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INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO II | PROFESSOR DOUTOR ROMANO MARTINEZ

Nota: O presente documento tenta retirar o mais importante dos recomendados pela
regência, pelo que, atenta à subjetividade empregue na seleção da matéria, a nosso ver,
relevante, é recomendada a consulta dos manuais da regência. É de notar que o presente
documento pode conter algumas gralhas.

§36. INTERPRETAÇÃO
1. Justificação
A interpretação jurídica visa apurar o sentido de uma norma, i.e., exprime o sentido de
regra que se considera adequado para resolver o caso sub iudice. A interpretação não é
só das regras constantes de lei, mas de regras de qualquer fonte do direito: a regra
consuetudinária também se interpreta, ainda que haja algumas dificuldades de
aplicação das diretrizes interpretativas.

A interpretação é justificada pela sua necessidade e por motivo de segurança jurídica


(de forma a evitar a arbitrariedade na aplicação do direito).
A regra jurídica, ao ser interpretada, tem de se situar numa dada ordem social, podendo,
no contexto histórico, social, regional, etc., ser aplicada com sentidos diferentes em
distintas comunidades.
A interpretação de uma regra jurídica não pode ser entendida isoladamente, mas no
contexto do ordenamento jurídico em que se insere; no fundo, há várias razões para se
poderem atribuir sentidos dissemelhantes à mesma regra jurídica.
A interpretação tem tanto uma função normativa (dela sendo retirado um sentido lógico
e, como tal, conferindo maior certeza na aplicação do Direito), assim como uma
finalidade jurídica tendencialmente uniforme.

2. Finalidade
A interpretação é indispensável no âmbito das regras jurídicas, mas também no plano
dos comportamentos humanos, de uma pintura, etc. Note-se que a finalidade é
coincidente quando se interpreta uma norma jurídica ou uma pintura, importando
transmitir uma mensagem explicativa do sentido da regra ou da obra de arte.
Ainda assim, mesmo havendo coincidência de finalidade, o regime jurídico a analisar
respeita unicamente a interpretação das regras jurídicas, e a finalidade, tanto de
interpretação como de integração, é a de encontrar a solução adequada para resolver o
caso concreto, tendo esta, todavia, de encontrar justificação no sentido correto da
regra.

3. Interpretação subjetiva e objetiva


Sobre a finalidade da interpretação são possíveis duas orientações:

José Lourenço Gonçalves | TURMA B | 2021/2022


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▪ Por um lado, segundo uma orientação subjetivista, a finalidade da interpretação


é a reconstituição da intenção do legislador subjacente à produção da lei.
▪ Por outro lado, segundo uma orientação objetivista, a finalidade da
interpretação é a determinação do significado objetivo da lei, qualquer que
tenha sido a intenção do legislador.
Esta distinção tem a máxima importância quando se verifica um conflito entre o
legislador e um intérprete: prevalece o legislador ou o intérprete, dependendo de se a
conceção adotada seja subjetivista ou objetivista, respetivamente.
Na atualidade, segundo RM e MTS, tendem a prevalecer as correntes objetivistas, ainda
que em versões algo distintas, embora todas coincidindo em que a finalidade da
interpretação é a determinação da voluntas legis, i.e., determinação da vontade do texto
da lei.
Por outro lado, JAV defende que deveremos utilizar uma tese essencialmente
subjetivista historicista, a não ser que as circunstâncias e o contexto de aplicação se
tenham alterado, devendo, nesta altura, utilizar uma tese objetivista atualista.

3.1. Justificação das orientações objetivistas


A favor das correntes objetivistas é frequente argumentar com a igualdade perante a
lei, pois, enquanto qualquer leitor pode fazer, pelo menos, uma ideia do significado da
lei, a investigação sobre a vontade do legislador exige um esforço e uma interpretação
que não estão ao alcance de todos. É também de referir que é impossível de determinar
a intenção do legislador histórico, atendendo, nomeadamente, à insuscetibilidade de
definir uma vontade comum a todos os intervenientes no processo legislativo, ainda que
se considere apenas, como já chegou a ser proposto, o que foi dito pelos intervenientes
e as mais importantes opiniões por eles expressas.
Assim, a lei deve libertar-se do legislador e passar a valer com um significado objetivo,
adequado às circunstâncias sociais, económicas e culturais existentes no momento da
sua interpretação.

4. Direito português
4.1. Generalidades
O art.º 9/1 determina que a interpretação tem por finalidade a reconstituição do
pensamento legislativo a partir do texto da lei. A expressão pensamento legislativo é
algo ambígua, pois, tanto pode significar o pensamento do legislador como o
pensamento da lei. Note-se que esta ambiguidade é desejada pelo legislador dado que
se encontram no art.º 9, elementos que corroboram uma orientação subjetivista e
outros que conduzem a uma orientação objetivista.

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4.2. Tendências subjetivistas


O art.º 9/2 estabelece que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda
que imperfeitamente expresso. Dado que apenas alguém pode exprimir, de forma
perfeita ou imperfeita, um pensamento, poder-se-ia ser levado a concluir que a
expressão pensamento legislativo só se poderia referir ao pensamento do legislador e,
portanto, à voluntas legislatoris.

4.3. Tendências objetivistas


Para procurar resolver a ambiguidade da expressão “pensamento legislativo” referida
no art.º 9/1 e 2, importa considerar a oposição entre o atualismo e o historicismo:
enquanto que para o atualismo, o que conta é o significado atual da lei, para orientação
historicista, o que releva é o significado que a lei tinha no momento da sua criação.
Assim:
▪ uma orientação subjetivista historicista defende que o significado da lei é aquele
que o legislador lhe deu no momento da sua elaboração.
▪ uma orientação subjetivista atualista defende que o significado da lei é aquele
que o legislador lhe daria se tivesse legislado na atualidade.
▪ uma orientação objetivista historicista defende que o significado da lei é aquele
que ela tinha no momento da sua criação.
▪ uma orientação objetivista atualista defende que o significado da lei é aquele
que ela tem na atualidade.

5. Elementos da interpretação
Qualquer aplicação de uma regra jurídica tem de observar determinadas regras: estas
regras específicas da interpretação jurídica costumam ser denominadas elementos da
interpretação, as quais possibilitam não só escolher entre várias interpretações
possíveis da fonte interpretada, mas também determinar se a interpretação realizada é
correta ou incorreta.
6. Enunciado
A interpretação da lei é realizada a partir da letra da lei (art.º 9/1 e 2), com base nas
circunstâncias em que a lei foi elaborada (art.º 9/1), na unidade do sistema jurídico (art.º
9/1) e nas condições específicas do tempo em que a lei é aplicada (art.º 9/1).
Em concreto, os elementos da interpretação são:
▪ o elemento literal (respeitante ao sentido da letra da lei).
▪ o elemento histórico (referente ao momento em que a lei foi produzida).
▪ o elemento sistemático (referente ao enquadramento sistemático da lei).
▪ e o elemento teleológico (respeitante à finalidade da lei).

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Note-se que, como a regra jurídica é o resultado da interpretação, não é correto falar
de interpretação da regra, devendo-se adotar a expressão “interpretação do preceito
legal”.

6.1. Hierarquia dos elementos


No ordenamento português é indispensável distinguir entre uma hierarquia relativa ao
método da interpretação e uma hierarquia respeitante ao resultado da interpretação.
Quanto à hierarquia relativo ao método da interpretação, a resposta é dada pelo art.º
9/1, a qual é clara, já que a interpretação deve constituir o pensamento legislativo a
partir dos textos, o que permite concluir que o elemento literal tem primazia em relação
aos vários elementos que não literais.
Não podia deixar de ser assim: só depois de determinado o significado literal da lei e de
encontrada a sua dimensão semântica é possível reconstituir o pensamento legislativo
através dos elementos não literais e procurar a dimensão pragmática da lei.

Quanto à hierarquia relativa ao resultado da interpretação, a resposta fornecida pelo


art.º 9/1 também é clara, mas inversa à anterior, porque, o intérprete deve reconstituir
o pensamento legislativo a partir do texto da lei com base nos elementos não literais,
sendo que qualquer divergência entre a letra da lei e o seu espírito, deverá ser resolvida
com a prevalência dos elementos não literais sobre o elemento gramatical.
Isto permite estabelecer, em termos metodológicos, uma hierarquia entre o elemento
relativo à letra de lei (elemento literal) e os elementos relativos ao espírito da lei
(elementos não literais).

6.2. Meta-regra de prevalência


O que já foi referido permite-nos concluir que os vários elementos da interpretação
possibilitam a construção de uma meta-regra de prevalência: a dimensão pragmática
da lei prevalece sobre a sua dimensão semântica e, por isso, o que o intérprete pode
fazer com a lei prevalece sobre o que a sua letra diz (o art.º 9/1 é claro ao dizer que a
interpretação da lei nunca deve ficar pela sua letra, já que existem potencialidades
metodológicas que não devem ser descuradas).

6.3. Elemento literal


A letra da lei tem um valor próprio que não pode ser ignorado pelo intérprete e que
impõe dois limites:
▪ um decorrente das presunções que se encontram estabelecidas no art.º 9/3, no
que toca ao facto de o legislador consagrar sempre as soluções mais acertadas e
saber exprimir o seu pensamento em termos adequados;

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▪ e o outro decorrente do art.º 9/2, em que se refere que não poderá haver uma
interpretação que não tenha um “mínimo de correspondência verbal” com a
letra da lei.

Assim, todo o significado que corresponde à letra da lei tem de ser um significado
possível dessa lei e, para além disso, o significado que não encontra uma
correspondência mínima na letra da lei, está para além do seu significado possível.
Desta afirmação podem retirar-se duas ilações:
▪ a letra da lei constitui o limite para todos os outros elementos da interpretação.
▪ não pode ser qualificada como interpretação a conclusão do intérprete que não
for compatível com a letra da lei (e.g. é o que sucede quando a lei é aplicada
analogicamente a um caso nela não previsto).

O art.º 9/1 estabelece que o intérprete, depois de determinar o significado da letra da


lei, deve reconstituir o pensamento legislativo, servindo-se para isso dos vários
elementos não literais da interpretação. O significado literal fornece apenas uma
hipótese de interpretação, dado que, depois de obtido, o intérprete deve procurar a sua
corroboração ou informação através dos elementos não literais.
Deste modo, a interpretação da lei parte da sua letra (art.º 9/1) para a consideração
dos elementos não literais da interpretação e, depois de os ter considerado, tem de
regressar de novo àquela letra, nomeadamente para verificação da correspondência
mínima da interpretação não literal (art.º 9/2).

6.4. Elemento histórico


O elemento histórico respeita à justificação da fonte, i.e., trata de saber que factos
levaram o legislador a produzir uma lei sobre uma determinada matéria e que
necessidades eram satisfeitas pela fonte no momento da sua produção.
Note-se que, dentro do elemento histórico há que considerar aspetos:
→ objetivos – tendo que atender aos precedentes normativos (respeitam aos
antecedentes da lei, que podem ser históricos – leis que antecederam a lei que
se interpreta e que esta substituiu – ou comparativos – leis vigentes em outros
ordenamentos jurídicos no momento da formação da lei) e doutrinários (para
interpretar a lei também é relevante conhecer o ambiente doutrinário que
existia no momento da sua elaboração, pois que não é raro que a lei consagra
como direito positivo orientações de caráter doutrinário), nunca descurando da
occasio legis (respeita ao condicionalismo que rodeou a formação da lei: toda a
lei interage com a realidade política, social, económica, cultural ou outra que
existe no momento da sua formação, pelo que o conhecimento desta realidade
ajuda a compreender o seu significado).
→ Subjetivos – tendo de atender à intenção do legislador no momento da criação
da norma. do elemento histórico refere-se a intenção do legislador. Como meios
auxiliares para a determinação desta intenção há que considerar, entre outros,
as exposições oficiais de motivos, os trabalhos preparatórios, os vários

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anteprojetos, projetos que antecederam a sua versão final e a discussão que


ocorreu nos órgãos legislativos.
Importa precisar que, quando, neste contexto, se fala da intenção do legislador,
está-se a referir, não tanto à vontade real do legislador, mas antes ao que pode
ser inferido dos aludidos meios auxiliares como sendo a hipotética vontade do
legislador.

Apesar de não se encontrar referido no art.º 9, o elemento histórico tem também,


além de uma dimensão retrospetiva, uma dimensão evolutiva: trata-se de saber qual
a interpretação que tem sido dada, pela jurisprudência e pela doutrina, a uma
determinada lei após o início da sua vigência, de forma a averiguar que novas
necessidades, diferentes daquelas que justificaram a sua produção, têm sido entendidas
como podendo ser satisfeitas pela lei. Apenas a aplicação desta a novos casos pode
constituir um ponto de partida para novas interpretações dessa fonte, sendo essa a base
para a interpretação evolutiva das fontes do Direito.

6.5. Elemento sistemático


O elemento sistemático decorre da orientação de Savigny, de que os institutos jurídicos
constituem um sistema e apenas em conexão com este sistema podem ser
completamente compreendidos. Assim, o elemento sistemático da interpretação é tanto
uma consequência, como um postulado da unidade do sistema jurídico, pois ele visa
assegurar que nenhuma fonte seja interpretada em divergência com esse sistema.
Contudo note-se que, apesar do elemento sistemático impor uma interpretação
sistemática, não garante que o resultado seja uma interpretação conforme ao sistema,
dado que é possível que o intérprete conclua que nenhuma interpretação da lei é
suscetível de assegurar a conformidade com o sistema.
Nesta hipótese torna-se necessário resolver o conflito normativo através: da revogação
ou da invalidade de uma das regras; da qualificação de uma das regras como especial ou
excecional perante a outra; ou, em última análise, da escolha de uma das regras em
conflito, através da ponderação dos respetivos interesses.
O elemento sistemático impõe que a lei seja interpretada no respetivo ambiente
sistemático, ou seja, impõe que se passe do preceito para o texto legal que o contém.

O elemento sistemático orienta-se pelo princípio da igualdade (art.º 13 CRP): o que é


igual deve ser tratado de forma igual e o que é diferente deve ser tratado de forma
diferente, na medida da sua diferença. Considerar o enquadramento da lei permite
evitar contradições valorativas dentro do sistema, pois, através dele consegue-se obviar
a que os mesmos factos ou as mesmas situações sejam valoradas de forma desigual em
duas leis distintas.
O elemento sistemático também permite resolver uma das principais dificuldades da
interpretação da lei: a da polissemia ou ambiguidade semântica das palavras (e.g. só em

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função do contexto é possível determinar se a palavra “ação” designa uma conduta


humana, um processo pendente em tribunal ou um valor mobiliário).

6.6. Elemento teleológico


O elemento teleológico respeita à finalidade da lei: através deste elemento procura-se
determinar quais são os objetivos que a lei pode prosseguir. Este elemento distingue-se
do histórico porquanto o elemento histórico procura a justificação para a reprodução
da lei, este procura encontrar a finalidade que justifica a vigência da lei (visando
responder à pergunta “para que é que serve a lei?”).
O elemento teleológico impõe que um intérprete procure descobrir a ratio legis (espírito
da lei), estando-lhe vedado o entendimento de que a fonte não prossegue a realização
de nenhum fim. Este elemento encontra-se consagrado na referência constante do art.º
9/1 às “condições específicas do tempo em que é aplicada”.
Deste modo, facilmente se reconhece a importância do elemento teleológico da
interpretação, dado que auxilia a compreender determinada lei e a perceber em que
situações ela deve procurar dar uma resposta.

Para determinar a teleologia da lei é necessário compreender, antes do mais, a sua


estatuição. Só percebendo o que é que a lei estatui (o que ela permite, proíbe ou obriga)
é possível determinar qual a finalidade por ela prosseguida. Para a compreensão da
estatuição pode ser necessário considerar o enquadramento sistemático da lei, já que,
muitas vezes, o que a lei permite, proíbe ou obriga, só pode ser entendido no âmbito do
seu contexto.

A teleologia da lei não pode ser entendida em si mesma, pelo que, para a determinar é
indispensável atender ao ambiente socioeconómico, político e cultural em que a fonte
é interpretada, mas é também necessário considerar fatores jurídicos.
Para a determinação da teleologia da lei não se pode deixar de atender às respetivas
consequências, i.e., havendo duas ou mais teleologias possíveis, há que evitar aquelas
que sejam incompatíveis com o sistema e há que escolher a que melhor se coadunar
com esse mesmo sistema.
6.7. Conjugação dos elementos
Nenhum dos elementos da interpretação, em si mesmo, determina o significado da lei,
mas cada um deles dá um contributo para essa mesma determinação. Com respeito pela
exigência da mínima correspondência da interpretação com o texto da lei (art.º 9/2),
cada um daqueles contributos tem de ser sopesado em conjugação com todos os
demais.
O art.º 9/1, ao impor que o intérprete reconstitua o pensamento legislativo a partir do
texto da lei, mostra que pode haver oposição entre o elemento literal e os vários
elementos não literais, mas não entre cada um destes últimos, ou seja, o elemento
histórico, sistemático e teleológico devem ser vistos numa perspetiva aditiva, pelo que,

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cada um deles traz algo que deve ser conjugado com aquilo que resulta de cada um dos
demais.
Em suma, o intérprete deve escolher a interpretação que, dentro dos limites impostos
pela correspondência mínima com a letra da lei (art.º 9/2) e com o apoio na
justificação histórica da lei, melhor se integrar no sistema jurídico e melhor se adequar
às necessidades sociais.

Os elementos lógicos da interpretação encontram amparo no art.º 9:


→ Elemento histórico e também, em parte, o teleológico – “as circunstâncias em
que a lei foi elaborada”
→ Elemento teleológico – “as condições do tempo em que é aplicada”
→ Elemento sistemático, sendo relevante notar que se faz referência à mens legis
(espírito da lei) – “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo
sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”.

7. Interpretação autêntica
A interpretação autêntica é feita pelo órgão de onde a lei emana ou por outro órgão
com idêntica competência legislativa, não se incluindo nesta qualificação a opinião
emitida por um responsável pela elaboração da lei (e.g. pelo membro do Governo que
preparou o projeto), devendo esta interpretação autêntica revestir forma não inferior à
da lei que se interpreta. Uma regra interpretativa determina o sentido de outra regra
jurídica.
Esta pretensa via interpretativa em que o porta-voz do órgão legislativo ou um membro
do Governo vem indicar um sentido da regra jurídica é muitas vezes identificada como
interpretação oficial, mas só releva como elemento interpretativo, em princípio,
associada ao elemento histórico, segundo Sandra Lopes Luís. Já Marques da Silva
desvaloriza a designada interpretação oficial, mesmo nos casos em que o próprio
diploma determina que as dúvidas serão resolvidas por despacho interpretativo.
De igual modo, pode entender-se como interpretação oficial a que é feita por entidades
públicas (como os pareceres do Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e
Notariado ou os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República),
mas só se pode admitir como mero auxiliar interpretativo, não vinculando o aplicador
do direito.
A lei interpretativa integra-se na lei interpretada (art.º 13/1), pelo que esta passa a ser
entendida com o sentido que decorre da lei interpretativa. A lei, para ser qualificada
como interpretativa, não carece de ser expressamente indicada nesta qualidade, nada
obstando a que, por via da interpretação, se conclua que determinada lá e, apesar da
omissão de qualquer referência expressa, corresponde a uma lei interpretativa.
Por via de regra, a lei interpretativa indica expressamente que visa determinar o sentido
de uma regra vigente, de outro diploma, mas poderá concluir-se que o legislador,
mesmo sem indicar, tinha em vista interpretar uma dada lei.

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A interpretação autêntica, além de se distinguir da interpretação oficial, também não se


deve confundir com a interpretação judicial. Ainda que aos tribunais tenham sido
cometidas funções de interpretação, estas circunscrevem se ao caso concreto, não
constituindo precedente aplicativo. Assim, apesar de a jurisprudência, particularmente
quando constante, ser fonte mediata do direito, a interpretação de dado preceito feita
por um tribunal não vincula terceiros em subsequentes aplicações da mesma regra.
Todavia, há exceções: sendo conferido a um tribunal o poder de interpretar com força
obrigatória geral uma determinada regra jurídica, este interpretação equivale à
interpretação autêntica (é o caso do TC).

8. Resultados da Interpretação
a) Interpretação declarativa
Por via da interpretação declarativa procede-se à exposição explicativa do sentido da
regra. Verificando-se que a coincidência entre a letra e o espírito da lei inicia-se no
sentido apurado, é imperioso demonstrar que a letra da lei corresponde ao sentido que
resulta também dos elementos histórico, sistemático e teleológico.
E.g. o termo “homem” surge no art.º 362 no sentido de ser humano, contudo, nos art.º
1320 e 1326 este termo já é utilizado no sentido de oposto aos atos da Natureza.
Existem termos que necessitam de explicação contextualizada, como por exemplo a
boa-fé, a ordem pública ou os bons costumes, os quais, ao enunciar a regra, necessitam
de explicar a abrangência de sentido possível e o enquadramento na situação concreta.
Na interpretação declarativa, os termos utilizados na letra da lei têm de ser
interpretados no respetivo contexto, deste modo, quando se proíbe em determinada
via a circulação de carroça puxada por cavalo, por interpretação declarativa, inclui-se a
proibição de circulação de carroça puxada por burro, pois o termo cavalo, no contexto,
é usado como animal de tração.
Em suma, a interpretação declarativa é uma explicação expositiva de elementos
lógicos da interpretação e incluindo que não há divergência entre ela e o espírito da
lei. Na eventualidade de se detetar uma falta de coincidência entre a letra da lei e o
seu espírito, há que reconstruir o sentido da regra, seja pela interpretação extensiva,
seja pela interpretação restritiva.

b) Interpretação extensiva
Da relação entre o disposto na letra da lei e o que se retira do seu espírito conclui-se
que o legislador disse menos do que queria (minus dixit quam voluit), assim,
atendendo aos elementos lógicos, conclui-se que a formulação linguística ficou aquém
do que se pretendia, e o intérprete, recorrendo à interpretação extensiva, procurará
alcançar o sentido correto da regra.

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Na interpretação extensiva não se corrige o texto da lei, pois o intérprete limita-se a


concluir que o sentido é mais abrangente do que resulta da letra da lei (e.g. no art.º 877,
aos estabelecer a proibição de venda a filhos ou netos, extensivamente abrange
também a venda a bisnetos, portanto a regra tem em vista evitar que, mediante
contratos de compra e venda, sejam ocasionados prejuízos Aos restantes de legítimo
interesse; contudo, será difícil se incluir neste artigo a proibição de venda a outros
parentes, nem em situações em que os filhos pretendem vender aos pais).

Como resulta do art.º 11, a interpretação extensiva não está vedada no caso de normas
excecionais: estas também comportam interpretação extensiva, ainda que tal via
interpretativa possa ser complexa perante regras excecionais (e.g. art.º 503; neste
preceito prescreve se a responsabilidade objetiva sem culpa daquilo que tem a direção
efetiva de um veículo de circulação terrestre, sendo problemático admitir uma
interpretação extensiva da norma de molde a abranger veículos que circulem na água
ou no ar; pode concluir-se que tal sentido extensivo contraria o espírito da norma,
aplicável exclusivamente a veículos de circulação terrestre e ainda se pode entender que
aplicar a solução prevista neste artigo a outro tipo de veículos seria analogia, vedada no
art.º 11).

c) Interpretação restritiva
Através da interpretação restritiva a conclusão é a inversa da interpretação extensiva,
admitindo que a lei diz mais do que pretendia (magis dixit quam voluit). A formulação
legal é mais abrangente do que o sentido que se deve retirar do pensamento
legislativo, pelo que se conclui que o resultado interpretativo é mais restrito, assim, a
interpretação restritiva alcança-se recorrendo à ratio legis, atenta à máxima latina
cessante ratione legis cessat ius dispositivo (cessando a razão da lei cessa o seu
dispositivo).
E.g. No art.º 202 como fundamento para qualificar o negócio como usurário, alude-se a
explorar o estado mental, entendendo-se restritivamente que será unicamente uma
exploração do estado mental depressivo.
Por via da interpretação restritiva alcança-se o correto sentido do preceito, restringindo
o sentido que decorria da letra da lei em função do que resulta dos elementos lógicos
da interpretação.

d) Interpretação enunciativa
Discute-se interpretação enunciativa constitui um processo autónomo de determinação
do sentido da regra jurídica ou se, pelo contrário, representa um mero modo de
complementar a interpretação declarativa. Na interpretação enunciativa estão em
causa inferências lógicas que se retiram da regra jurídica, podendo entender-se que
extravasa uma mera interpretação.

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Na medida em que, por via da interpretação enunciativa, se descobre uma regra


implícita, pode assim entender-se, que se está perante um processo autónomo. Com
efeito, determinar uma regra subentendida com base noutra regra, supera a mera
interpretação declarativa; no fundo, está-se a determinar se uma regra implícita na
fonte que se interpreta, não é a livre criatividade de uma norma, mas a determinação
de uma regra assente em parâmetros argumentativos consagrados.
Tanto assim o é que OA nem considera que isto se trate de uma verdadeira
interpretação, mas antes de um processo de determinação de uma regra, ao qual Dias
Marques chama de “descoberta de normas implícitas”.
Por outro lado, a interpretação enunciativa recorre a distintos argumentos jurídicos para
determinar a regra implícita, mas também para justificar o resultado alcançado e esta
lógica argumentativa não é exclusiva da interpretação enunciativa. O recurso aos
argumentos lógicos para fundamentar o sentido de uma regra é válida em qualquer tipo
de interpretação.
No fundo, segundo RM, ainda que se autonomize pelas razões apontadas, a
interpretação enunciativa é um modo de realização da interpretação declarativa, mas
igualmente das interpretações extensivas e restritiva.

Argumentos jurídicos:
i. Argumento a fortiori (por maioria de razão)
Processo argumentativo que assenta numa comparação, permitindo concluir que, se em
determinado caso a solução legal seria uma, noutra hipótese similar, mas mais
significativa, não se poderia chegar a conclusão diversa.
Este argumento também se apoia nos elementos lógicos da interpretação, sendo
necessário questionar qual a finalidade da regra.

ii. Argumento ad maius (se proíbe o menos, proíbe o mais)


A norma proibitiva que impede certa conduta, logicamente proíbe condutas mais
gravosas. Este argumento indica implicitamente a existência de uma regra, em princípio
aplicável no âmbito de regras proibitivas, assim como através dele se pode alcançar uma
interpretação extensiva.
Este argumento pode ainda ter uma derivação consequencial: proibida uma conduta
estão igualmente proibidos os atos derivados e as correspondentes consequências. E
também, proibido o fim, proibido o meio para o alcançar.

iii. Argumento ad minus (se permite o mais, permite o menos)


Este argumento aplica-se nos casos em que uma norma permissiva, ao permitir certa
conduta, implicitamente também permite condutas menos gravosas. Este argumento
tem um âmbito mais vasto do que a mera relação quantitativa ou de gravidade, não só

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admite condutas menos gravosas ou quantitativamente de menor impacto, como


igualmente, na relação montante/jusante, usados pressupostos e sequenciais.
Assim, o argumento ad minus permite concluir que estão supridos os pressupostos e
consequências relacionados com a regra permissiva, mesmo que não se consiga
estabelecer uma conexão de menor gravidade.

iv. Argumento a contrario sensu


Este argumento encontra-se direcionado para as regras excecionais, pelo que também
assenta numa lógica comparativa. Sabendo-se determinada regra excecional, a
contrario sensu determina-se a regra geral. Como a regra excecional contém uma
solução oposta, implicitamente determina-se qual é a regra geral. Se para um caso
especial se estabelece uma solução excecional, a regra contrária será válida para os
demais casos.
A dificuldade reside na necessidade de verificar se a regra contém uma solução
excecional, já que, por norma, só se conclui que uma regra é excecional por se conhecer
a regra geral e depois de se verificar que a solução jurídica daquela é oposto à prescrita
nesta. Neste caso, não se dispõe da regra geral, que é determinada de modo implícito
(a contrario sensu).
Em suma, este argumento, ainda que aparentemente muito simples, suscita inúmeras
dificuldades de aplicação, essencialmente relacionadas com a qualificação do caráter
excecional da regra.

v. Argumento a simile
Tendo por base o princípio da igualdade e com fundamento na unidade do sistema
jurídico, conclui-se que se a regra dispõe de um dado sentido, perante um caso com
contornos análogos, não enquadrável diretamente na sua previsão, deve seguir-se o
mesmo sentido interpretativo.
O legislador, com base neste argumento, por vezes, remete a solução de um instituto
para a prevista no outro instituto.

vi. Argumento ad absurdum (redução ao ridículo)


Este argumento visa demonstrar que a interpretação de uma regra num dado sentido é
ilógica, por conduzir a uma solução incongruente ou contraditória com o sistema
jurídico.
É um argumento lógico que acentua a incongruência ou paradoxo para o qual conduz
uma dada interpretação, demonstrando que não pode ser seguida. Contudo, note-se
que este argumento padece da dificuldade de qualificação do que seja absurdo, pois,
muitas vezes, é usado como indicando a contrariedade a princípios gerais.

e) Interpretação ab-rogante

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Na interpretação ab-rogante, o intérprete verifica que a norma não se aplica, assim, não
se altera o sentido do texto, mas conclui-se que a norma não pode valer na ordem
jurídica.

1) Ab-rogação sistemática
Nesta ab-rogação conclui-se que a norma não se pode aplicar em razão de uma
contradição insanável, assim, surgiu uma regra contrária a outra de hierarquia superior,
como a Constituição, não podendo valer na OJ (neste caso padece de um vício de
inconstitucionalidade).
Esta ab-rogação pode também resultar da conclusão de certa regra ter sido revogada
implicitamente, nomeadamente no caso da revogação de sistema (art.º 7/2).
Por fim, este argumento resulta quando se conclua pela existência de uma contradição
entre duas regras do mesmo diploma, com soluções inconciliáveis ou que, por lapso, se
faça uma remissão para uma solução jurídica revogada ou inexistente (onde poderá
haver uma sobreposição entre a ab-rogação sistemática e a interpretação corretiva).

2) Ab-rogação teleológica
A ab-rogação teleológica ou valorativa, implica a não aplicação da regra, na medida em
que esta contraria valores fundamentais da OJ.
Se a regra contraria regras ou princípios constitucionais, pode, por via da declaração de
inconstitucionalidade proferida pelo TC, determinar-se a sua não aplicação, por
invalidade. Mas é controverso que essa ponderação possa ficar a cargo do intérprete
aplicador de regra jurídica, sob pena de arbítrio e, principalmente, porque acarretar em
segurança jurídica. Assim, segundo RM, não é de admitir a ab-rogação teleológica de
uma regra, invocando a contrariedade a princípios ou valores fundamentais, porquanto
essa ponderação seria naturalmente subjetiva, determinando incerteza e até
arbitrariedade nas soluções jurídicas.

f) Interpretação corretiva
Da interpretação da norma conclui-se que o sentido a que se chega é inadmissível,
incongruente ou inaceitável, tendo em conta princípios fundamentais e a unidade do
sistema jurídico: é neste momento em que se dirá que o legislador se enganou e o
intérprete tem de o corrigir.
A chamada correção do direito incorreto pode resultar de contradições de técnica
legislativa, de contradições normativas, de contradições valorativas, de contradições
teleológicas e de contradições de princípios.
Sem prejuízo da interpretação conforme à Constituição, que pode corrigir regras, Engisch
concluiu que o Direito à de permanecer Direito mesmo quando se mostra desajustado
ao caso concreto. O juiz não pode pretender corrigir o legislador já que está vinculado à

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lei. Segundo este autor, a ratificação de lapsos de redação cabe qualificar como
interpretação, mas a decisão contra legem está para já além da interpretação.
Engisch, recusando lançar o Direito contra a lei, admite excecionalmente uma espécie de
ratificação da lei no caso de a contradição da lei positiva com a justiça atingir um grau
tal e seja de tal maneira insuportável que a lei, como Direito injusto, tenha de ceder
perante a justiça.
A interpretação corretiva vai além da interpretação atualista ou da correção decorrente
da interpretação extensiva ou restritiva, porque o sentido assim alcançado não tem
qualquer amparo na letra da lei nem nos elementos lógicos da interpretação. Esta
implica que o intérprete reescreva a lei, na medida em que o texto que dela consta é
inadmissível, por contrariar princípios fundamentais da OJ, ou incongruente por via de
um lapso.
Assim, a interpretação corretiva pode assumir duas vias:
→ A correção material, por contrariedade a princípios jurídicos, a qual não parece
aceitável como via interpretativa, abrindo a porta ao arbítrio na aplicação do
Direito e à insegurança jurídica. A OJ prevê meios de fiscalização da
constitucionalidade e da legalidade das regras jurídicas, apreciação esta que
passa também pela ponderação da conformidade com princípios fundamentais
do sistema; fora deste contexto, não pode o intérprete aplicador corrigir a
norma, por entender que contraria princípios fundamentais, sob pena de
insegurança jurídica.
Na medida em que esta extravasa a interpretação restritiva, está trilhado o
caminho da insegurança jurídica, atendendo à multiplicidade dos fins que se
podem vislumbrar subjetivamente na lei.
Na aplicação judicial do direito, há ainda um argumento para afastar a
interpretação corretiva: a vinculação do juiz à lei e a irresponsabilidade do juiz
que aplica a lei, leva-nos a perceber que a irresponsabilidade é inaplicável ao juiz
que não se vincula à lei.
→ De modo limitado e com justificação objetiva, pode haver lugar à interpretação
corretiva de lapsus scribendi. Assim, quando há um lapso na escrita, um erro de
cálculo, admite-se interpretação corretiva. Contudo, note-se que a correção de
um erro manifesto pode entroncar na ab-rogação sistemática.
Não correspondendo propriamente à interpretação corretiva, podem admitir-se
valorações interpretativas, decorrentes do espírito do sistema, desde que estas
encontrem amparo no elemento teleológico da interpretação.

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§37. INTEGRAÇÃO DE LACUNAS


1. Determinação de lacunas
A lacuna do direito pressupõe uma falta de regulamentação, isto é, uma incompletude
do sistema. Contudo, como decorre inclusive do art.º 10, normalmente só se atende a
lacuna da lei. Como a lei é impotente para regular todas as situações da vida, pois a
realidade prática têm sempre hipóteses mais ricas do que a imaginação humana,
importa apurar se existe regra aplicável ao caso concreto, não se encontrando sempre
a regra adequada para a resolução do caso real. A existência de lacunas é inevitável em
qualquer ordem jurídica, ainda que, num positivismo extremo, se nega a possibilidade
de existência de lacunas, atenta à plenitude do sistema jurídico.
Verificando que a regra existente não se pode moldar a solução daquilo caso acaba o
intérprete concluir pela existência de uma lacuna, sendo que não há lacuna se a regra
que omite a regulamentação tem uma remissão para direito subsidiário ou, se por via
interpretativa (onde se inclui a interpretação extensiva) se conclua pela sua
aplicabilidade ao caso concreto.

A lacuna pode advir de falta de provisão, por impossibilidade, na medida em que a


situação jurídica era imprevisível, inesperável (e.g. multiplicidade de lacunas que se
detetaram em situações jurídicas relacionadas com a pandemia conhecida por Covid-
19). Mas há lacunas intencionais, em que a falta de regulamentação foi querida:
▪ Já que a matéria é fluida e não fui ainda encontrada uma solução adequada,
estando em desenvolvimento científico e tecnológico, ou suscita controvérsia e
se não quer fixar, por ora, uma solução.
▪ Atenta a dificuldade de encontrar uma solução geral, remete se para a solução
que for encontrada pelo Tribunal na aplicação do caso concreto (e.g. art.º
566/3).
▪ Matérias que o Direito não pretende se regular, por se encontrarem no âmbito
da liberdade individual (e.g. ordem do trato social), sendo que neste caso, a falta
de regulação destas matérias não constituem verdadeiras lacunas.

Verificada a existência de uma lacuna e atendendo à proibição de non liquet (art.º 8/1),
o intérprete aplicador terá de proceder à integração da lacuna (art.º 10).
Ainda que haja esporádica e específica previsão de regras sobre integração de lacunas,
o regime geral da integração de lacunas, nos diferentes ramos do direito, consta do CC.

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Não há interpretação, há que distinguir a integração de lacunas da lei (art.º 10), da


integração de lacunas do negócio jurídico (art.º 239), suscitando também a dúvida se a
normação corporativa segue o regime do art.º 239.

Para se poder recorrer à integração é necessário, primeiro, detetar a existência de uma


lacuna. Neste processo interpretativo, começa por se averiguar se a questão deveria
estar regulada, pois pode tratar-se de caso alheio à regulamentação jurídica.
assim, só a lacuna se falta a regulamentação numa área que deveria ter uma solução
jurídica, podendo daqui resultar uma dúvida de quais as áreas que carecem de
regulamentação jurídica, pois, atendendo a concepção política, há divergências entre
uma concepção liberal e uma perspetiva dirigista.
Seguidamente, há que apurar da inexistência de regra aplicável ao caso concreto,
diretamente ou por remissão, não havendo regra jurídica Aplicável ao caso, pode estar-
se perante uma lacuna oculta, pois, de facto, a regra decorre de remissão, de um
processo lógico de argumentação, etc., e tem de se determinar, por via da interpretação,
se há efetivamente uma lacuna. Neste processo de descoberta da lacuna, tem de se
apurar que não há lei ou costume aplicável, nem mecanismo previsto para solucionarem
completo do regime aplicável (e.g. remissão para decisão de terceiro).
Depois de se concluir que o sistema jurídico padece de uma incompletude, está
detetada a lacuna e há que preencher a falha do sistema, procedendo à sua integração.
A determinação da existência de uma lacuna passa, assim, por um processo de
interpretação, já que a pela interpretação que se conclui que há uma lacuna. Por via da
interpretação sistemática, pode concluir-se que a lacuna é aparente, pois, afinal, para o
caso concreto encontrava-se a solução através de uma remissão. Seja por via de uma
decisão judicial, seja por remissão para um regime jurídico, a suposta lacuna foi
solucionada pelo binómio interpretação/aplicação.

O recurso à integração de lacunas é residual, pois a intervenção legislativa,


particularmente intensa no Estado social, tem a preocupação de regular a maioria dos
casos da vida em sociedade. Por outro lado, detetada uma lacuna, eu usual verificar-se
pronta intervenção legislativa, ficando, deste modo, Colmatada a falha de regra e
eliminando os casos omissos. Acresce que, recorrendo frequentemente o legislador a
conceitos indeterminados, com um âmbito e aplicação muito amplo, são cada vez
menos os casos de lacunas.

2. Classificação de lacunas
Lacuna aparente –percorrido o processo interpretativo, conclui-se que a solução para o
caso concreto se encontra, por remissão, noutro regime o que indiretamente se resolve
a questão por via de critérios indicados, nomeadamente por aplicação da equidade.
Sendo aparente, a lacuna não carece de integração, já que a resolução do caso alcança-
se pela interpretação.

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Interessa atender a lacuna que decorre de a lei não previr regulamentação para o caso,
tanto por se tratar de uma lacuna intencional como de lacuna imprevista, em razão da
novidade do caso. É esta lacuna, intencional ou prevista, que carece de integração nos
termos previstos no art.º 10.
Lacuna patente – identificável de imediato.
Lacuna oculta – identificável apenas após um processo de interpretação restritiva da
norma aplicável ou de eventual redução metodológica.
Lacuna da lei stricto sensu – quando a matéria não regulada se encontra omissa no texto
legal em avaliação (e.g. o CC).
Lacuna do Direito – quando a falta de previsão é a nível de todo o ordenamento jurídico.
Lacunas de colisão – lacunas resultantes de uma contradição insanável entre normas
jurídicas, de onde se conclui pela inaplicabilidade das regras em conflito (contradição
esta, geralmente decorrente da perspetiva teleológica da interpretação).
Lacunas rebeldes – inaplicabilidade da analogia, ou seja, não se consegue resolver o
caso em apreço pela via da integração, mormente pela falta de caso análogo.

3. Integração de lacunas
a) Justificação
A integração de lacunas pode ser feita por meios extra-sistemáticos (e.g. equidade), ou
por processos intra-sistemáticos, mediante o recurso à analogia (art.º 10/1) ou por via
da norma que o intérprete criaria (art.º 10/3).
Para a resolução de questões decorrentes de lacunas recorre-se à integração, prevista
no art.º 10/1. Note-se que, são raros os casos em que os tribunais recorrem ao art.º 10,
dado ao facto da complexidade problemática da integração de lacunas e a analogia não
encontrarem correspondente prática na aplicação do direito.

O processo de integração de lacunas tem uma sequência lógica, decorrente do


pensamento sistemático tendo em vista a unidade do ordenamento jurídico. Primeiro,
há que proceder à procura da regra aplicável ao caso, encontrada a regra, sendo
preliminarmente escolhida como adequada para se aplicar ao caso concreto, há que
proceder à integração da regra, podendo, então, concluir-se que há uma lacuna.
Nesse caso, cabe proceder à integração da lacuna e aplicar, depois, a regra que se obteve
por via da integração. O primeiro passo no processo de integração corresponde a uma
complexa interpretação de várias regras jurídicas até concluir que, naquele caso, há uma
efetiva lacuna.
Concluída a primeira tarefa identificar a existência de uma lacuna, cabo, seguidamente
reconhecer a existência de uma semelhança jurídica entre o caso decidendi e em
análogo que está abrangido na previsão da regra a que se recorre para a analogia. Para
superar esta segunda dificuldade há que atender a critérios de integração. Nesta fase,

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importa determinar semelhanças jurídicas entre o caso que se pretende decidir e um


hipotético enquadrável na previsão de uma regra jurídica, sendo isto o que
denominamos por analogia.

b) Intervenção legislativa
Não raras vezes, detetado uma lacuna, o legislador intervém, regulando a matéria. É
frequente que as lacunas, salvo as intencionais, sejam colmatadas por intervenção
legislativa, porquanto a existência de uma lacuna corresponde a uma falha de
regulamentação.
Nalgumas áreas jurídicas ocorre um aparente preenchimento de lacunas por avisos,
informações, ordens de serviço, etc. (e.g. em direito fiscal recorre amiúde a despachos
interpretativos com a finalidade de preencher lacunas). É duvidoso que por esta via se
possam efetivamente preencher lacunas, ainda que o ato possa ter um valor e
humorístico, como auxiliar interpretativo.

c) Poder discricionário
São, ainda hoje, usuais, remissões para um órgão administrativo, tendo em vista
preencher lacunas da lei. Sem prejuízo das dúvidas de legalidade quando vou ser
conferido a um órgão administrativo o poder de integrar lacunas da lei, por contrariar o
princípio da separação de poderes, a tomada de decisão da entidade, mesmo que se
entenda que não tem o valor de integração de uma lacuna da lei, terá relevo
hermenêutico.
Também surgem lacunas nas relações contratuais e para a eventualidade de não haver
regra legal supletiva, caso em que se concluiria pela existência de lacuna, pode estar
previsto um modo de colmatar a lacuna contratual (e.g. é usual provirem estatutos de
associações que as dúvidas são resolvidas por decisão do presidente da direção). Em tal
caso, está determinado o modo de preenchimento da lacuna, não sendo necessário
recorrer a um processo de integração.
A integração de lacuna por via da intervenção de entidade com poder para tal, não
assenta na pura discricionariedade, pois o preenchimento da lacuna deve atender a
diretrizes básicas, mormente, como se indica no art.º 10/3, ao espírito do sistema.

4. Analogia
a) Identidade e critérios identificadores
Por via da analogia pretende-se tratar de modo igual casos semelhantes (art.º 10),
utilizando por argumento o princípio da igualdade. deste modo, verificando-se a
existência de uma lacuna, o caso para o qual não se encontra regra que o solucione deve
ser resolvido de modo idêntico ao que ocorreria noutros casos com similitudes.

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Contudo, para proceder à integração das lacunas da lei, importa considerar critérios que
justificam a analogia.
O primeiro critério é que se atende para a integração, previsto no art.º 10/2 virgula
recorre às mesmas razões justificativas da regulamentação legal, apesar de a situação
ser diversa. Tem de haver diversidade para haver lacuna, mas alguma similitude para se
poder recorrer à analogia. No fundo, como indicar, só há lacunas e o caso concreto for
diverso daquele que a regra se aplica, caso contrário, a solução encontrar-se-ia por via
da interpretação, nomeadamente a interpretação extensiva. Havendo total semelhança,
o caso inclui-se na regra e esta aplica-se diretamente só por via da interpretação.
Perante a diversidade factual e ausência de previsão de regra aplicável, já detetada pela
interpretação, há que apurar se o caso análogo é idêntico ao caso decidendi.
Apesar da diversidade, que justifica a existência de uma lacuna, têm de existir suficiente
semelhança que permita a analogia. A semelhança em causa pode ser determinada por
um núcleo fundamental que a identifica os dois casos.

A analogia opõe-se ao argumento a contrario, já que, enquanto que na analogia se


procura numa situação similar, neste argumento, determina-se a existência de uma
regra oposta.
Frequentemente, pelo argumento a contrario, com base numa regra excecional,
determina-se regra geral, com um sentido oposto. Daí a limitação constante do art.º 11,
prescrevendo que as regras excecionais não comportam aplicação analógica, mas
admitem interpretação extensiva.

b) Aplicação analógica e interpretação extensiva


A distinção entre interpretação extensiva e integração de lacuna, nas situações
concretas, pode ser complexa.
Na interpretação extensiva, com base na fonte determina-se um sentido que extravasa
a letra do preceito, mas que corresponde ao pensamento legislativo. Na lacuna não há
regra aplicável para ser interpretada, e recorre-se à correspondente integração,
cronologia com uma situação similar.
Mas nas situações concretas, a delimitação pode ser problemática (e.g. recorrendo ao
exemplo da inexistência de prazo de garantia previsto na compra e venda de imóveis,
até 1994 virgula data em que foi introduzido o art.º 916/3, poderia sustentar-se a
aplicação a compra e venda do regime de garantia para a empreitada de imóveis, 5 anos,
mas a jurisprudência discutia se essa aplicação seria por analogia, similitude entre venda
de um imóvel e construção de um imóvel, ou por interpretação extensiva, admitindo
que o art.º 1225 se aplicaria a construção e venda de imóveis pelo construtor e,
extensivamente, a outras vendas de imóveis).

Atendendo à distinção entre interpretação extensiva e integração de lacuna,


compreende-se a solução diferenciada do art.º 11. Sendo a norma excecional, pode

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concluir-se, tendo por base os elementos lógicos da interpretação, que o legislador, na


letra do preceito, disse menos do que queria, sendo que, deste modo, procede-se a uma
interpretação extensiva da norma excecional.
Mas, detetando se uma lacuna, não pode a mesma ser preenchida com base numa
norma excecional, em razão do caráter diferenciado desta, por contradizer a regra geral.
Em princípio, a lacuna será preenchida pela regra geral e não pela excecional (sendo
este o fundamento do art.º 11).
Contudo, se a lacuna for detetada numa área conexa com aquela em que se justificou
introduzir uma norma excecional, pode admitir-se a aplicação analógica de uma norma
excecional.

Nos termos do art.º 11, as regras excecionais não comportam aplicação analógica. Na
medida em que a solução excecional contraria a regra geral num campo de aplicação
específico, suscita óbvias dúvidas de justificação do recurso à analogia, essencialmente
relacionadas com a identidade das situações (e.g. atentar excecionalidade da
responsabilidade sem culpa, art.º 483/2 a responsabilidade objetiva referente a veículos
de circulação terrestre, art.º 503, não deve ser aplicável a outro tipo de veículos).
A regra excecional tem em vista um grupo limitado de casos, com contornos
particulares, pelo que, em princípio, não haverá identidade com o caso concreto (e.g. se
há um regime geral de construção na cidade de Lisboa e um regime diferentes ou
aplicável à construção na baixa pombalina, este regime excecional não é aplicável por
analogia), salvo se o caso omisso manifestar identidade com as especialidades
constantes do referido regime excecional, que pode ser complexo.
No art.º 7 do Decreto-Lei n.º 202/98 de 10 de julho, por vezes a responsabilidade civil
do navio, podendo a demanda ser intentada contra a coisa, ora, esta é, obviamente,
uma regra excecional com origem histórica, sabendo que a responsabilidade civil é
direcionada tão-só a pessoas. A solução constante do citado preceito não comporta
aplicação analógica, porque a ratio legis do preceito não encontra similitude com aviões
ou automóveis (esta é uma regra excecional que tem em conta unicamente aquela
hipótese, não se justificando a aplicação a casos análogos).
A proibição justifica-se porque a regra excecional constitui ius singulare (ou seja, não
corresponde a uma excecionalidade aparente, pois contraria uma regra geral
informadora do sistema jurídico; e.g. como no exemplo da responsabilidade do navio,
que se opõem um princípio geral nos termos do qual são as pessoas são responsáveis,
mas, pese embora a excecionalidade da regra, pode questionar-se se será aplicável a
outras impressões não qualifica como navios, sendo que, mesmo que a resposta seja
positiva, pode ancorar-se na interpretação extensiva).

c) Proibição de analogia
Na medida em que, por analogia, se aplica uma regra a um caso concreto que não se
encontra no âmbito da previsão dessa regra, essencialmente por motivos de segurança
jurídica, estabelecem-se algumas limitações quanto ao recurso à analogia.

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Pode haver uma proibição genérica de recurso à analogia, assim, no direito penal
impede se o recurso à analogia no que respeita às regras incriminatórias (regras que
identificam crimes, que determinam estados de perigosidade ou que prescrevem penas
ou medidas de segurança).
Em determinadas áreas jurídicas onde se determina um regime de tipicidade, limita-se
o recurso à analogia. A limitação esta via decorre da tipologia aberta ou a uma
enumeração exemplificativa, a analogia não é restringida. Assim, em direito fiscal, com
uma ratio não muito distinta das regras penais, não se admite o recurso à analogia.
Havendo tipicidade, em princípio, não pode aplicar-se na logicamente a solução prevista
para determinada situação típica a outra análoga (e.g. art.º 204). Contudo, não está
vedado que algumas regras das relações de vizinhança se apliquem a situações não
enquadráveis no âmbito de direitos reais (e.g. no que toca ou uma relação de vizinhança
entre concessionários ou utilizadores de barracas de praia). De igual modo, ao prever-se a
tipicidade das sociedades comerciais, não obsta à aplicação analógica de regras das
sociedades anónimas às sociedades por quotas e vice-versa.
A proibição de analogia existe igualmente em relação a regras excecionais, porquanto a
analogia basear-se-á na regra geral e não na excecional.

d) Analogia legis e analogia iuris


A analogia legis e a analogia iuris, também designadas analogia da lei e analogia do
direito, correspondem a uma contraposição entre dois modos de proceder à integração
de lacunas.
Na analogia da lei, a regra é encontrada com base numa solução normativa, atendendo
a outra regra jurídica aplicável a caso idêntico. Nesta via de integração, a busca do caso
análogo é feita com base numa precisa solução legal. Assim, admitindo que a
encomenda de uma obra de arte não corresponde à noção de empreitada, quanto à
Transmissão de propriedade do quadro pode aplicar-se analogicamente o art.º 1212.
Por outro lado, na analogia do direito, justifica-se a existência de uma regra aplicável ao
caso omisso invocando um princípio geral de direito. Determina-se a solução para a
situação não regulada recorrendo a princípios gerais de direito, ou seja, começa-se por
recorrer a um princípio e deste, retira-se uma regra aplicável ao caso concreto.
Este tipo de analogia, ou pretender encontrar a solução para o caso concreto a partir de
princípios jurídicos, pode levar, segundo RM, ao arbítrio e a incerteza jurídica,
porquanto, dependendo do princípio invocado, pode chegar-se a resultados indistintos,
além de que a regra que se extrai de um princípio não terá, por certo, um sentido
inequívoco. deste modo, segundo RM e MC, a analogia iuris já não é analogia,
correspondendo a um processo indutivo de procura de uma regra.
No art.º 10/1 só se alude a norma aplicável, sem referência a princípios jurídicos e, no
art.º 10/3, na falta de caso análogo, recorre-se a uma norma criada pelo intérprete.
Dir-se-ia, assim, que foi arredada a analogia iuris Virgula com tudo, a analogia com base
na norma aplicável a casos análogos encontra o seu apoio também em princípios gerais.

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A analogia constitui uma via para demonstrar a plenitude do sistema jurídico. Sistema
este que tem regras e princípios e, não estando a questão concreta regulada
expressamente, retira-se a solução de princípios plasmados em regras jurídicas.
A analogia implica sempre uma valoração e, sendo um processo valorativo, há que
atender a regras e princípios jurídicos. Daí que a fronteira entre analogia legis e analogia
iuris pode ser ténue, já que na analogia legis também se atende a princípios jurídicos
(embora uma analogia iuris fundada exclusivamente em princípios jurídicos, sem
amparo na lei, extravase a via da integração, como prevista no art.º 10, criando uma
situação de insegurança jurídica insuportável).

e) Razões de equidade
As razões de identidade para o recurso à analogia surgem mencionadas no art.º 10/2,
como razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei. As referidas razões
justificativas têm de ser ponderadas sob duas perspetivas: factual e valorativa.
Deste modo, há que apurar da existência de uma similitude factual entre o caso omisso
e o que se encontra na previsão da regra. Por um lado, cabe verificar se há uma
identidade de valorações, i.e., se a ratio legis da regra que se pretende aplicar por
analogia se enquadra valorativamente no caso omisso (é esta razão, denominada por
fator teleológico, a mais significativa para analogia).
Neste processo de integração da lacuna recorrendo a razões de identidade, ter-se-á de
partir do sistema jurídico, preconizando a sua unidade, no já mencionado pensamento
sistemático.
O caso omisso tem de ser semelhante, do ponto de vista factual e teleológico, o que está
regulado e cuja regra se pretende aplicar por analogia ao primeiro (e.g. o transporte
marítimo, previsto no Código Comercial, tem similitude com o transporte aéreo –
inexistente a data de aprovação do diploma –, pelo que as regras do transporte
marítimo, inicialmente aplicaram se, por analogia, ao transporte aéreo).

5. Norma que o intérprete criaria


Perante as designadas lacunas rebeldes a analogia, prevê-se no art.º 10/3, o recurso à
norma que o intérprete criaria. Ao recorrer à norma que o intérprete criaria a 3 diretrizes
relevantes:
1) Pretende-se evitar o arbítrio do intérprete aplicador.
2) Não se permite o apelo ao sentimento jurídico do intérprete aplicador.
3) Não se remete para uma solução a encontrar pela via da equidade.
Como pressuposto para se recorrer à norma que o intérprete criaria, é necessário que
se esteja perante uma lacuna rebelde da analogia, depois de, no termo do percurso
interpretativo, se ter concluído pela existência de lacuna relativa, e não tendo sido
encontrada regra aplicável ao caso análogo, então ter-se-á de enveredar pela via da
regra que o intérprete criaria.

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A solução prevista no art.º 10/3 destrinça-se da analogia iuris, não se pretende


encontrar uma regra retirada de um princípio geral, mas criar uma regra ad hoc, dentro
do espírito do sistema.
A norma que o intérprete criaria tem um limite decorrente do espírito do sistema. A
norma será criada atendendo a juízos de valor que informam todo o sistema jurídico e
não com base num princípio geral. A norma que o intérprete cria tem de se integrar no
sistema jurídico de modo coerente, i.e., tem de se conformar com o sistema jurídico.

Como, em última análise a lacuna será preenchida pela norma que o intérprete criaria,
RM, conclui pela existência da plenitude do ordenamento jurídico, em que todos os casos
têm solução, direta ou indireta, no sistema jurídico. Isto não significa que não haja
lacunas e que o sistema jurídico seja pleno, mas estão criadas as vias para se encontrar
uma solução tendo em vista resolver todos os casos concretos. No fundo, sem prejuízo
de haver lacunas, que são inevitáveis, há mecanismos jurídicos para, dentro do espírito
do sistema, resolver os casos concretos. A alusão ao espírito do sistema remete para o
pensamento sistemático.

5. Aplicação da lei no tempo


5.1. Enunciado
A vida em sociedade, com as consequentes mutações políticas, económicas e sociais,
implica cada vez mais a introdução de modificações nos regimes jurídicos, seja por via
de alterações legislativas, tanto pela reforma de leis vigentes como mediante revogação
e substituição por nova lei, revisões ou substituições de normas cooperativas, bem como
através da modificação de regimes contratuais, nomeadamente por alteração das
circunstâncias, ou de estatutos disciplinadores de relações jurídicas.
Em qualquer caso, tanto por via de alterações legislativas ou de regulamentação
particular as modificações determinam a aplicação de novas regras e situações jurídicas
vigentes, implicando a consequente modificação do regime jurídico aplicável a tais
relações jurídicas. Ainda que a lei não tenha por via de regra, um período de vigência
pré-definido, é usual, principalmente na atualidade, não ter uma vigência muito longa,
surgindo frequentes e sucessivas alterações, revogações parciais, etc.
Sendo alterado o regime jurídico aplicável a dada situação jurídica em curso, importa
determinar quais as modificações que a afetam, ou seja, em que medida as alterações
ao regime jurídico se repercutem numa relação jurídica em curso a data da sobredita
mudança de regime jurídico.
Perante uma modificação legislativa, costuma identificar-se a lei antiga, que representa
o “antes” e a lei nova, que indica o “depois”. Vale o princípio geral de aplicação imediata
da lei nova, em princípio a lei nova não tem efeito retroativo, mas, por vezes, surge uma
ficção de recriar a situação numa determinada data pretérita, mesmo sem ter havido
alteração legislativa.

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No fundo, para analisar a aplicação da lei no tempo é necessário compreender a


capacidade de ficção jurídica no que respeita a recriar situações no passado. O princípio
da aplicação imediata da lei não depende do conhecimento do destinatário (art.º 6) e
significa que a regra não se aplica para o futuro. Ainda que seja determinante o
momento da aquisição da situação jurídica, independentemente do conhecimento,
como refere Oliveira Ascensão, o destinatário assume a sua posição com alguma
intemporalidade.
Estabelecendo-se a fronteira, no sentido de a lei antiga se aplicar ao passado e a lei nova
valer em relação ao futuro, surge a dificuldade na determinação do momento em que
cessa a aplicação da lei antiga e tem início a aplicação da lei nova, não só em razão de
desconhecimento, como porque a vida é dinâmica e não se pode estabelecer uma
paragem no dia da entrada em vigor da lei nova. Formalmente dir-se-ia que o momento
relevante é o da data da entrada em vigor da lei nova, mas, especialmente em factos e
situações jurídicas continuadas, por exemplo é o arrendamento.
Sendo a situação jurídica instantânea, como o atropelamento, a questão da aplicação
da lei no tempo fica mitigada. É perante casos com factualidade continuada ou de
produção sucessiva que se coloca com maior acuidade o problema da aplicação da lei
no tempo. Nas situações jurídicas instantânea, importa essencialmente determinar se o
facto ocorreu durante a vigência da lei antiga ou depois da entrada em vigor da lei nova.
Mas se o facto é continuado ou de produção sucessiva, assim como se a situação jurídica
se prolonga no tempo, tendo início durante a vigência da lei antiga e continuando depois
de a lei nova ter entrado em vigor, há um problema complexo de aplicação da lei no
tempo. E mesmo facto tendencialmente instantâneos, em determinado contexto,
podem ter continuidades.
As alterações de regime jurídico implicam um conflito entre a expectativa de
estabilidade da ordem jurídica e a necessidade de adaptação das situações jurídicas a
novos condicionamentos. O direito, além da função estabilizadora e apaziguadora de
conflitos, tem igualmente em vista a permanente adaptação a novas realidades,
condicionando as soluções à evolução da vida. Desta dualidade surge o conflito entre o
regime jurídico passado e o presente. Ora, sendo uma das funções essenciais do direito
a de estabilidade, segurança jurídica, permitindo que os destinatários orientem as suas
condutas em função das soluções jurídicas, questiona-se em que medida essa
orientação pode ser alterada, por novo regime jurídico. Mas como o direito tem de se
ajustar a novas vicissitudes, podem surgir novas leis, só que estas não podem orientar e
determinar condutas passadas. Particularmente, em razão da confiança criada nos
destinatários, cujas condutas foram determinadas pela lei vigente ao tempo, a nova lei
não deve ter efeito retroativo.
Mas, simultaneamente, a nova lei tem de implementar as inovações adequadas à
evolução ocorrida, tendo em conta os interesses envolvidos, entre a estabilidade e o
interesse público na transformação e adaptação a novas vicissitudes. A estabilidade
surge representada nos “direitos adquiridos”, por vezes, para dar maior ênfase, nos
“direitos legitimamente adquiridos”, contrapondo-se o interesse na adaptação, que,
igualmente para dar maior ênfase, surge referenciado como interesse público geral na
reforma legislativa, como “remédio” para os males sociais. A não aplicação da lei nova a

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todas as situações jurídicas, inclusivas que se constituíram no passado, geraria uma


desigualdade não pretendida pela reforma legislativa.
É neste confronto entre a estabilidade e a segurança, que caracterizam o direito, e a
necessidade de evolução e adaptação a novas vicissitudes que se discute o tema da
aplicação da lei no tempo.
Primeiramente, podemos atender a um contrato de execução instantânea, num dado
momento, as partes encontram-se a negociar a venda de uma casa, muda o regime
jurídico aplicável antes de ter sido celebrado o contrato, se a compra e venda vier a ser
celebrada fica inteiramente sujeita ao novo regime, depois, os direitos adquirem-se com
a celebração do contrato (art.º 879), apesar das partes terem negociado o contrato à luz
da lei antiga. Mas tendo a alteração do regime surgido depois da celebração do contrato
de compra e venda e estando acordado que o preço seria pago de modo diferido (a
prestações) e sendo a propriedade transferida depois de pago o preço, o direito ao
pagamento do preso constituiu-se antes da modificação legislativa, ou seja, o novo
regime não irá afetar o facto pretérito que determinou a obrigação de pagar o preço a
prestações.
Num arrendamento, excluindo regimes de direito transitório normalmente
estabelecidos, havendo alteração do regime jurídico aplicável, as novas regras aplicam-
se ao contrato em curso, sem afetar factos e efeitos pretéritos, totalmente passados.
Tendo havido uma alteração legislativa ou uma modificação do contrato de
arrendamento, as novas regras não colidem com situações passadas, mas regulam a
situação jurídica iniciada no passado a partir da entrada em vigor do novo regime. Assim,
se a alteração ocorre em março, quanto à renda do mês de janeiro incorre no regime
jurídico anterior, mas em relação às rendas subsequentes aplica-se o novo regime.
A questão de conflito decorrente da sequente vigência de regimes jurídicos é
usualmente analisada a propósito da sucessão de leis no tempo, sabendo-se que, como
princípio geral, a lei nova revoga a lei antiga e rege as relações jurídicas após a sua
entrada em vigor. A lei nova, ao pretender diretamente substituir a lei antiga ou porque
regula a mesma matéria, revoga esta última (art.º 7). O princípio geral da aplicação
imediata determina que a lei nova, quando entra em vigor, substitui, ipso facto, a lei
antiga (art.º 12/1). Apesar da aplicação da lei nova ser imediata, por via de regra, só
regula para o futuro, não valendo para situações passadas, a lei nova não regula factos
passados e a lei antiga não rege as situações jurídicas para o futuro, é o princípio da não
retroatividade da lei.
Este princípio basilar do ordenamento jurídico pode ser afastado sempre que a lei
pretenda ser retroativa. Não há nenhum imperativo constitucional no que respeita à
irretroatividade da lei- exceção da lei criminal e fiscal a que acresce o limite do caso
julgado- mas, por via de regra, a lei não é retroativa.
A dificuldade está em saber até quando se aplica a lei antiga e a partir de que momento
a lei nova rege as situações jurídicas em curso. Formalmente, a resposta é simples, sendo
relevante a data de início de vigência da lei nova, mas como a vida é dinâmica importa
precisar a mencionada delimitação da vigência de dois regimes jurídicos. Se o facto ou a
situação jurídica se prolonga no tempo, tendo início durante a vigência da lei antiga, mas
continua a vigorar sob égide da lei nova, tem particular relevo a questão do conflito.

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5.2. Direito transitório


Tendo em vista a resolução de conflitos de aplicação de sucessivos regimes jurídicos,
não raras vezes pois escreve-se um regime transitório.
O direito transitório pode ser formal, em que o legislador se limita a indicar a partir de
que momento se aplica a lei nova. No caso do direito transitório formal, indica-se qual
o regime que se aplica a determinada situação, estabelecendo se a situação jurídica em
causa deve ser regida pelo regime antigo ou pelo novo regime. O direito transitório
formal, na falta de outras previsões legais encontra a sua regulação geral no art.º 12,
embora haja que atender igualmente ao disposto nos art.º 13 e 297 do mesmo diploma.
Tendo sido preceituado um direito transitório material, o regime instituído disciplina
especificamente as situações jurídicas transitórias, prescrevendo uma solução concreta,
distinta da que resulta da lei antiga ou da lei nova. O direito transitório material é
excecional, surge normalmente em diplomas de aprovação de códigos ou de regimes
jurídicos particularmente sensíveis e, mesmo quando existe, é muitas das vezes
insuficiente.

5.3. Soluções de conflito


a) Aplicação imediata da lei nova
A aplicação imediata do novo regime justifica-se em razão da adaptação pretendida e
tem como consequência que passa a reger os factos jurídicos que ocorram
posteriormente à data de início de vigência, regulando igualmente os efeitos futuros.
No fundo, regula os factos que se produzam depois do início de vigência do novo regime.
O novo regime também se aplica a factos jurídicos continuados que se tenham iniciado
antes da sua vigência, mas que se protelem no tempo. Só assim se pugna pela igualdade
na aplicação do direito.
O princípio da aplicação imediata da lei nova decorro do art.º 12/1, 1º parte e nº 2, 2º
parte. A lei só dispõe para o futuro, mas abrange as situações constituídas no passado
que subsistam.
Do disposto no art.º 12 cabe proceder à distinção entre factos instantâneos e factos
continuados ou de produção sucessiva. O princípio da aplicação imediata determina que
se aplica aos factos ocorridos na vigência da nova lei e, ainda, às situações jurídicas em
curso são reguladas pela lei nova, por exemplo aplica-se a um contrato que subsiste em
vigor ou um processo judicial que se encontra em litígio. Mas o princípio da aplicação
imediata tem duas especificidades: é eventual sobrevigência da lei antiga, depois da
entrada em vigor da lei nova, e a aplicação retroativa da lei nova.

b) Sobrevigência da lei antiga

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A sobrevigência do regime anterior, reportando-se à lei, também designada ultra-


atividade da lei, encontra referência a contrario, no art.º 12/2, 1º parte.
De facto, como a lei nova, em caso de dúvida, só regula factos novos que respeitem a
condições de validade substancial ou formal, daqui decorre que, a contrario, a lei antiga
subsiste vigente para regular factos ou efeitos jurídicos relacionados com as
mencionadas condições de validade substancial ou formal de situações jurídicas em
execução. Os efeitos jurídicos integram o conteúdo da situação jurídica.
Poder-se-ia entender que, quando o novo regime incide sobre questões de conteúdo da
relação jurídica, que não podem abstrair do facto constitutivo, haveria sobrevivência do
regime anterior.
Mas não é esse o sentido do art.º 12/2, por via de regra, os aspetos de conteúdo de uma
relação jurídica estão intrinsecamente ligados ao facto constitutivo e, caso se
acompanhassem naquele entendimento, raramente se aplicaria a lei nova ao conteúdo
de relações jurídicas constituídas no passado. Do preceito em análise decorre que a
sobrevivência é muito limitada e só admitida se a lei nova não dispuser de modo diverso.
A regra é a aplicação do novo regime, sob pena de se criarem diferentes estatutos,
fontes de incerteza, de iniquidade e de desigualdade.
A perspetiva muito limitada da sobrevivência da lei (antiga) tem apoio na letra do
preceito e na lógica do sistema jurídico. Imagine-se a hipótese de a lei nova ser menos
exigente do que precedente no que respeita aos requisitos de validade do negócio
jurídico.
Admitindo que se trata de questões de validade formal poderia concluir-se que, depois
da entrada em vigor da lei nova, se poderia invocar a invalidade do negócio, a solução é
inadequada. Ora em relação a um contrato de arrendamento, celebrado sem a forma
legal exigida à data do ajuste e que esteja hoje em vigor, aplicando o art.º 12/2, o
contrato seria nulo, contudo, atenta a solução da lei nova, de simplificar a exigência de
forma, não é admissível invocar a respetiva nulidade, pois a sobrevigência do regime
anterior é muito limitada, não devendo pôr em causa a subsistência e adaptação das
situações jurídicas em execução. Tratar-se-ia de uma retroatividade in mitius, justificada
pela ratio legis de simplificação formal constante da lei nova.
Na situação oposta à indicada já se justificaria a supervivência. A lei nova prescreveu
maior exigência de forma, mas o contrato, celebrado ao abrigo da lei antiga, foi
simplesmente reduzido a escrito, como tal se previa. Neste caso, o contrato é válido na
vigência da lei nova, por sobrevivência da lei antiga.
Concluindo, a lei antiga só se aplica a condições de validade substancial ou formal de
factos que subsistem na vigência da lei nova. Assim, a lei antiga continua a aplicar-se se
tiver em causa um vício da vontade na celebração do contrato, uma dúvida quanto ao
modo de aquisição de um direito de propriedade, a fixação da obrigação de indenizar
por acidente de viação ou benfeitorias ocorridas na sua vigência, estes são exemplos
apresentados por Pires Lima e Antunes Varela.
Há que atender igualmente a sobrevivência de leis supletivas. Tendo uma norma
supletiva sido substituída por uma outra regra, igualmente supletiva, verifica-se a

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sobrevivência da primeira relativamente a negócios jurídicos celebrados durante a


vigência desta que, tacitamente, a recebeu, pois foram celebrados à luz da lei antiga
para onde remeteriam de modo implícito. Assim, admitindo uma alteração da regra
supletiva quanto ao lugar do cumprimento da obrigação, que prescreveria o domicílio
do devedor, prescrevendo a nova lei que passa a ser na entidade bancária onde é
realizada a prestação, a lei antiga aplicar-se-ia em relação aos contratos celebrados ao
abrigo da anterior regra supletiva.

c) Retroatividade
a. Noção
Como princípio, vale a não retroatividade da lei, que tutela, especialmente, dois valores:
a segurança jurídica e a tutela da confiança, tal como defende Baptista Machado.
Mas a não retroatividade tem igualmente uma justificação pragmática. Na medida em
que a regra jurídica, usualmente, impõe uma conduta, só pode fixar um comportamento
a realizar no futuro.
A retroatividade implica um novo regime jurídico afeta a validade dos factos ocorridos
anteriormente, colidindo com os efeitos jurídicos produzidos, antes da alteração
jurídica. O princípio da não retroatividade, permite, em contrapartida, a aplicação do
novo regime a situações constituídas no passado que perdurem a data da entrada em
vigor deste novo regime.
Valendo o princípio da não retroatividade (tempus regit actum), nada obsta a que se
tenha fixado efeito retroativo a uma lei (art.º 12/1, 2º parte), e, por exemplo, no caso
de uma lei interpretativa prescreve-se a retroatividade (art.º 13/1). Ao abrigo da
autonomia privada, nada obsta a que os interessados, salvaguardando interesses de
terceiros, regulem situações jurídicas com efeito retroativo.
A lei nova que se aplicar a um facto ocorrido (atropelamento) ou a um efeito já
produzido (compensação de créditos) é retroativa.
A não retroatividade constitui o respeito pelos factos passados sem pôr em causa que,
no presente, não devem permanecer estatutos diferenciados, sob pena de
desigualdade. Não é defensável, ao abrigo do princípio da não retroatividade, manter a
aplicação da lei antiga, sobrevivência, a todas as situações que tiverem a sua origem no
passado, durante a vigência do anterior regime jurídico.
Seria absurdo que, em situações jurídicas duradouras, fossem aplicáveis
simultaneamente vários regimes que se sucederam no tempo, atendendo à data da
Constituição de cada direito.
Por outro lado, seria inadequado a sobrevivência de regimes anteriores, porquanto
constituiria fonte de desigualdades não permitindo a conformação das situações
jurídicas antigas às novas realidades jurídico-económicas.

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A não retroatividade implica que a lei só dispõe para o futuro, portanto, os factos
ocorridos e os efeitos jurídicos, desde que verificados o domínio da lei anterior, não são
postos em causa.
O princípio da não retroatividade é, por vezes, encarado na perspetiva da defesa dos
direitos adquiridos, segundo o professor Oliveira Ascensão e Batista Machado.
Pese embora o principio da não retroatividade, são múltiplas as intervenções legislativas
em que se estabelecem soluções retroativas, tendo o legislador, durante o estado de
emergência decorrente da pandemia, sido prolixo a prever a aplicação retroativa de
regimes.
Nestes causos, a retroatividade pode resultar da distinção entre a entrada em vigor e
produção de efeitos, determinando-se que esta ocorre antes daquela. Além dos efeitos
retroativos, por se determinar uma produção de efeitos com data anterior à da entrada
em vigor do diploma, surgem igualmente situações de Retroconexão, determinando que
os pressupostos de aplicação de um regime se reportam a factos constituídos ao abrigo
de legislação anterior.

b. Tipos de retroatividade
É comum atender-se a três níveis de retroatividade, a retroatividade normal, gravada e
extrema.
A retroatividade normal encontra-se prevista no art.º 12/1, 2º parte ressalvando os
efeitos já produzidos na situação jurídica ao abrigo do anterior regime jurídico. Nos
termos deste preceito, aplica-se o novo regime a situações jurídicas que seriam
regulados pela lei antiga, ressalvando os efeitos já produzidos.
Será agravada a retroatividade que não respeito o limite do art.º 12/1, 2º parte, sem,
contudo, colidir com efeitos produzidos e objeto de decisão com trânsito em julgado. A
retroatividade é agravada na medida em que não são ressalvados os efeitos já
produzidos. Assim, a retroatividade consagrada no art.º 13/1 (lei interpretativa) é, neste
sentido, agravada, ou, como tem sido usual.
Por último, na retroatividade de grau máximo ou extrema não seria respeitado o efeito
já produzido e decidido definitivamente ou relativamente ao qual já tivessem decorrido
os prazos de caducidade ou de prescrição.

c. Limites à retroatividade
Apesar de o princípio da não retroatividade admitir exceções, podendo prescrever-se
que novo regime regula factos e efeitos passados, há limites constitucionais.
Em primeiros lugar, nos termos do art.º 18/3 quanto a leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias determina-se que não podem ter efeitos retroatividade.
Em segundo lugar, a lei penal incriminatória não pode ser retroativa, tendo em conta a
regra nullum crimem sine lege (art.º 29, nº1 e 3 CRP). Em contrapartida, no âmbito penal

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prescreve-se, como princípio, a retroatividade in mitius: a lei penal posterior do


conteúdo mais favorável aplica-se ao arguido (art.º 29/4 CRP). Assentando na mesma
lógica, a lei reguladora da competência dos tribunais criminais não pode ser retroativa
(art.º 32/9) e o princípio da aplicação imediata da lei processual sofre uma exceção, caso
a lei nova possa ser mais gravosa para o arguido ou quebre a harmonia do processo
penal (art.º 5/2 CRP). Por fim, em sede fiscal, fixou-se a irretroatividade da lei que cria
impostos (art.º 103/3 CRP).
O novo regime não afetará as situações jurídicas extintas na vigência do regime anterior
por via da tutela do caso julgado (art.º 282/2, 1º parte CRP). Como exceção refira-se à
retroatividade in mitius no plano sancionatório, em que a lei nova mais favorável aplica-
se inclusive depois da condenação judicial.
Estes limites inviabilizam a retroatividade de grau máximo admitindo, nalgumas
circunstâncias, a retroatividade ordinária e a agravada.

d. Direitos adquiridos e garantias


Justifica-se aludir a direitos adquiridos sem descurar a crítica à sua imprecisão,
porquanto o legislador, ainda que tenha propositado é muito banido do código civil, faz-
lhe menção em distintos diplomas. Pese embora a propositada omissão no art.º 12 é
recorrente aludir-se à tutela de direitos adquiridos como modo de garantir situações
jurídicas constituídas ao abrigo da lei antiga, a que não se aplicaria o novo regime.
A imprecisão conceitual da teoria dos direitos adquiridos é patente, mas assenta na
tutela da confiança importa observar o seu sentido. A teoria dos direitos adquiridos
filiasse numa outra, ainda mais imprecisa, que contrapõe as situações jurídicas objetivas
e subjetivas, preconizando que a lei nova altere e determine o regime do direito objetivo
desde a sua entrada em vigor, sem colidir com o direito subjetivo constituído
anteriormente.
Temos “direitos adquiridos” no sentido de proposições jurídicas ativas constituídas em
determinada esfera jurídica, neste sentido poder-se-ia associar direito adquirido a
direito subjetivo constituído em determinada esfera jurídica. Mas o direito adquirido
não se confunde com o direito subjetivo, por exemplo, o direito de propriedade é
indiscutivelmente um direito objetivo, mas não se pode considerar direito adquirido no
sentido de se eximir à aplicação da lei nova.
O sujeito, titular de um direito subjetivo, pode não ser um direito adquirido ao conteúdo
pleno desse direito. De facto, o proprietário, sendo titular de um direito subjetivo de
propriedade, não tem direito adquirido ao conteúdo desse direito, depois sujeita-se à
mutabilidade do regime jurídico de propriedade privada. O conteúdo do direito
subjetivo pode, por exemplo, ser alterado por lei novo. Deste modo, nem todo o direito
subjetivo está sujeito à tutela de direito adquirido, mas, em contrapartida, pode
entender-se que só pode qualificar como direito adquirido tratando-se de direito
subjetivo.

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Daqui decorre que só é adquirido o direito subjetivo depois de constituído numa esfera
jurídica. Assim, antes do decurso do correspondente prazo e de ter sido invocado o
usucapião, o possuidor não adquiriu o direito de propriedade.
Há que verificar-se na situação concreta, os benefícios consignados no plano de pensões
abstraem-se ou não do facto que lhes deu origem. Em suma, é o próprio plano de
pensões que define em que circunstâncias há direitos adquiridos, pelo que a solução
legal é formal, tendo de se encontrar a solução no regime comum (art.º 12).
Antes do direito subjetivo se encontrar constituído numa esfera jurídica pode haver uma
expectativa de que, no futuro, se venha a constituir, passando a direito adquirido. Sendo
a situação jurídica de formação sucessiva, pode haver uma expectativa de que o efeito
jurídico se vem a produzir. A expectativa assenta numa previsão de futuro aquisição do
direito ou de manutenção da situação jurídica, por exemplo, o possuidor tem a
expectativa de, decorrido o prazo de usucapião, a poder invocar, e, assim, adquirir o
correspondente direito real. As expectativas jurídicas, ainda que tuteladas, podem não
valer perante outros valores do sistema, daí que as expectativas sejam muitas vezes
frustradas pela entrada em vigor de um novo regime jurídico que não tem de as garantir,
podendo dispor de modo diverso do que o anterior previa.
A segurança jurídica e a proteção da confiança que lhe é inerente impõem a tutela de
situações jurídicas, mas o âmbito de tal tutela tem de diferir em função da confiança
que a situação jurídica permite deduzir. Com efeito, sendo a expectativa uma previsão
de ver a adquirir o direito ou de manter a situação jurídica, não é tutelada pelo princípio
de não retroatividade, pelo que o novo regime não tem de a garantia, podendo dispor
de modo diverso do que anteriormente se previa.
Não obstante as expectativas, contrariamente aos direitos adquiridos, não podem ser
invocadas, no sentido de conferirem ao titular uma posição jurídica de vantagem, há
que atender à tutela da confiança que emerge de uma situação jurídica. Dito de outro
modo, a alteração de regimes jurídicos, não está condicionada por expectativas, mas
encontra-se imitada por um princípio de tutela da confiança. A tutela de confiança
decorre de um princípio de estabilidade e segurança da ordem jurídica, dando cobertura
legal à legítima previsibilidade na continuação de situações jurídicas.
A tutela de confiança não inviabiliza a introdução de necessários ajustamentos,
impostos nomeadamente para adaptação a novas condicionantes socioeconómicas.
Na ordem jurídica portuguesa, a tutela dos direitos adquiridos em caso de sucessão
temporal de regimes jurídicos, tendo em conta a sua imprecisão, é normalmente
explicitada com base na teoria dos factos passados e dos efeitos jurídicos já produzidos.
Daí que a tutela dos direitos adquiridos explique de forma mais precisa recorrendo à
teoria dos factos passados, distinguindo factos efeitos jurídicos, como se prevê no art.º
12.

e. Facto passado
No art.º 12 optou-se por seguir a teoria do facto passado. Nada se prescrevendo quanto
ao efeito retroativo do novo regime, a regra será a de que este não afeta os factos e

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efeitos jurídicos totalmente passados na vigência do anterior regime, segue-se o


princípio tempus regit actum. Tal como decorro do art.º 12, importa distinguir os factos
e os efeitos jurídicos, por um lado, e a ocorrência ou verificação de tais factos ou efeitos
passada ou continuada, para outros.
Em relação a um facto ocorrido anteriormente, sendo totalmente passado, ficará sujeito
ao regime anterior. Contudo, se o facto não for totalmente passado, pois tratar-se-ia de
um facto continuado, estará submetido ao novo regime ou, eventualmente, submetido
tanto ao regime da lei antiga como da lei nova.
Sendo um facto instantâneo vale o princípio tempus regit actum, assim é necessário
determinar o dia concreto da ação e confrontar com a entrada em vigor da nova lei.
Tratando-se de um facto continuado ou de produção sucessiva, que perpassa por dois
regimes, por via de regra aplicação em nova. Poderá ainda haver uma aplicação conjunta
de dois regimes, distinguindo momentos temporais de uma mesma relação jurídica.
A solução idêntica com respeito aos efeitos jurídicos referenciados no art.º 12/2, como
conteúdo de certas relações jurídicas, porquanto, os efeitos jurídicos integram o
conteúdo da situação jurídica.
Na medida em que o efeito jurídico seja de execução instantânea e se tenha produzido,
o novo regime não o afetará. Porém, tratando-se efeitos jurídicos continuados ou de
produção sucessiva, o novo regime regula aqueles que não se possam entender como
totalmente passados. Em suma, os factos e efeitos jurídicos que, a data de início de
vigência do novo regime, não se possam considerar como totalmente passados ficam
sujeitos à nova disciplina jurídica.
A via de resolver as questões de aplicação da lei no tempo mediante a teoria do facto
passado, constante do art.º 12, tem de ser completa com a distinção entre factos de
execução instantânea e de execução continuada, e ainda com a contraposição entre
condições de validade, efeitos e conteúdo da situação jurídica. Sem a mesma precisão e
abrangência desta via, seguida pelo legislador no artigo supramencionado, mas pode ser
complementar, há quem recorra à diferenciação de estatutos, procurando, no caso
concreto, a qual o estatuto aplicável.

f. Retroconexão
A retroconexão encontra-se implicitamente referenciada no art.º 12/1, 1º parte, na
ampla admissão de eficácia retroativa. A retroconexão corresponde a um modo
específico de conferir retroatividade a um regime legal e, deste modo, está sujeita aos
limites constitucionais previstos para a lei retroativa.
Atendendo à aplicação imediata da lei nova, o decorrer do novo regime que este se
aplica a factos que têm pressupostos anteriores à sua vigência. No fundo, ainda que se
preveja a aplicação para o futuro, quanto ao âmbito e aplicação da lei nova relevam
factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.

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A retroconexão não determina alteração de regime em relação a factos passados, mas


o novo regime jurídico, para a sua aplicação, assenta em pressupostos anteriores ou
situações ocorridas no passado, tendo em conta a entrada em vigor da lei nova.
As hipóteses de retroconexão encontram-se usualmente associadas a regimes que
pressupõe o exercício continuado de direitos ou manutenção de situações jurídicas.
Apesar da retroconexão não corresponder à hipótese típica de retroatividade, pode ser
analisada pelo idêntico prisma. De facto, o princípio geral respeita à não retroatividade,
constituindo esta a regra, sendo que as exceções e limites à retroatividade,
nomeadamente em sede criminal, devem ser igualmente ponderados no caso da
retroconexão.

d) Distinção entre condições de validade, efeitos e conteúdo


Na falta de previsão concreta e, mesmo quando se estabelece regime próprio do direito
transitório, em caso de lacuna, há que recorrer ao regime comum do art.º 12. Neste
preceito fixam-se as diretrizes para solucionar os conflitos decorrentes da aplicação das
leis no tempo, mas as referidas diretrizes valem para outras hipóteses de sucessão
temporal de regimes jurídicos, como em estado de modificação do contrato vigente ou,
simplesmente, do estatuto jurídico aplicável uma dada situação jurídica. Assim,
passando a vigorar um novo regime, as situações jurídicas em curso passam a ser regidas
pela lei nova, excluindo-se, contudo, em prol do princípio da não retroatividade, os
factos e os efeitos jurídicos totalmente passados.
Atendendo ao disposto no art.º 12/2 cabe distinguir se o novo regime respeita a factos
jurídicos instantâneos (furto) ou factos duradouros (construção de um prédio) ou regula
efeitos jurídicos. Os efeitos jurídicos integram o conteúdo da situação jurídica e importa
verificar se ficam submetidos ao anterior ou ao novo regime. Os efeitos jurídicos a que
se reporta o novo regime também podem ser instantâneos (transmissão de
propriedade) ou duradouros (dever de o locador assegurar o gozo da coisa arrendada).
Cabe ainda proceder à distinção entre o conteúdo das relações jurídicas relacionado
com o facto que lhe deu origem e o conteúdo no que pode abstrair do facto originário
(art.º 12/2, 2º parte).
Em caso de sucessão temporal de regimes jurídicos salvaguardam-se os direitos que
decorram de factos totalmente passados e não se colide com o conteúdo de situações
jurídicas no que respeita a efeitos jurídicos já produzidos. Se o facto já se verificou,
sendo totalmente passado, ficará sujeito ao regime anterior. De igual modo, quanto ao
conteúdo certas relações jurídicas (art.º 12/2), importa averiguar se os efeitos jurídico
se produziram antes ou depois da alteração do regime. Aos efeitos jurídicos produzidos
anteriormente não se aplica o novo regime, salvo havendo retroatividade.
No que respeita ao conteúdo da situação jurídica, tratando-se de efeitos jurídicos
continuados ou de produção sucessiva, o novo regime regula aqueles que não se possam
entender como totalmente passados. Não se consideram totalmente passados
nomeadamente os efeitos jurídicos que conferem um direito subjetivo antes da
respetiva constituição e, nalguns casos, antes da sua exigibilidade ou do seu vencimento.

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e) Regimes especiais
a. Lei interpretativa
No caso da lei interpretativa prescreve-se a retroatividade (art.º 13/1). A lei
interpretativa é retroativa, pois atua sobre factos ocorridos na vigência da lei
interpretada e que antecederam a entrada em vigor daquela, com salvaguarda do caso
julgado e de efeitos já produzidos.
Mesmo que se entendesse que a lei interpretativa se limita a corrigir uma falha da lei
interpretada, a retroatividade não é puramente formal, pois seria uma ficção entender-
se que, afinal, o sentido correto sempre fora o fixado pela lei interpretativa.
A retroatividade da lei interpretativa resulta de se ter estabelecido um novo
entendimento, que se pretende integrar na lei interpretada (art.º 13/1, 1º parte)
ficando, porém, ressalvados os efeitos já produzidos em quatro hipóteses: cumprimento
da obrigação; sentença transitada em julgado; transação; atos análogos.
A construção mencionada assenta no pressuposto da lei interpretativa não ser
inovadora, só assim se compreende que se entregue na lei interpretada. Contudo a lei
interpretativa, ainda que de modo imitado, pode comportar alguma inovação,
principalmente quando fixa um sentido não expectável para a lei interpretada, atentos
os elementos da interpretação.

b. Alteração de prazos
Há ainda o regime especial de aplicação da lei no tempo referente a prazos.
O art.º 297 estabelece regras especial para a eventualidade de sucessão de regimes
jurídicos com distintos prazos. O regime legal aplica-se a prazos em curso e distingue-se
as situações em que o prazo foi reduzido daquelas em que houve aumento de prazo. Em
qualquer caso, o novo regime aplica-se imediatamente aos prazos que estejam em
curso.
No primeiro caso, encurtamento do prazo, o novo prazo só se conta a partir do início do
início de vigência do novo regime, exceto se, atendendo ao anterior prazo, faltar período
inferior para o respetivo termo (art.º 297/1).
Na segunda hipótese, alargamento do prazo, o novo prazo aplica-se à situação em curso,
computado o período já decorrido (art.º 297/2).
Este regime de sucessão temporal de prazos vale igualmente para o caso de prazos
fixados pelos tribunais ou por qualquer outra entidade (art.º 297/3).
Poder-se-ia questionar se o regime previsto no 297 vale igualmente em relação a prazos
fixados por acordo ou resultantes de regime estatutário. Na medida em que, ao abrigo
da autonomia privada, as partes fixaram prazos convencionais, distintos dos legais, a
alteração legislativa, em princípio, não os afeta. Mas se as partes remetem para o regime

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legal ou se houve alteração prazos convencionais ou estatutários aplica-se o regime do


art.º 297.

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