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Segundo Ensaio / Tópicos de Ética Rodrigo Jaber

Questões sobre "Algumas questões de filosofia moral" e "Pensamento e considerações


morais" de Hannah Arendt

Noção de obediência e de consciência moral em Kant

Em “Algumas questões de filosofia moral”, Arendt conclui que ninguém em sã


consciência pode ainda afirmar que a conduta moral é algo natural, ao contrário do que a
geração que ela se diz pertencer, tinha como pressuposição.

“Essa pressuposição incluía uma nítida distinção entre a legalidade e a moralidade,


e embora existisse um consenso vago e inarticulado de que em geral a lei do país
grafa o que a lei moral exige, não havia muita dúvida de que em caso de conflito a
lei moral era a mais elevada e tinha de ser obedecida primeiro.” (Arendt, 2004, p.
124)

Ao seguir com essa pressuposição, Arendt segue que todo homem “mentalmente
são” teria a capacidade de distinguir o certo e o errado dentro de si, independentemente de
qualquer interferência externa. Para confrontar tal raciocínio, Arendt menciona Kant, ao
afirmar que há um entrave nessa afirmação: “Depois de ter passado a vida entre patifes sem
conhecer outras pessoas, ninguém poderia ter um conceito de virtude.” (Arendt, 2004, p. 125).
Isso implicaria que a mente humana se guia por exemplo, quando em questões morais.
Ao citar o conceito do “imperativo categórico” de Kant, Arendt diz que essa fórmula
seria como uma “bússola”, que facilitaria a distinção do certo e errado pelo homem.

“Sem ensinar absolutamente nada de novo à razão comum, precisamos apenas atrair
a sua atenção para o seu próprio princípio, à maneira de Sócrates, mostrando assim
que não se precisa nem da ciência nem da filosofia para saber o que se deve fazer a
fim de ser honesto e bom” (Arendt, 2004, p. 125)

Arendt faz uma crítica, dizendo que Kant “não teria aceitado como natural que o
homem também vai agir segundo o seu julgamento. O homem não é apenas um ser racional,
ele também pertence ao mundo dos sentidos, que o tentará a se render às suas inclinações em
vez de seguir a razão ou o coração.” (Arendt, 2004, p.126). Assim como Sócrates, ela afirma
que a consciência é fruto de reflexão moral permanente, porém a conduta moral não se segue
necessariamente. Além disso, ela segue que a conduta moral dependeria primeiramente do
relacionamento do homem consigo mesmo.

“Assim Kant, com a coerência de pensamento que é a marca do grande filósofo,


coloca os deveres que o homem tem para consigo à frente dos deveres para com os
outros — algo que é certamente muito surpreendente, estando em curiosa
contradição com o que geralmente compreendemos por comportamento moral. Não
é certamente uma questão de preocupação com o outro, mas de preocupação
consigo mesmo, não é uma questão de humildade, mas de dignidade humana e até
de orgulho humano. O padrão não é nem o amor por algum próximo, nem o amor
por si próprio, mas o respeito por si mesmo.” (Arendt, 2004, p.131)

A obediência às leis, tanto divinas ou humanas, não tem relação com a conduta moral,
segundo Arendt. “Na terminologia de Kant, essa é a distinção entre legalidade e moralidade.
A legalidade é moralmente neutra: tem o seu lugar na religião institucionalizada e na política,
mas não na moralidade” (Arendt, 2004, p. 132).

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Com isso, Arendt afirma que o uso dos imperativos “deves” ou “não deves” ao
consultar a consciência moral, torna as proposições morais evidentes por si mesmas, sendo
axiomáticas. “Se a tradição da filosofia moral (...) concorda sobre alguma coisa desde
Sócrates a Kant e, como veremos até o presente, esse ponto é a impossibilidade do homem
praticar deliberadamente atos cruéis, querer o mal pelo mal.” (Arendt, 2004, p. 136).

“No caso de Kant, a consciência ameaça com o desprezo por si próprio; no caso de
Sócrates, como veremos, com contradizer-se a si mesmo. E aqueles que temem o
desprezo por si próprio ou o contradizer-se a si mesmo são mais uma vez aqueles
que vivem consigo mesmos; acham as proposições morais evidentes em si mesmas,
não precisam da obrigação. (Arendt, 2004, p. 142)

No livro “Eichmann em Jerusalém”, Arendt nos mostra como uma pessoa normal,
com somente ambições burocráticas combinadas com irreflexão, porém desprovida de
perversidade a priori, é capaz de ser responsável de tamanho mal ao aderirem a um regime
totalitário como o nazismo.

“Na filosofia de Kant, essa fonte é a razão prática; no uso doméstico que Eichmann
faz dela, seria a vontade do Führer. Grande parte do minucioso empenho na
execução da Solução Final (...) pode ser atribuída à estranha noção, efetivamente
muito comum na Alemanha, de que ser respeitador das leis significa não apenas
obedecer às leis, mas agir como se fôssemos os legisladores da lei que
obedecemos. Daí a convicção de que é preciso ir além do chamado do dever.”
(Arendt, 2006, p. 154)

A obediência cega, a irreflexão dos próprios atos e a superfluidade do indivíduo pode


ser desastroso, como observamos em regimes totalitários. Na ideia de Kant, a obediência à lei
moral seria uma forma de “adestrar” o homem frente às usas inclinações ao mal. Porém na
subversão das leis, em que o homem perde sua capacidade de julgamento e reflexão e se
mantém cumpridor das mesmas, ele se torna um agente do mal. A Ética não é, portanto,
meramente ato ou conduta, mas a vida de exame contínuo, refletindo sobre o os próprios
hábitos.

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Ética é uma questão de escolha de companhia?

Arendt utiliza-se do exemplo de Cícero e de Meister Eckhart em “Algumas questões


de filosofia moral”, para mostrar afirmações polêmicas: quando o indivíduo prefere seguir
concordando com pensamentos dos que lhe são próximos, do que seguir com a verdade em
consenso. “A ideia é que tanto Cícero como Eckhart concordam em que chega um momento
em que todos os padrões objetivos — a verdade, recompensas e punições numa vida futura
etc. — cedem a primazia ao critério ‘subjetivo’ do tipo de pessoa que desejo ser e com quem
desejo viver.” (Arendt, 2004, p.176).
O exemplo, portanto, seria uma forma de referência ética, utilizando a mesma análise
dos julgamentos estéticos de Kant:

“O próprio Kant analisou julgamentos primariamente estéticos, porque lhe parecia


que apenas nessa área julgamos sem ter nada para nos guiar, sem regras gerais que
são ou demonstravelmente verdadeiras ou evidentes por si mesmas. Assim, se vou
usar os seus resultados para o campo da moralidade, suponho que o campo da
interação e conduta humanas e dos fenômenos com que nos confrontamos nessa
área sejam, de certo modo, da mesma natureza.” (Arendt, 2004, p. 204)

Remetendo a Sócrates, Arendt cita a antiga afirmação que “é melhor sofrer o mal do
que fazer o mal” (2004, p. 211). Há nessa afirmação de Sócrates a relação da reflexão de si
para si. Para o antigo filósofo, a tragédia de cometer um assassinato, por exemplo, seria ter de
conviver na companhia de um assassino o resto da vida. Com isso, ela segue que “as nossas
decisões sobre o certo e o errado vão depender de nossa escolha de companhia, daqueles com
quem desejamos passar a nossa vida” (Arendt, 2004, p. 212).
Arendt procura na literatura alguns exemplos de grandes vilões, para com isso
demonstrar que se uma pessoa se alinha com um desses exemplos, temos uma noção dos
princípios éticos que guiam aquele determinado indivíduo. “No caso improvável de que
alguém venha nos dizer que preferiria o Barba Azul por companhia, tomando-o assim como
seu exemplo, a única coisa que poderíamos fazer é nos assegurarmos de que ele jamais
chegasse perto de nós.” (2004, p.212). Porém o grande perigo seria o caso da indiferença com
a questão da escolha da companhia. Nas palavras de Arendt:

“A partir da recusa ou da incapacidade de escolher os seus exemplos e a sua


companhia, e a partir da recusa ou incapacidade estabelecer uma relação com os
outros pelo julgamento surgem os skandala reais, os obstáculos reais que os
poderes humanos não podem remover porque não foram causados por motivos
humanos ou humanamente compreensíveis. Nisso reside o horror e, ao mesmo
tempo, a banalidade do mal.” (Arendt, 2004, p. 212)

Eis aqui o ponto nevrálgico da questão: Arendt afirma que em casos sem nenhum
precedente, em que não tenhamos nenhum parâmetro para nos agarrar, o exemplo serve como
uma bússola moral, em que podemos confiar o juízo. Porém no caso do indivíduo que não tem
a capacidade, ou se recusa em deliberar entre uma escolha de um exemplo notoriamente mau,
e um conhecidamente bom, acarreta no mal analisado no caso Eichmann. Estamos diante da
superficialidade da moral, onde o mal é capaz de alastrar-se rapidamente em uma sociedade
de indivíduos rasos em reflexão, podendo dar origem a regimes totalitários.

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O pensamento pode evitar o mal?

A Ética para Arendt é idiossincrática e individual, e não universalista como para


Kant. Portanto o Pensar não é algo somente para filósofos, e sim para qualquer indivíduo: as
pessoas que pensam, constroem limites para si mesmas. Em “Pensamento e considerações
morais”, ela menciona novamente o caso de Eichmann, caso quando há a falta de reflexão nas
práticas do indivíduo:

“Essa total ausência de pensamento atraiu o meu interesse. É possível praticar o


mal — não só os pecados da omissão, mas os pecados da perpetração — na
ausência, não meramente dos “motivos vis” (como diz a lei), mas de quaisquer
motivos, qualquer estímulo particular de interesse ou volição? (Arendt, 2004, p.
227)

Arendt menciona que devemos a Kant a diferença entre pensar e conhecer, “entre a
razão, a premência de pensar e compreender, e o intelecto, que deseja e é capaz de certo
conhecimento verificável” (Arendt, 2004, p.231). “A capacidade e a necessidade de pensar
não se restringem absolutamente a qualquer tema específico, como as questões que a razão
propõe e sabe que nunca será capaz de responder.” (Arendt, 2004, p. 231). Já a atividade de
conhecer, seria para Arendt uma “atividade de construção de mundo”.

“O nosso desejo de conhecer, quer surja das necessidades práticas, das


perplexidades teóricas ou da pura curiosidade, pode ser satisfeito quando se alcança
o objetivo pretendido; e embora a nossa sede de conhecimento possa ser insaciável
por causa da imensidão do desconhecido, de modo que toda região do
conhecimento abra outros horizontes de conhecimentos possíveis, a própria
atividade deixa atrás de si um tesouro crescente de conhecimento que é retido e
armazenado por toda civilização como parte do seu mundo.” (Arendt, 2004, p.230)

Essa distinção para Arendt é crucial, pois se pelo pensar somos capazes de distinguir o
certo do errado, então qualquer pessoa dotada de razão, independentemente do nível de sua
erudição ou inteligência, pode executar tal tarefa. Além disso, Arendt observa que a afirmação
de Kant de que “a estupidez é causada por um coração malvado” não se segue.

“A incapacidade de pensar não é estupidez; pode ser encontrada em pessoas


altamente inteligentes, e a maldade dificilmente é a sua causa, nem que seja porque
a ausência da capacidade de pensar, bem como a estupidez, são fenômenos muito
mais frequentes que a maldade.” (Arendt, 2004, p.231-232)

O não-pensar então é analisado por Arendt como um perigo, já que parece ser um
exercício comum para assuntos que dizem respeito à política e à moral. Sua análise nos revela
que pessoas que seguem o exercício do não-pensar acabam seguindo qualquer regra prescrita
no contexto em que estão inseridas. “As pessoas então se acostumam não tanto ao conteúdo
das regras, cujo exame minucioso sempre as conduziria a um estado de perplexidade (...). Em
outras palavras, elas se acostumam a nunca tomar decisões.” (Arendt, 2004, p.245).

“A falácia mais visível e mais perigosa na proposição, tão antiga quanto Platão:
‘Ninguém pratica o mal voluntariamente’, é a conclusão implícita: ‘Todo mundo
quer fazer o bem’. A triste verdade é que a maior parte do mal é feita por pessoas
que nunca decidiram ser boas ou más.” (Arendt, 2004, p. 247)

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Portanto para Arendt, o pensar não nos salva de nada, a não ser a superficialidade. O
ato reflexivo não reflete em ser bom, mas ajuda a quem não quer ser mal, a não ser mal “sem
querer”.

Referências

ARENDT, Hannah, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a Banalidade do Mal. Tradução


de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ARENDT, Hannah, Responsabilidade e julgamento. Tradução de Rosaura Einchenberg. São


Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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