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JANUS 2018-2019

1.22 • Conjuntura internacional

UNIÃO AFRICANA. VELHAS VONTADES,


NOVAS DINÂMICAS Bruno Gabriel

OLHANDO PARA O MULTILATERALISMO em Ao longo dos anos, os diversos líderes da gerido por Rabat, tendo deixado cair a exigên-
África, pode dizer-se que este se foi desenvol- União Africana têm tentado impulsionar o cia de saída da RASD como membro de pleno
vendo tendo por base duas grandes linhas. funcionamento da organização, encontrando direito da UA, posição de princípio que levou
Por um lado, foram sendo criados grupos eco- os entraves habituais, entre os quais se desta- a esta ausência marroquina. Marrocos integra
nómicos regionais como forma de integração cam a ausência de Marrocos da organização e a agora a União Africana, tendo sido igualmente
económica entre países vizinhos; por outro, questão não resolvida relativamente ao estatu- eleito para o Conselho de Paz e Segurança da
foi criada, em 1963, pela mão do imperador to do Sara Ocidental2. organização.
Haile Salassie da Etiópia, uma organização pa-
nafricana de pendor político, a Organização A ausência de Marrocos A cimeira de Nouakchot
da Unidade Africana (OUA). Em 2002, a OUA Marrocos saiu da OUA em 1985, como forma No início de julho de 2018 teve lugar na capital
evoluiu para um quadro mais vasto de integra- de protesto pela aceitação, em 1982, da auto- da Mauritânia a 31.ª Cimeira de Chefes de Es-
ção, com uma reforma institucional profunda proclamada República Árabe Sahauri Democrá- tado da UA, tendo o presidente em exercício, o
e com o estabelecimento de objetivos mais tica (RASD) como membro de pleno direito da chefe de Estado ruandês Paul Kagame, e o pre-
ambiciosos, nomeadamente no campo da inte- organização, pelo que o reino marroquino não sidente da Comissão da União Africana, Mous-
gração económica, tendo dado origem à União chegou a integrar a UA aquando da sua criação. sa Faki Mahamat, apresentado um conjunto de
Africana (UA). A transformação da OUA em UA O facto de haver um Estado africano que não reformas extremamente ambiciosas que têm
teve como grande impulsionador o coronel integrava a União Africana, desde logo e por por objetivo dotar de maior eficácia o funcio-
Kadhafi, entusiasta da visão de panafricanis- definição, parecia pôr em causa o desígnio da namento da organização. Tendo em conta que
mo, que levada ao extremo resultaria no que organização, sendo igualmente um sinal claro 48% das contribuições para o orçamento da UA
o ex-líder líbio chegou a apelidar de Estados da existência de um obstáculo à integração provêm de apenas cinco Estados-membros, foi
Unidos de África. regional africana. Esta longa ausência marro- reforçada a ideia de implementação de uma
A UA é uma organização multilateral que con- quina viu o seu fim em janeiro de 2017, com o taxa de 0,2% sobre as importações de produtos
grega os Estados africanos com o intuito de regresso do reino ao seu seio. não africanos que os Estados deverão começar
promover a integração regional, nomeadamen- a cobrar como forma de financiamento da or-
te através da promoção da democracia, direitos ganização. Refira-se que esta opção de criação
humanos e desenvolvimento económico, cujo de um mecanismo de autofinanciamento da UA
desenho institucional foi delineado tomando Apesar dos grandes objetivos prende-se com o facto de mais de 70% do or-
como exemplo a União Europeia. Os grandes a que a UA se propõe na sua çamento da UA provir de parceiros externos, o
objetivos de base da UA são a unidade e a so- que, como facilmente se percebe, é limitador
lidariedade africanas, a eliminação do colo-
carta constitutiva, dos recursos da sua margem de manobra.
nialismo, a defesa da soberania dos Estados, e potencial do continente, Outra questão fraturante prende-se com a no-
a cooperação política e cultural no continente a verdade é que África meação dos comissários. A proposta resultante
e a integração económica, nomeadamente por continua a ser o continente da cimeira preconiza que se passe da atual elei-
via da captação de investimento estrangeiro ção por parte dos chefes de Estado para uma
mais pobre do mundo.
no quadro da nova parceria para o desenvolvi- nomeação efetuada pelo presidente da Comis-
mento de África (NEPAD1). são. No que respeita à integração económica,
Os diversos órgãos que compõem o quadro regista-se a assinatura por parte do Burundi, da
institucional da União têm-se revelado de efi- Marrocos mudou a sua estratégia relativamen- Namíbia, do Lesoto, da Serra Leoa e da África
cácia muito mitigada, seja pela complexidade te aos parceiros africanos, tendo apostado do Sul do Acordo de Comércio Livre Conti-
burocrática da instituição, pela dificuldade grandemente na diplomacia, reforçando os nental (ACLC)3. Estes cinco países juntam-se,
dos países em ver na prática a sua soberania laços e alianças com a maioria dos Estados do assim, aos quarenta e quatro Estados que já
partilhada ou seja pelo imbricar das diferen- continente. Note-se que o rei Mohamed VI fez tinham assinado o acordo, num claro sinal de
tes sub-regiões africanas que, com as suas es- mais de quarenta viagens a países africanos, vontade de aprofundar a cooperação em Áfri-
pecificidades locais, acabam por não ter um durante o período em que o reino preparou a ca. Até à cimeira, apenas seis Estados-membros
empenho efetivo nas questões que tangem adesão à UA, tendo assinado dezenas de acor- tinham ratificado o ACLC, faltando pelo menos
o continente no seu todo. Com efeito, a UA dos setoriais. Apostou, no plano religioso, no a ratificação por parte de mais dezasseis países
tem-se revelado um fórum importante de combate ao radicalismo islâmico, tendo apoia- para que seja obtido o número mínimo neces-
reunião e debate dos Estados africanos, mas, do alguns países, nomeadamente o Mali, por sário para a entrada em vigor do texto.
no que toca à implementação das resoluções via da formação de imãs ou o Senegal, através O estabelecimento de uma zona de comércio
adotadas no seio da organização, temos as- do apoio a algumas confrarias religiosas. livre continental fará, desde logo, toda a dife-
sistido a uma fraca capacidade de passar das O reino apostou ainda no reforço da coope- rença na posição de África no comércio mun-
palavras aos atos. É nessa medida que proje- ração ao nível securitário, tendo assim conse- dial, pois negociar a uma só voz é diametral-
tos ambiciosos como a criação de uma força guido granjear a maioria dos apoios de que mente diferente de negociar com um bloco
de manutenção de paz africana para atuar no necessitava para integrar a UA, contrariando, de cinquenta e cinco entidades. A criação de
continente, a integração económica ou a im- dessa forma, as posições da vizinha Argélia, da zonas francas, por exemplo, permitirá estabele-
plementação de uma zona de comércio livre, África do Sul, de Angola e da Nigéria, críticos cer novas regras face aos parceiros comerciais,
têm visto a sua materialização relegada para o tradicionais de Marrocos, pela questão do Sara como a União Europeia, os Estados Unidos, o
plano das intenções. Ocidental. Também esse dossiê foi habilmente Japão ou a China. Mesmo no seio da Organi-

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oficialmente a candidatura de Louise Mushiki-
wabo, ministra dos Negócios Estrangeiros do
Ruanda, ao cargo de secretária-geral da Orga-
nização Internacional da Francofonia (OIF), ali-
nhando assim a posição da UA com a da França,
que tinha já expressado o seu apoio a esta
candidatura. Outra decisão importante tomada
na cimeira de julho de 2018 foi a nomeação do
guineense Carlos Lopes como alto represen-
tante da UA para liderar as negociações de um
Bandeira da União Africana novo acordo pós-2020 com a União Europeia.
Este professor de economia na Universidade
do Cabo e anterior secretário executivo da
zação Mundial do Comércio (OMC), um bloco Comissão Económica das Nações Unidas para
africano terá uma palavra a dizer, quando, de África terá a seu cargo a liderança das nego-
per si, as posições dos países africanos são ha- ciações do acordo que substituirá os Acordos
bitualmente negligenciadas. Com efeito, com a de Cotonou. No que respeita ainda à reforma
implementação da zona de comércio livre con- da UA, foi decidido acabar com as cimeiras de
tinental tornar-se-á mais vantajoso desenvolver chefes de Estado que tinham lugar habitual-
as exportações entre países africanos do que mente no mês de julho de cada ano, de forma
para fora do continente, impulsionando forte- rotativa entre os Estados-membros. Passarão a
mente o comércio intra-africano e, consequen- realizar-se, igualmente em julho, reuniões ao
temente, alavancando as respetivas economias. nível de ministros dos Negócios Estrangeiros
Com a entrada em funcionamento do ACLC, e das Finanças, com uma participação limitada
preveem-se igualmente ganhos em termos de de chefes de Estado, ficando afastada a obri-
eficácia aduaneira, por via da adoção de nor- gatoriedade de grandes cimeiras ao mais alto
mas comuns e simplificação de procedimen- nível em julho de todos os anos.
tos, o que proporcionará uma maior fluidez
nas trocas e um melhor funcionamento dos
mercados, com ganhos para todos os agentes (…) projetos ambiciosos
económicos. Se juntarmos a adoção de políti-
como a criação de uma força
cas de facilitação do setor do transporte aéreo
em África e a implementação dos princípios de de manutenção de paz africana
livre circulação de pessoas, estaremos peran- para atuar no continente,
te um conjunto muito importante de medidas a integração económica
que poderão, certamente, fazer toda a diferen- ou a implementação de uma
ça no modo como se desenvolverão as econo-
mias africanas, por via do fomento das trocas
zona de comércio livre, têm
internas, ao nível continental, e externas, rela- visto a sua implementação
tivamente aos parceiros mundiais. relegada para o plano
O dossiê do Sara Ocidental (SA) foi outro dos das intenções (…)
grandes temas levados a discussão na cimeira
de julho de 2018. O presidente da Comissão
apresentou um relatório sobre esta matéria Ficou ainda agendada uma cimeira extraordi-
levando à aprovação de um compromisso por nária, no mês de novembro de 2018, com o
parte dos Estados, no sentido de que a UA objetivo de garantir a implementação deste
tenha obrigatoriamente um papel a desem- pacote ambicioso de reformas aprovadas na
penhar no diferendo sobre o estatuto do SA. cimeira de Nouakchot.
Ficou, desde logo, clara a posição de que a UA Apesar dos grandes objetivos a que a UA se
não se deve querer substituir à Organização propõe na sua carta constitutiva, dos recursos
das Nações Unidas (ONU), mas que também e do potencial da região, a verdade é que Áfri-
deve ter um papel preponderante na resolu- ca continua a ser o continente mais pobre do
ção do conflito. Para tal, foram indicadas qua- mundo, enfrentando sérios desafios no com-
tro figuras de destaque: o atual presidente da bate à fome e à pobreza e no plano da saúde,
União Africana; o seu antecessor; o seu suces- da paz e do ambiente, travando uma luta cons-
sor; e o presidente da Comissão. Estes deverão tante pela melhoria das condições de vida dos
Notas
trabalhar de perto com o secretário-geral das seus mais de 1,2 mil milhões de habitantes. 1 NEPAD – New Partnership for Africa’s Development.
Nações Unidas. O mecanismo em questão tem A União Africana parece estar a conhecer um É atualmente uma agência integrada na UA que tem como
como grande objetivo contribuir para a media- novo impulso em matéria de integração regio- grande objetivo impulsionar o desenvolvimento económico
ção do conflito existente entre Marrocos e a nal e económica, o que poderá ser um ponto africano em diversas áreas, promovendo para tal a captação
de investimento estrangeiro.
RASD, tendo sido decidida igualmente nesta de viragem para a afirmação do continente, no 2 Antiga colónia espanhola localizada a sul de Marrocos,

cimeira a reativação da representação da UA plano externo, e para a melhoria das condições a norte da Mauritânia e com uma pequena linha de fronteira
junto da MINURSO (Missão das Nações Unidas de vida das populações, assim mantenham os a oeste da Argélia, cujo estatuto internacional continua
por definir, opondo o movimento independentista Sahauri,
para o Referendo no Sara Ocidental). decisores políticos e económicos a vontade de
Marrocos e a Argélia.
A acrescentar às posições resultantes da cimei- operacionalizar os desígnios desenvolvimen- 3 African Continental Free Trade Area (AfCFTA),

ra de Nouakchot, refira-se a decisão de apoiar tistas da União. n na versão oficial em língua inglesa.

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