Este é um livro naturalista, em algumas passagens, feito com Personagens,
Quadros e Imagens naturais. Mas, também, em outras passagens, é um livro realista, escrito através de Meio, Situação e Personagens reais. Independentemente do naturalismo ou do realismo onde cada autor se movimentou, o livro é herdeiro de idéias e marcas de uma multidão. Dela, ressaltam: 1) Roland Barthes (2005 a; b), com a sua noção de biografema, e os trabalhos, teses, dissertações que, a partir dela, nosso Grupo de Pesquisa já produziu (Adó, 2010; Corazza, 2010; Costa, C., 2010; Costa, L., 2010; Feil, 2011; Oliveira, 2010); 2) Jorge Luis Borges (1988; 2000), com a sua “História universal da infâmia” e “O livro dos seres imaginários”; 3) Paul Valéry (1997; 1998), com o seu “Mr. Teste” e “Introdução ao método Leonardo da Vinci”, em especial; 4) Virginia Woolf (2005), em “Contos completos” e mais Notas de Susan Dick; 5) Marcel Schwob (2011a; b), com os seus poucos mas incríveis livros como “Vidas imaginárias”, “A cruzada das crianças”, “O livro de Monelle”; 6) Alfred Jarry (1987), com o seu “Ubu rei” e uma rica Patafísica, ainda pouco aproveitada; 7) o Deleuze (1985; 2005) que pensa com o cinema. Isso o que sabemos; mais, o que não sabemos e, também, para quê? Em função dessa herança múltipla, os autores desse livro têm posições diferentes sobre as Vidas escolhidas, mas partilham uma comunidade de interesses, temáticas, problematizações, preocupações. Comunidade ideal, suficiente para fundar conceitos de tendências, escolas, pedagogias. As imagens mudam de potência, passam a uma potência superior, sofrem elevações de potências e, assim, tornam-se mais ou menos naturais, mais ou menos reais. Isso tudo acontece num plano de imanência ou plano de matéria, que é o movimento do livro, a face do movimento do livro, que se estabelece entre as Vidas e impede que o livro se feche sobre si mesmo. Bloco de espaço-tempo, linhas ou figuras de luz, “imagens em si” (Deleuze, 1985, p.81). Nesse plano de imanência do livro, os autores não inventam inteiramente as narrativas das Vidas, mas as agenciam maquinicamente, fazendo das Vidas sua matéria fluente. Desse modo, as imagens vivas das Vidas são “centros de indeterminação”, sujeitos, que se formam no universo acentrado do livro. Assim, o primeiro avatar deste livro (sua imagem-matéria-movimento) é reescrever e reinterpretar textos, relatos, documentos, personagens, idéias das Vidas. Os autores fazem, a partir e com elas, um consolidado de “imagens-percepção, de imagens-ação, de imagens-afecção” (Deleuze, 1985, p.88). Isto é, uma espécie de ficção acrescida de história, uma crônica histórica ficcional, por meio de contos, poemas em prosa, aforismos, fragmentos de prosa poética. Como se vê, resulta daí uma coleção heteróclita, composta por recriações fantasiosas das Vidas; embora, nem tão fantasiosa assim. É que existe, nessa coleção, uma “sensação de real”, à la Barthes (ver texto, RB). Em sua radicalidade, o livro resulta em uma literatura; a qual, “contrária às idéias universais, descreve apenas o individual, deseja apenas o único”; ou, para Deleuze (1985, p.25; p.33; p.127; p.136), narra o “dividual” de cada Vida, isto é, nem divisível nem indivisível. Por isso, “não classifica, desclassifica” as Vidas (Schwob, 2011b, p.47), como se fosse um “um livro de personagens”, com “a corda toda puxada a partir de uma simples frase” (Woolf, 2005, p.449). Naturalistas [não separar os itens, fazer corrido...] Em sua série naturalista, com o Deleuze (1985, p.157-177), os autores [das Vidas X, Y, Z] concebem tais Vidas como povoando um mundo originário, um sem- fundo, constituído por matérias não-formadas. Mundo informe, formado somente por qualidades e potências: “mundo de variação universal, ondulação universal, marulho universal: não há nem eixos, nem centro, nem direita nem esquerda, nem alto nem baixo” (Deleuze, 1985, p.79). Evidentemente, os meios derivados desse mundo, expressos nos Quadros, onde as Vidas se atualizam, são geográficos, históricos e sociais, como a Escola, a Aula, a Infância [etc.]. De maneira que o livro acaba se tornando o Quadro dos quadros. Desse ponto de vista, as Vidas foram escritas através de esquetes (sketches), isto é, pequenas peças ou cenas dramáticas, de curta duração, que englobavam: 1) Personagens – descritos a partir de uma frase real ou imaginária, o que resultou em Personagens únicos, singulares, com suas anomalias, esquisitices, caricaturas, etc., integrando a arte biografemática; 2) Imagens – enquanto o conjunto daquilo que apareceu; ou seja, “o conjunto daquilo que aparece” (Deleuze, 1985, p.78); o conjunto vivo do movimento e do tempo que apareceram, constituídos por imagens sensório- motoras, situações óticas e sonoras puras, além de vidências (Deleuze, 1985; 2005); 3) Quadros – nos quais foi “impossível deixar de ver as pinturas” (Woolf, 2005, p.327; p.421) e que falavam de posturas, figurações, linhas, cores, estilos (cf. Deleuze, 2007): “chamamos enquadramento a determinação de um sistema fechado, relativamente fechado, que compreende tudo o que está presente na imagem, cenários, personagens, acessórios” (Deleuze, 1985, p.22). Nessas circunstâncias, podemos afirmar que as Vidas foram enquadradas, isto é, entraram em um sistema fechado, um conjunto composto por muitas partes ou elementos, objetos-signos, que entram em subconjuntos. Entretanto, a par de cada subconjunto ser comunicante ao infinito com os outros, também cada Quadro de uma Vida permanece com um caráter de inacabamento. Tendo tendência “à saturação ou à rarefação” (p.22), em ambos os extremos, o autor de cada Vida tinha presente a imagem de uma Vida não se dava apenas a ver, já que era “tão legível quanto visível” (p.23). O Quadro de uma Vida registrou informações acerca de cenas, personagens, imagens, sons, em um revezamento entre eles, e não um ajudando o outro.. Feito de variações, muitas vezes, talvez, não saibamos lê-lo bem, por avaliarmos mal tanto a sua rarefação como a saturação. Não se pode desconsiderar que, em um Quadro, há muitos quadros diferentes, como quadro segundo, terceiro, e assim por diante. Às vezes, o enquadrador (cadreur) encaixava os quadros, levando-os a formar e a separar o sistema fechado do conjunto. O enquadramento tomava a imagem por si mesma; enquanto a montagem de uma Vida tomava as relações entre imagens. A arte do enquadramento foi a sua habilidade em escolher os elementos que entraram no conjunto que ele ia fazendo. Por isso, mesmo que pareça ser um conjunto fechado de uma Vida, ele o é artificialmente; pois, apenas enquanto determinado pelo Quadro é que ele pode ser considerado fechado, saturado ou rarefeito. O Todo de uma Vida é, sempre, o Aberto, o que muda, a duração (p.31). Realistas Porém, quando “o meio e suas forças se encurvam, agem sobre o personagem, lançam-lhe um desafio e constituem uma situação na qual ele é apreendido”, ainda com Deleuze (1985, p.178-199), estamos já diante de um mundo realista em Educação. Não um realismo, no qual se possa dizer que as Vidas existem; mas, antes, que elas insistem ou subsistem, fora do tempo e do espaço homogêneos da Educação. Nesse caso, atualizando várias qualidades e potências, que se tornam forças, nesses meios, os comportamentos dos Personagens encarnam aquele mundo originário; podendo ocorrer que um meio determinado, ao atualizar uma potência, passe ele próprio a valer como o próprio mundo originário da Educação. Por isso, os autores distinguem, no Meio (espaço-tempo), as qualidades-potências e o estado de coisas que as atualiza; enquanto a Situação e o Personagem são correlativos desse Meio, duelando entre si. Temos, aqui, uma Vida feita de comportamentos, de ações que fazem o Personagem passar de uma Situação à outra, respondendo a ela para tentar modificá-la ou instaurar outra situação. Ainda o geral A imagem de uma Vida é uma imagem mental, aberta ao todo, isto é, ao jogo de relações. Mesmo que ela seja dada em flou, como uma imagem ligeiramente desfocada. Essas imagens expressam os sistemas materiais em interação, que são as Vidas. Os autores descobrem na atualidade de cada Vida o educador-molecular, a criança- molecular, o educador material, a criança material. São as figuras das Vidas que introduzem o mental na imagem (cf. Aumont, 1995; Bernis, 1987; Sartre, 1967). Era necessário que o todo – o continuum; aquilo que não pode ser medido pelo conjunto nem pelas partes desse conjunto; “o que muda”, “o aberto ou a duração”, p.31) de uma Vida (ou seja, as imagens-movimentos da idéia de uma Vida) fosse pressuposto. A montagem de cada Vida encontra-se antes do ato de escrever essa Vida, na escolha do material, das porções de matéria, na maior parte das vezes, distantes e longínquas, que vão entrar em interação: “a vida como ela é” (Deleuze, 1985, p.57). Porém, encontra-se, ainda, a montagem depois da escrita, no texto: a vida de papel. As operações de montagem tomaram, por objeto, “as imagens-movimentos para extrair delas o todo, a idéia, isto é, a imagem do tempo” (Deleuze, 1985, p.44). Fazendo assim, via montagem, a composição de uma Vida, como uma imagem indireta do tempo (p.45), “o todo que enrola e desenrola o conjunto das partes” (p.47), Os movimentos dos autores exprimiram uma mudança do todo de uma Vida. Deram, assim, vida a autômatos, fantasmas, ilusionistas, diabos, sábios, loucos, robôs, sonâmbulos, zumbis, golens, franksteins, ingênuos, luzes, velas, fogo, vermelho flamejante [escrever figuras aqui]. Um mundo, no qual é inútil querer distinguir uma Vida concreta da abstrata; orgânica da inorgânica; quantitativa da intensiva. São todas Vidas terríveis, impactantes e honestas, que ignoram os limites e a ordem do organismo. Exprimem o vital, que é a potência comum tanto ao animado quanto ao inanimado. Tanto em um presente variável, como na imensidão do passado e do futuro; embora “os fantasmas nos ameaçam mais na medida em que não provêm do passado” (Deleuze, 1985, p.130). Uma Vida, assim, não é uma Vida determinada, concreta, que aconteceu em algum lugar e tempo. Não há, nela, quase coordenadas nem determinações espaços- temporais; logo, como puro potencial, não existe o que uma Vida realmente foi, mas o modo de aparecer ao seu autor e como se refletiu no espelho de sua própria Vida. Uma Vida como afeto, que se opõe, claro, a uma Vida abstrata, geral ou atualizada num estado de coisas. Logo, não é uma Vida melhor ou pior... é uma outra Vida. Uma Vida qualquer, portanto, vista de uma perspectiva saturada, deformada, feita de conjunções virtuais, que não coincidem com o estado de coisas, que “expõe apenas Potências e Qualidades, independentemente do estado de coisas ou dos meios que os atualizam” (Deleuze, 1985, p.153). Uma Vida sem referências, que se abstrai das coordenadas espaços-temporais e de um acontecimento, que excede a sua atualização.Vida de personagens que são modos de existência, não sujeitos com documentos de identidade, mesmo que tenham tal ou qual nome, tal ou qual número na data de nascimento e morte. Final Não se preocupem, eis, aqui, um mundo modulado da Educação, cômico e dramático, épico ou trágico, a serviço da variação e da interação universais. Mundo dotado do poder de um todo, que não pára de se fazer. Todo feito por Vidas do espírito, não psicológicas, de seres espirituais, de luz. Mundo que, depois de lido, voltará à ordem. Por enquanto, senhoras e senhores, apresento-lhes as Vidas Imaginadas e Imaginárias, em sua dramaturgia. Vidas irreais e anti-naturais, por assim dizer. Referências ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Comédia intelectual da educação: filosofia, literatura, currículo. Proposta de Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós- Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2010. 77 p. AUMONT, Jacques. A imagem. (Trad. Estela dos Santos Abreu e Claudio Cesar Santoro.) Campinas, SP: Papirus, 1995. BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Notas de cursos e seminários no Collège de France, 1978-1979. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005a. _____. A preparação do romance II: a obra como vontade. Notas de curso no Collège de France 1979-1980. (Trad. Leyla Perrone-Moisés.) São Paulo: Martins Fontes, 2005b. BERNIS, Jeanne. A imaginação: do sensualismo epicurista à psicanálise. (Trad. Álvaro Cabral.) 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