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Um Argumento Cosmológico A Partir Do Big Bang Para A Inexistência de

Deus

Parte 2 - A Teoria Cosmológica do Big Bang

Autor: Quentin Smith


Fonte:
http://www.infidels.org/library/modern/quentin_smith/bigbang.html
[Publicado originalmente em FAITH AND PHILOSOPHY em abril de 1992
(Volume 9, No. 2, págs. 217-237)]
Tradução: Gilmar Pereira dos Santos (blog Rebeldia Metafísica)

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Neste capítulo, os aspectos relevantes da teoria do Big Bang são explicados


em quatro etapas. Estes aspectos constituirão as quatro premissas
científicas do argumento em favor do ateísmo que formularei no próximo
capítulo.

(i) A primeira etapa é a apresentação da assim chamada ‘equação de


Einstein’, que é o núcleo da Teoria da Relatividade Geral de Einstein [8]. A
equação de Einstein diz, em termos simplificados, que a geometria
(curvatura) do espaço-tempo é determinada pela distribuição de massa e
energia no espaço-tempo. A equação pode ser expressa de forma
simplificada como:

(curvatura do espaço-tempo) = 8*pi*(densidade da matéria)


Esta equação sugere que se a matéria no universo for suficientemente
densa, a curvatura do espaço-tempo aumentará tanto que o espaço-tempo
será reduzido a praticamente um ponto, como o vértice de um cone.

A história de uma partícula ou raio de luz é uma trajetória no espaço-tempo,


e se o espaço-tempo se curvar até ficar praticamente reduzido a um ponto,
estas trajetórias no espaço-tempo convergirão e se interceptarão neste
ponto.

Se esta intersecção ocorrer em algum momento no futuro, o ponto de


intersecção constituirá o fim do espaço-tempo. Se a intersecção ocorreu no
passado, de modo que as trajetórias no espaço-tempo emerjam de um
ponto de intersecção e afastem-se gradualmente umas das outras, o ponto
de intersecção pareceria constituir o começo do espaço-tempo. Esta
possibilidade leva a uma discussão do próximo aspecto relevante da
cosmologia do Big Bang.

(ii) A equação de Einstein admite várias soluções e qual solução descreve


nosso universo é uma questão empírica. As soluções de Friedmann
(primeiro obtidas por Friedmann em 1922 e 1924 [9] são as consideradas
válidas para nosso universo.

H é a solução que descreve um universo perfeitamente isotrópico (parece


o mesmo em todas as direções) e perfeitamente homogêneo (a matéria
encontra-se distribuída uniformemente). Se aplicarmos à equação de
Einstein uma métrica que descreve um universo perfeitamente isotrópico e
homogêneo, as soluções de Friedmann são obtidas, que podem ser
expressas numa forma simplificada como:

-3*(aceleração da expansão ou desaceleração da contração do universo) =


4*pi*(densidade da matéria)
As soluções de Friedmann nos dizem que se existe matéria uniformemente
distribuída pelo universo, então o universo deve estar se expandindo numa
taxa decrescente ou se contraindo numa taxa crescente (exceto no
instante, se algum houver, em que a expansão para e reverte para uma
contração).

Para ver isto, observe que o lado direito da equação (simplificada) acima
representa a densidade da matéria multiplicada por 4*pi. Se existe matéria
no universo, então a densidade da matéria do universo é positiva.

Isto implica que o valor para a aceleração da expansão ou para a


desaceleração da contração é multiplicado por -3 e o resultado deve ser
igual ao número positivo representado pelo lado direito da equação.

Se o valor da aceleração da expansão é negativo, isto significa que o


universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor. Se o valor da
desaceleração da contração é negativo, isso significa que o universo está se
contraindo a uma taxa cada vez maior.

Este resultado é de uma significância crucial, pois implica que se o universo


contém matéria uniformemente distribuída então sua existência é
temporalmente limitada.

Se o universo está se contraindo a uma taxa cada vez maior, então ele não
pode se contrair eternamente, mas deve eventualmente alcançar um ponto
final, quando se curva até ficar reduzido a um ponto e seu raio se torna
zero.

Se o universo está se expandindo a uma taxa cada vez menor, então ele não
pode estar se expandindo eternamente, mas deve ter começado a se
expandir em algum momento no passado, quando seu raio começou a
crescer a partir de zero.
Consideremos também o caso da expansão, estado em que o universo se
encontra atualmente. Quanto mais recuamos no passado seguindo a
trajetória no universo, mais rápida é a taxa de expansão que encontramos.

À medida em que a taxa de expansão aumenta, a curvatura do universo e a


densidade da matéria aumentam e o raio do universo diminui, até que se
atinge um ponto em que a curvatura do universo é infinita, a densidade da
matéria infinita e o raio do universo é zero.

Devido a esta curvatura infinita, as trajetórias rumo ao passado das


partículas no espaço-tempo convergem, tal que cada trajetória no espaço-
tempo termina em algum ponto no qual outras trajetórias no espaço-tempo
também terminam.

Se as equações de Friedmann descrevem um universo esférico, o universo


é finito em extensão e consequentemente todas as trajetórias no espaço
tempo no sentido do passado se interceptam em um ponto. Toda a matéria
é comprimida neste único ponto, que possui zero dimensões espaciais.

Este ponto existe instantaneamente antes de explodir no Big Bang. O ponto


instantaneamente existente é uma singularidade, o que significa que é um
ponto final do espaço-tempo; não existe momento mais antigo do que o
instante da singularidade, pois a própria singularidade é o primeiro instante
do tempo.

Por outro lado, se o universo é plano (não-curvo) ou hiperbólico (curvado


como uma sela) ele é infinito em extensão, o que implica que as trajetórias
no espaço tempo orientadas para o passado terminam numa singularidade
espacialmente unidimensional.
Apenas um volume finito de espaço pode ser comprimido num ponto;
consequentemente, se existe um número infinito de volumes espaciais de
qualquer tamanho finito determinado (o que seria o caso se o universo
fosse plano ou hiperbólico), então deve haver um número infinito de
pontos constitutivos da singularidade.

Estes pontos existem instantaneamente (no primeiro instante do tempo) e


então explodem num Big Bang infinitamente prolongado.

Entretanto, as soluções de Friedmann para as equações de Einstein por si


próprias não mostram que nosso universo começou numa singularidade do
Big Bang.

Há uma certa incongruência entre suas soluções e as propriedades globais


de nosso universo, uma incongruência que pode tornar inaplicável sua
previsão de uma singularidade do Big Bang.

O enunciado e a resolução deste problema levam a um terceiro aspecto da


cosmologia do Big Bang que é pertinente para meu argumento.

(iii) As soluções de Friedmann são baseadas na hipótese de que o universo


é perfeitamente isotrópico e homogêneo. Mas esta hipótese é
inconsistente com as evidências observacionais, que revelam que o
universo consiste de aglomerados ou superaglomerados de galáxias
separados por vastas extensões de espaço vazio ou aproximadamente
vazio.

O universo é isotrópico e homogêneo somente de um ponto de vista


estatístico, calculando-se a média ao longo de distâncias de bilhões de
anos-luz. (Por exemplo, podemos assumir que diferentes regiões cúbicas do
espaço diferem quanto a sua massa por menos de um porcento somente se
se considera que estas regiões tenham três bilhões ou mais de anos-luz de
diâmetro.)

Isto pode sugerir que a previsão de uma singularidade do Big Bang é


inaplicável ao universo já que esta previsão é baseada nas hipóteses de
perfeitas homogeneidade e isotropia.

A hipótese de perfeita isotropia implica que o movimento relativo de


qualquer par de partículas é puramente radial e a hipótese de perfeita
homogeneidade implica a inexistência de gradientes de pressão.

O fato de que nosso universo é imperfeitamente isotrópico e homogêneo


implica que as trajetórias espaço-temporais orientadas para o passado de
partículas exibem velocidades transversas e aglomerações que produzem
agregados de matéria.

Isto sugere que as trajetórias divergirão em vez de convergir num único


ponto. Isto por sua vez sugere que a atual fase de expansão do universo
resulta de um ‘ricochete’ que terminou uma fase de contração anterior do
universo.

Mas esta sugestão de um universo oscilante foi contestada no final da


década de 1960 pelos teoremas da singularidade Hawking-Penrose [9A],
que demonstram que sob certas condições imperfeitamente isotrópicas e
homogêneas, universos também se originam numa singularidade do Big
Bang. Formulados com precisão, os teoremas enunciam que uma
singularidade é inevitável dadas as cinco condições a seguir:

a) A Teoria da Relatividade Geral de Einstein é verdadeira em nosso


universo.
b) Não existem curvas de natureza temporal fechadas (isto é, viajar no
tempo rumo ao próprio passado é impossível e o princípio de causalidade
não é violado).

c) A gravidade é sempre uma força de atração.

d) A superfície do espaço-tempo não é demasiadamente simétrica; isto é,


toda trajetória de uma partícula ou raio de luz no espaço-tempo encontra
alguma matéria ou curvatura aleatoriamente orientada.

e) Existe algum ponto p tal que todas as trajetórias espaço-temporais


orientadas para o passado (ou futuro) partindo de p começam a convergir
novamente. Esta condição implica que existe matéria suficiente no universo
para concentrar toda trajetória espaço-temporal orientada para o passado
ou futuro a partir de algum ponto p.

As soluções para os teoremas Hawking- Penrose mostram, como Hawking


observa, que “em geral existirá uma curvatura-singularidade que
interceptará qualquer linha do mundo. Portanto, a relatividade geral prevê
um começo do tempo”. [10]

(iv) O último aspecto da cosmologia do Big Bang que preciso como premissa
em meu argumento em favor do ateísmo é o princípio de ignorância de
Hawking, que declara que singularidades são inerentemente caóticas e
imprevisíveis. Nas palavras de Hawking:

“Uma singularidade é um lugar em que os conceitos clássicos de espaço e


tempo, bem como todas as leis conhecidas da física, são inaplicáveis porque
são todas formuladas num contexto de espaço-tempo clássico.
Neste artigo, afirma-se que esta inaplicabilidade não é meramente uma
consequência de nossa ignorância da teoria correta, mas que constitui uma
limitação fundamental à nossa habilidade de prever o futuro, uma limitação
análoga, porém suplementar à limitação imposta pelo princípio da incerteza
da mecânica quântica ortodoxa”. [11]

Uma das relações de incerteza da mecânica quântica refere-se à posição q


e ao momento p de uma partícula. Esta relação declara que (delta p)*(delta
q) = h/(4*pi), que implica que se a posição de uma partícula é
definidamente previsível então seu momento não o é, e vice-versa.

O princípio da ignorância é mais forte no sentido de que implica que não se


pode definidamente prever nem a posição nem o momento de qualquer
partícula emitida por uma singularidade.

Na verdade, este princípio implica que nenhum dos valores físicos das
partículas emitidas são definidamente previsíveis. De acordo com este
princípio, a singularidade do Big Bang “emitiria todas as configurações de
partículas com igual probabilidade”. [12]

A imprevisibilidade da singularidade implica que deveríamos esperar um


transbordamento caótico de seu “interior”.

Esta expectativa está alinhada com a representação feita pelos


cosmologistas do Big Bang dos estágios primordiais do universo, pois estes
estados são concebidos como maximamente caóticos (envolvendo a mais
completa entropia).

A singularidade emitiu partículas com microestados aleatórios, e isto


resultou num macroestado global de equilíbrio térmico.
A significância do princípio de ignorância pode facilmente passar
despercebida. Ele implica que a singularidade do Big Bang possui um
comportamento completamente imprevisível no sentido de que nenhuma
lei física governa seu comportamento.

A imprevisibilidade da singularidade não é simplesmente uma questão


epistêmica, significando que ‘nós humanos não somos capazes de prever o
que surgirá dali, mesmo que haja uma lei governando a singularidade que,
se conhecida, nos habilitaria a fazer previsões precisas.’

William Lane Craig assume que a imprevisibilidade é meramente


epistêmica; ele escreve que ‘a imprevisibilidade [é] uma questão epistêmica
que pode ou não resultar de indeterminismo ontológico. Pois claramente,
seria inteiramente consistente manter o determinismo no nível quântico
mesmo se não pudéssemos, mesmo em princípio, prever com precisão tais
eventos.’ [13]

Agora, eu reconheço que há usos legítimos do termo ‘imprevisibilidade’ que


são meramente epistêmicos em sentido, mas este não é o sentido em que
a palavra é utilizada na formulação do princípio da ignorância de Hawking.

A imprevisibilidade que diz respeito ao princípio da ignorância de Hawking


é uma imprevisibilidade derivada da ausência de leis, não da incapacidade
humana de conhecer as leis.

Não há nenhuma lei, nem mesmo uma lei probabilística, governando a


singularidade que coloque restrições sobre o que ela pode emitir. Hawking
escreve que:

“Uma singularidade pode ser considerada um local em que há um colapso


do conceito clássico de espaço-tempo como uma superfície com uma
métrica pseudo-Reimanniana.
Porque todas as leis da física são formuladas num contexto de espaço-
tempo clássico, todas irão entrar em colapso numa singularidade. Este é um
resultado crítico para a física; pois significa que não é possível prever o
futuro. Não é possível saber o que surgirá de uma singularidade.” [14]

Leis deterministas ou mesmo probabilísticas não podem vigorar em nível


quântico no interior da singularidade, pois não há nenhum nível quântico
no interior da singularidade; a superfície do espaço-tempo que os processos
quânticos pressupõem ruiu.

A singularidade é um violento e aterrorizante caldeirão de anarquia. Como


Paul Davies observa, ‘qualquer coisa pode surgir de uma singularidade
aberta – no caso do Big Bang o universo surgiu. Sua criação representa a
suspensão instantânea das leis físicas, o lampejo de anarquia nomológica
abrupto e repentino que permitiu que alguma coisa surgisse do nada.’ [15]

A questão que examinarei é se esta anarquia nomológica primordial é


consistente com a hipótese de uma criação divina. Argumentarei contra
esta hipótese.

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Notas.

7. Quentin Smith, ‘The Anthropic Principle and Many-Worlds Cosmologies,’


The Australasian Journal of Philosophy 63 (1985): 336-348, ‘World
Ensemble Explanations’, Pacific Philosophical Quarterly 67 (1986): 73-86,
‘The Uncaused Beginning of the Universe,’ Philosophy of Science 55 (1988),
39-57, ‘A Natural Explanation of the Existence and Laws of Our Universe,’
Australasian Journal of Philosophy 68 (March 1990): 22-43.
8. Veja ‘The Foundation of the General Theory of Relativity’ de Einstein e
‘Cosmological Considerations on the General Theory of Relativity’ em
Einstein et al., The Principle of Relativity (London: Dover, 1923). A equação
de Einstein expressa:

Rab – 1/2*R*gab + lamda*gab = (8*pi*G/c2)*Tab

Rab é o tensor Ricci da métrica gab, R é o escalar Ricci, lambda é a constante


cosmológica (provavelmente zero), c é a velocidade da luz e G é a constante
gravitacional de Newton.

9. Alexander Friedmann, ‘Uber die Krummung des Raumes,’ Zeitschrif fur


Physik 10 (1922), 377-386; uma tradução deste artigo aparece em ‘A Source
Book in Astronomy and Astrophysics’: 1900-1975, eds. by K. R. Lang and O.
Gingerich (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979). O segundo
artigo de Friedmann sobre modelos com curvatura negativa foi publicado
originalmente em Zeitschrift fur Physik 21 (1924), 326. As soluções de
Friedmann, com a constante cosmológica omitida, são:

-3*(d2a/dt2 = 4*pi*G*(p+3*P/c2)*a
3*(da/dt)2 = 8*pi*G*pa2 – 3*k*c2

Nestas equações, a é o fator escalar representando o raio do universo num


dado instante. da/dt é a taxa de variação de a com o tempo; é a taxa em
que o universo se expande ou se contrai. d2a/dt2 é a taxa de variação de
da/dt; é a aceleração da expansão ou a desaceleração da contração. G é a
constante gravitacional de Newton e c a velocidade da luz. P é a pressão da
matéria e p sua densidade. k é a constante que assume um dos seguintes
valores: zero para um espaço euclidiano plano, -1 para um espaço
hiperbólico ou +1 um espaço esférico.
9A. Veja Penrose, ‘Gravitational Collapse and Space-Time Singularities,’
Physical Review Letters 14 (1965), 57-59; S. W. Hawking, ‘Singularities in the
Universe,’ Physical Review Letters 17 (1966), 444-445 e ‘The Occurrence of
Singularities in Cosmology. III. Causality and Singularities,’ Proceedings of
Royal Society of London A, 300 (1967), 187-201; S. W. Hawking e R. Penrose,
‘Singularities in Homogenous World Models,’ Physical Letters 17 (1965),
246-247 e ‘The Singularities of Gravitational Collapse and Cosmology,’
Proceedings of the Royal Society of London A, 314 (1970), 529-548.

10. S. W. Hawking, ‘Theoretical Advances in General Relativity,’ Some


Strangeness in the Proportion, ed. H. Woolf (Addison-Wesley, 1980), p. 149.

11. S. W. Hawking, ‘Breakdown of Predictability in Gravitational Collapse,’


Physical Review D, 14 (1976), 2460.

12. Ibid.

13. W. L. Craig, ‘The Caused Beginning of the Universe: A Response to


Quentin Smith,’ op. cit., p. 29, n. 2.

14. S. W. Hawking, ibid.

15. P. Davies, The Edge of Infinity (New York: Simon and Schuster, 1981), p.
161.

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