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Bem-estar de vacas leiteiras e qualidade do leite

1. Introdução

“Qualidade” é um conceito subjetivo. “Boa” qualidade para uns


pode ser insuficiente para outros. Mesmo medidas objetivas
sobre qualidade, como contagem de células somáticas (CCS) e
contagem total de bactérias (CTB), podem ter uma interpretação
subjetiva, até mesmo na lei. Por exemplo, no Brasil até antes da
Normativa 51/2002 o leite poderia ter até 1 milhão de células
somáticas por ml, agora o limite está em 450 mil (MAPA, 2002). A
decisão sobre critérios de qualidade também é subjetiva e
dependente dos interesses de quem a formula. A IN 51 tem como
critério exclusivo a qualidade sanitária e microbiológica do leite.
Claro que qualidade sanitária do leite é muito importante para
todos, mas sem dúvida interessa mais à indústria. Até porquê até a presente data todos bebemos leite
com até 1 milhão de CCS/ml, quando muito! Então, a qualidade pode ter outras abordagens, em função
de outros parâmetros e valores, que podem incluir muitos outros parâmetros, como o bem-estar das
vacas leiteiras, por além do leite em si. É o que pretendemos discutir nesse texto.

Sustentamos que a qualidade de algum alimento, e do leite em particular, deve se basear em três
parâmetros: higiene e saúde (livre de patógenos e contaminantes, boa aparência, cor, viscosidade);
valor biológico do produto (nutrientes esperados e existentes no alimento, constituição química);
aspectos éticos (“custo ético” de produção: impacto ambiental, social, cultural, bem-estar). É certo que
o bem-estar da vaca leiteira em produção tem também efeito direto na qualidade sanitária e biológica
do leite. Vacas com mastite tem desconforto permanente (Fitzpatrick et al. 1998) e o leite terá maiores
teores de CCS e CTB (Ruegg, 2006). O estresse crônico (p. ex., calor) pode levar a um menor teor de
anti- oxidantes no leite, o que reduz sua qualidade biológica. Da mesma maneira, um leite saudável e
com alto valor biológico é pressuposto para um leite com qualidade ética. Não seria nada ético oferecer
um leite contaminado ou sem os nutrientes esperados, para a população. Portanto, esses parâmetros
se inter-penetram, e são melhor compreendidos quando abordados em conjunto. A separação se faz
para efeito didático da exposição.

2. Bem-estar da vaca leiteira e valor biológico do leite

O leite é uma mistura complexa e heterogênea constituído por gorduras, proteínas e outros elementos
sólidos suspensos em água. A alimentação dos animais tem influência direta sobre o conteúdo e a
composição de constituintes que possuem efeitos benéficos a saúde humana, tais como ácidos graxos
insaturados, micronutrientes solúveis em gordura e vitaminas lipossolúveis, especialmente
carotenóides, vitaminas A e E (Martin et al, 2004).

Os ácidos graxos linoléicos (CLA) são os ácidos graxos de maior interesse no leite. Os CLA são
constituídos por uma mistura de isômeros do ácido linoléico (C18:2) com ligações duplas conjugadas.
Os isômeros cis 9, trans 11, trans 10 e cis 2 estão entre os CLA majoritários com atividades biológicas
conhecidas, sendo o primeiro o de maior ocorrência (80%) (Parodi, 2003). É sabido que a produção de
leite a base de pasto resulta em um alimento com maior conteúdo de CLA quando comparado ao leite
de vacas alimentadas com TMR (total mixed ratio) (Kay et al., 2004; Khanal et al., 2005; Khanal et al.,
2008; Fanti et al., 2008), embora diferenças de composição dos CLAs presentes num e noutro leite, não
tenham sido detectadas (Khanal et al., 2008). O interesse por um leite com alto teor de CLA se deve as
suas reconhecidas propriedades anticarcinogênicas, antidiabéticas, antiadipogênicas e
antiaterogênicas (Banni et al., 2003; Pariza, 1999). Tem-se também demonstrado que CLA possui
efeitos benéficos sobre a formação de células sanguíneas, na resposta imune e sobre a saúde do
sistema cardiovascular (Terpstra et al., 2002; Watkins & Seifert, 2000; Hu & Willett, 2002). Na Figura 1
estão mostradas as porcentagens de CLA em função do teor de gordura do leite de vacas mantidas por
um período no pasto em relação a alimentação com outra dieta (TMR) (Khanal et al., 2008).
Figura 1 - V ariaç ão da porc entagem de C L A do leite de vac as em funç ão da alimentaç ão. C ada linha repres enta uma vac a. A s eta
para baixo indic a a entrada das vac as no pas to e a s eta para c ima a s aída. A s vac as foram alimentadas c om T M R nos períodos em
que não es tavam no pas to (extraído de Khanal et al., 2 0 0 8 )

Através da análise sensorial verificou-se que o público consumidor não é capaz de distinguir o leite
produzido a base de pasto do convencional, não existindo diferenças de aceitação entre os produtos
(Khanal et al., 2008). Contudo, não são apenas os produtos da oxidação dos ácidos linoléicos os
responsáveis pelas características sensoriais do leite, existindo outros compostos importantes, tais
como terpenos, ácidos fenólicos e nitrogênios heterocíclicos (Bendall, 2001).

De forma similar, vacas criadas a pasto produzem um leite rico em carotenóides quando comparado
àquele oriundo de animais alimentados com concentrados ou silagem de milho (Havemose et al., 2004;
Martin et al., 2004). Os carotenóides são pigmentos vegetais que conferem coloração amarela ao leite
e seus derivados, apresentando influência direta sobre as suas características sensoriais. O interesse
por esses pigmentos está também baseado nos efeitos benéficos que os mesmos exercem sobre a
saúde humana. Apesar de serem reconhecidos como moléculas precursoras da vitamina A, tem-se
demonstrado que tais compostos possuem muitas outras atividades biológicas, tais como antioxidante,
na diferenciação celular e na indução da comunicação célula a célula (Russel, 1998). O teor de
carotenóides no leite pode variar com a raça, o estado fisiológico, o nível de produção e o estado
sanitário, mas certamente a pastagem é o fator mais significativo para as diferenças observadas.

A dieta a base de pasto além de exercer influência direta sobre a qualidade do leite (valor biológico),
produzindo um alimento rico em CLA, antioxidantes e precursores da vitamina A, também acarreta em
efeitos benéficos à saúde dos animais. Dietas ricas em antioxidantes acabam por neutralizar os radicais
livres e seus efeitos negativos sobre a saúde do animal (Frankel, 2005). O período após o parto e a
própria produção de leite são situações fisiológicas onde os animais estão mais suscetíveis ao estresse
oxidativo (Lohrke et al., 2005) que se caracteriza por ser um desequilíbrio entre a formação de radicais
livres durante o metabolismo normal e a capacidade antioxidante endógena (Miller & Brezeinska-
Slebodizinska, 1993; Weiss, 1998; Vázquez-Añón et al., 2008). Essa situação é bastante prejudicial
para o animal uma vez que o quadro de estresse oxidativo está associado ao aparecimento de muitas
desordens patológicas, como pneumonia, sepse e mastite (Basu & Eriksson, 2001; Lauritzen et al.,
2003; Lykkesfeldt & Svendsen, 2007). A própria vitamina A têm influência sobre a manutenção da
integridade funcional do tecido epitelial mamário, estando também envolvida na resposta imune celular
(Krishnan et al., 1974). Foi verificado, por exemplo, a correlação entre a concentração de vitamina A no
sangue de vacas em lactação e a incidência e a severidade de infecção na glândula mamária em
quadros de mastite (Chew et al., 1982).

3. Bem-estar da vaca leiteira e qualidade sanitária do leite

Situações que causem dor, desconforto e doenças reduzem marcadamente o bem-estar dos animais;
portanto, o conceito de qualidade do produto de origem animal, com relação ao modo de produção,
deve incorporar a prevenção dessas situações e, mais do que isso, envolver os conceitos de saúde e
bem-estar animal. A mastite, por exemplo, é uma condição muito dolorosa (Broom & Fraser, 2007). Na
mastite também tem-se observado uma diminuição nos níveis de antioxidantes no leite associado a um
aumento de radicais livres (peróxido de hidrogênio e radicais hidroxilas) bem como de moléculas
induzidas por processos inflamatórios como o óxido nítrico (Weiss et al., 2004; Hamed et al., 2008;
Atakisi et al., 2010).

Vários estudos indicam que a laminite também aumenta a sensibilidade à dor (Rushen et al., 2007;
Rutherford et al., 2009). Sob as condições de desconforto permanente causados pela mastite, laminite
ou outras enfermidades, os animais passam menos tempo se alimentando e ruminando (Almeida et al,
2008), o que leva a distúrbios metabólicos. A baixa qualidade do leite, nesses casos, se dá por conta
da mudança na composição lipídica, sobretudo com o aumento de ácidos graxos livres, o que deteriora
as propriedades sensoriais como sabor e odor do leite (Hanus et al, 2008). Pelo mesmo processo, a
restrição alimentar, o balanço energético negativo e o estresse calórico também alteram a qualidade do
leite.

Muitos fatores ligados ao sistema de produção afetam a qualidade sanitária do leite. Animais
estabulados têm uma microbiota nos tetos maior do que em animais a campo, assim como na ordenha
manual a carga é maior do que na ordenha mecânica. O aumento no uso de concentrado na dieta tem
sido associado com maior defecação e dificuldade de manter a limpeza das vacas (Ward et al, 2002).
Assim, ao observarmos as condições ambientais, a rotina de manejo e o aspecto dos animais, podemos
encontrar evidências que nos permitem inferir tanto sobre a qualidade de vida das vacas quanto a
qualidade de seus produtos e, com base nessas evidências, planejarmos ações que promovam a saúde
e bem-estar.

Uma medida preventiva, por exemplo, é monitorar o estado nutricional dos animais através do escore
de condição corporal (ECC). O risco de doenças metabólicas e mastite é associado a vacas muito
magras ou obesas, portanto, o ECC é um indicador válido de bem-estar animal; o ECC ideal é 3,0 –
3,25, numa escala de 5 pontos, na época de parição (Roche et al, 2009). Outra medida prática é
monitorar a aparência de limpeza das vacas, o que nos indica o nível de higiene do ambiente e está
diretamente relacionado à ocorrência de mastites. Vacas com úberes e pernas sujas apresentam maior
ocorrência de mastites (Ward et al., 2002) e CCS maior do que vacas limpas (Reneau et al., 2005). Da
mesma forma, a presença de patógenos causadores de mastite é maior nas amostras de leite obtido
de vacas com úberes sujos quando comparados com úberes limpos (Schreiner and Ruegg, 2003).
Portanto, um escore de higiene do úbere deve ser usado, rotineiramente, como uma medida de
controle de qualidade (Ruegg, 2006).

Vacas sujas indicam um ambiente que, além de aumentar o risco de mastites, são desconfortáveis e
afetam diretamente o bem-estar. Em ambientes confortáveis, vacas leiteiras podem passar até 12
horas deitadas e, se relacionarmos a ordem de prioridade de comportamentos, o tempo para ficar
deitada tem prioridade sobre o tempo comendo (Munksgaard et al, 2005). Porém, elas passam menos
tempo deitadas quando submetidas a locais úmidos (Reich et al, 2010) e quando são privadas de deitar
exibem comportamentos como balançar a cabeça, bater os pés e reposicionar o corpo, sinais que
indicam desconforto (Cooper et al, 2007).

Além da questão de higiene, é preocupante a presença de resíduos de antibióticos em leite produzido


no Brasil, decorrente de tratamentos para mastite, que por sua vez está relacionada com a falta de
higiene, cirando-se um círculo vicioso. A detecção de resíduos antimicrobianos depende das técnicas
laboratoriais utilizadas e da metodologia de amostragens, por isso há uma grande diferença de
resultados em diferentes estudos, com freqüências variando de 1% a 70% (Albuquerque et al, 1996;
Porto et al, 2002; Nero et al, 2007) de amostras contaminadas. Além de uma questão relevante de
saúde pública, o consumo de doses subterapêuticas de antibióticos induz à resistência crônica de
microrganismos e inibe a multiplicação da microbiota natural, interferindo na qualidade do leite e
derivados.

4. Bem-estar da vaca leiteira e aspectos éticos

Três principais questões capturam a essência da discussão em torno do bem- estar de animais criados
para fins zootécnicos: as experiências subjetivas, aspectos relacionados à adaptação ao ambiente e o
estado biológico dos animais (por exemplo, Broom & Fraser, 2007; Rollin, 1995; Fraser et al., 1997;
Lund & Rocklinsberg, 2001; Hötzel, 2005; Duncan, 2006; Dawkins, 2006). Fome, dor, ansiedade, medo,
são algumas das emoções que resultam de estressores do ambiente. Na prática zootécnica, fatores
ambientais que limitam a expressão dos comportamentos dos animais e geram emoções negativas
geralmente também prejudicam a saúde, produtividade, reprodução e longevidade dos animais. Assim,
práticas voltadas a melhorar o bem-estar dos animais também favorecem indicadores zootécnicos como
produtividade e saúde.

Alguns pontos críticos para o bem-estar na criação de bovinos leiteiros são a saúde reprodutiva,
digestiva e do aparelho mamário e locomotor. Por exemplo, em sistemas intensivos confinados o risco
de uma vaca desenvolver mastite e laminite durante a lactação é entre 21 a 32 %, respectivamente,
enquanto a de apresentar retenção de placenta ou metrite é de aproximadamente 15% (Gröhn et al.,
2003). Embora o alojamento e forma de alimentação, dois importantes fatores predisponentes dessas
condições, serem diferentes na criação confinada ou a base de pasto, poucos trabalhos tem sido
desenvolvidos no sentido de avaliar esses problemas nos diferentes sistemas de criação (por exemplo,
Lorenzon, 2004; Honorato, 2006; Sato, 2005).

Outro grave problema é a mortalidade de bezerros, e alguns problemas sociais (Jensen & Budde, 2006)
e nutricionais (De Paula Vieira et al., 2008), relacionados à criação de bezerras até o desaleitamento.
Normalmente as bezerras leiteiras de reposição são alimentadas com um volume de leite equivalente a
10% do seu peso vivo, o que equivale a aproximadamente metade do seu consumo voluntário (Appleby
et al., 2001). Mesmo quando as bezerras tem acesso a ração inicial, o consumo no primeiro mês não é
suficiente para compensar a restrição nutricional (Jasper & Weary, 2002; von Keyserlingk et al., 2006).
Associado ao baixo ganho de peso, uma série de comportamentos indicam que há um importante
comprometimento do bem-estar desses animais (De Paula Vieira et al., 2008). Na rotina da criação de
bovinos leiteiros alguns procedimentos causam a dor e desconforto, como o amochamento de bezerros,
contribuem para o empobrecimento do bem-estar (Weary et al., 2006).

Outra questão relevante para o bem-estar e produtividade de vacas leiteiras é a qualidade das
interações entre os animais e os humanos que os manejam (Rushen et al., 1999; Hemsworth &
Coleman, 1998; Boissy et al., 1995). O comportamento dos animais amedrontados, que tendem a evitar
o tratador, reforça o comportamento aversivo no manejador, em um processo de retro-alimentação
indesejável. O medo de seres humanos também pode ter implicações práticas para a produtividade em
vacas leiteiras comerciais (Rushen et al., 1999; Hötzel et al., 2005). Por exemplo, estima-se que 20%
da variação do rendimento de leite em vacas é explicada pelo medo dessas em relação às pessoas que
as tratam (Breuer et al., 2000), o que indica a ocorrência de estresse nos animais. Em um trabalho
desenvolvido no Brasil, estimou-se uma perda de produção de leite em até 1 kg por ordenha em vacas
tratadas aversivamente pelo ordenhador (Rosa, 2002). Leite residual é um dos principais fatores
predisponentes de mastite, e nas situações acima citadas tem-se um círculo viciosos de tratamento
aversivo, que causa medo à vaca, o que afeta seu bem-estar; o leite residual causado pelo medo e a
consequente inibição da ação da ocitocina pela descarga de adrenalina na corrente sanguínea; a
mastite provocada pelo leite residual que causa mais desconforto à vaca e um leite de menor
qualidade, especialmente se a mastite se mantiver em níveis sub-clínicos.

A relação entre animais e seus manejadores é influenciada por vários fatores relacionados ao sistema
de criação, destacando-se a forma de alimentação e alojamento, o tipo de mão-de-obra, características
culturais e socioeconômicas dos trabalhadores, e características dos animais como o genótipo,
longevidade e a composição e o tamanho do rebanho. Por exemplo, agricultores que utilizam
homeopatia parecem ter um tratamento mais amigável com seus animais (Honorato, 2006), e isso
provavelmente está associado com as condições gerais de criação e a forma com que o agricultor
percebe o animal.

Pelo acima exposto, é evidente que as questões de bem-estar na bovinocultura de leite, por serem
principalmente relacionadas ao alojamento, alimentação e seleção genética e relação humano-animal,
são fortemente influenciadas pelo sistema de criação. Nas unidades de criação a pasto os maiores
problemas podem estar relacionados à variação sazonal na oferta de alimento, ausência de abrigo para
os extremos climáticos, doenças decorrentes da mal- nutrição, a utilização de genótipos inadequados,
deficiências na distribuição de água e doenças parasitárias. Já naquelas onde a produção é à base de
grãos, os maiores problemas podem ser aqueles relacionados à doenças metabólicas, à saúde do
aparelho reprodutor e do locomotor, e problemas comportamentais causados pela inadequação das
instalações. Como comentado anteriormente, a alimentação à base de pastagem fresca fornece à vaca
leiteira uma dieta rica em antioxidantes e precursores da vitamina A, fundamentais nos processos de
prevenção do estresse oxidativo (Lohrke et al., 2005). Também a presença de vitamina A na dieta de
vacas lactantes tem efeito positivo sobre a menor incidência e severidade de infecção na glândula
mamária em quadros de mastite (Chew et al., 1982).

Em relação à criação de bezerros e doenças do aparelho mamário, os problemas podem estar


presentes em ambos sistemas, mas ligados a motivos diferentes, como deficiências de higiene nas
propriedades mais descapitalizadas, e a alta produtividade e inadequação das instalações naquelas
mais capitalizadas.

É fundamental chamar a atenção ao fato de que, ao avaliar o sistema de criação em relação ao bem-
estar animal, nunca se deve comparar sistemas diferentes em condições diferentes. O correto é discutir
o potencial de cada sistema para oferecer as melhores condições e bem-estar, levando em conta as
condições ambientais da região, especialmente as climáticas. Mais importante, é imprescindível
considerar que, uma vez que a motivação humana em relação ao bem-estar dos animais é de natureza
ética, é incoerente discutir o impacto das decisões tomadas em relação ao bem-estar dos animais sem
relacionar as implicações sociais, econômicas, energéticas e ambientais do sistema de produção.

Dentre as consequências da industrialização da agricultura que vem ocorrendo desde a metade do


século passado, destaca-se a forte monopolização da atividade agrícola, concentração da produção e
da propriedade, com uma redução no número de propriedades e um favorecimento das formas de
produção dependentes de capital e insumos não renováveis. Na criação animal, essa concentração de
grande número de animais em uma dada região tem produzido em alguns casos excessos, superando a
capacidade do ambiente de reciclar os nutrientes. A concentração animal frequentemente implica
também no uso excessivo de água, outro tema que chega tarde à discussão da ética na produção
animal (Machado Filho et al., 2007).

A produção a base de pasto, em sistemas rotativos bem manejados, representa uma alternativa de
produção de leite a baixo custo (Lorenzon, 2004), capaz de responder aos questionamentos
relacionados à produção de ruminantes na área ambiental e social (Steinfeld, 2006; Machado Filho et
al., 2007). Para ajudar a reverter o processo de concentração e confinamento, é necessário
desenvolver tecnologias apropriadas para a produção a baixo custo e de baixo impacto ambiental em
pequenas e médias propriedades, e promover a criação de oportunidades de colocação dos produtos
em mercados diferenciados. A produção de leite em um sistema que respeite princípios ecológicos e
considere questões sociais e o bem- estar animal, pode favorecer o pequeno e médio agricultor através
da obtenção de um preço diferenciado para o seu produto, e representar uma oportunidade de
crescimento sustentável para a indústria. O consumidor urbano brasileiro rapidamente começa a adotar
padrões de consumo já presentes em outros países, procurando produtos que atendam à sua
demanda por produtos que identifica como mais saudáveis e condizentes com a sua ética em relação a
questões ambientais e do bem-estar dos animais (Broom, 1999; Fraser, 2006) o que pode ser
verificado na oferta de produtos orgânicos, agroecológicos e outros, em feiras especializadas e grande
supermercados (Machado Filho, 2000; Hötzel, 2005).

5. Leite com qualidade ética

O trabalho, negócio, estudo ou pesquisa de qualquer pessoa não está livre de julgamento pela
sociedade. Afinal, tudo que é produzido tem a finalidade de ser vendido às pessoas que compõe a
sociedade. Logo, essas mesmas pessoas tem o direito de demandar aspectos de qualidade. As
mudanças se dão sempre de “fora para dentro” e quando as contradições se aguçam a tal ponto que
há uma ruptura. São os cientistas da Etologia Aplicada que tem pesquisado as questões do bem- estar
dos animais zootécnicos. Entretanto, as preocupações com o tema tem raiz no livro de Ruth Harrisson,
“Animal Machines”, de 1964 (Harrisson, 1964), que tiveram a primeira conseqüência prática na criação
animal, com as cinco liberdades propostas no ano seguinte pelo Comitê Brambell (Brambell, 1965).

A sociedade atual tem demandado alimentos de qualidade e baixo custo. E em muitos casos as
pessoas estão dispostas a pagar um pouco mais por um produto que tenha sido produzido dentro de
padrões éticos e com maior qualidade biológica. Em diferentes partes do mundo tem havido boicotes a
certos tipos de produto animal ou vegetal pela forma como foi obtido. Talvez o exemplo mais expressivo
tenha sido o uso de casaco de pele de foca, antes um símbolo de riqueza, charme, poder. Hoje
rejeitado por grande parte das pessoas. Isso após ampla campanha de ativistas pró-“direitos dos
animais”, denunciando a forma como os filhotes de foca eram abatidos: a pauladas para não danificar a
pele.

Assim um leite com qualidade ética, é aquele produzido por vacas saudáveis e “felizes” (com bem-
estar), e num ambiente limpo; cuja alimentação seja à base de pasto, de forma a otimizar a utilização
dos recursos endógenos e da energia solar na produção; esse tipo de sistema produtivo tem impacto
ambiental mínimo, a alimentação dos animais não compete com humanos (grãos) e o custo de produção
é reduzido, garantindo maior rentabilidade ao produtor e um leite de qualidade ao consumidor sem
onerar seu orçamento. Não por acaso o leite assim produzido também é mais saudável aos humanos, e
vacas assim criadas tem melhor sistema imunológico e menor incidência de doenças da criação
(laminite, mastite, metrite, cetose, febre do leite).

6. Conclusão

Pelo exposto pensamos que devemos propor que se façam esforços de pesquisa, de políticas públicas,
de participação pró-ativa do setor privado, das organizações da Agricultura Familiar e demais
trabalhadores rurais, inclusive os sem-terra, no sentido de produzir um leite com qualidade ética. Onde
os produtores de leite e suas famílias tenham uma atividade prazerosa e remunerada de maneira
digna; nossos recursos naturais, florestas, águas, espécies silvestres, possam ser protegidos para as
futuras gerações; que se produza um leite de “vaca feliz”; que o poder público possa se orgulhar de
políticas bem-sucedidas e de uma certificação de origem de territórios do leite ético; e finalmente que o
setor privado possa oferecer ao público um produto saudável, de alta qualidade biológica, e que traga
junto um sabor de cidadania e civilidade.

Data de Publicação: 11/02/2014


Autor: L. Machado Filho, L.C., Hötzel, M.J., Kuhnen, S., Honorato, L. IV Congresso Brasileiro da
Qualidade do Leite. Disponível em: http://www.cbql.com.br

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