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Os Modos Eclesiásticos
Descrever como foram utilizados os modos eclesiásticos na antiguidade é uma tarefa difícil, uma
vez que não existem vestígios desta música. Modo significa “razão”, isto é, uma medida ou forma que nos
faz agir com moderação. Os antigos poetas-músicos chamavam suas composições de modos, exprimindo
em palavras uma gama de assuntos acompanhados por ritmos ou métricas diferentes e harmonias
diversas, resultando na classificação dos modos em três classes ou gêneros, de acordo com seus textos e
ritmo. Zarlino, em seu tratado Le istitutioni harmoniche (1558),1 menciona que

os nomes dos modos eram gerados de acordo com o nome do seu inventor. Uma vez que cada modo possuía algo
intrínseco na sua melodia e era acompanhado por ritmos diversos, alguns modos denominavam-se grave e severo,
outros bacanal e selvagem, alguns honesto e religioso, ou ainda lascivo e belicoso. Por este motivo, tomavam
grandes cuidados ao juntar harmonia com ritmo, acrescentando-lhe versos conforme a natureza do assunto em
questão (ZARLINO, 1983, p. 2).

Os modos antigos eram expressos não só vocalmente, mas acompanhados por harmonia gerada por
algum instrumento, como a cítara ou a lira. Havia uma grande diferença entre os modos, pois o povo de
cada província utilizava uma forma de verso e instrumento característicos.
O número de modos antigos difere de acordo com o autor da época. Por exemplo, Platão propõe o
uso de seis modos; Aristóxenus utiliza quinze modos, sendo cinco principais e dez colaterais,
acrescentando-se os prefixos hipo e hiper aos originais. Ptolomeu propõe sete modos, enquanto Aristides
Quintilianus, seis (ZARLINO, 1983, p. 14). Muitos teóricos achavam que os modos eclesiásticos teriam
sido derivados destes modos utilizados pelos gregos antigos. No entanto, o teórico medieval não
compreendeu bem o sistema grego, acarretando diferenças significativas entre eles (AMMER, 1972, p.
68). Apenas alguns dos nomes dos modos eram iguais aos dos modos eclesiásticos, e as escalas antigas
eram descendentes, ao contrário das medievais.
Na realidade, o número de modos utilizados pelos antigos e seus nomes não tem grande
importância. É importante apenas reconhecer que, conforme o seu uso por músicos modernos, isto é, de
acordo com a prática de colocar os modos em uma das sete espécies como diapasão dividido harmônica e
aritmeticamente (ZARLINO, 1983, p. 36), existem doze modos, independente do número proclamado
pelos músicos antigos. A razão desta afirmação é que as sete espécies do diapasão podem ser divididas de
doze formas e não mais. Seis destas divisões criam os seis principais modos: dórico, frígio, lídio,
mixolídio, eólio e jônico.
O sistema modal nada mais é do que uma forma de organizar e classificar as melodias de
cantochão, o qual também gerou uma nova forma de composição. Muitas melodias já existiam antes da
evolução desta sistematização e suas extensões eram diversas: algumas com extensão de apenas uma

1
Le istitutioni harmoniche, Parte IV. Em Gioseppe Zarlino, On the modes, traduzido por Vered Cohen, (New Haven: Yale
University Press, 1983, p. 2).
quinta, outras de até uma nona, por exemplo. Alguns cantos eram compostos de mais de um modo,
portanto, nem todas as melodias enquadravam-se nesta sistematização, tendo que ser adaptadas.
Os modos eclesiásticos, formados por quatro modos autênticos e quatro modos plagais, eram
escalas ascendentes. Nos modos autênticos, de numeração ímpar, a primeira nota da escala recebeu o
nome finalis (Exemplo 11). O quinto grau da escala denominou-se confinalis (ou nota recitante,
dominante).2 Os modos autênticos eram utilizados em ocasiões festivas devido ao seu caráter mais forte.
A confinalis era usada como nota recitante, principalmente nos salmos, onde a mesma nota é entoada para
uma grande parte do texto, voltando-se à finalis, descendentemente, ao término do texto. Somente no
modo frígio a confinalis desobedece a esta regra, uma vez que o quinto grau cai na nota si, sendo esta,
então, elevada para a nota dó. Isto ocorre para evitar que a nota recitante seja si (a “dominante” do modo),
evitando, assim, a quinta “falsa” (quinta diminuta) entre as notas si e fá, e também porque o si era variável
(si ou si bemol) e não aceito como dominante.

Exemplo 11 − Os Modos Eclesiásticos.


Destas escalas autênticas surgiram os modos plagais com numeração par, de caráter mais ameno,
utilizados nas ocasiões de penitência. Sua finalis é a mesma que a finalis do seu modo autêntico
correspondente. Por exemplo, a finalis dos modos dórico e hipodórico é ré.
A confinalis nos modos plagais, por outro lado, encontra-se uma terça abaixo da confinalis de seu
modo autêntico, exceto quando esta cai na nota si; neste caso é substituído por dó. Para encontrarmos a
confinalis do modo hipodórico, por exemplo, é necessário saber a confinalis do modo dórico (lá, uma
quinta acima da finalis ré). Uma terça abaixo desta encontra-se a confinalis do modo hipodórico: fá.
Podemos resumir os dados destas escalas na seguinte tabela:

Tabela 1 − Os modos eclesiásticos.

No DO MODO AUTÊNTICO OU NOME DO FINALIS CONFINALI EXTENSÃ


PLAGAL MODO S O

1 autêntico dórico Ré lá ré a ré
2 plagal hipodórico Ré fá lá a lá
3 autêntico frígio Mi si = dó mi a mi
4 plagal hipofrígio Mi lá si a si
5 autêntico lídio Fá dó fá a fá
6 plagal hipolídio Fá lá dó a dó
7 autêntico mixolídio Sol ré sol a sol
8 plagal hipomixolídio Sol si = dó ré a ré

Uma melodia pertencia ao modo autêntico quando sua extensão estava contida (ou quase toda
contida) entre as notas de sua escala. O mesmo ocorria com os modos plagais, sendo que estes eram
obrigados a terminar na finalis do seu modo autêntico correspondente. A finalis determina se a melodia
pertence a um dos modos dórico, frígio, lídio ou mixolídio. Porém, não especifica qual dos modos, se
autêntico ou plagal. No Exemplo 12, retirado do Liber Usualis (LU; uma importante coleção de melodias
gregorianas com texto utilizado na Missa Católica e os Ofícios), a melodia pertence ao modo dórico, pois
termina na nota ré. No Exemplo 13 (LU 1043) o modo é evidentemente lídio, pois finda na nota fá.

2
Os termos finalis e confinalis serão adotados neste texto, uma vez que “tônica” e “dominante” transmitem a idéia de função
harmônica, a qual não existia nesta época.
Exemplo 12 − LU 586.

Exemplo 13 − LU 1043.

Exemplo 14 − LU 1046.

Exemplo 15 − LU 647.

A identificação do modo somente pela finalis e extensão às vezes torna-se difícil. Neste caso, o
fator determinante é a confinalis. Nos Exemplos 13 e 14, ambas as melodias terminam na nota fá,
portanto, caracterizam o modo lídio. No entanto, a primeira enfatiza a confinalis dó, identificando o modo
como lídio; na segunda melodia a nota mais enfatizada é lá, definindo claramente o modo hipolídio.
Compare o Exemplo 12 com o Exemplo 15. A extensão utilizada nos dois trechos não ultrapassa uma
quinta; em ambos a finalis é a mesma (ré). A identificação do modo necessariamente será feita pela
confinalis. No modo autêntico dórico, a confinalis é lá, portanto, a segunda nota de maior importância
neste modo (Exemplo 12). No modo hipodórico, modo plagal, a confinalis é a nota fá, vista como nota
enfatizada no Exemplo 15. Concluímos, então, que os modos eclesiásticos são classificados conforme sua
finalis, confinalis e extensão.
Os modos também são determinados pela sua estrutura intervalar, distinta em cada modo. A
disposição e a ordem dos tons e semitons é responsável pela característica peculiar de cada modo. 3
Analise a disposição dos tons e semitons nas oito escalas do Exemplo 11.
Com o desenvolvimento da monofonia na Idade Média, através do organum e discanto, ao chegar
na polifonia da renascença, isto é, com o acréscimo de outras melodias simultâneas à melodia existente, a
distinção entre modos autênticos e plagais perdeu sua importância (ROBERTS & FISCHER, 1967, p. 8).
O modo utilizado pelo tenor determinava o modo da obra, enquanto as outras vozes empregavam, por
exemplo, o modo plagal. Um verdadeiro sentido de modulação ainda não existia, adotando-se apenas um
modo para toda a composição. A variedade ocorria ao usar cadências em graus além da finalis. O uso de
cadências variadas em uma mesma obra deste período produzia, de certa forma, a mesma sensação de
modulação na obra moderna. A cadência convincente utiliza a sensível e, quando este semitom não está
presente em um determinado modo, é criado através do uso de musica ficta.4 O modo frígio, no entanto, é
o único modo onde o semitom é invertido, isto é, ocorre acima da finalis, enquanto que o grau abaixo da
finalis é de um tom. O ré sustenido nunca é empregado neste modo. Portanto, no modo frígio, o sétimo
grau da escala aparece na cadência final, mas não é a sensível.
Apesar dos modos autênticos e plagais serem escalas, cada qual com sua confinalis, o ato de combinar
vozes de âmbitos diferentes criou a necessidade de se estabelecer uma mesma confinalis para todas as
vozes, optando-se pela confinalis do modo autêntico. Como as vozes em geral se distanciavam uma das
outras por um intervalo de quarta (baixo e tenor, por exemplo), o uso do modo plagal na polifonia tornou-
se meramente uma questão de extensão. O cantus firmus, portanto, era colocado no tenor. O início da
composição frequentemente indicava o modo, introduzindo a finalis ou a confinalis como sua primeira
nota; o baixo continha a finalis do modo autêntico como sua primeira nota.

3
Para informações sobre desenvolvimento motívico no cantochão, consulte Music Theory through Literature, vol. 1, de John
Bauer (1985, p. 33-41).
4
Musica ficta será discutido mais adiante.

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