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REPÚBLICA DE ANGOLA

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DOS DIREITOS HUMANOS


INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS
VIII - CURSO REGULAR DE FORMAÇÃO INICIAL DE MAGISTRADOS

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL

TEMA: PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA HERMENÉUTICA


CONSTITUCIONAL

FORMADORES: LEANDRO EMÍDIO DA GAMA FERREIRA


EVANDRA MARTINS

Auditor: Mário Abílio Jamba Manuel


Turma: B
Sala 2
N.º 22
Magistratura Judicial

= 2015 =
ÍNDICE

I – PARTE
1 – Lista de abreviaturas……………………………………………………………… 2
1. 1- Introdução………………………………………………………………………. 3
1.2 – Noção de Hermenêutica………………………………………………………… 5
1.3 – Os aspectos relevantes da Hermenêutica jurídica………………………………... 6
1.4 – A Integração de lacunas da lei……………………………………………………. 9
1.5– A hermenêutica constitucional………………..…………….…………………… 11
1.6 – Os princípios orientadores da hermenêutica constitucional…………………… 11

II – PARTE
2. O Impacto dos princípios da hermenêutica no ordenamento jurídico Angolano…... 14
2.2 – Análise do acórdão do Tribunal Constitucional………………………………… 14
2.1.1 – Acórdão n.º 326/2014 relativo ao processo 403 – D/2013……………………. 14
2.3 – Necessidade de conformação das normas infra-constitucionais à Constituição… 21
3 – Conclusão…………………………………………………………………………23
4 – Bibliografia ………………………………………………………………………..26
I - PARTE

1.1 – LISTA DE ABREVIATURAS

C. C. – Código Civil
C. F. - Código de Família
CRA – Constituição da República de Angola
C. P. – Código Penal
C. P. P. – Código de Processo Penal
C. P. C. – Código de Processo Civil
C. COM – Código Comercial
C. R. N. – Código de Registos e Notariado
1.2 – INTRODUÇÃO
O tema que doravante iremos abordar, é intitulado “PRINCÍPIOS
ORIENTADORES DA HERMENÉUTICA CONSTITUCIONAL” e se insere na
Jurisdição Constitucional, ministrada no âmbito do VIII - Curso Regular de Formação
Inicial de Magistrados.
A palavra “Hermenêutica” é etimologicamente de origem grega e significa a
arte ou a técnica de interpretar, analisar, descrever, explicar um texto, um discurso ou
um facto. O interpretar enquanto tal, é um exercício natural ao homem por via do qual
este decifra os códigos que a vida o apresenta, sendo tão natural que numa das vertentes
filosófica o é homem definido como um ser pensante.
Diferentemente das outras áreas de formação, embora não queiramos com isto
afirmar que o Direito seja de per si a única, entendemos que o Direito enquanto tal
enquadra-se nas ciências hermenêuticas, pois a actividade desenvolvidas pelos seus
cultores,1 é fundamentalmente interpretativa, ou seja, hermenêutica.
Assim, da mesma forma que o pastor precisa dominar minimamente as técnicas
da teologia para melhor conduzir o seu rebanho, também o jurista precisa dominar as
regras da interpretação, sob pena de chegar a resultados que fiquem longe de
materializar a justiça enquanto fim último do Direito.
A escolha do tema foi motivada pela admiração ao Direito Constitucional por ser
o ramo fundamental do Direito Público e sobretudo pelo facto de com a aprovação da
Constituição em 2010, grande parte do tecido legislativo ter ficado descontextualizado e
justificar-se a necessidade de conformar as normas infra-constitucionais e o exercício da
conformação, passar também obviamente pela correcta interpretação das normas
constitucionais.
Assim sendo, o presente trabalho terá duas partes: na primeira iremos fazer uma
abordagem teórica referente a hermenêutica e os princípios orientadores da
interpretação jurídica numa perspectiva doutrinária, sem conduto fazermos recurso a
grandes afloramentos por não ser este escopo do trabalho e na segunda, iremos analisar

1
Convém-nos esclarecer que não queremos com esta afirmação, passar a ideia de que o Direito seja a
única ciência que faz recurso a hermenêutica, pois tal como dissemos acima, o Direito se enquadra na
ciência que assenta na interpretação dos fenómenos sociais com relevância jurídica. Todas as ciências,
pelo facto de o serem, têm necessariamente um conjunto de regras visando estabelecer os métodos de
interpretação e explicação dos fenómenos, todavia o que acontece com o Direito e grosso modo com as
ciências sociais é que o recurso a hermenêutica é sem sombra de dúvida muito mais acentuado.
um acórdão do Tribunal Constitucional de forma a aferirmos em concreto a
materialização dos princípios orientadores da hermenêutica constitucional.
Portanto, apesar de a institucionalização do Tribunal Constitucional ter sido feita
em 1992 com a aprovação da Lei 23/92 de 16 de Setembro, (Lei de Revisão
Constitucional, nos artigos 127.º, 134.º e 135.º), no entanto, o Tribunal Constitucional
só foi efectivamente criado com a aprovação da Lei 02/08 de 17 de Junho (Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional), de tal modo que as suas funções eram anteriormente
desempenhadas pelo Tribunal Supremo nos termos do artigo 6.º Lei 23/92 de 16 de
Setembro.
Entretanto, recente ou não, reconhecemos o valor do Tribunal Constitucional,
pois embora não seja o único, é por excelência, o garante e guardião da Constituição
que tem por natureza a competência geral de administrar a justiça em matéria jurídico-
constitucional, razões mais do que suficientes para a escolha do tema que nos propomos
abordar.

.
1.3 – Noção de Hermenêutica jurídica
Já acima frisamos a origem etimológica da palavra hermenêutica a qual nos
remetemos. Visto numa perspectiva genérica, todas as ciências, pelo facto de o serem,
fazem recurso a hermenêutica, pelo que, é categórica a afirmação segunda a qual, não
existe ciência sem hermenêutica. Assim, sem prejuízo do carácter universal da
hermenêutica no mundo das ciências, interessa-nos somente a hermenêutica jurídica.
A hermenêutica jurídica visa a determinação do sentido jurídico-normativo de
uma fonte jurídica interpretanda, em ordem a obter dela um critério jurídico de decisão
do caso em concreto.
A hermenêutica, segundo o Professor Vicente Ráo, “tem por objecto investir e
coordenar de modo sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que
disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a
restauração do conceito orgânico do Direito, para efeito de sua aplicação e
interpretação”.2
Em nossa opinião, em qualquer das definições avançadas, ressalta-nos a ideia de
que com a hermenêutica jurídica, procura-se primeiro reconstituir o pensamento jurídico
contido na norma e em segundo lugar, em retirar da norma um critério para resolver o
problema em concreto, portanto teremos sempre por um lado a norma por interpretar e
por outro o problema por solucionar. Abordaremos no ponto a seguir, os elementos da
interpretação jurídica, onde veremos com maior acuidade o problema da norma ou da
fonte jurídica enquanto primeiro elemento da interpretação.
Sendo o objecto do presente tema, os princípios orientadores da hermenêutica
constitucional, a questão que se tem levantado na doutrina, é a de saber se a
interpretação jurídica é apenas um problema interpretativo, ou seja, a determinação do
significado textual da fonte interpretanda, ou se é um problema normativo, com o
sentido de retirar da norma um critério para solucionar o caso em concreto.
A resposta a questão, segundo a doutrina maioritária, passa por considerar que
não se afasta da interpretação o problema da compreensão hermenêutica ou textual da
norma jurídica, pois deve-se-lhe sempre ter em conta porquanto, é o primeiro elemento
com que o interprete tem contacto, todavia não é a construção puramente textual que
encerra o problema, mas sim, o retirar do texto normativo um critério para resolver o
problema, ou seja, sem desprimor pelo respeito que se deve ter ao texto normativo, o
2
RÁO, Vicente, O direito e a Vida dos Direitos, Vol. 2, São Paulo, Max Limonad, 1953, pág. 542
que deve polarizar a atenção do interprete, é sim, o encontrar no texto normativo um
critério para resolver o problema em concreto.

1.4 – Os aspectos relevantes da hermenêutica jurídica


Segundo a concepção da hermenêutica tradicional da interpretação jurídica são
quatro os pontos em que se alicerça a interpretação, nomeadamente: o objecto, o
objectivo, os elementos e os resultados da interpretação jurídica. Não sendo o escopo do
presente trabalho a abordagem aprofundada da hermenêutica jurídica enquanto tal,
faremos neste particular, apenas uma incursão geral e sumária aos quatro pontos da
interpretação segundo a doutrina indicada.
Dissemos que a concepção hermenêutica da interpretação jurídica assenta em
quatro pontos, pelo que, passaremos a descrevê-los.

a) O obejcto da interpretação jurídica: é o texto das fontes jurídicas, ou seja, o


texto das normas legais. É comum confundir-se o objecto com o objectivo,
mas o importante é frisar que o objecto é o ponto de partida, o quid sobre o
qual o intérprete há-de se socorrer, enquanto o objectivo como veremos mais
abaixo é o que se visa com a interpretação jurídica. Em nossa opinião, toda a
interpretação tem por base uma norma, a partir do qual se há-de procurar
reconstituir o pensamento legislativo nela contida.
b) O objectivo da interpretação: para esta questão perfilham-se duas teorias a
subjectiva e a objectiva. Para a teoria subjectiva, o intérprete deverá
determinar a vontade do Legislador, ou seja, não está em causa a aplicação
da norma para a situação em concreto, mas sim, determinar o que quis o
Legislador ao consagrar a norma, no entanto, para a teoria objectiva o
intérprete deve procurar o sentido da norma, desligada da vontade do
Legislador. No nosso ordenamento jurídico, o Legislador consagrou no que
concerne a esta questão, a teoria mista, gradualísta ou de síntese, nos termos
do artigo 9.º n.º 1 do C. C., pois aceitou a teoria subjectiva ao dispor que
deve se ter em atenção “as circunstâncias em que a lei foi elaborada” e
concomitantemente a teoria objectiva está contida na expressão “as
condições específicas do tempo em que a lei é aplicada”. Acreditamos ser a
melhor solução, porquanto não limita o intérprete a determinar a pura e
simplesmente a vontade do Legislador, o que tornaria a actividade
interpretativa árdua, se admitirmos por exemplo há no nosso ordenamento
jurídico, leis vigentes por mais de um século, como são os casos do C. P. de
1886, do C. Com., de 1888, do C. P. P., de 1939 e por outro permitir que se
atenda as condições em que a lei é aplicada.
c) Para a doutrina que perfilhamos são quatro os elementos da interpretação
jurídica designadamente: o gramatical, o histórico, o sistemático e o
teleológico. Entende-se dos elementos referenciados que o primeiro
corresponde ao corpo e os restantes ao espírito da lei. Assim sendo, o
elemento gramatical compreende o texto da lei, a letra, tal como referimos a
letra corresponde o objecto da interpretação, aquilo sobre o qual incide a
interpretação.
O elemento histórico: corresponde à consideração dos trabalhos
preparatórios que tenham antecedido a elaboração da norma interpretanda,
ou seja, as circunstâncias históricas do seu surto. Este elemento no que tange
as teorias ligadas ao objectivo da interpretação jurídica compreende a
consagração da teoria subjectiva. Na técnica do processo de elaboração de
leis, há uma primeira parte destinada ao preâmbulo e é em nossa opinião nele
onde podemos encontrar as razões históricas que estiveram na base da
elaboração de uma determinada lei.
O elemento sistemático: ressalta a compreensão do sistema jurídico como
um todo. Do carácter sistemático da interpretação, resulta em nossa opinião
o princípio da unidade do ordenamento jurídico, princípio que em sede
própria abordaremos quando frisarmos na segunda parte deste trabalho a
necessidade de conformação das normas infra-constitucionais à Constituição.
Seja como for, a interpretação de uma norma legal pressupõe a consideração
da unidade, da coerência e da racionalidade do sistema jurídico. Para
evidenciarmos o carácter sistemático da interpretação jurídica podemos
ilustrar com a seguinte situação.
Querendo vender um imóvel, o Declarante passou uma procuração
particular ao seu mandatário, no entanto, este posto no cartório, suscita-se
o problema de saber se a procuração para o acto, deveria ser pública ou
particular? Ora, sem prejuízo do que vem disposto no C. R. N., se
admitirmos que a compra e venda de imóveis nos termos do artigo 875.º do
C. C., só é válida se for celebrada por escritura pública, infere-se que para
a venda e por respeito ao princípio do paralelismo de forma, deve-se no
caso em apreço conferir poderes por via de um documento público, ou seja,
a procuração deverá ser notarial. Como ficou demonstrado pelo recurso a
unidade do sistema jurídico chega-se, ressalvando-se opinião contrária e
melhor a esta conclusão.
O elemento teleológico: é a razão de ser lei, é o objectivo prático visado
pela norma jurídica interpretanda, em sede de Direito Constitucional chama-
nos atenção neste particular, o valor jurídico do preambulo, pois nele são
fixados as linhas gerais da interpretação e também os objectivos que com a
Constituição se visa alcançar. Até ao momento a questão que se impõe é a de
saber quais dos elementos da interpretação tem maior relevância? Ora, nem a
doutrina, nem a lei definem um elemento com maior preponderância para
melhor solucionar o problema em concreto.
d) Por último e para fechar o ciclo dos pontos abordados pela concepção
hermenêutica tradicional da interpretação jurídica temos os resultados. A
doutrina elenca vários possíveis resultados, mas uma vez mais, não iremos
aprofundar esta questão, pelo que, trataremos somente de analisar alguns
resultados. Assim com base na distinção entre a letra e o espírito da lei são
admissíveis 3 (três) tipos de resultados da interpretação jurídica: a
interpretação declarativa, a restritiva e a extensiva.
A interpretação é declarativa: quando o texto da lei exprime de modo
adequado o sentido enunciado pelos outros elementos da interpretação
jurídica. A título de exemplo, temos a interpretação da norma do artigo 128.º
do C. F., sob epígrafe “igualdade dos filhos”. Sem prejuízo disposto no
corpo do artigo, poder-se-ia pensar que o Legislador ao utilizar a expressão
“filhos” ter-se-ia a referido aos filhos homens, pelo que, as filhas não
estariam contempladas nesta premissa, porém deve-se perceber que a
expressão “filhos” engloba em si a palavra “filha”, eis aqui uma
demonstração da interpretação declarativa, ou seja, com ela se visa aclarar o
sentido jurídico normativo de uma fonte jurídica interpretanda.
A interpretação é restritiva: quando a letra da lei, diz mais do que o
Legislador queria dizer, ou seja, numa linguagem popular, dir-se-á que a
letra da lei é fofoqueira, pelo que, há que se reduzir o sentido da letra da lei
para o sentido do espírito. É o que acontece no artigo 5.º n.º 1 do C. C., que
dispõe que a lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial,
todavia, entendendo a expressão lei no seu sentido material, compreende-se
que há diplomas que são obrigatórios ainda que não tenham sido publicados
no Diário da República, pelo que, o Legislador disse mais do que queria
dizer.
A interpretação é extensiva: quando o sentido da letra da lei, disse menos
do que o Legislador pretendia dizer, dever-se-á neste caso estender o sentido
da letra da lei para o sentido do espírito. É o que se depreende da norma do
artigo 877.º do C. C., que proíbe a venda a filhos ou netos, porém se
admitirmos que um bisavô queira vender a um bisneto, esta proibição
aplicar-se-ia ou não, uma vez que, o Legislador não a previu? Pensamos que
tal previsão seria redundante, pelo que, nada obsta a aplicação da norma na
hipótese avançada por que o que está em causa, é evitar a violação do
princípio da igualdade previsto no artigo 23.º da CRA.

É incomensurável a importância da interpretação jurídica em qualquer dos ramos


do Direito. A incursão que acima fizemos, enquadra-se a nível do Direito em geral, pelo
que, com as devidas adaptações deve ser aplicada ao Direito Constitucional. Entretanto
em sede dos princípios orientadores da hermenêutica constitucional, teremos uma maior
compreensão da interpretação jurídica na medida em que os princípios servem de base
para a hermenêutica.

1.5 – A Integração de lacunas da lei


No processo de elaboração de “leis” o Legislador procura por via normativa
prever um conjunto de situações a serem legalmente disciplinadas, entretanto, por mais
cauteloso que o Legislador seja, existirão sempre factos a margem da lei, pois as
sociedades não são estanques, parafraseando Miguel Pamplona Corte-Real “afirmar a
imutabilidade dos valores recebidos ao longo da história, é a manifestação clara de
ausência de espirito crítico”.
Há lacunas sempre que se verifica no ordenamento jurídico ausência de uma
norma para regular determinado facto que reclama solução jurídica, mas no entanto, não
está regulado. O processo por via do qual o aplicador da norma procurará resolver estes
problemas chama-se integração e consiste na operação por via da qual, se hão-de se
resolver os conflitos, que apesar de não previstos reclamarem solução jurídica.
O processo de integração de lacunas na lei passa pela analogia que consiste em
aplicar uma norma jurídica a um caso que apesar de omisso tem similitudes com o caso
regulado, que se reconduz a analogia “legis” não havendo norma, dever-se-á recorrer a
analogia “iuris”, que consiste em procurar soluções com base nos princípios do Direito.
Entretanto, se ainda assim não for possível, então o problema será resolvido com
recurso a uma norma que o próprio intérprete criaria se tivesse de legislar dentro do
espírito do sistema n os termos do artigo 10.º n.º 3 do C. C.
No que concerne ao Direito Constitucional segundo o Professor Pedro Manuel
Luís a lacuna normativo-constitucional “só existe quando se verifica uma incompletude
contrária ao plano de ordenação constitucional como tal”3.
Para melhor elucidarmos a existência de uma lacuna constitucional, podemos
recorrer ao disposto no artigo 67.º n.º 6 da CRA, segundo o qual “qualquer pessoa
condenada tem o direito de interpor recurso ordinário ou extraordinário no tribunal
competente da decisão contra si proferida em matéria penal, nos termos da lei”.
A norma em apreço, enquadra-se nos recursos em matéria de processo penal, no
entanto, da análise feita a CRA, não constatamos nenhuma norma consagre o mesmo
em relação aos recursos em matéria processual civil, ressalvando-se sempre a melhor
interpretação, há claramente uma lacuna constitucional. Pelo exposto, fica evidente que
pelo menos de forma expressa o Legislador não consagrou a recorribilidade nesta
matéria.
A solução do problema, passa pela da interpretação do artigo 29.º da CRA sob
epígrafe “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” pois entende-se que o
Legislador consagrou o direito de acção, ora sucede que o direito ao recurso, não é mais
senão uma das facetas do direito de acção, porquanto o recurso não é em tese, uma nova
acção, mas sim a extensão da acção impugnada. Compreende a doutrina que não

3
Pedro Manuel Luís, Curso de Direito Constitucional Angolano, Luanda, 1.º Edição, Edição Qualificada,
2014, pág. 141.
obstante esta constatação, é defensável a ideia da consagração constitucional implícita
do direito ao recurso.4

1.5 – A hermenêutica constitucional


Segundo o Professor Gomes Canotilho a interpretação de normas constitucionais
“é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com
base em critérios e em premissas diferentes, mas reciprocamente complementares”.5
Para Pedro Manuel Luís, “independentemente dos quadros doutrinários que
podem ser traçados, há que ter em atenção, que a interpretação tem de ser feita da
conjugação da letra e do espírito da lei, atendendo as características históricas,
ideológicas, políticas do momento, pois só assim encontrar-se-á o melhor sentido da
norma em confronto com a realidade, almejando a sua eficaz aplicação”6.
Pelo caminho percorrido até ao momento, somos de opinião que a interpretação
constitucional não é de natureza diferente da que se opera noutras áreas, pois toda a
interpretação tem por escopo a aplicação do Direito, assim sendo, ela pode comportar
desvios, mas não excepções as regras gerais da interpretação, a interpretação tem de
atender as questões jurídicas, mas não deve ignorar a realidade política, histórica ou
social.

1.6 – Os Princípios Orientadores da Hermenêutica Constitucional


Chegados a este momento, impõe-se-nos abordarmos os princípios
constitucionais, antes demais, teremos de precisar o conceito de princípios jurídicos.
Entende-se que se as normas jurídicas são os critérios com base nos quais a decisão
concreta é proferida, os princípios jurídicos constituem os seus fundamentos, ou seja, os
princípios são as linhas gerais e orientadoras das normas jurídicas.
Segundo o Professor Bapísta Machado7 “os princípios jurídicos vinculam o
próprio Legislador constituinte, como a gramatica vincula o uso da linguagem …, é que

4
Hermenegildo Cachimbombo, Manual dos Recursos no Direito Processual Civil Angolano, Editora Casa
das Ideias, Luanda, 2012, pág. 15.
5
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição 6.ª edição, revista, Coimbra,
Almedina, 1993, pág. 212-213.
6
Pedro Manuel Luís, op. cit., pág. 129.
7
Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1989, pág.
159.
na verdade as normas legais não podem fundamentar-se no arbítrio”. Se pretenderem
ser válidas e justas, as normas positivas têm de respeitar os princípios.
O que dissemos acima, vale para qualquer ramo do Direito, pelo que, feito este
parênteses, podemos falar então dos princípios da hermenêutica constitucional que
constitui a primeira parte do presente trabalho. Dentre os vários princípios da
interpretação constitucional, iremos abordar os seguintes: o da unidade constitucional, o
do efeito integrador, o da máxima efectividade ou eficiência, o da justeza ou
conformidade funcional, o da concordância prática ou harmonização, o da força
normativa da Constituição e da interpretação das leis em conformidade com a
Constituição.
Sem prejuízo desta incursão, convém reter que para efeitos de interpretação os
preâmbulos das Constituições, servem de guia para a interpretação constitucional, razão
pela qual, a doutrina aborda o seu valor. Em nossa opinião, o preâmbulo encerra em si,
as linhas mestras e orientadoras da interpretação, de que ela em si mesma traça as linhas
gerais de fundamentação política, social, filosófica, ideológica e económica, dentre
outros, informadores da nova ordem constitucional.8

a) Princípio da unidade da Constituição


Como a própria designação indica, o princípio da unidade da Constituição impõe
ao intérprete que deva considerar a Constituição como um todo, evitando que da sua
actividade interpretativa resulte contradições. Por exemplo, da conjugação dos artigos
1.º e 30.º da CRA, resulta que o Estado respeita e protege a vida humana, assim sendo,
nunca e em nenhum momento, poder-se-á admitir que o intérprete em homenagem a
este princípio constitucional, chegue a conclusão que vise sacrificar o direito a vida, a
acontecer haveria aqui uma clara e grave contradição, entre o resultado da interpretação
o disposto na Constituição. A título de exemplo, ressaltam ao princípio da unidade
constitucional a nível infra-constitucional os artigos 349.º, 351.º, 353.º e 358.º todos do
C.P.

b) Princípio do efeito integrador


Em primeiro lugar, convém reter que o princípio do efeito integrador é uma
consequência do princípio da unidade da Constituição, em segundo lugar, que com este
8
Pedro Manuel Luís, ob. cit. Pág. 142
princípio se visa que dos vários sentidos possíveis de interpretação, se dê prevalência ao
que contribua em maior medida para a integração política e social.

c) Princípio da máxima efectividade ou eficiência


Com base neste princípio, dos vários sentidos possíveis da interpretação, deve-se
primar por aquele que permita um maior grau de realização das finalidades
constitucionais. Segundo a doutrina, este princípio reveste-se de maior importância em
matéria dos direitos fundamentais. Neste particular, ganham maior realce, grande parte
dos acórdãos do Tribunal Constitucional proferidos em sede de questões processuais
penais como veremos na segunda parte do presente trabalho.

d) Princípio da conformidade funcional


Como se depreende, com este princípio procura-se dos sentidos da interpretação
constitucional o que mais favorece o funcionamento dos órgãos constitucionais, de
modo a se realizarem as finalidades de natureza económica, social, e cultural, dizer
também que a interpretação em matéria de conformidade funcional, deve pautar por
respeitar a repartição de competências e de funções entre os vários órgãos
constitucionais.

e) Princípio da concordância prática ou harmonização


É também um corolário do princípio da unidade da Constituição e com ele se
visa evitar que da interpretação se sacrifiquem alguns direitos em detrimento de outros.
Tem maior preponderância em matéria de colisão dos direitos fundamentais, no entanto,
partindo do pressuposto que as normas constitucionais têm todas a mesma dignidade e o
mesmo valor, daqui resulta que o intérprete deve chegar a uma conclusão de modo a
harmonizar os vários dispositivos constitucionais ou pelo menos a não sacrificar em
absoluto a protecção de um direito em detrimento de outro.

f) Princípio da força normativa da Constituição


Com este princípio procura-se salvaguardar que entre os vários possíveis
sentidos, deve-se dar maior primazia a aquela que garante a eficácia e permanência da
Constituição. Este é um dos princípios que chama-nos atenção, porquanto com a
institucionalização do Tribunal Constitucional em 2008 e sem obviamente menosprezar
o papel desempenhado pelo Tribunal Supremo nas vestes daquele Tribunal, os acórdãos
proferidos transmitem-nos a nível da interpretação, a materialização da força da
Constituição e a necessidade de conformação do tecido das normas infra-
constitucionais.
Tais são os casos dos acórdãos que incidiram sobre os recursos extraordinários
de inconstitucionalidade em matéria penal no que concerne aos pedidos de “habeas
corpus” e ainda o excesso de prisão preventiva.
Portanto a partida e com base na doutrina consultada e também em função do
entendimento obtido, são estes entre outros os princípios orientadores da interpretação
da Constituição. É-nos quase que impossível escolher um único que se sobreponha aos
demais, pois o que se procura na hermenêutica constitucional, tal como temos vindo a
afirmar, é sempre retirar dos vários sentidos o que melhor visa salvaguardar os fins
preconizados na Constituição.

II – PARTE

2 – O impacto dos princípios da hermenêutica no ordenamento jurídico Angolano

2.1 – Análise do acórdão do Tribunal Constitucional


Entramos na segunda parte do presente trabalho, e nele procuraremos analisar o
acórdão n.º 326/2014, do Tribunal Constitucional, referente ao processo 403 – D/2013, a
lógica a seguir nesta parte do trabalho, consistirá em ver a concretização dos princípios
orientadores da hermenêutica constitucional supra descritos. Entretanto, iremos
reproduzir alguns trechos do acórdão, tendo em atenção as questões que hão-de servir
de base a presente análise.
O problema que se impõe nesta fase do trabalho, é o de saber se andou bem ou
não o Tribunal Constitucional ao proferir o acórdão em apreço, por um lado e por outro,
iremos analisar o impacto dos princípios orientadores da hermenêutica constitucional no
mesmo.
2.1.1 – Acórdão n.º 326/2014 relativo ao processo 403 – D/2013
Este acórdão resultou da interposição de um recurso de Extraordinário de
Inconstitucionalidade em nome de Jéssica Alexandra Alves Coelho nos termos do
artigo 49.º e seguintes da Lei 03/08 de Lei do Processo Constitucional, do acórdão da
Camara dos Crimes Comuns do Tribunal Supremo que indeferiu o segundo pedido de
“habeas corpus” mantendo a situação carcerária.

A Recorrente alegou em síntese o seguinte:

1 – Que interpôs junto da Camara dos Crimes Comuns do Tribunal Supremo uma
providência de “habeas corpus” com fundamento no excesso de prisão preventiva, nos
termos dos artigos 68.º da CRA, 25.º e 26.º da Lei 18-A/92 de 17 de Julho e na al.) c) do
artigo 315.º do C.P.P.

2 – A Camara dos Crimes do Tribunal Supremo, através do acórdão sobre o processo n.º
306/2013, deu provimento ao pedido de “habeas corpus”, ordenando a restituição
provisória à liberdade da arguida mediante caução no valor de kz 3.000.000,00 com a
obrigação de não se ausentar de Luanda, do país e a de apresentar-se quinzenalmente ao
respectivo tribunal.

3 – A decisão que constitui o acórdão proferido no processo n.º 306, foi efectivada entre
os dias 19.07.2013 e 29.07.2013. Contudo decorridos 10 dias, a contar da data referida
supra e apesar de ter sido interposto recurso do despacho de pronúncia nos termos dos
artigos 371.º e 655.º do C.P.P., o Juiz da causa pronunciou a arguida, ordenando a sua
detenção imediata e emitindo o mandado de captura e condução à cadeia no dia
05.08.2013. O recurso foi admitido com efeito suspensivo tendo sido mantido a prisão.

4 – A Recorrente entendeu que a atitude do Juiz da causa principal representa uma clara
violação à lei, nomeadamente aos n.ºs 2 e 3 do artigo 177.º da CRA e a al.) c) do artigo
323.º do C.P.P., não cumprindo deste modo a decisão do um Tribunal Superior, sendo a
nova prisão ilegal, nos termos do n.º 3 do artigo 291.º do C.P.P.
5 – Entretanto, a Camara dos Crimes do Tribunal Supremo entendeu no seu segundo
pronunciamento sobre a questão, que o Juiz da causa não desrespeitou a decisão do
Tribunal Superior, nem violou a lei, por se tratar de fases distintas e de um crime cuja
pena abstractamente aplicável não admite caução.

6 – Alega, ainda, a Recorrente que, ao indeferir a sua pretensão, tanto o Tribunal “a


quo” quanto o Tribunal “ad quem” denotam claramente uma tendência de execução
antecipada da pena, dando costas, desde já, aos princípios da presunção da inocência e
do caso julgado.

7 – Conforme consta a fls. 67 dos autos, o recurso extraordinário de


inconstitucionalidade interposto pela Requerente, foi admitido por despacho do
Venerando Tribunal Supremo.

Não se verificaram do ponto de vista processual, questões que obstassem o


Tribunal Constitucional de conhecer o mérito, nomeadamente quanto a competência do
tribunal tempestividade, legitimidade e obejcto do recurso.
Não iremos escalpelizar o conteúdo dos pressupostos processuais acima
aludidos, pelo que, contentámo-nos somente com a ideia de que tal como referimos não
se verificaram obstáculos a apreciação do Tribunal Constitucional.

Atento, ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade objecto da presente


análise, o Tribunal Constitucional engendrou como questões relevantes para análise e
apreciação as seguintes: primeiro o facto de a Recorrente ter tido a liberdade provisória
restituída em consequência do deferimento pelo Tribunal Supremo da solicitação do
pedido de “habeas corpus”, no entanto, o Juiz da causa principal pronunciou a
Recorrente e emitiu o mandado de captura e condução cadeia em virtude do crime não
admitir liberdade provisória o que se materializou. Desconformada com a situação, a
Requerente interpôs a segunda providência de “habeas corpus” ao Tribunal Supremo
alegando que o Juiz do Tribunal “a quo” desrespeitou a decisão do Tribunal Superior,
pois entendeu que tendo sido restituída a liberdade, esta devia manter-se para além da
pronúncia, ou seja, até ao trânsito em julgado da sentença.
Este pedido foi rejeitado pelo Tribunal Supremo com fundamento de que a sua
decisão produziu efeitos apenas na fase da prisão preventiva sem culpa formada, pelo
que, com o despacho de pronúncia contam outros prazos de prisão preventiva e que a lei
impõe que o Juiz se refira sobre a situação carcerária, podendo alterá-la ou mantendo-a.
Que o crime de homicídio qualificado é punível abstractamente com a pena de 20 a 24
anos de prisão maior e que nos termos dos artigos 10.º n.º 1 al.) b e no 2 al.) a) da lei 18-
A/92 de 17 de Agosto, a liberdade provisória é inadmissível, assim sendo concluiu o
Tribunal Supremo que o Juiz da causa principal não desrespeitou nenhuma decisão e
muito menos violou a lei, pelo que, o artigo 274.º deve ser conjugado com o 284.º
ambos do C.P.P., por isso, manteve a prisão.
A Recorrente interpôs o presente recurso com fundamento na quebra da caução,
na violação dos direitos fundamentais à liberdade, a dignidade da pessoa humana e
ainda do caso julgado, sendo que na sua perspectiva o Tribunal Supremo ao ratificar a
decisão do Tribunal “a quo” violou o disposto nos artigos 321.º e 655.º do C.P.P.

Na perspectiva do Tribunal Constitucional estamos diante de duas fazes


diferentes e consequentemente fundamentos de prisão preventiva diferentes. Pois na
primeira fase a prisão preventiva foi ordenada durante a instrução preparatória e perante
o excesso desta prisão foi a Recorrente posta em liberdade provisória enquanto no
segundo momento a prisão decorre da culpa formada.
Apesar de constar dos autos, em nenhum momento o Tribunal Supremo teve em
atenção que a data dos factos a Recorrente tinha apenas dezassete anos de idade pelo
que, goza da atenuação em razão da menoridade nos termos do artigo 108.º do C.P.,
segundo o qual aos menores de dezoito anos ao tempo da perpetração do crime não, lhes
é aplicável pena mais grave que a do n.º 5 do artigo 55.º do C.P., ou seja, pena de 2 a 8
anos de prisão maior.
Resulta do C.P.P., que as medidas de coação processual são: são a prisão
preventiva, a caução e o termo de identidade e residência. O critério de aplicação destas
medidas consta do artigo 291.º n.º 2 al.) a) do C.P.P., conjugado com o artigo 10.º da lei
18-A/92 de 17 de Julho.
Decorre destes artigos, que a liberdade provisória não é admissível se o crime
for aplicável abstractamente pena de prisão maior superior a de prisão maior de 2 a 8
anos, interpretado a “contrário sensu”, quando ao crime for aplicável pena inferior ou
igual a de prisão maior de 2 a 8 anos, é admissível a liberdade provisória e o meio de a
substituir é a caução ou termo de identidade e residência. No caso em apreço a
Recorrente por força do artigo 108.º do C.P., nunca lhe será aplicável pena de prisão
maior superior a de 2 a 8 anos.
O entendimento do Tribunal Constitucional é que nos termos dos artigos 107.º a
109.º do C.P., aos menores nunca será aplicável pena superior aos ai previstos, pois o
contrário levaria a que os menores fossem julgados como os adultos, o que contraria o
ideário constitucional de particular protecção e tutela da menoridade, pois nestes artigos
visa-se claramente diminuir a imputabilidade.
No caso em apreço a caução devia ser mantida, não só porque já tinha sido
aplicada, mas também em razão de penalidade abstracta tal como supra referimos.
Segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 1954 e 8 de
Janeiro de 1969 os artigos 107.º a 109.º do C.P. de 1886 continuam em vigor, fixam os
limites das penas aplicáveis aos menores e não das penas aplicadas. Decorre do exposto
que sendo a Recorrente menor de dezoito anos de idade, deve-se por isso mesmo ser
admissível a liberdade provisória.
Por outra, a República de Angola é parte na Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos das Crianças aprovada a 20 de Novembro de 1989 e ratificada em 05
de Dezembro de 1990, decorre que a prisão, detenção ou qualquer medida semelhante,
só deve ser aplicada quando outra menos grave não puder ser aplicada.
Resulta ainda que a medida da caução não deve ser desproporcional, devendo
haver a proporcionalidade entre a gravidade da pena e as limitações que o arguido sofre,
tendo em atenção que este goza da presunção de inocência artigo 67.º n.º 2 da CRA.
Convém reter também que o Direito Penal moderno e que vem consagrado na
Constituição de 2010, propende para aplicação de penas mais favoráveis, ou seja,
escolha de medidas não detentivas.
Na verdade, até ao trânsito em julgado da decisão condenatória e como tal
encontram protecção constitucional no artigo 67.º n.º 2 por via do princípio da
presunção da inocência, deve-se aplicar leis e medidas mais favoráveis para que se
possam enquadrar no critério constitucional estabelecido.
O Tribunal Constitucional constatou que a Recorrente está detida desde o dia 17
de Dezembro de 2012 e embora tenha sido solta e permanecido fora da prisão por um
período de 17 dias, no momento da presente apreciação, já decorreram mais de 365 dias
de detenção, pelo que, à luz da jurisprudência deste Tribunal (Acórdão n.º 312 de 2013,
entre outros) deve, de igual modo, a prisão preventiva dar lugar a liberdade provisória
mediante caução.
Por tudo exposto, concluiu o Tribunal Constitucional que pelo facto de a
Recorrente ser de menor idade à data da eventual prática da infracção artigo 108.º do
C.P., não se verifica nenhuma situação de inadmissibilidade da liberdade provisória, nos
termos do artigo 291.º do C.P.P., conjugado com o artigo 10.º da lei 18-A/92 de 17 de
Julho.
Acordaram os juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional em: dar
provimento ao pedido da Recorrente, concedendo-lhe a liberdade provisória mediante
caução, já arbitrada, nos termos dos artigos 108.º do C.P., conjugado com a al.) a)
parágrafo 2 do artigo 291.º do C.P.P, artigo 10.º da lei 18-A/92 de 17 de Julho e 67.º n.º
2 e 80.º n.º 1 da CRA e artigo 1.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das
Crianças.
Tendo em atenção o presente acórdão, cabe-nos analisar o impacto dos
princípios ligados a hermenêutica constitucional, lembrado que no introito do presente
trabalho fizemos alusão a necessidade de conformação do tecido legislativo infra-
constitucional à Constituição e a pergunta que se impõe é a de saber se andou bem ou
não o Tribunal Constitucional ao considerar procedente o recurso extraordinário de
inconstitucionalidade interposto.
Por tudo quanto foi exposto, acreditamos que sim, partindo do pressuposto que a
providência do “habeas corpus” é um dos meios de garantia da liberdade individual, no
caso de natureza processual, com a qual se visa, atacar a ilegalidade da prisão, podendo
ser deferida ou indeferida em função da constatação ou não da aludida ilegalidade. Em
causa está a liberdade enquanto direito fundamental da pessoa humana nos termos do
artigo 36.º da CRA.
Pela incursão e análise feita no acórdão do Tribunal Constitucional resulta claro
que a improcedência do segundo pedido de “habeas corpus” e manutenção da prisão
preventiva da Recorrente foi manifestamente ilegal e somos de opinião que essa ilação
resulta, não tanto da supremacia da Constituição, mas sobretudo da correcta
interpretação das normas infra-constitucionais acima aludidas.
Em relação aos princípios orientadores da hermenêutica constitucional,
vislumbramos no acórdão a manifestação dos seguintes princípios: princípio da
unidade da Constituição, porquanto fez-se menção no acórdão que sendo a Recorrente
menor de dezassete anos de idade, aquando da prática do infracção e sendo a República
Angola subscritora da Convenção das Nações Unidas para os Direitos das Crianças e
consagrado no artigo 80.º n.º 2 da CRA o princípio do superior interesse da criança,
conjugado com o artigo 108.º do C.P., é de bom-tom em consonância com as regras do
Direito Penal moderno, a aplicação de medidas menos graves dado o seu maior carácter
ressocializador, logo fica patente a visão da Constituição como um todo.
Princípio do efeito integrador, entende a doutrina que este princípio é uma
consequência do princípio da unidade da Constituição e encerra o entendimento de que
todas as interpretações admissíveis, deve atender-se a que dá maior ênfase a integração.
Ora, no acórdão fica patente que poderia por mera hipótese acadêmica o Tribunal
Constitucional considerar improcedente o recurso extraordinário de inconstitucional,
entretanto a luz dos fundamentos avançados resulta que não seria a decisão mais
consentânea com o espírito da Constituição, pois sem prejuízo da aplicação do disposto
no artigo 108.º do C.P. a defesa dos interesses da criança tem dignidade constitucional,
pelo que, outra solução a acordada pelos Venerando Juízes do Tribunal Constitucional,
seria manifestamente inviável.
Princípio da máxima efectividade ou eficiência, segundo a doutrina este
princípio tem maior relevância em sede da defesa dos direitos e liberdades fundamentais
o que se compagina com o acórdão em apreço. Ora, prediz o princípio em análise, que
das várias interpretações constitucionais, deve-se dar primazia ao que melhor realiza as
finalidades previstas na Constituição, assim sendo, no acórdão em referência dúvidas
não restam de que sendo a Recorrente menor na altura da infracção, gozando os
menores protecção constitucional, dos vários sentidos admissíveis, a interpretação
constante do acórdão em referência é o que mais se coaduna, com a realização dos fins
consagrados na Constituição e neste particular o da defesa ou protecção da criança.
Princípio da conformidade funcional, com este princípio quer-se salvaguardar a
funcionalidade dos órgãos constitucionais, de modo, a evitar que se subverta o esquema
organizatório-funcional constitucionalmente consagrado. Do acórdão em apreço, resulta
que a interpretação nela assente, longe de alterar a ordem estabelecida pelo Legislador
Constituinte, visa justamente mantê-la, na medida em que sendo a Recorrente era menor
a data da infracção, nos termos dos artigos 108.º do C.P., 291.º do C.P.P., e 10.º da lei
18-A/92 de 17 de Julho, não se preenchem os pressupostos da inadmissibilidade da
liberdade provisória, razão por que o Tribunal Constitucional considerou procedente o
recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
Princípio da concordância prática ou harmonização, aplica-se para a
coordenação e integração dos bens jurídicos em conflitos, mormente direitos
fundamentais. No acórdão, ficou patente que entre o valor da liberdade provisória
assente na presunção da inocência e a sua privação com o fito de evitar perturbação da
instrução processual prevaleceu a primeira, aliada a menoridade tal como referimos
noutro ponto do presente trabalho.
Princípio da força normativa da Constituição, das várias soluções
hermenêuticas, deve salvaguardar-se a que melhor garante a consistência da
Constituição, assim pelas mesmas razões invocadas, concluímos que andou bem o
acórdão do Tribunal Constitucional ao considerar procedente o recurso extraordinário
de inconstitucionalidade pela prioridade que os menores devem ter a nível da protecção
dos seus direitos e interesses.

2.3 – Necessidade de Conformação das Normas Infra-constitucionais a


Constituição.
Chegados neste momento e sem prejuízo de tudo quanto abordamos neste
trabalho, queremos afirmar que há toda uma necessidade de conformar o tecido
legislativo, pois que, grande parte das normas vigentes estão descontextualizadas da
nova realidade Constitucional e mais, acreditamos que temos uma Constituição
moderna no que concerne a defesa dos Direitos Liberdades e Garantias Fundamentais,
porém imperioso se torna ajusta-la a nova realidade.
Aplaudimos a reforma do Direito e da Justiça por que não compreende o porquê
de grande dos diplomas fundamentais no nosso ordenamento jurídico não tenham ainda
sido revistos, aqui chamamos particular atenção a situação dos Códigos de Processo
Penal, Código Penal, Código de Processo Civil, Código Comercial todos eles do século
XX e subjacentes a realidades distintas na actual.
Um dos problemas que nos tem chamado atenção é o da famosa prisão por
dívidas, por causa da dificuldade de interpretação dos crimes ligados a propriedade,
nomeadamente: a burla e a burla por defraudação previsto nos artigos 450.º e 451.º
ambos do C.P. Estamos diante do problema entre a regulação dos mesmos institutos
jurídicos pelo Direito Civil e Penal o que cria uma certa dificuldade na compreensão e
concomitantemente na sua distinção.
Na opinião do insigne professor penalista português Manuel Lopes Maia
Gonçalves9 o grande problema, está sobretudo no facto de o Código Civil de 1966 ter
regulado ainda que de forma amiúde, institutos já anteriormente disciplinados pelo
Código Penal na medida em que este diploma data de 1886, embora reconheça que a
jurisprudência dos tribunais tenha empreendido esforços no sentido que acompanhar a
evolução da doutrina mais actual e representativa, até onde o pensamento legislativo o
pode permitir.
Esta situação, leva-nos a reflectir sobre o princípio da unidade do ordenamento
jurídico, segundo o qual, não deve um comportamento ser tido por válido por
determinado ramo do Direito e posteriormente reprovado por outro, o que criaria
incerteza jurídica, embora a inversa já não seja verdadeira, ou seja, o facto de um
comportamento ser punido por determinado ramo de Direito não significa que o será por
todos, a título de exemplo é o facto de em determinada situação, poder haver
responsabilidade civil, sem que no entanto, haja responsabilidade penal.
Entretanto enquanto a reforma não for totalmente implementada, a solução que
apontamos para o problema passa sem sombra de dúvidas por conformar a realidade
jurídica vigente a CRA, de modo a evitar a inconstitucionalidades com recurso aos
princípios orientadores da hermenêutica constitucional, em qualquer das situações de
fiscalização da constitucionalidade.
Os distintos acórdãos do Tribunal Constitucional têm tido a vantagem de
facilitar o trabalho de ajustamento das normas infra-constitucionais à Constituição e
guisa de exemplo serve o acórdão objecto de apreciação neste trabalho o qual evidência
de forma clara, a necessidade de materialização dos ideias contidos na Constituição,
mormente a protecção dos direitos dos menores.

9
Manuel Lopes Maia Gonçalves, Código Penal Português na Doutrina e na Jurisprudência, Coimbra,2.º
Edição, Livraria Almedina 1972.
3 – Conclusão
Depois de toda incursão feita, chegou o momento de concluirmos o presente
trabalho, certo de que longe de esgotarmos a sua apreciação, o que fica aqui registado,
servirá de base para elaboração de futuro e melhores trabalhos, ou como se diz, o
presente trabalho é somente de uma gota de água no oceano.
Tal como referimos aquando da introdução, o trabalho foi dividido em duas
partes, a primeira referente aos princípios orientadores da hermenêutica constitucional e
a segunda centrada na análise do acórdão do Tribunal Constitucional. Entretanto, sem
prejuízo disto, o epicentro do trabalho foi sem dúvida a análise e apreciação do acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 326/2014 relativo ao processo 403 – D/2013, em causa
está como vimos o recurso extraordinário de inconstitucionalidade, tal qual nos foi
orientado pelos ilustres formadores.
Entretanto para melhor sedimentar análise do trabalho, partimos da apreciação
dos princípios orientadores da hermenêutica constitucional para no momento da
apreciação do acórdão referido, subentendermos a consagração dos princípios da
hermenêutica constitucional, ou seja, a lógica subjacente no trabalho, foi a de partir de
uma apreciação geral ou doutrinária para uma apreciação concreta.
O âmago trabalho foi analisar o acórdão do Tribunal Constitucional e a pergunta
que procuramos responder ao longo do trabalho foi a de saber se o Tribunal
Constitucional andou bem ou não.
Ora, por tudo quanto dissemos não restam dúvidas quanto a nossa resposta, pois
a título de resumo diremos o seguinte: 1.º a Recorrente era menor na altura prática da
infracção; 2.º a CRA nos termos do artigo 80.º consagra a protecção das crianças; 3.º a
República de Angola ratificou pela resolução n.º 20/90 da Assembleia do povo, a
Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 20 de Novembro de 1989 e em várias disposições da convenção alude-se que
os Estados Partes comprometem-se em cumprir as várias obrigações e uma delas é a de
respeitar o princípio do superior da criança, 4.º acreditamos que independentemente do
recurso a CRA e a Convenção dos Direitos da Criança e tal como bem, frisou o Tribunal
Constitucional no acórdão em apreço que da interpretação das disposições combinadas
dos artigos nos termos dos artigos 108.º do C.P., 291.º al.) a) parágrafo 2 do C.P.P., 10.º
da lei 18-A/92 de 17 de Julho e porque no caso em apreço a Recorrente já tinha
caucionado a prisão, não havia razões para que o Tribunal Supremo revogasse a
segunda providência de “habeas corpus”, por último e não menos importante 5.º há
como dissemos no outro subtítulo do presente trabalho, necessidade de conformar a
normas infra-constitucionais a Constituição.
Sem prejuízo de tudo quanto dissemos, podemos em jeito de conclusão destacar
o seguinte:
1. O valor social do acórdão: o acórdão objecto da presente trabalho, é de grande
impacto social, porquanto nele o Tribunal Constitucional chama-nos sobretudo
atenção a necessidade de conformar as normas infra-constitucionais a
Constituição, por um lado e por outro, a necessidade de protecção do superior
interesse da criança, cristalizado no presente acórdão no princípio da presunção
da inocência e na aplicação de medidas com maior carácter ressocializador,
atento as orientações do Direito Penal Moderno, onde as medidas não privativas
de liberdade se sobrepõe as privativas
2. A inconstitucionalidade e o problema da correcta interpretação: o problema
central do acórdão do Tribunal Constitucional não está necessariamente na
inconstitucionalidade como tal, mas sim na correcta interpretação das normas a
luz da Constituição, pois ficou patente que no caso em apreço o segundo pedido
de “habeas corpus” ao Tribunal Supremo deveria ter sido julgado procedente,
por que da correcta interpretação, das disposições combinadas dos artigos 108.º
do C.P., 291.º do C.P.P., e 10.º da lei 18-A/92 de 17 de Julho, não resulta a
inadmissibilidade da liberdade provisória. Por isso, em nossa opinião e sem
prejuízo da supremacia da Constituição, ainda que não se fizesse recurso a ela,
seria sempre viável a concepção da liberdade provisória a Recorrente.
3. Importância prática do Tribunal Constitucional: já frisamos noutra parte
deste trabalho que o Tribunal Constitucional tem desenvolvido um trabalho de
grande relevância no nosso ordenamento jurídico e sem precisarmos fazer
grandes afloramentos gostaríamos destacar aqui duas particularidades. A
primeira resulta do facto de que com a criação do Tribunal Constitucional ficou
salvaguardada a defesa dos direitos e liberdades fundamentais sobretudo no que
concerne a questão relativa a possibilidade que as partes têm em não se
conformando com a decisão proferida em sede dos tribunais de jurisdição
comum, poderem recorrer a jurisdição constitucional e a segunda o facto de, da
análise dos vários acórdãos do Tribunal Constitucional constatarmos o esforço
deste Tribunal em procurar soluções atentas aos princípios orientadores da
hermenêutica constitucional, ou seja, procura-se sempre dar maior dignidade a
Constituição enquanto Lei suprema.
Portanto, concordamos com a apreciação feita pelo Tribunal Constitucional
porquanto o sentido dado as normas interpretandas no problema em questão, resulta
claro o respeito a Constituição enquanto diploma mais importante do nosso
ordenamento jurídico e o dever de obediência a que estão sujeitos as normas infra-
constitucionais sob pena de serem incostitucionais.
4 – BIBLIOGRAFIA

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