação suficiente para o Estado do foro poder aplicar
o Direito.

Esse pedido de informação permite que o Tribunal do Estado do Foro aplique o direito
estrangeiro, ultrapassando o problema da falta de conhecimento do direito estrangeiro e
reduzindo o risco da sua aplicação errónea.

2.8.3.2.2 Redes Judiciárias


A União Europeia criou a chamada Rede Judiciária Europeia em Matéria Civil e Comercial, a
qual permite que os tribunais dos Estados-membros obtenham facilmente informações sobre
o direito material aplicável dos outros Estados-membros.

Portugal é ainda parte na Rede Judiciária Dos Países de Língua Oficial Portuguesa e Rede
Judiciária Ibero-americana.

2.8.3.3 Impossibilidade de Determinar o Conteúdo e Teor do Direito Estrangeiro


Não sendo possível determinar o teor do Direito Estrangeiro, o tribunal, em abstrato, poderia:

i) julgar improcedente a ação do autor;

ii) determinar o conteúdo do direito estrangeiro recorrendo a presunções;

iii) aplicar o direito subsidiariamente competente;

iv) aplicar o direito material do foro.

A primeira solução está, hoje, abandonada, tal seria uma solução injusta, até partindo do
princípio que o direito é de conhecimento oficioso, isto é, trata-se de uma solução que só faria
sentido se o Direito Estrangeiro assumisse o estatuto de mero facto.

A doutrina portuguesa defende que as restantes soluções resultam dos Artigos 23.º/2 e 348.º
CC.

56
2.8.4 Aplicação, Interpretação e Integração do Direito Estrangeiro

Quanto à segunda, o facto que o Artigo 348.º determina que o tribunal pode recorrer de
qualquer meio para determinar o conteúdo, então o tribunal pode recorrer a presunções para
provar o conteúdo do direito material estrangeiro. A doutrina considera aceitável o recurso
aos princípios gerais.

É discutido, no entanto, a utilização de presunções através do recurso do direito material de


um terceiro país65, na medida em que a solução acarreta um elevado risco de erro na aplicação
do direito estrangeiro, porém, essa é tida como admissível porque, dentro dos conflitos
valorativos, é melhor a aplicação de um direito que se sabe que se aproxima do direito
aplicável do que a aplicação do direito do foro.

A doutrina é unanime quando considera que o julgador deve usar da máxima prudência na
utilização dessas presunções66.

Quanto à terceira, essa encontra-se consagrada no Artigo 23.º/2, o qual manda aplicar o
elemento de conexão subsidiário.

Se ainda assim não for possível determinar o conteúdo o tribunal recorrerá às regras do direito
comum português, nos termos do Artigo 348.º/3.

2.8.4 Aplicação, Interpretação e Integração do Direito Estrangeiro


2.8.4.1 Aplicação do Direito Estrangeiro
Os tribunais portugueses devem aplicar o direito efetivamente vigente naquele território
daquele Estado Estrangeiro, esse princípio encontra vários corolários:

i) é possível aplicar o direito de um Estado que o Estado português não reconhece;

ii) é possível aplicar o direito de uma potência ocupante de um determinado país,


desde que esse efetivamente se aplique nesse local67;

iii) aplicar o direito de um governo revolucionário, mesmo que esse governo não seja
reconhecido pelo Estado do foro.

Naturalmente que a aplicação desse direito material estrangeiro tem como limite a ordem
pública internacional portuguesa.

Se o direito vigente for um direito costumeiro, então o tribunal do foro tem de aplicar as
regras relevantes.

2.8.4.2 Interpretação do Direito Estrangeiro


Relativamente à questão da interpretação do Direito Estrangeiro, surge o problema que
existem vários Estados que tiveram influência no Direito de Países que agora são Estados

65
Não se conhece o Direito Australiano, mas sabe-se que é da família da commun law, então
recorria-se às soluções previstas no Direito Inglês, partindo do pressuposto que tais soluções
seriam próximas àquelas consagradas no Direito Australiano.
66
Hoje em dia, a disponibilidade de informação é tanta que não faz sentido recorrer a
presunções relativas a direitos de Terceiros Estados.
67
Exemplo, no momento da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia, uma situação jurídica
internacional, a qual é aplicável o Direito Vigente em Timor-Leste, deve ser regulada pelo
Direito da Indonésia.
57
2.8.5 Admissibilidade do Controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da Aplicação do Direito
Estrangeiro feita pelas Instâncias Inferiores

Soberanos, porém quando é aplicável o Direito de um desses países é esse o Direito aplicável e
não do Estado que exerceu a sua influência68.

Para determinar o sentido do Direito Estrangeiro vigoram dois princípios fundamentais, nos
termos do Artigo 23.º/1:

i) o direito material estrangeiro é interpretado de acordo com as regras de


interpretação e integração que vigoram nesse ordenamento jurídico69;

ii) deve-se interpretar e aplicar o direito estrangeiro em conformidade com a doutrina


e jurisprudência dominantes nesse ordenamento jurídico – em face da limitação de
conhecimentos do juiz do Estado do Foro é mais seguro para garantir a harmonia internacional
de julgados, a aplicação da doutrina e jurisprudência dominantes70.

2.8.5 Admissibilidade do Controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da Aplicação do Direito


Estrangeiro feita pelas Instâncias Inferiores
A questão é relevante para tentar determinar qual o estatuto do Direito Estrangeiro: o
Supremo Tribunal de Justiça não se pronuncia sobre questões de facto, pelo que se o Direito
Estrangeiro tiver estatuto de facto, esse não se poderá pronunciar. Mas se tiver estatuto de
Direito, então o Supremo Tribunal de Justiça já se poderá pronunciar.

Para resolver essa questão são relevantes os Artigos 671.º/1 e 674.º/1 e 2 CPC. Do Artigo
671.º/1 resulta que cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação,
proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo
ao processo, sendo que a revista pode ter como fundamento, conforme o Artigo 674.º/1, a), a
violação de lei substantiva. Sendo que se considera lei substantiva a violação de direito
material estrangeiro, conforme o n.º 2 do Artigo 674.º CPC.

Assim, a violação de direito material estrangeiro consubstancia fundamento de recurso de


revista, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça pode controlar a errada aplicação do direito
material estrangeiro pelas instâncias inferiores.

A única aparente exclusão é o direito material estrangeiro costumeiro, com exceção do


costume jurisprudencial, na medida em que o direito costumeiro não é emanado por um órgão
de soberania. Dário Moura Vicente entende que essa solução justifica-se devido às
dificuldades em fixar o conteúdo do direito estrangeiro costumeiro, pelo que haveria elevada
possibilidade de erro judicial nessa aplicação.

Em Portugal, o Direito Estrangeiro tem o estatuto de verdadeiro direito.

Pode questionar-se se o precedente judicial deve ser considerado como regra emanada de
órgão de soberania: ainda que se trate de uma decisão de um caso concreto, a verdade é que
se trata da ratio decidendi de um caso, pelo que reveste generalidade suficiente para ser

68
Assim, uma situação jurídica internacional a qual é aplicável o Código Civil Angolano, os
tribunais portugueses não podem aplicar o Código Civil Português, apesar da sua semelhança,
devendo antes aplicar o Código Civil Angolano como ele é efetivamente aplicado em Angola.
69
Trata-se de um corolário do princípio da harmonia internacional de julgados.
70
Nada obsta, no entanto, que o juiz se afaste da posição maioritária.
58
2.9 Ordem Pública Internacional

considerado para poder ser considerado norma jurídica para o efeito do recurso de revista
para o Supremo Tribunal de Justiça.

O facto que o Direito Material Estrangeiro reveste o estatuto de verdadeiro direito não
significa que tenha um estatuto idêntico do Direito Nacional:

i) o tribunal do foro deve seguir a doutrina e jurisprudência dominante, coisa que não
acontece para o Direito Nacional;

ii) há um dever de cooperação do conteúdo do direito material estrangeiro, algo que


também não existe, aquando da aplicação do direito nacional;

iii) o Supremo Tribunal de Justiça não pode produzir jurisprudência uniforme no que se
toca a aplicação de direito estrangeiro.

2.9 Ordem Pública Internacional


A Ordem Pública Internacional é um limite de aplicação da lei, em princípio competente de
acordo com as regras de conflitos, mas também é um limite ao reconhecimento de sentenças
estrangeiras ou da transcrição de atos notariais elaborados no estrangeiro, esse opera sempre
que seja da aplicação da lei estrangeira, do reconhecimento de sentença estrangeira ou da
transcrição de um ato notarial estrangeiro decorra uma situação que seja ostensivamente
contrária aos princípios jurídicos fundamentais do Direito Português.

Exemplos:

Cidadão marroquino, casado, pretende casar de novo em Portugal

A lei da nacionalidade permite o casamento nessas circunstâncias, sendo essa aplicável por via
dos Artigos 49.º e 31.º/1 CC. Questiona-se se pode o conservador celebrar esse casamento,
considerando que esse contraria ostensivamente as noções fundamentais do ordenamento
jurídico português.

Cidadão do Reino Unido, faleceu em Portugal

A lei inglesa escolhida nos termos do regulamento n.º 650/2012 considera válido o testamento
feito em que o cidadão privava os filhos, de nacionalidade portuguesa, da sua parte da
herança.

Inglês que adquire a um português um imóvel sito em português, sendo que ao abrigo do
Artigo 3.º do Regulamento Roma I as partes sujeitam o negócio ao direito inglês.

Esse imóvel estava arrendado a um terceiro, sendo que o vendedor tinha alterado esse
contrato estabelecendo que o arrendatário podia fazer quaisquer obras e podia utilizá-lo para
qualquer fim.

O comprador só descobriu essa alteração depois da celebração do negócio, sendo que essa
alteração desvalorizou o imóvel.

Questiona-se se o negócio pode ser impugnado por omissão desses deveres de informações e
o vendedor responsabilizado considerando que o Direito Inglês não prevê a figura da
responsabilidade civil pré-contratual.

59
2.9.1 Figuras Afins

Nasce nos Estados Unidos da América uma criança filha de uma gestante de substituição, cujo
material genético tinha sido fornecido por dois portugueses. A criança foi registada nos Estados
Unidos da América como filha dos dois portugueses.

Questiona-se se pode o ato notarial ser transcrito para a ordem jurídica portuguesa.

Em todos esses casos verifica-se uma situação que é contraria aos vetores do sistema, e
pergunta-se se se deve, mesmo assim, aplicar a lei estrangeira.

2.9.1 Figuras Afins


2.9.1.1 Fraude a Lei
A fraude a lei permite afastar a lei competente, porém, o fundamento é diverso daquele que
se verifica na Reserva de Ordem Pública Internacional. É com base nos princípios estruturantes
da ordem jurídica portuguesa que se recusa a aplicação da lei estrangeira na Reserva de
Ordem Pública Internacional, enquanto na fraude a lei a recusa da aplicação resulta da
manipulação fraudulenta do elemento de conexão para aplicar determinada lei.

O momento em que essas podem ser chamadas a intervir no processo decisório é diferente: a
fraude a lei intervém no momento anterior à Reserva de Ordem Pública Internacional, ainda se
está a aferir qual a lei aplicável, enquanto a ordem pública é uma apreciação da aplicação da
lei estrangeira.

2.9.1.2 Clausulas de Exceção


As clausulas de exceção também permitem o afastamento de uma lei estrangeira, porém com
fundamentos diferentes. Nas cláusulas de exceção o que se visa é aplicar a lei com uma
conexão mais estreita afastando assim a lei em princípio competente, na ordem pública
internacional o afastamento da lei estrangeira fundamenta-se na circunstância de essa lei
conduzir a um resultado que se considera intolerável em face do sentimento ético-jurídico
interno.

2.9.1.3 Normas Internacionalmente Imperativas


As Normas Internacionalmente Imperativas são normas imperativas que se querem aplicar a
situações jurídicas internacionais em função das finalidades que prosseguem, mesmo que não
pertençam a lex causae71. Na Reserva de Ordem Pública Internacional não se está a procurar
assegurar a aplicação de certas normas, antes, visa-se sim, afastar a aplicação de determinada
lei estrangeira.

Essas figuras também intervêm em momentos diferentes do processo decisório, a Reserva de


Ordem Pública Internacional só se aplica no momento final, aquando da aplicação da lei
estrangeira, ao ponto que as próprias Normas Internacionalmente Imperativas podem ser
afastadas pela Reserva de Ordem Pública Internacional.

2.9.1.4 Reserva de Ordem Pública Interna


A Ordem Pública Interna é o conjunto de normas jurídicas imperativas, enquanto a ordem
pública internacional apenas visa defender os princípios fundamentais do Estado do Foro: a
ordem pública internacional distingue-se da Ordem Pública Interna em razão:

i) do seu conteúdo – a Reserva de Ordem Pública Internacional apenas abrange os


princípios fundamentais;

71
Por exemplo, normas que consideram que um certo contrato é ilícito.
60
2.9.2 Caraterização

ii) da sua função – a Reserva de Ordem Pública Internacional pretende salvaguardar os


valores fundamentais da ordem jurídica do Estado do Foro.

2.9.2 Caraterização
A ordem pública internacional é um conceito indeterminado, pelo que deve o julgador
proceder a sua densificação casuisticamente: esse conceito deve-se definir em razão da sua
função, trata-se, assim, de um conceito funcional. A função da Reserva de Ordem Pública
Internacional é a salvaguarda dos princípios jurídicos fundamentais ou das conceções ético
jurídicas dominantes no Estado do Foro.

Há 3 caraterísticas fundamentais:

i) carater excecional da reserva de ordem pública internacional – é um limite a


aplicação da lei estrangeira que só deve ser operada sempre em casos limites: é uma figura
que se pode aplicar em situações extremas sempre que a lei estrangeira pôr em causa os
princípios fundamentais da ordem jurídica internacional;

ii) atualidade ou relatividade temporal – é um conceito indeterminado que se


preenche em virtude das conceções ético-jurídicas que prevalecem em cada momento em
determinada comunidade72;

iii) carater nacional ou relatividade espacial – é um conceito que varia de país para
país; são os princípios fundamentais do sistema jurídico de um determinado país; há quem
entenda que existe uma ordem pública supra ou transnacional ou até europeia, mas Dário
Moura Vicente entende que é difícil estendê-los a todo o mundo, na medida em que o direito
em virtude da sua dimensão cultural, varia de comunidade para comunidade: é difícil
encontrar-se princípios universais, isto é princípios comuns a todas as ordens jurídicas (ex.
princípio da igualdade ou princípio da boa-fé).

2.9.3 Pressupostos
Para que a ordem pública internacional opere é necessário verificar-se duas situações:

i) conexão interna – isto é a situação internacional a regular tem de ter uma conexão
suficiente com a ordem jurídica portuguesa, ou seja, a situação em causa deve ter contactos
com a ordem jurídica portuguesa; não havendo pontos de contacto não há razão para intervir
a ordem pública internacional;

ii) juízo de incompatibilidade – não se vai aferir a conformidade das regras com a
ordem pública internacional portuguesa, mas antes o juízo de conformidade opera em relação
à situação jurídica que deriva da aplicação dessas regras estrangeiras.

Pode se reconhecer certos efeitos a institutos contrários à ordem pública internacional


portuguesa, porque a situação jurídica em causa, derivada da aplicação dessa lei estrangeira,
não se afigura incompatível com a ordem pública internacional73.

72
Por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo era tido como CC 1966 como inexistente,
hoje é permitido; hoje não se pode recusar o reconhecimento desses casamentos celebrados em
conformidade com uma lei estrangeira local.
73
Por exemplo, nos Direitos Islâmicos é permitido o Divórcio através da repetição da palavra talâq
3 )‫ (طالق‬vezes pelo Marido: essa figura naturalmente que não é admissível na ordem jurídica
61
2.9.4 Efeitos

2.9.4 Efeitos
Existem dois efeitos:

i) efeito primário – afastamento das regras da lei estrangeira designada competente


por ser incompatível com a ordem jurídica internacional portuguesa;

ii) efeito secundário – ocorre nos casos em que a intervenção da ordem pública
internacional resulta numa lacuna; é necessário encontrar normas que substituam aquelas que
foram afastadas, essas podem ser encontradas:

a) na lei estrangeira; ou, não sendo possível,

b) na lei material do Estado do Foro.

2.9.5 Regime Vigente em Portugal


A reserva de ordem pública encontra-se consagrada em diferentes instrumentos vigentes na
ordem jurídica portuguesa74. Nos termos do Artigo 22.º/1, não são aplicáveis os preceitos da
lei estrangeira indicados pela norma de conflitos, quando essa aplicação envolva ofensa dos
princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado português, sendo que o n.º
2 determina que são aplicáveis, neste caso, as normas mais apropriadas da legislação
estrangeira competente ou, subsidiariamente, as regras do direito interno português.

Nos termos desse n.º 1 resulta o afastamento da lei estrangeira sempre que a sua aplicação
envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado
português. Já o n.º 2 estabelece a solução para resolver a lacuna de regulação resultante do
afastamento das normas estrangeiras aplicáveis, devendo-se tentar integrar essa lacuna:

i) com recurso a outras normas da legislação estrangeira competente; e, só


subsidiariamente,

ii) as regras do direito material português.

Nos Regulamentos Europeus consagra-se a necessidade de manifesta incompatibilidade com a


ordem pública do Estado do Foro. Através do adverbio “manifestamente” está-se a procurar
consagrar a excecionalidade da figura da reserva de ordem pública internacional.

Na opinião de Dário Moura Vicente não há diferença entre os regimes do CC e dos


Regulamentos Europeus, na medida em que a manifesta incompatibilidade já resulta do
carater excecional da figura.

portuguesa, mas se uma mulher que tiver sido repudiada no estrangeiro através do talâq quiser casar
novamente em Portugal, deve-se reconhecer eficácia a esse divórcio.
74
Como limite à aplicação da lei estrangeira consta do Artigo 22.º CC, do Artigo 21.º do Regulamento
Roma I, do Artigo 26.º do Regulamento Roma II, do Artigo 12.º do Regulamento n.º 1259/2010, do
Artigo 35.º Regulamento n.º 650/2012, do Artigo 31.º Regulamento 2016/1103 e do Artigo 31.º
Regulamento 2016/1104.
Como limite ao reconhecimento de atos notariais consta do Artigo 6.º do Código do Registo Civil.
Como limite ao reconhecimento de sentenças, judiciais ou arbitrais, estrangeira consta dos
Regulamentos de Bruxelas I e II, do Artigo 5.º/2, b) da Convenção de Nova Ioque e do Artigo 54.º e
56.º/1, b) da Lei da Arbitragem Obrigatória.
62
2.9.6 Evolução Contemporânea

2.9.6 Evolução Contemporânea


O fenómeno da globalização e da integração de comunidades estrangeiras levou a que
houvesse um aumento das situações em que os tribunais são chamados a aplicar,
designadamente em matéria familiar e sucessória, leis estrangeiras diferentes da do Estado do
Foro em virtude da designação das regras de conflitos75. A recusa de produção de efeitos a
certas situações, poderia prejudicar a parte mais fraca.

Assim, verificou-se um fenómeno de redução progressiva da aplicação da reserva da ordem


pública internacional em virtude dos fenómenos da globalização e da integração de
comunidades estrangeiras.

A evolução dos costumes dita essa mesma redução progressiva, sendo exemplo disso o
casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A necessidade de acautelar os direitos humanos em situações com carater internacional pode


justificar restrições à reserva de ordem pública internacional, sendo exemplo disso o
reconhecimento de efeitos a uma maternidade de substituição validamente constituída em
outro país.

A rejeição da aplicação de leis estrangeiras ou o reconhecimento de situações jurídicas


estrangeiras conhece limitações em virtude da realidade atual. A ordem pública internacional
é, hoje, de última ratio, só podendo operar quando outros interesses superiores não se
oponham.

3. Estatuto Pessoal
3.1 Estatuto Pessoal das Pessoas Singulares
Esta matéria objeto dos Artigos 25.º e ss. do CC, pelo que cumpre apreciar qual o regime que
se encontra aí consagrado e quais as validações subjacentes a essas regras.

Do Artigo 25.º CC resulta que o Direito Internacional Privado português submete um conjunto
de matérias a uma única lei, a lei pessoal: essas matérias são o estado das pessoas, a
capacidade, e a sucessão por morte, bem como outras não aí elencadas os direitos de
personalidade, a tutela da menoridade, etc.

Há uma preocupação do legislador português de submeter a uma única lei todos esses aspetos
atinentes a vida das pessoas singulares ou coletivas. Porquê que as pessoas não estão sujeitas
à lei territorial, ou seja, porquê que não se lhes aplica a lei do território onde se encontra; tal
seria a alternativa à lei pessoal.

A opção do legislador é a da lei pessoal, isso deve-se como forma de assegurar que as pessoas
estão sujeitas sempre a uma única lei, com um intuito de fomentar a segurança jurídica76. Esta
preocupação de conferir uma lei pessoal está ligada ao princípio da tutela da dignidade da
pessoa humana. Assim, o Artigo 25.º na sua aparente inocuidade é uma expressão de uma
conceção personalista do direito.

75
Tem-se colocado essa questão relativamente aos casamentos poligâmicos: questiona-se se se deve
reconhecer todos os cônjuges como tal e atribui-lhes direitos sucessórios no caso do falecimento de um
deles.
76
Uma pessoa que é capaz segundo a sua lei pessoal, sê-lo a onde quer que se encontre, da mesma
forma uma pessoa que seja casada, também o será onde quer que se encontre ou uma pessoa que é
tida como filha de alguém, será filha dessa pessoa independente do lugar onde se encontra.
63
3.1.1 Determinação da Lei Pessoal

3.1.1 Determinação da Lei Pessoal


Aqui não há unanimidade entre os vários sistemas de direito internacional privado. Há
sistemas que consideram que a lei pessoal é a lei da nacionalidade, enquanto outros optam
pela lei do domicílio ou da residência habitual.

Porquê a diversidade dessas orientações:

i) de um lado, temos os países essencialmente de emigração, como é o caso de


Portugal e outros países europeus, os quais optam pela aplicação da lei da nacionalidade como
forma de garantir que os emigrantes mantêm uma relação jurídica com o país originário77;

ii) de um outro lado, temos os países essencialmente de imigração, os quais optam


pela aplicação da lei da residência habitual ou domicílio, como forma de garantir e facilitar o
trabalho dos tribunais, assim todos os cidadãos residentes desses Estados, nacionais ou não,
estão submetidos à sua lei.

Portugal optou por considerar que é lei pessoal a lei da nacionalidade, nos termos do Artigo
31.º/1. A opção por essa regra explica-se em virtude da realidade política dos anos 60s, porém
essa realidade hoje mudou um pouco: isso explica o porque dos regulamentos da União
Europeia em matéria de Direito Internacional Privado se adote como lei aplicável
subsidiariamente a lei da residência habitual. É de referir, porém, que os regulamentos ainda
não abrangem toda a matéria do Estatuto Pessoal das Pessoas Singulares.

No Artigo 32.º existem regras que atribui a relevância a lei da residência habitual quando se
está perante um apátrida, ou seja, uma pessoa que não tem nacionalidade. E o mesmo se
pode dizer em relação aos refugiados, nos termos da Convenção de Genebra de 1951.

A lei pessoal não é uma lei única, podem ser várias leis. Em virtude de várias regras que
incluem divergências, podendo inclusive a lei pessoal ser o local da celebração do ato. A lei
pessoal não é, assim, um elemento de conexão, antes é um conjunto ou freixo de conexões.

3.1.1.1 Início e Termo da Personalidade


O Artigo 26.º do CC estabelece regras sobre o início e termo da personalidade jurídica,
submetendo as à lei pessoal, isso deve-se ao facto que nem todos os países determinam o
começo da personalidade da mesma forma, bem como existem divergência quanto à
cessação78.

3.1.1.2 Direitos de Personalidade


O Artigo 27.º CC regula os direitos de personalidade, sujeitando os à lei pessoal, com a
particularidade que o n.º 2 estabelece que o estrangeiro ou apátrida não goza, porém, de
qualquer forma de tutela jurídica que não seja reconhecida na lei portuguesa – trata-se de
uma conexão plural cumulativa, isto é, para que a lei pessoal seja aplicável tem de estar
estabelecido pela lei portuguesa o igual meio de tutela.

77
O autor que se notabilizou por afirmar esse princípio da nacionalidade foi um professor e político
italiano do Século XIX. Esse princípio teve consagração em várias convenções da Haia sobre Direito
Internacional Privado.
78
Sobretudo em casos de comoriência.
64
3.1.1.3 Dados Pessoais

3.1.1.3 Dados Pessoais


Em matéria de dados pessoais, o Artigo 3.º RGPD o regulamento, em princípio, aplica-se ao
tratamento de dados pessoais efetuado no contexto das atividades de um estabelecimento de
um responsável pelo tratamento ou de um subcontratante situado no território da União,
independentemente de o tratamento ocorrer dentro ou fora da União.

Em muitas situações de tratamentos de dados são feitas por empresas estabelecidas fora da
União Europeia, daí que o Artigo 3.º/2 determine que se o tratamento for efetuado por um
responsável pelo tratamento ou subcontratante não estabelecido na União, aplica-se ao
tratamento de dados pessoais de titulares residentes no território da União, quando as
atividades de tratamento estejam relacionadas com:

i) oferta de bens ou serviços;

ii) controlo do seu comportamento.

O princípio do local do mercado – quem se dirige ao mercado europeu, tem de se subordinar


ao Direito da União Europeia.

3.1.1.4 Capacidade
Em princípio a capacidade é regulada pela lei pessoal, tal resulta do Artigo 25.º CC. Porém,
mesmo assim, a lei para certas matérias reitera essa solução em regras especiais79, bem como
existem uma série de desvios e exceções a essa regra geral de aplicação da lei da
nacionalidade:

i) Artigo 28.º CC e Artigo 13.º Regulamento Roma I;

ii) Artigo 31.º/2 CC;

iii) Artigo 47.º CC.

3.1.1.4.1 Artigo 28.º CC e Artigo 13.º Regulamento Roma I


O n.º 1 determina que o negócio jurídico celebrado em Portugal por pessoa que seja incapaz
segundo a lei pessoal competente não pode ser anulado com fundamento na incapacidade no
caso de a lei interna portuguesa, se fosse aplicável, considerar essa pessoa como capaz,
exceto, conforme estabeleço o n.º 2, quando a outra parte tinha conhecimento da
incapacidade, ou quando o negócio jurídico for unilateral, pertencer ao domínio do direito da
família ou das sucessões ou respeitar à disposição de imóveis situados no estrangeiro.

O Regulamento Roma I determina uma regra semelhante no Artigo 13.º ao estabelecer que
num contrato celebrado entre pessoas que se encontram no mesmo país, uma pessoa singular
considerada capaz segundo a lei desse país só pode invocar a sua incapacidade que resulte da
lei de outro país se, no momento da celebração do contrato, o outro contraente tinha
conhecimento dessa incapacidade ou a desconhecia por negligência.

Está em causa situações em que alguém é incapaz segundo a sua lei pessoal, mas capaz
segundo a lei do local onde se encontra, celebrando nesse local um negócio: questiona-se se
esse individuo pode invocar a sua incapacidade.

79
Por exemplo, o Artigo 49.º CC.
65
3.1.1.4.2 Artigo 31.º/2 CC

Essa problemática foi discutida pela Cassação Francesa, no século XIX, o chamado Caso Bizati,
onde um cidadão mexicano tinha 21 anos, mas a lei mexicana ao tempo só atribuía capacidade
aos maiores de 22 anos, tendo esse cidadão adquirido joias de elevado valor, arrependendo-
se, invocando a sua menoridade para invalidar o negócio. É evidente que a aqui há um abuso,
uma pessoa criou a aparência que o negócio seria válido e depois de ser celebrado invoca a
sua incapacidade, está em causa o princípio da tutela da confiança.

Nesses casos estabelece-se um desvio a lei da nacionalidade aplicando-se a lei do local da


celebração do negócio.

O Artigo 13.º Regulamento Roma I e o Artigo 28.º CC estabelecem uma regra que permite,
assim, afastar esse abuso. O Artigo 28.º tem um campo de aplicação limitado, na medida em
que a maior parte dos negócios estão abrangidos pelo Artigo 13.º.

3.1.1.4.2 Artigo 31.º/2 CC


O Artigo 31.º/2 foi intitulada a “norma mais revolucionária do Código Civil”, isso deve-se ao
facto que o Artigo 31.º/1 remete para a lei da nacionalidade, porém existe uma massa enorme
de emigrantes no estrangeiro, os quais celebram o negócio de acordo com a lei local e quando
regressam a Portugal tem a expectativa que esse negócio seja aqui eficaz. O legislador atendeu
no n.º 2 a essa expectativa ao estabelecer que são reconhecidos em Portugal os negócios
jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei
desse país, desde que esta se considere competente.

3.1.1.4.2.1 Pressupostos
Para ser aplicável o Artigo 31.º/2 CC estabelece os seguintes pressupostos:

i) o negócio tem de ser celebrado num outro país – não tem de ser o país da residência
habitual, basta que o negócio seja válido; só vale em negócio celebrados no estrangeiro, ainda
que Dário Moura Vicente defenda de iure condendo que aos negócios celebrados por
estrangeiros em Portugal deveria se aplicar a lei da residência habitual;

ii) o negócio tem de ser celebrado de acordo com a lei da residência habitual ou com
uma outra que a lei da residência habitual considere competente;

iii) a lei da residência habitual seja competente – é necessário que as regras de


conflitos da lei da residência habitual considerem-se competente, direta ou indiretamente80.

3.1.1.4.3 Artigo 47.º CC


Nos termos do Artigo 47.º, é igualmente definida pela lei da situação da coisa a capacidade
para constituir direitos sobre coisas imóveis ou para dispor deles, desde que essa lei assim o
determine; de contrário, é aplicável a lei pessoal.

A razão deve-se ao facto que a decisão proferida em Portugal deve ser executada no País onde
está sito o imóvel, caso não seja acatada voluntariamente, não se aplicando a lei que se
considera competente, então é possível que essa decisão não seja reconhecida, pelo que em
nome da efetividade das decisões que se manda aplicar a lex rae sitae.

80
Exemplo a lei da residência habitual considera competente uma terceira legislação que por sua vez
devolve a questão à lei da residência habitual: aqui a lei da residência habitual considera-se
competente.
66
3.2 Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas

Se é essa a ratio então é necessário admitir uma restrição ou limitação ao seu campo de
aplicação: todos os casos em que a lex rae sitae não estabelece como requisito ou condição de
reconhecimento de sentença a aplicação dessa lex rae sitae.

Como hoje são muito raras as situações em que o reconhecimento de sentenças estrangeiras
está dependente da aplicação ao mérito da causa a lei competente de acordo com as regras de
conflitos do Estado do foro, então esse Artigo tem um âmbito de aplicação muito restrito.

3.2 Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas


Com o estatuto pessoal das pessoas coletivas visa-se saber qual a lei que regula a constituição,
a vida e a extinção das pessoas coletivas.

3.2.1 Interesses em Jogo


É possível identificar 5 ordens de interesses relevantes:

i) interesse da própria pessoa coletiva – os sócios-fundadores de uma pessoa coletiva


têm um interesse próprio em regular a pessoa coletiva, qual o seu objeto, como a organizar,
etc.; para esse efeito, a melhor solução é permitir a escolha da lei reguladora da pessoa
coletiva;

ii) interesse dos credores da pessoa coletiva – os credores da pessoa coletiva têm
interesse em que a pessoa coletiva seja regulada por uma lei que esses podiam esperar, sendo
essa a lei, normalmente, onde a empresa exerce a sua atividade e, onde, porventura, contraiu
as suas dívidas;

iii) interesse do Estado – também ao Estado interessa controlar e regular o exercício


das pessoas coletivas no seu território, interessa que estejam pelo menos subordinadas as
normas imperativas do Estado onde operam;

iv) interesse dos trabalhadores – os trabalhadores da pessoa coletiva têm o interesse


que a sua atividade seja regulada pela lei do local onde se presta a atividade a favor da pessoa
coletiva (a chamada lex loci laboris), de forma a puderem prever a regulamentação da relação
jurídica;

v) interesses ligados à integração europeia – o mercado interno pressupõe a liberdade


de estabelecimento, pelo que importa que as sociedades que estejam constituídas de acordo
com a lei de um Estado-membro possam, livremente, estabelecer-se num outro Estado-
membro, independentemente da lei que lhe for aplicável.

Facilmente se depreende que esses interesses não apontam para uma única lei.

3.2.2 Determinação da Lei Aplicável


Numa perspetiva comparada a regulação das pessoas coletivas é feita de 3 formas:

i) teoria da incorporação ou incorporation theory;

ii) aplicação da lei da sede estatutária;

iii) aplicação da lei da sede real ou sede da principal e efetiva administração.

67
3.2.2.1 Teoria da Incorporação

3.2.2.1 Teoria da Incorporação


Uma pessoa coletiva é regulada pela lei do Estado de acordo com a qual ela foi
incorporada/constituída. Essa solução tem acolhimento nos sistemas de Common Law e nos
sistemas da Holanda e da Suíça. Essa solução defende o primeiro interesse; é uma solução que
é muito propicia a criação de multinacionais.

Sem prejuízo, essa solução pode levar a aplicação de uma lei com a qual a pessoa coletiva não
tem ligação efetiva: exemplo, constituição de uma sociedade num paraíso fiscal ou numa off-
shore, abaixo custo de acordo com o Direito local, enquanto a sociedade exerce a atividade
noutro sítio.

Tal prejudica os interesses dos credores das pessoas coletivas e do próprio Estado onde a
pessoa coletiva exerce o seu território. Daí que a solução tenha pouco acolhimento nos países
que adotem uma perspetiva mais intervencionista nessa matéria

3.2.2.2 Aplicação da Lei da Sede Estatutária


Aplica-se a lei do Estado onde se situa a sede estatutária. É a solução que se encontra
consagrada no Direito Francês e no Direito Espanhol.

Essa solução tem uma dupla vantagem:

i) os fundadores podem exercer a sua liberdade;

ii) quem contrata com a pessoa coletiva pode conhecer qual a lei da pessoa coletiva.

Garante-se, assim, os interesses dos fundadores e dos credores.

Porém, a sede estatutária pode não coincidir com a sede real, isso é, pode a pessoa coletiva
não desenvolver qualquer atividade no Estado onde tem sede estatutária. Trata-se de uma
solução que favorece à fraude a lei, daí que alguns Estados onde se consagra essa solução,
estabeleçam algumas limitações81.

3.2.2.3 Aplicação da Lei da Sede Real


Trata-se da solução adotada pela Alemanha, Áustria, Itália e por Portugal.

Num primeiro momento, entendeu-se que a pessoa tem sede efetiva no local onde é exercida
a direção da pessoa coletiva, isso é, no local onde ela é dirigida. Essa solução é hoje
insatisfatória, em virtude do facto que as empresas podem atuar exclusivamente num Estado e
exercer as funções diretivas noutro.

Por essa razão, surge um segundo entendimento, de acordo com o qual a sede real é o local
onde as decisões fundamentais sobre a vida da empresa se traduzem em atos de gestão
corrente82.

Essa solução é aceitável do ponto de vista dos interesses dos credores, na medida em que será
à partida aplicável a lei do local onde a sociedade contraiu a sua dívida.

81
Na França, a sede estatutária só pode ser invocada por quem contacte com a sociedade e nunca pelos
seus sócios.
82
Não basta a reunião do Conselho de Administração, é necessário ver onde os atos praticados pela
administração se transformam em atos de administração corrente.
68
3.2.3 Regime Vigente em Portugal

Sem prejuízo, essa solução pode levantar algumas dificuldades: qual a lei que se aplica se a
sociedade ainda não realizou atos de gestão corrente.

Por outro lado, do ponto de vista dos interesses da integração europeia, essa solução levanta
problemas, porque a sociedade pode ter sido constituída segunda a lei de um determinado
Estado-membro e pretende exercer atividade noutro Estado, à luz dessa solução a sociedade
ficava sujeita à lei do segundo Estado, ou seja, traduz-se numa limitação das liberdades
europeias.

3.2.3 Regime Vigente em Portugal


No Artigo 33.º/1 consagra-se a teoria da sede real ao dispor que a pessoa coletiva tem como
lei pessoal a lei do Estado onde se encontra situada a sede principal e efetiva da sua
administração. Essa regra aplica-se a generalidade das pessoas coletivas, mas não as
sociedades comerciais, para essas existe uma regra especial prevista no Artigo 3.º/1 CSC.

O Artigo 3.º/1 CSC consagra também essa teoria a sede real, mas opera na sua parte final uma
limitação dessa teoria ao determinar a aplicabilidade da lei da sede estatutária se essa sede
estiver sita em Portugal e essa lei seja invocada por terceiros83.

Da letra do preceito resulta que essa confiança só é tutelável quando conduza a aplicação da
lei portuguesa: há um unilateralismo do âmbito de aplicação da lei portuguesa. Tal, no
entanto, é atentatório à filosofia do direito internacional privado português. Razão pela qual se
questiona se esse preceito pode ser bilateralizado, aplicando-se a sua solução quando a sede
estatutária se encontra noutro Estado.

Dário Moura Vicente defende que a ratio do preceito admite essa aplicação, uma vez que se
visa tutelar a aparência, independentemente se tem sede em Portugal ou noutros Estados,
mas tendo sede noutros Estados a lei desse Estado deve-se considerar competente para que
possa ser aplicável a lei estatutária estrangeira.

3.2.4 Âmbito do Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas


Tal encontra-se consagrado no Artigo 33.º/2 CC ao determinar que à lei pessoal da pessoa
coletiva compete especialmente regular: a capacidade da pessoa coletiva; a constituição,
funcionamento e competência dos seus órgãos; os modos de aquisição e perda da qualidade
de associado e os correspondentes direitos e deveres; a responsabilidade da pessoa coletiva,
bem como a dos respetivos órgãos e membros, perante terceiros; a transformação, dissolução
e extinção da pessoa coletiva.

A esses acresce a representação orgânica dos seus órgãos, nos termos do Artigo 38.º CC.

Há um paralelismo com a situação das pessoas singulares. A grande diferença é que em


relação as pessoas singulares a conexão primordial é a nacionalidade, enquanto para as
pessoas coletivas é a lei da sede da administração principal e efetiva ou sede real, e não a lei
da nacionalidade, na medida em que se está perante uma criação da ordem jurídica, e por isso
a sua ligação a um determinado país, apesar de existir, não é suficientemente intensa para se
justificar a aplicação da lei.

83
Uma sociedade, cuja sede se encontra em Portugal, mas a direção em Espanha, não pode opor à
aplicação da lei estrangeira a terceiros.
69
3.2.5 Impacto do Direito da União Europeia

3.2.5 Impacto do Direito da União Europeia


Há que ter em conta os interesses ligados à integração europeia. Não é por acaso o direito
internacional privado português é hoje constituído por regras de fontes europeia, trata-se de
uma matéria axial à constituição de uma União Europeia e de um mercado único.

A propósito da fraude a lei foi referido o Caso Centros, onde estava em jogo uma situação em
que dois dinamarqueses tinham ido constituir no Reino Unido uma sociedade, porque o Direito
Inglês é menos formalista e exige menos desembolso de capital.

A sociedade pretendia exercer a sua atividade na Dinamarca: pretendeu-se registar uma


sucursal, a qual foi recusada. A lei aplicável segundo a lei dinamarquesa era a lei
dinamarquesa, na medida em que a sede efetiva era lá. Pedido de reenvio para o TJUE: o TJUE
defendeu que primava o Direito da União Europeia, e em especial a liberdade de
estabelecimento não podia ser restringida ou limitada com base nas regras do direito
internacional privado

Do Direito da União Europeia não recorre qualquer norma de direito internacional privado
relativa ao Estatuto Pessoal das Pessoas Coletivas, apenas visa que não haja limitações ao
exercício da liberdade de estabelecimento.

Antes, se no caso concreto, o Direito Internacional Privado leve a aplicação de um Direito que
ponham em causa a liberdade de estabelecimento, então esse direito não pode ser aplicado. O
Direito da União Europeia tem uma projeção conflitual negativa sobre as regras de direito
internacional privado relativa ao Estatuto das Pessoas Coletivas.

Assim, o Artigo 3.º CSC apenas poderá conduzir a aplicação da lei da sede real e efetiva da
sociedade, na medida em que isso não prejudique o exercício da liberdade de
estabelecimento.

4. Parte Especial
4.1 Obrigações Contratuais
4.1.1 Fontes Aplicáveis
As regras de conflitos do Código Civil preveem uma regulação sobre essa matéria nos Artigos
41.º e ss., porém o campo de aplicação é hoje residual. Tal já acontece desde da entrada em
vigor da convenção de Roma sobre as obrigações contratuais, o qual foi substituído pelo
Regulamento de Roma I.

Hoje a maioria dos contratos no que toca a determinação da lei aplicável são regidos pelo
Regulamento Roma I, o qual prevalece sobre o direito interno, nos termos do Artigo 8.º/1 CRP.

4.1.2 Princípios do Regulamento Roma I


São 3:

i) Autonomia Privada;
ii) Conexão mais estreita
iii) Proteção da parte mais fraca

4.1.2.1 Autonomia Privada


Não é uma novidade, uma vez que já se encontrava consagrado no Artigo 41.º CC, mas surge
com uma amplitude maior, nos termos do Artigo 3.º/1 Regulamento Roma I. Não existe

70
4.1.2.2 Conexão Mais Estreita

qualquer limitação quanto à lei que pode ser escolhida pelas partes; a escolha não tem de
obedecer a um interesse sério das partes ou a lei ter alguma conexão com o contrato.

Há uma limitação que é importante ter presente que é aquela que consta do Artigo 3.º/3,
relativamente aos contratos meramente estrangeiros: quando todos os elementos do contrato
apontam para uma determinada lei, mas as partes escolherem uma lei estrangeira, essa
designação é valida, mas as disposições imperativas da lei

Objeto possível da escolha:

i) uma lei de um Estado

ii) Princípios Comuns

iii) Princípios de fontes não estaduais (exemplo unidroit)

DMV defende que o regulamento tomou uma posição clara: tem de ser uma lei e não os
princípios comuns ou as fontes não estaduais. No entanto, o Considerando 13 acrescenta algo
com relevância para essa aspeto o presente regulamento não impede as partes de incluírem,
por referência, no seu contrato um corpo legislativo não estatal ou uma convenção
internacional: ou seja, as partes podem, desde que conste do contrato, incorporar no contrato
as normas desses corpos normativos, o qual será aplicável na medida em que forem
compatíveis com a lei designada.

É necessário distinguir entre a referência conflitual e a referência material: a primeira é a


sujeição de um contrato a uma lei, enquanto a segunda significa a incorporação no contrato de
certas normas cuja aplicabilidade fica dependente da compatibilidade com a lei aplicável.

Razão de ser desse princípio:

Em primeiro lugar, a escolha da lei aplicável permite assegurar que as partes conhecem as
regras com as quais tem de pautar na execução do contrato: contribui para a certeza e
segurança jurídica do comércio internacional – não há nada pior para quem celebra um
contrato internacional qual a lei a aplicar, tal gera uma enorme incerteza sobre como as partes
devem agir no contrato.

Por outro lado, o reconhecimento de uma certa esfera de liberdade da definição do regime
jurídico ao abrigo do qual se processa as suas relações: abre-se um campo a liberdade
contratual.

Pode acontecer que as partes querem celebrar um contrato que é permitido e tipificado
segundo a lei de certo país e não é permitido ou não está tipificado na lei do seu país. Trata-se
assim de um corolário da constituição da económica – a liberdade económica, o qual está
subjacente à grande maioria dos países da União (ainda que com matriz diferentes).

4.1.2.2 Conexão Mais Estreita


Não havendo escolha da lei aplicável, a qual não é uma situação comum nos grandes contratos
internacionais, porém por vezes as partes podem não considerar esse problema ou não chegar
a consenso qual a lei aplicável. A orientação que prevalece no regulamento de Roma I é o
princípio da conexão mais estreita: procura-se sujeitar o contrato à lei que se encontra mais
conexa com o contrato.

71
4.1.2.3 Proteção da Parte Mais Fraca

O Regulamento Roma I consagra a regra supletiva no Artigo 4.º, adotando 3 mecanismos


diferentes.

O primeiro consiste num enunciado de certos tipos contratuais, indicando em relação aos
quais a lei aplicável. Houve a preocupação de enunciar a contratos frequentes no comercio
internacional qual a lei aplicável, a qual é uma expressão de um conexão mais estreita (trata-se
de um afloramento desse princípio).

O segundo consiste no previsto do n.º 2, o qual consagra que na ausência dos enunciados de
certos tipos de contratuais, deve-se aplicar a lei da residência do devedor da prestação
caraterística, trata-se também de uma manifestação dessa conexão mais estreita.

Esse devedor é aquele que deve prestar algo característico daquele contrato/aquela prestação
que permite distinguir de outros tipos contratuais.

Porquê dessa solução: porque é a parte mais onerada em princípio, bem como no quadro do
mercado único permite que os exportadores fiquem sujeitos à sua própria lei, reduzindo,
assim, os custos nas transações, não tendo de incorrer nos custos de averiguação da lei
vigente, diminuindo assim o preço para o consumidor final.

Essa ideia é conforme aos próprios postulados em que assenta a formação do mercado único
ou interno europeu.

Por fim, prevê-se ainda uma cláusula exceção no n.º 3 do Artigo 4.º, nos termos do qual o juiz
pode afastar a aplicação da lei aplicável por existir uma outra com uma conexão mais estreita.

As regras do Artigo 4.º são bastante diferentes das regras presentes no CC, uma vez que esse
apenas mandava aplicar a regra da celebração do negócio (trata-se de uma regra obsoleta).

4.1.2.3 Proteção da Parte Mais Fraca


Trata-se de uma expressão do Estado Social que enforma a União Europeia, a qual enforma a
União, estando consagrado nos Artigos 6.º a 8.º.

O Artigo 6.º diz respeito aos contratos de consumo: pressupõe-se que o consumidor fica numa
melhor posição se se aplicar a lei da sua residência habitual. Só se aplica esse preceito em
relação ao consumidor passivo, aquele que não saí da sua residência habitual. Se ele sair do
seu país para celebrar o contrato de consumo, então não há razão para o proteger.

A aplicação da residência habitual não obsta que as partes escolham a lei aplicável, porém essa
escolha não pode, nos termos do n.º 2, ter como consequência privar o consumidor da
proteção que lhe proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei da residência
habitual. Se as normas da lei da residência habitual forem mais favoráveis, então essas
prevalecem. Ou seja, pode inclusive resultar num contrato regido por um regime compósito
(composto por normas da lei escolhida e da lei de residência habitual).

Estando em causa Estados da União Europeia esse problema normalmente não se coloca, o
mesmo não se pode dizer quanto ao contrato de trabalho, onde as disposições diferem
bastantes: há uma diversidade significativa.

Essa matéria do Contrato de Trabalho encontra-se regulada no Artigo 8.º:

Nos termos do 8.º/1, o contrato é regulado, em princípio, pela lei designada pelas partes, mas
essa escolha não pode ter como consequência privar o consumidor da proteção que lhe
72
4.1.3 Existência e Validade do Contrato

proporcionam as disposições não derrogáveis por acordo da lei que seria aplicável a título
supletivo.

Essa lei supletiva é determinada pelos Artigo 8.º de formas diferentes.

Nos termos do n.º 2, na ausência de escolha, aplica-se a lex loci laboris (lei do local da
execução da atividade do trabalho).

Exemplo:

Greve que trabalhadores portugueses, mas designaram a lei irlandesa. A lei do país que foi
regida não se aplica se a houver normas imperativas mais favoráveis do lugar onde se presta o
trabalho. Esses trabalhadores podiam fazer greve e não era admitido a substituição.

Porquê a aplicação da lex loci laboris: várias razões:

i) a lei com a qual o trabalhador podia contar;

ii) assegurar uma certa igualdade entre as empresas que operam em determinado
mercado – igualdade de condições de concorrência.

Nos termos do n.º 4, encontra-se uma cláusula de exceção.

Exemplo

Trabalhador trabalha em Espanha, mas o contrato foi celebrado em Portugal, recebe ordens
aqui e recebe a sua remuneração aqui.

4.1.3 Existência e Validade do Contrato


Artigo 10.º

Qual a lei que regula a própria existência do contrato? Qual é a lei que regula a perfeição
negocial?

Nos termos do n.º 1 a existência e a validade substancial do contrato ou de alguma das suas
disposições são reguladas pela lei que seria aplicável, por força do presente regulamento, se o
contrato ou a disposição fossem válidos.

Ou seja, deve-se procurar qual a lei que se aplicaria ao contrato se esse fosse válido.

Porém, do n.º 2 resulta que um contraente, para demonstrar que não deu o seu acordo, pode
invocar a lei do país em que tenha a sua residência habitual, se resultar das circunstâncias que
não seria razoável determinar os efeitos do seu comportamento nos termos da lei designada
nos termos do regulamento se o contrato fosse válido.

A lei da residência habitual protege a confiança da parte relativamente à proposta.

4.1.4 Validade Formal do Contrato


Várias Conexões Alternativas, o contrato é valido quanto à forma se:

i) lei reguladora da substância;

ii) lei do local da celebração;

iii) lei do local onde se encontram as partes no caso dos contratos à distância.

73
4.2 Obrigações Não Contratuais

Os n.º 4 e 5 contem limitações:

i) isso não é aplicável, nos termos do n.º 4, aos contratos de consumo, sendo antes
aplicável a lei da residência habitual do consumidor;

ii) contratos respeitantes a direitos reais sobre imóveis estão sujeitos à lex rae sitae
desde que esses requisitos estejam previstos na lei que o regular e se esses requisitos não
forem derrogáveis.

É o que acontece em Portugal no Artigo 410.º/3: o objetivo é que o notário fiscalize se não se
está perante uma construção clandestina ou o Artigo 875.º que sujeita a escritura pública ou
documento particular autenticado a compre-e-venda de imóveis.

4.2 Obrigações Não Contratuais


4.2.1 Responsabilidade Pré-Contratual
Como é que a responsabilidade pré-contratual é disciplinada: responsabilidade civil que
decorre por danos causados por atos ou omissões que tenham tido lugar durante as
negociações e conclusão de um contrato internacional.

Exemplo: uma parte rompe as negociações quando já se está na fase de conclusão ou omite
informação essencial suscitando-se danos.

As legislações nacionais são substancialmente diferentes. Pretende-se saber como determinar


a lei aplicável.

É necessário partir do Direito Comparado segundo DMV.

Fundamentalmente existem 3 tipos de soluções quanto ao problema da ressarciabilidade dos


danos sofridos pela culpa en contrahendo:

i) a solução alemã: a responsabilidade pré-contratual é uma responsabilidade


obrigacional, porque se entende que existe uma relação jurídica pré-contratual, a relação pré
contratual é integrada não por deveres de prestação mas por deveres acessórios de conduta
(informação, lealdade e proteção). Sendo violados esses deveres acessórios, a parte
inadimplente incorre em responsabilidade contratual;

ii) a solução inglesa: a responsabilidade pré-contratual, quando existe, é uma


responsabilidade delitoal ou extracontratual: pode existir por exemplo na misrepresentation¸
onde uma parte mente ou preta informações falsas. Até haver contrato, as partes são livres de
agirem como entenderem;

iii) noutros sistemas, como é o caso do sistema italiano, suíço e português: a figura da
responsabilidade pré-contratual é uma figura híbrida situada na responsabilidade delictual e
contratual. As partes já se conhecem. Nesses sistemas o regime é compósito. O regime é
constituído por regras das duas modalidades – o Artigo 227.º prevê um prazo de prescrição da
responsabilidade extracontratual, mas segundo o STJ a culpa se presume, como acontece na
responsabilidade contratual.

Dois exemplos:

“Caso de Rompimento de Negociações: empresário inglês convida um empresário português


para ir a Londres negociar um contrato. O português tem uma série de despesas com vista a

74
4.2.1 Responsabilidade Pré-Contratual

celebração daquele contrato. Porém, no dia em que chega às instalações, o empresário inglês
disse que já tinha celebrado um contrato com um terceiro.”

Segundo o Direito Português, há responsabilidade pré-contratual, os deveres de boa-fé não


foram cumpridos, o inglês podia ter informado a contraparte. Mas no direito inglês não há
esse dever, sendo que o inglês não mentiu, não prestou qualquer informação falsa.

“Comerciante de Arte inglês que visita uma senhora idosa em Portugal que tinha um quadro
da família. O inglês adquire esse quadro por 1.000€ e revendo-o por um milhão de euros. O
inglês tinha identificado o quadro como valioso, mas não informou a senhora idosa.

Segundo o Direito português, a celebração do contrato nesses moldes será contrária à boa fé,
mas o Direito inglês, por não haver informações falsas prestadas, não há lugar a qualquer
indemnização.

Essas diferenças devem-se a vários fatores. É possível identificar dois valores fundamentais:

i) liberdade negocial ou contratual;

ii) solidariedade entre quem negoceia ou a consideração dos interesses das


contrapartes.

Há uma diferença de raiz entre os dois sistemas, nem a CV sobre a compra-e-venda de


mercadorias possui uma regra sobre esses termos.

Qual a lei aplicável naqueles exemplos?

A lei portuguesa ou a lei inglesa?

Até recentemente não havia regras de direito internacional privado: respondia-se a questão
como se trata-se de um problema de qualificação.

Como se procedia a qualificação:

i) quando se tivesse perante normas que configurassem a responsabilidade pré-


contratual como responsabilidade contratual, então a questão era reconduzível as regras de
conflitos relativas a responsabilidade contratual;

ii) quando se tivesse perante normas que configurassem a responsabilidade pré-


contratual como responsabilidade extracontratual, então a questão era reconduzível as regras
de conflitos relativas a responsabilidade extracontratual.

Com o Regulamento de Roma II alterou a solução:

O Artigo 12.º consagra uma regra sobre culpa en contrahendo.

Roma I autoexclui-se da aplicação de responsabilidade pré-contratual.

Nos termos do Artigo 12.º/1, a lei aplicável a uma obrigação extracontratual decorrente de
negociações realizadas antes da celebração de um contrato, independentemente de este ser
efetivamente celebrado, é a lei aplicável ao contrato ou que lhe seria aplicável se tivesse sido
celebrado.

Portanto, Roma II remete para a hipotética lei aplicável ao contrato.

Estabeleceu uma conexão acessória – seja um contrato celebrado ou projetado.


75
4.2.1 Responsabilidade Pré-Contratual

Pode ser a lei escolhida pelas partes – Artigo 3.º/1 RRI

Se não tiver escolhido a lei aplicável, Artigo 4.º/1 RRI, e na ausência dessas o n.º 2 – a lei do
devedor da prestação caraterística.

Se a lei aplicável à culpa encontrahendo não poder ser determinada nesses termos, então o n.º
2 manda atender:

A lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país em que tenha ocorrido o facto
que deu origem ao dano e do país ou países em que ocorram as consequências indirectas
desse facto; ou,

b)Quando as partes tiverem a sua residência habitual no mesmo país no momento em que
ocorre o facto que dá origem ao dano, a lei desse país; ou,

c)Se resultar claramente do conjunto das circunstâncias do caso que a obrigação


extracontratual, decorrente de negociações realizadas antes da celebração de um contrato,
tem uma conexão manifestamente mais estreita com um país diferente do indicado nas
alíneas a) e b), a lei desse outro país.

Solução muito próxima a do Artigo 4.º RRII. Em princípio a lei do local do dano, a lei da
residência habitual comum e no limite uma clausula de exceção.

Se o contrato não se chegou a celebrar então é assim que se vai…

Artigo 14.º RRII também se aplica em matéria de culpa en contrahendo.

Pode acontecer que os danos sofridos por uma parte sejam danos que não decorrem de
deveres de conduta ligados à relação pré-contratual. Houve um acidente numa loja (caso do
linóleo), como resolver esses casos? Nos termos do Considerando n.º 30 A expressão culpa in
contrahendo, para efeitos do presente regulamento, designa um conceito autónomo e não
deverá forçosamente ser interpretada de acordo com o direito nacional. Deverá incluir a
violação do dever de comunicar e a violação das negociações contratuais. O artigo 12.o apenas
abrange as obrigações extracontratuais que tenham uma relação direta com as negociações
realizadas antes da celebração de um contrato. Isso significa que, se uma pessoa sofrer danos
não patrimoniais enquanto um contrato é negociado, serão aplicáveis o artigo 4.o ou outras
disposições relevantes do presente regulamento.

Ou seja, se se está perante uma situação em que houve danos pessoais, situações em que na
Alemanha são consideradas culpa in contrahendo, não se aplica as regras do Artigo 12.º, mas
antes outras regras do regulamento II.

A culpa en contrahendo é apenas a violação de deveres ligados ao contrato. Nesses casos não
há razão para aplicar a lei do contrato, não há conexão funcional com o contrato.

Fora do âmbito desse Artigo 12.º deve-se considerar as obrigações voluntariamente assumidos
pelas partes, isto é, os instrumentos de contratação mitigada. Se essas opções voluntárias não
forem cumpridas, estão no âmbito do RR I e não em RR II.

Conclusão é que:

Apesar da RR I e RR II terem optado por uma determinada qualificação da culpa en


contrahendo como uma obrigação extracontratual, não deixa colocar no campo de RR II o

76
4.2.2 Enriquecimento Sem Causa

problema de qualificação: para resolver o problema de responsabilidade pré-contratual é


necessário determinar quais os deveres que foram incumpridos, e em função desses deveres
que se vai acionar o RRI ou RRII. Ou seja, não há uma única lei que se aplica à responsabilidade
contratual.

O RR II acaba por reconhecer no considerando 30 que nem tudo caí nas mesmas regras de
conflitos.

A aplicação da lei designada pelo Artigo 12.º/1 pode suscitar problemas:

Como determinar se foi escolhida a lei aplicável (Artigo 4.º/1 ex vi Artigo 12.º/1): através de
um negócio preliminar onde escolheram a lei aplicável.

Concretização 12.º/2 quanto ao dano: o dano quando é puramente patrimonial (perda


financeira), como determinar o lugar onde ocorreu esse dano. Se o dano é a perda em
dinheiro? É a lei do local onde está a conta bancária? DMV defende que o tribunal deve aplicar
nesses casos a cláusula de exceção.

Quanto as situações em que o dano seja uma lesão física, esses problemas já não terão esse
problema.

Jeito de conclusão:

Antes de 2007 não havia uma regra sobre responsabilidade extracontratual. Essa regra,
segundo DMV, representa um avanço. A orientação metodológica em que assenta o
regulamento roma II não é a mais adequada: é o próprio legislador que qualifica a obrigação
como extracontratual, a qual saí frustrada, uma vez que assenta..

O legislador português nunca podia ter optado essa solução: uma vez que não se admite a
qualificação legis fori.

Apesar da premissa metodológica inadequada, mas a solução é em si mesma correta: remeter


os casos em que a responsabilidade pré-contratual está funcionalmente ligada ao contrato a
lei reguladora do contrato e submeter as situações em que se verifica danos pessoais a lei
reguladora da responsabilidade extracontratual (Considerando n.º 30).

4.2.2 Enriquecimento Sem Causa


O enriquecimento sem causa tem como fundamento a ideia de que ninguém deve enriquecer
a custa alheia, mas a medida em que se pode impor a restituição do enriquecimento à custa
alheia vária de sistema para sistema, tal poderia inclusive colocar em causa a ideia de
economia de mercado.

Há pelo menos 3 técnicas pelas quais os diferentes sistemas jurídicos procuram delimitar esse
princípio:

i) tipicidade de situações de enriquecimento sem causa – exemplo inglês, é indicado os


casos em que o enriquecimento sem causa;

ii) cláusula geral de proibição de enriquecimento sem causa – exemplo Alemanha e


Portugal;

iii) sistema intermédio – exemplo Espanha e Itália: regula-se apenas a repetição do


indevido.

77
4.2.2 Enriquecimento Sem Causa

Esses sistemas variam conforme o ordenamento: repetição vai depender do sistema em causa.

Em certos ordenamentos tem outras funções: devido ao princípio da abstração, na Alemanha,


certos negócios podem produzir efeitos sem “causa”: alguém pode receber determinado bem
sem ser pago – o enriquecimento sem causa é a saída nesses casos.

O enriquecimento sem causa permite compor situações em que alguém intervém ou interfere
em bens alheios (ex. alguém usa a casa de outrem).

Em alguns sistemas o enriquecimento sem causa é subsidiário, nomedaemente, em relação à


responsabilidade civil. Isso acontece na França, mas não na Alemanha.

Não há um regime uniforme do enriquecimento sem causa, o seus contornos são diferentes.

Pelo que pode surgir conflitos plurilocalizados sobre essa matéria.

Comerciante estabelecido em Sevilha que envia uma caixa de garafas ao seu colega
Comerciante Portugues, estabelecido em Lisboa.

O português já consumio as garrafas e o comerciante pede as de volta: há lugar à resistituição


de algum valor. No direito português essas situações não há lugar à restituição, mas no direito
espanhol já sim.

Inglês permite que o seu compatriota também Inglês utilize a casa de férias, mas esse amigo
realizou benfeitorias.

O direito português determina a possibilidade de haver a restituição de algum valor, mas o


direito inglês não admite.

Português recolhe as laranjas da propriedade de um Inglês, vende as laranjas, que caso, não
tivesse colhido, pareciam. O Inglês não autorizou a gestão de negócios e as despesas que o
gestor realizou não têm de ser compensadas.

Todos esses casos verifica-se uma potencial situação de enriquecimento sem causa.

Existe uma pluralidade de situações possíveis:

i) a solução da lei italiana – aplicar a lei do local onde se verificou o enriquecimento;

ii) a solução inglesa – aplicar a lei do local com conexão mais estreita;

iii) a solução portuguesa (Artigo 44.º CC) – aplicar a lei com base na qual se verificou a
transmissão da propriedade.

A solução portuesa tem as suas vantagens porque permite uma certa harmonia material: a lei
aplicável ao contrato é a mesma lei que se aplica ao enriquecimento.

iv) a solução alemã – diferencia conforme a situação de enriquecimento:

a) com base numa prestação – aplicar a lei que regula o contrato;

b) noutros casos – aplica-se a lei do local do enriquecimento.

Artigo 10.º Regulamento Roma II

uma obrigação extracontratual que decorra de enriquecimento sem causa, incluindo o


pagamento de montantes indevidamente recebidos, estiver associada a uma relação existente
78
4.2.3 Gestão de Negócios

entre as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em responsabilidade fundada em


acto lícito, ilícito ou no risco que apresente uma conexão estreita com esse enriquecimento
sem causa, é aplicável a lei que rege essa relação.

Está aqui a tal conexão acessória que se verifica também na lei portuguesa: é necessário
determinar qual a lei que regula o contrato em relação ao qual foi feito o contrato.

Se não houver a relação jurídica, o n.º 2 determina que se as partes tenham a sua residência
habitual no mesmo país no momento em que ocorre o facto que dá origem ao enriquecimento
sem causa, é aplicável a lei desse país.

Ou seja, no exemplo dos dois ingleses, então aplica-se a lei da residência habitual.

Se não tiver a mesma residência habitual, é aplicável a lei do país onde tenha ocorrido o
enriquecimento sem causa – n.º 3.

Sendo que o n.º 4 prevê uma cláusula exceção.

Sendo que também o Artigo 14.º RR II permite a escolha da situação.

Há que ainda referir o Regulamento Roma I: o Artigo 12.º/1, e) – determina que é abrangido
pela lei aplicável ao contrato a restituição das prestações em virtude da invalidade do
contrato.

Trata-se de uma solução semelhante a que resultaria da aplicação do Roma II.

Roma I não é um regulamento exclusivamente sobre Obrigações Contratuais, a obrigações de


restituir é uma obrigação legal.

4.2.3 Gestão de Negócios


Diz respeito as situações que alguém assume assunto alheio no interesse e por conta do dono
e sem ter autorização para isso.

Também aqui há soluções diversas.

O dono do negócio tem de compensar o gestor no direito português: sendo que existe
inclusive uma disposição que determina a remuneração do gestor de negócios pelo dono do
mesmo. Essa solução está pensada numa ideia de solidariedade entre as pessoas (estava
pensada para as situações em que um cidadão romano saia da cidade para fazer qualquer
coisa)

Nem todos os ordenamentos jurídicos são sensíveis a essa ideia de solidariedade. Em


Inglaterra a gestão de negócios não é fundamento de obrigação.

Caso Falk vs Scottish Empirial – que no fundo não permite a gestão de negócios.

Nos EUA há uma decisão de 2008 em que o Relator disse que não havia lugar a gestão de
negócios.

Restatement Restitution disse que não existia repetição do individo, exceto se as


circunstâncias o indicassem.

A figura do bom samaritano não é encorajada pela Common Law.

Alguém que possa ser devedor de outrem sem que tal não corresponda a sua vontade.
79
4.2.3 Gestão de Negócios

Exemplo:

A, motorista inglês, que tem um acidente de automóvel no Algarve, e B resolve socorrer o seu
compatriota. B leva A ao hospital, paga as despesas e um bilhete de avião. Ambos tem
residência habitual em Inglaterra. B pretende ser reembolsado, A diz que não há lugar a tal
reembolso.

Perante o direito inglês essa obrigação de reembolsar despesas nessa situação não existe, mas
no direito português existe. Deve-se aplicar a lei do país em que se verificou a gestão de
negócios ou a lei da residência comum?

Quais os interesses:

Quando se estabelece a lei reguladora, quais os interesses:

a) interesses sociais

i) preservar os atos altruístas praticados por alguém a fim de preservar bens alheios;

ii) não facilitar em excesso as intromissões em esfera jurídica alheia – (alguém paga as
dividas de outrem, sem autorização) a esfera jurídica é invadida por um terceiro.

Esses interesses apontam no sentido da aplicação do lugar da prática da gestão de negócios.


Cabe a cada Estado definir em que medida há lugar a reembolso.

b) interesses particular

i) o dono não quer se..;

ii) o gestor quer ser reembolsado.

O Artigo 43.º determina que à gestão de negócios é aplicável a lei do local onde ocorre a
atividade do gestor (lex loci).

Por analogia pode-se aplicar o Artigo 45.º/3 determina que se deve aplicar a lei comum as
partes.

Roma II

Artigo 11.º

Se uma obrigação extracontratual que decorra da prática de um ato relativamente a negócios


alheios sem a devida autorização estiver associada a uma relação previamente existente entre
as partes, baseada nomeadamente num contrato ou em responsabilidade fundada em ato
lícito, ilícito ou no risco que apresente uma conexão estreita com essa obrigação
extracontratual, a lei aplicável é a lei que rege essa relação.

Se não houver essa lei e as partes tenham a sua residência habitual no mesmo país no
momento em que ocorre o facto que dá origem ao dano, é aplicável a lei desse país. – n.º 2.

No limite lex loci gestoris – n.º 3.

Se houver uma conexão mais estreita com outro ordenamento jurídico – n.º 4.

Na gestão de negócios há uma questão que se suscita: não se define gestão de negócios. Isso
recai um âmbito muito vasto de situações:

80
4.3 Direitos Reais

i) Gestão de negócios próprias

ii) há casos não altruístas, mas sim egoística – gestão de negócios impróprias.

Nessas situações o Artigo 11.º também será aplicável. Já não será aplicável nas situações em
que o regulamento roma II exclui do seu âmbito de aplicação nos termos do n.º 2, Artigo 1.º.

Se um pai estiver a gerir os negócios de um filho, sem autorização, não há lugar a aplicação
desse Artigo 11.º RR II.

4.3 Direitos Reais


O problema que se coloca é o de saber qual a lei que se aplica aos direitos sobre coisas em
situações com carater internacional. Esses problemas colocam-se hoje com enorme frequência
dada a importância com que reveste no comércio internacional as transações dos bens. Bem
como dado o facto da aquisição

Coloca-se o problema de saber qual a lei que define o regime aplicável a esses direitos. Não
existem regras unificadas a nível europeu ou a nível internacional, sendo, portanto, aplicável
as regras de conflitos previstos no CC.

4.3.1 Regra Geral


O Artigo 46.º/1 CC prevê que o regime da posse, propriedade e demais direitos reais é definido
pela lex rae sitae, isto é a lei do local da situação das coisas. É uma regra amplamente
consagrada noutros ordenamentos jurídicos, porém nem sempre foi assim. Na idade média
entendia-se que os direitos reais sobre os bens móveis eram regulados pela lei do domicílio do
proprietário. Foi só no século XIX com Savigny que se impôs a regra da sujeição dos bens
imóveis à lex rae sitae.

Cumpre, então, saber qual a razão para essa sujeição, podendo-se identificar 4 ordens de
razões:

i) os interesses públicos implicados na regulação dos direitos reais – os direitos reais


são instrumentos jurídicos através dos quais se disciplina uma parte da riqueza que existe num
determinado país, tendo o Estado interesse em definir o regime desses bens: regular o seu
conteúdo, impor limitações ou restrições à sua aquisição, etc.; correlativamente, cada país
tem, ainda, um interesse em definir os direitos reais que admite, isto é, o princípio da
tipicidade, o qual implica que as partes não podem conformar livremente os direitos reais; não
estando sujeito a essa sujeição, o poder de disciplinar quais os direitos reais que existem sobre
bens situados no seu território ficaria comprometido. Assim, o princípio da tipicidade dos
direitos reais reclama a aplicação da lex rae sitae;

ii) os interesses do tráfego jurídico em geral – para as pessoas que participam no


comercio internacional importa poderem-se informar sobre o estatuto de uma determinada
coisa – isso é facilitado através da regra da lex rae sitae;

iii) também a harmonia internacional de julgados implica a existência dessa regra, na


medida em que a sujeição a uma lei diferente da lex rae sitae iria resultar numa desarmonia,
bem como incentivar o forum shopping;

iv) efetividade das decisões judiciais, pois não basta fixar-se regras de conflitos ou de
jurisdição é necessário assegurar que uma decisão proferida por um tribunal português seja

81
4.3.2 Exceções

reconhecida e executada no país onde se situam os bens: se tiver sido aplicada a lei desse país,
mas provavelmente será aceite e reconhecido por esse país a decisão.

4.3.2 Exceções
Sem prejuízo, há que reconhecer que existem desvios a essa regra. Há outras leis que em
determinadas situações poderão ser aplicadas.

A primeira exceção é as coisas que se encontram em trânsito – uma coisa está a ser movida de
um país para outro. Daí que o Artigo 46.º/2 determina que se manda aplicar a lei do país onde
se destinam os bens. É perfeitamente possível que uma coisa que se encontra em trânsito,
numa sociedade em que há um comércio internacional intenso, pode ser objeto de transações
e coloca-se o problema de saber qual a lei aplicável.

Podia se optar por outras soluções como seja a lei do país da expedição como faz o DIP
Espanhol ou a lei escolhida pelas partes como faz o DIP Suíço. Porém, o DIP português optou
pela lei do país de destino em virtude do facto que o bem irá inserir-se na economia desse
país.

Em segundo, as coisas que sejam elas meios de transporte, como seja os automóveis, aviões
ou barcos, isso é coisas que pela sua natureza têm como objetivo circular e estão sujeitos a um
regime de matrícula. Também aqui não faz sentido sujeitar à lei da situação, pois pela sua
natureza a lei aplicável à propriedade estaria sempre a ser alterada. Razão pela qual a lei que
se manda aplicar é a lei do país da matrícula, nos termos do Artigo 46.º/3 CC.

Por outro lado, para os navios existe uma regra própria no Artigo 488.º C. Com., os quais estão
sujeitos à lei da sua nacionalidade, e em virtude do Decreto-Lei n.º 201/98 a lei da
nacionalidade é a lei do país onde se encontra registado o navio.

Por fim, uma outra categoria de bens levantam problemas especiais, os chamados valores
mobiliários, títulos que representam determinado valor em relação aos quais pode-se colocar
o problema de saber qual o seu proprietário. Atualmente, são bens incorpóreos, estão
registados num determinado registo a cargo de uma entidade pública ou privada. Também
aqui não faz sentido aplicar a lex rae sitae, pelo que o Artigo 41.º, a) CVMV determina que se
estiver perante algum valor mobiliário integrado num sistema centralizado é aplicável a lei da
entidade gestora desses valores mobiliários. Por outro lado, quando não se encontra num
sistema centralizado o n.º 2 manda aplicar a lei do local onde está depositado ou registado o
valor mobiliário. Por fim, supletivamente o n.º 3 manda aplicar a lei pessoal do emitente (e.i.
da sociedade comercial).

Não se deve confundir com as coisas incorpóreas que são objeto de propriedade intelectual,
e.i. o direito de autor. Os direitos de propriedade intelectual – direito que incide sobre a coisa
intelectual ou à obra – são distintos dos direitos reais. Existem regras específicas para
determinar a lei aplicável aos direitos de autor, matéria que hoje levanta problemas
específicos.

4.3.3 Âmbito da Lei Aplicável


De acordo com a redação do Artigo 46.º/1 a lex rae sitae regula a posse, o direito de
propriedade e outros direitos reais menores (usufruto, etc.). No regime desses direitos reais
cabe tudo o que tem a ver com a constituição, transferência e a extinção desses direitos.

82
4.3.4 Qualificação

Para além desses, também o conteúdo – faculdades que assistem ao titular desses direitos – é
matéria que cabe à lex rae sitae.

4.3.4 Qualificação
O quê que se deve entender por direito real para efeitos do Artigo 46.º/1: tal pode levantar
problemas de qualificação. Como se determina que um determinado direito é um direito real
ou um direito de crédito.

Assim, por exemplo um direito de um arrendatário é um direito real ou um direito de crédito:


já houve quem o qualifica-se como um direito real. Essa questão não pode ser resolvida
exclusivamente com base naquilo que a ordem jurídica portuguesa define: nos termos do
Artigo 15.º, deve-se caraterizar o direito em causa à luz da lei potencialmente aplicável de
acordo com o Artigo 46.º/1. É só em face dessa caraterização que se pode dizer se esse direito
é qualificável como um direito real ou como um direito obrigacional: essencialmente, importa
determinar se o direito do arrendatário é um direito oponível erga omnes ou um direito
oponível inter partes: sendo oponível unicamente inter partes então não se deve estar perante
um direito real, mas antes por um direito obrigacional.

4.3.5 Delimitação entre o Estatuto Contratual e o Estatuto das Coisas


Um outro problema que se pode colocar é a delimitação entre o estatuto real e o estatuto
contratual, na medida em que muitos direitos reais resultam de um contrato, porém em certos
Estados como é o caso da Alemanha é necessário celebrar um negócio jurídico abstrato
através do qual se transfere a propriedade do bem vendido.

A circunstância de que a lei reguladora do contrato é diferente da lei reguladora dos direitos
reais pode levantar problemas, nomeadamente quanto ao problema das condições à
transmissão do direito real. O estatuto real define as condições em que um direito real se
transfere, bem como o seu conteúdo, diferentemente o estatuto contratual regula apenas as
obrigações emergentes do contrato.

Os problemas de delimitação encontram-se hoje facilitados, na medida em que o Artigo 4.º do


Regulamento manda aplicar supletivamente (na ausência de escolha) a lex rae sitae ao
contrato, quando esse seja uma compra-e-venda que tenha por objeto um bem imóvel.

A mesma situação da vida pode estar sujeita a várias leis e a conjugação dessas leis pode não
ser fácil.

Há ainda o problema que se coloca quando uma determinada coisa que se encontrava num
determinado país muda a sua localização. Em relação a essas situações pode haver uma
sucessão de direitos aplicáveis: se a coisa estava no Estado A e agora está no Estado B.

Pode se levantar o problema do conflito móvel:

“A lei A determina que a transferência se dá imediatamente com a celebração do contrato; a


lei B determina que é necessário um ato ou negócio adicional. O contrato foi celebrado num
momento em que a coisa se encontrava no País A, enquanto só foi entregue ao comprador no
Estado B.”

Esse conflito móvel deve ser resolvido atendendo aos direitos adquiridos: a pessoa que
adquiriu o direito à luz da lei antiga aplicável, então não é por se alterar a lei aplicável que a
pessoa vai perder esse direito.

83
4.4 Propriedade Intelectual

Essa regra aflora no Artigo 488.º, 2.º§ do C.Com: pode-se mudar a nacionalidade do navio, mas
a questão de saber quem é o proprietário se foi vendido à luz da lei aplicável anterior, não
muda.

Por fim, coloca-se o problema dos bens culturais (peças de arte sacra, obras de artes, etc.), os
quais costumam ser ilicitamente extraídos e vendidos noutros países, trata-se de situações em
que o bem adquirido ad non domino, pelo que cumpre determinar qual a lei aplicável a essa
venda. Cada país tem o interesse fundamental em proteger o seu património cultural, razão
pela qual se tem defendido que a essas situações de subtração ilícita de um bem cultural se
aplique a lei de origem do bem e não a lex rae sitae.

É uma regra que se encontra consagrado no Código Belga. Mas não existe no DIP português,
porém, a lei de bases sobre o património cultural estabelece normas internacionalmente
imperativas, que determina a obrigatoriedade de se requerer a autorização para a venda e
exportação de bens culturais e a invalidade do negócio que tenha por objeto a venda de bem
cultural não autoriza.

Uma outra forma de abordar o problema é a criação de regras materiais, como é o caso da
convenção do unidroit sobre os bens culturais roubados ou ilicitamente furtados, nos termos
da qual existe a obrigação do possuidor de devolver o bem, bem como aos estados
contratantes poderem requerer a outro estado membro a tomada de diligências para
recuperar o bem.

4.4 Propriedade Intelectual


A propriedade intelectual separa-se em duas vertentes:

i) direito de autor – os direitos dos criadores de obras intelectuais (literárias e


artísticas) sobre o fruto das suas produções espirituais;

ii) a propriedade industrial – outro tipo de bens imateriais, podendo ser criações do
espírito humano, mas são utilitárias (ex. patentes e sinais distintivos).

4.4.1 Direito de Autor


Dada a internacionalização da produção da obra artística e literária e da sua exploração,
coloca-se o problema de determinar qual o regime aplicável a essas criações.

Trata-se de um domínio em que se verificou um movimento de unificação ou harmonização


das regras aplicáveis, surgindo diversos instrumentos internacionais sobre essa matéria:

i) Convenção de Berna para a criação de obras literárias e linguísticas de 1866 – é a


magna carta do Direito Internacional de Autor;

ii) Convenção Universal, celebrada em Genebra em 1952;

iii) Acordo de TRIPs;

iv) Tratado de Direito de Autor, concluído sobre a égide da OMPI, e que se preocupa
especificamente dos Direitos dos Autores relativamente as suas obras colocadas na Internet.

No Direito da União Europeia, também surgiram várias iniciativas nesse mesmo sentido:

i) Diretiva n.º 2001/2009;

84
4.4.1 Direito de Autor

ii) Diretiva n.º 2004/48;

iii) Diretiva n.º 2019/790.

Apesar desse movimento de grande relevância de harmonização mantem-se grandes


diferenças entre os sistemas nacionais no domínio de direito de autor. É possível distinguir a
em duas tradições:

i) os sistemas de Common Law ou de Copyright;

ii) a dos sistemas continentais ou a do droit d’auteur.

Esses sistemas diferem em muitos aspetos, nomeadamente no que concerne à:

i) a proteção dada aos autores, em particular os seus direitos morais, é muito mais
forte nos sistemas continentais, nos sistemas de Common Law tais direitos nem existiam, só
tendo sido consagrados recentemente;

ii) a titularidade do titular do direito de autor das obras feitas por encomenda ou por
contrato de trabalho: no direito continental essa titularidade é do próprio criador, salvo se
houver convenção em contrário no contrato celebrado; enquanto nos sistemas de Common
Law a titularidade do direito de autor pertence à pessoa que encomendou a obra ou ao
empregador.

Essas diferenças salientam a importância que tem da determinação da lei aplicável às matérias
de direito de autor, na medida em que em virtude dessas diferenças tão acentuadas.

Há diferentes interesses que jogam aqui e que pode apontar em sentidos diversos:

i) interesse do autor e dos titulares dos direitos – esses têm o interesse de poder
dispor de modo exclusivo das suas obras e nas situações com carater internacional interessa a
aplicação universal da lei do país de origem da obra;

ii) interesse do utilizador – esse tem o interesse de aceder ao conteúdo exclusivo


utilizando das exceções que a lei do seu país prevê, apontando assim para a aplicação da lei do
país onde a obra é utilizada;

iii) interesses que contendem ao funcionamento da economia em geral – os direitos de


autor e de propriedade industrial são direitos exclusivos ou de monopólio, assim em cada país
a atribuição desse direito de exclusividade tem de ser medida em ponderação com os
benefícios que a sociedade pode ter de tais atribuições; esse interesse aponta também para a
aplicação da lei do país onde a obra é utilizada.

A aplicação da lei do país de origem tem hoje escassa consagração, ainda que possa ter um
campo de aplicação residual. A regra que prevalece, designadamente no âmbito da União
Europeia, é aquela que manda aplicar a lei do país para cujo território se pede a proteção, ou
seja, lex loci protectiones84.

84
Também se fala aqui de princípio da territorialidade, porém essa designação pode ser equivoca na
medida em parece apontar para aplicação da lei do foro, quando na verdade é possível demandar um
infrator num Estado por uma infração cometida noutro país e segundo a lei deste. O Tribunal do Estado
onde foi o infrator demandado vai aplicar uma lei estrangeira, existe extraterritorialidade.
85
4.4.1 Direito de Autor

Assim, a reprodução em Portugal de um livro ou de uma música primeiramente editada nos


Estados Unidos, aplicar-se-ia a lei portuguesa. Trata-se da solução mais condizente com a
natureza desses direitos, na medida em que ao tratar-se de direito exclusivos que restringem a
liberdade de utilização e de circulação no comercio cada país no território onde exerce
soberania deve poder definir em que medida é concede esses benefícios. Caso contrário ficaria
comprometido o princípio da tipicidade, ou seja, é a própria lei que tem de definir quais os
bens sujeitos à proteção do direito de autor ficando os restantes sujeitos a um princípio de
tipicidade.

Essa regra encontra-se consagrada:

i) no Artigo 5.º, n.º 2 da Convenção de Berna ao dispor que a extensão da proteção,


bem como os meios de recurso garantidos ao autor para salvaguardar os seus direitos,
regulam-se exclusivamente pela legislação do país onde a proteção é reclamada85;

ii) no Artigo 8.º, n.º 2 da Regulamento Roma II, no que diz respeito à consequência da
violação de direitos intelectuais alheios.

No entanto há um aspeto em que se admite a aplicação da lei do país da origem da obra que é
o caso da titularidade do direito de autor. A aplicação da lex loci protectiones justifica-se com a
necessidade de controlar a atribuição de direito exclusivos, isto é, trata-se de uma questão de
soberania. Porém já saber quem é o titular desse exclusivo já não existe razão para que seja
regulada necessariamente pela lex loci protectiones. Admitindo-se a aplicação da lex origini.

Essa regra encontra-se consagrada no Artigo 48.º CC ao dispor que os direitos de autor são
regulados pela lei do lugar da primeira publicação da obra e, não estando esta publicada, pela
lei pessoal do autor.

Existe uma Diretiva n.º 2019/789 sobre o exercício de direito de autor e conexos relacionados
com as transmissões em linha dos organismos de radiodifusão e à retransmissão de programas
de televisão e de rádio, a qual ainda não foi transposta, que prevê no Artigo 3.º os atos de
comunicação ao público de obras ou outro material protegido devem ser considerados como
atos que ocorrem exclusivamente no Estado-Membro do estabelecimento principal do
organismo de radiodifusão. Assim, se uma estação televisa faz emissões de obras protegidas
para diferentes países, as emissões são reguladas pela lei do estabelecimento da estação
televisa. Essa opção visa facilitar a atividade dessas empresas.

Alguns dos problemas mais complexos que essa temática suscita predem-se com os casos em
que havendo de se aplicar a lex loci protectiones e a obra ou o conteúdo protegido é colocada
na internet e acessível mundialmente. Pergunta-se como determinar qual o país para o qual se
pede a proteção para esses casos:

i) se for o país onde a obra ficou acessível, então tal levaria a aplicação da lei de todos
os países levaria a uma fragmentação das leis aplicáveis; tal levaria a aplicação da lei mais
restritiva, ou seja, uma aplicação estrita do princípio da territorialidade seria fortemente
inibidora da liberdade de expressão e de se colocar conteúdo em linha; tal solução conduziria a

85
Quando se reclama proteção para o território do país A é necessário sujeitar-se à lei do país A, ainda
que a pessoa em questão se encontre no país B e a obra tenha sido primeiramente editada e publicada
nesse.
86
4.4.2 Propriedade Industrial

uma responsabilização excessiva dos promotores de conteúdo, mas também os promotores de


acesso;

ii) daí que se tenha preconizado uma orientação mais flexível, nos termos da qual em
cada caso o julgador deva aplicar na determinação da licitude da disponibilização da lei do país
que demonstra uma relação mais estreita – é o que estabelece os princípios Conflict of Laws in
International Property da Maxplanck, no Artigo 3:603, n.º 1 “nos litígios respeitantes a
infrações cometidas através de meios de comunicação ubíquos como a internet o tribunal
pode aplicar a lei do Estado com conexão mais estreita com a infração, se se poder considerar
que essa teve lugar em todos os Estados onde os sinais podem ser recebidos. Essa regra aplica-
se igualmente existência, duração, limites e âmbitos na medida em que essas questões se
subsistem de modo incidental no processo de infração.” Ou seja, aplica-se a lei do Estado que
surge numa relação mais estreita com a infração. Assim, por exemplo:

“A opera um sítio na internet, a partir da Austrália, onde está estabelecido, e disponibiliza na


internet nesse sítio ficheiros com obras musicais, sem o consentimento dos respetivos titulares
dos direitos de autor ou direitos conexos. Esses conteúdos ficam disponíveis em todo o mundo.
Sem prejuízo, o mercado que é visado pelo sujeito é o norte-americano, na medida em que é lá
que são apreciadas essas músicas ou conteúdos.”

Nesse caso, uma vez que A se dirige para o mercado americano, então deve-se aplicar a lei dos
Estados Unidos da América, independentemente dessas obras ficarem disponíveis noutros
países. Trata-se de uma forma de limitar a multiplicação excessiva das leis aplicáveis, porém
ainda não se encontrasse consagrada.

4.4.2 Propriedade Industrial


Aqui também se trata de uma atribuição de direitos exclusivos, porém esses estão sujeitos a
registo. Enquanto os direitos de autor se constituem automaticamente, os direitos de
propriedades intelectuais têm de ser registados, assim as patentes têm de ser disponibilizadas,
são objeto de um exame por um Instituto e depois são concedidas se satisfizerem os
requisitos86 que a lei estabelece.

Aqui os problemas relativos à lei aplicável são muito relevantes. Também houve um
movimento de uniformização da propriedade industrial, é o caso da Convenção de Paris de
1883 para a Proteção da Propriedade Industrial. No final do século XIX já se colocava esse
problema. Na exposição universal colocou-se o problema de saber se uma vez divulgados os
inventos na exposição podia qualquer pessoa reproduzi-los sem a necessidade de pagar
royalties.

Mais tarde surgiram outras convenções, a saber: o Acordo de Madrid sobre o Registo
Internacional de Marcas, Acordo da Haia sobre Conceções Industriais, Acordo de Lisboa sobre
as Denominações de Origem, o Tratado sobre Cooperação em Matéria de Patentes, e a
Convenção da Patente Europeia.

Bem, como no âmbito da União Europeia surgiram atos de Direito Europeu como é o caso do
Regulamento n.º 2017/1001 sobre a Marca da União Europeia.

86
De acordo com a lei portuguesa é necessário que:
i) o invento seja novo;
ii) seja dotado de efetividade;
iii) tem de ser suscetível de aplicação industrial.
87
4.4.2 Propriedade Industrial

Hoje é possível registar para toda a União Europeia uma marca única que abrange todos os
Estados-membros, não sendo necessário o registo individual.

Em matéria de patentes a União Europeia também tentou realizar um sistema análogo através
do Regulamento n.º 1257/2012, porém esse não entrou em vigor na medida em que surgiram
dificuldades em torno de uma questão prática crucial. As patentes, em regra, têm de ser em
princípio traduzidas, porém esse requisito seria extremamente oneroso no âmbito da União
Europeia. Daí ter surgido o Regulamento n.º 1260/2012 que estabeleceu o Regime Linguístico
da Patente Europeia do qual resulta que a Patente só terá de ser redigida numa só língua das 3
maiores línguas oficiais da União Europeia, Inglês, Francês e Alemão, devendo a parte
inovatória estar traduzida nessas três línguas. Porém, foi ainda necessário criar um sistema
jurisdicional para verificar às infrações e questões de validade das patetes.

Apesar do esforço no sentido da harmonização e unificação do Direito da Propriedade


Industrial, só na União Europeia e só no que concerne em matéria de Marcas é que se
conseguiu criar títulos unitários, isto é, títulos de propriedade industrial que sejam invocadas
supranacionalmente, nos restantes casos não há esse título unitário, sendo necessário aferir
qual a lei aplicável.

A questão da lei aplicável continua a ser importante, pois os direitos nacionais continuam a
deferir em aspetos de grande importância. Havendo aqui também vários interesses em
oposição:

i) o interesse do titular do direito que depõe no sentido da aplicação da lei do país de


origem do direito em causa, isto é, o país que primeiramente o concedeu; trata-se de uma
forma de maximizar o âmbito de aplicação espacial desse direito;

ii) do utilizador dos inventos ou dos sinais que pretende beneficiar das regras do país
onde atua, isto é, a lei do país onde se reclama proteção.

Também no Direito da Propriedade Industrial vingou à lex loci protectione. Em princípio se


alguém quiser proteção para o seu direito tem de se sujeitar a lei do país para o qual reivindica
essa proteção. Nesse caso é mais simples verificar qual o país onde se reivindica a proteção na
medida em que será o Estado onde se cumpriu todas as formalidades necessárias.

Tal não significa que não possa haver extraterritorialidade da proteção conferida pelo direito
industrial é o que acontece com as marcas notórias, para as quais dispõe os Artigos 334.º e
335.º do CPI é concedida proteção extraterritorialidade.

Também aqui vale o em matéria da violação do direito de propriedade industrial o Artigo 8.º
Regulamento Roma II, que igualmente aponta para lex loci protectione.

No Código Civil encontra-se uma regra que aponta para a lex originis, isto é a lei do país da sua
criação, cf. Artigo 48.º, n.º 2. Assim, tomado à letra, a proteção concedida a uma patente ou
qualquer outro direito de propriedade industrial registada num país estrangeiro seria regida
pela lei desse país estrangeiro.

Porém, tem de se considerar essa disposição subordinada a todos os outros instrumentos.


Assim, em conformidade, na Convenção de Paris resulta o princípio da independência e
autonomia das patentes e marcas, ou seja, se se concede a patente num país não significa que
se conceda no outro e se se a anula num não implica que se anule noutro. Ou seja, a regra é a
lex loci protectiones.
88
4.4.2 Propriedade Industrial

Valem quanto às utilizações de sinais distintivos na internet as regras sobre a utilização de


obras literárias e artísticas. Se uma pessoa anuncia uma determinada marca e essa marca está
registada num outro país em nome de outra pessoa, não há necessariamente infração.

Foi o que aconteceu no Caso Maritime que foi objeto de uma decisão do Supremo Tribunal
Alemão, o qual dizia respeito a um Hotel na Dinamarca com o nome Maritime e o dono decidiu
criar um sítio na internet sobre o seu Hotel. Acontece que na Alemanha já existia uma marca
registada com o nome Maritime a favor de outras pessoas também para atividades hoteleiras,
a qual intentou uma ação para impedir o Dinamarquês de utilizar essa marca.

Segundo o Supremo Tribunal Alemão é necessário verificar se o sítio da internet do Hotel


dinamarquês está a orientar a sua atividade ou a dirigir para o Mercado Alemão. Ou seja, para
determinar se há infração de um direito de propriedade industrial é necessário procurar a
relação mais estreita, ou seja, é necessário verificar se o infrator dirige a sua atividade para o
Mercado onde se encontra registado esse direito.

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