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A EPISTEMOLOGIA DE BACHELARD E SUAS POTENCIALIDADES

PARA O ENSINO DE FÍSICA NA EDUCAÇÃO BÁSICA

ROCHA, Tiago Ungericht1 - SEED/PR.

Grupo de Trabalho - Cultura, Currículo e Saberes.


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

Este trabalho tem por objetivo discutir alguns pontos da epistemologia de Gaston Bachelard e
traçar algumas interfaces a serem exploradas no ensino de Física. A metodologia basicamente
consiste numa pesquisa de cunho teórico, tendo como ponto de partida as obras de Bachelard
e algumas publicações a respeito. Partindo da ideia de que o ato de conhecer sempre é
marcado por uma forte dimensão psicológica, mostraremos como o filósofo entende a história
da ciência, sobretudo a partir da superação dos obstáculos epistemológicos. Para tal, faremos
uma breve análise dos três períodos propostos por Bachelard, apresentando os principais
obstáculos epistemológicos mencionados pelo filósofo. Mostraremos como Bachelard
concebe os três estágios do desenvolvimento do conhecimento científico, analisando as
características fundamentais de cada período: estado pré-científico, que compreende o período
que vai desde a Antiguidade até o século XVIII; o estado científico, o qual engloba o período
que vai do final do século XVIII ao início do século XX; e, por fim, o novo espírito científico,
período iniciado com a publicação do trabalho de Albert Einstein acerca da relatividade, em
1905. Exploraremos a transição do estado pré-científico para o estado científico por meio da
compreensão dos principais obstáculos epistemológicos superados. No que se refere à
passagem ao terceiro estado, iremos evidenciar as transições do espírito científico a partir de
exemplos da Física: a mecânica e a estrutura da matéria. Por fim, faremos algumas reflexões
em torno das possibilidades de encaminhamentos metodológicos a serem explorados no
ensino de Física a partir das ideias fundamentais da epistemologia de Bachelard.

Palavras-chave: História da Ciência. Espírito científico. Ensino de Física.

Introdução

O presente trabalho se propõe a fazer uma discussão teórica acerca de aspectos


fundamentais da epistemologia do filósofo francês Gaston Bachelard (1884-1962) e discutir

1
Mestre em Educação em Ciências e em Matemática pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Quadro
Próprio do Magistério da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Atualmente é técnico pedagógico da
disciplina de Física no Departamento de Educação Básica. E-mail: tiago@seed.pr.gov.br.
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algumas possibilidades de encaminhamentos metodológicos para o ensino de conteúdos de


Física.
Dividido em cinco partes, o artigo procura dar um panorama acerca da epistemologia
bachelardiana, da compreensão da história da ciência por parte deste filósofo e de algumas
possibilidades de encaminhamentos a serem exploradas no ensino de Física. Inicialmente
iremos tecer algumas considerações sobre a epistemologia de Bachelard. Na sequência
trataremos de apresentar como o filósofo francês concebe a evolução do espírito científico,
em suas três fases. Dedicaremos especial atenção na análise da transição do estado pré-
científico ao estado científico evidenciando os principais obstáculos epistemológicos. Em
seguida, discutiremos como o novo espírito científico surgiu, inaugurando uma nova fase na
ciência física. Elegemos duas situações particulares da Física para nossa análise: a mecânica e
a estrutura da matéria. Por fim, apresentaremos algumas reflexões para o ensino de Física.

Considerações iniciais sobre a epistemologia de Bachelard

Gaston Bachelard é considerado um dos grandes epistemólogos do século XX. Sua


vasta produção engloba temas que vão desde a epistemologia até a psicanálise. Destacamos
como principais obras: O novo espírito científico (1934), A formação do espírito científico
(1938), A filosofia do não (1940), O racionalismo aplicado (1949). Seu grande mérito foi
destacar a importância do estudo da História da Ciência como instrumento de análise da
própria racionalidade. A atividade científica passa a ser englobada em um processo mais
amplo, de cunho histórico-social e lhe é aferida a dimensão psicológica.
A respeito do pensamento bachelardiano, Reale e Antiseri (2006) destacam quatro
pontos principais: a contemporaneidade do filósofo; a historicidade da ciência, o caráter social
da ciência e a incapacidade da tradição moderna em construir uma prática científica real e
efetiva. Para Bachelard, o filósofo da ciência deve ser contemporâneo à ciência de seu tempo,
a qual é entendida como evento essencialmente histórico e provida de um forte caráter social.
As correntes epistemológicas modernas – racionalismo idealista e empirismo baconiano2 – se
mostraram insuficientes em dar conta da prática científica.
O pensamento de Bachelard é marcado pela descontinuidade temporal. O filósofo vê a
evolução do pensamento científico e, consequentemente, a dinâmica da história da ciência,

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Corresponde a filosofia de Francis Bacon (1561-1626) e é marcada pela valorização do método indutivo
agregada a prática experimental.
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marcados pela superação dos saberes. Para Bachelard não é possível considerar a ciência
independentemente de seu devir, isto é, de seu vir-a-ser (sua contínua transformação). A
ciência se desenvolve por meio de contínuas e sucessivas rupturas. O ato de conhecer, isto é,
de se estabelecer um vínculo e construir uma representação do real, representa uma
desconstrução de um conhecimento anterior. Com esta assertiva, Bachelard desmorona toda e
qualquer pretensão da tradição filosófica moderna, de cunho empírico-indutivista, de
constituir um conhecimento definitivo sobre o objeto. O real científico não é imediato e
primário.
Na introdução de A formação do espírito científico, Bachelard procura mostrar o
grandioso destino do pensamento científico. Para tal, o filósofo se propõe a provar que
“pensamento abstrato não é sinônimo de má consciência científica” (BACHELARD, 1996,
p.8). O pensamento abstrato, pelo contrário, é valorizado, pois permite a razão operar
desvinculada de pré-conceitos – obstáculos – que barram o progresso científico.

A evolução do espírito científico

A evolução analisada por Bachelard parte da percepção exata e chega à abstração


inspirada pelas objeções da razão. Com finalidades de clarear a compreensão, embora
assumidamente de modo simplista, o autor propõe três grandes períodos: o estado pré-
científico, que compreende o período que vai desde a Antiguidade, percorrendo os séculos do
Renascimento (XVI e XVII) até o século XVIII; O estado científico, o qual engloba o final do
século XVIII, o século XIX e o início do século XX; O novo espírito científico, iniciado em
1905 com os trabalhos de Albert Einstein acerca da Relatividade, marcando uma nova forma
de conceber o conhecimento científico e pela maturidade do espírito.
A fim de corroborar com a sua divisão, Bachelard enuncia a lei dos três estados para o
espírito científico. Seu objetivo é explicar a passagem da representação por meio da imagem,
passando pela forma geométrica, até a representação puramente abstrata. O primeiro estado é
o concreto no qual “o espírito se entretém com as primeiras imagens do fenômeno e se apoia
numa literatura filosófica que exalta a Natureza, louvando curiosamente ao mesmo tempo a
unidade do mundo e sua rica diversidade” (BACHELARD, 1996, p. 11).
Por sua vez, no segundo estado, denominado concreto-abstrato, o espírito agrega
elementos geométricos à experiência física, apoiando-se na simplicidade. Neste estado,
segundo Bachelard (1996, p.11), “o espírito ainda está numa situação paradoxal: sente-se
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tanto mais seguro de sua abstração, quando mais claramente essa abstração for representada
por uma intuição sensível”.
No terceiro estado, denominado abstrato, o espírito “adota informações
voluntariamente subtraídas à intuição do espaço real, voluntariamente desligadas da
experiência imediata e até em polêmica declarada com a realidade primeira, sempre impura,
sempre informe” (BACHELARD, 1996, p.12). Em outras palavras, o espírito se distancia
totalmente da intuição sensível, da experiência sensorial, valorizando o conhecimento
puramente abstrato.
Para o filósofo francês a experiência científica contradiz a experiência do senso
comum. Segundo o filósofo, a experiência do senso comum não é construída e, por isso, não
pode ser verificada. O filósofo argumenta que a experiência do senso comum “permanece um
fato, não pode criar uma lei. Para confirmar cientificamente a verdade, é preciso confrontá-la
com vários e diferentes pontos de vista. Pensar uma experiência é, assim, mostrar a coerência
de um pluralismo inicial” (BACHELARD, 1996, p.14).

A passagem do estado pré-científico ao estado científico: os obstáculos epistemológicos

Segundo Bachelard, “as características filosóficas do espírito científico são mais


evidentes naquelas ciências que contam com maior passado de objetividade e que possuem
elevado grau de racionalidade” (CARDOSO, 1985, p.19). As matemáticas e as ciências físicas
são as que se melhor se enquadram nesta visão e é através destas que Bachelard se propôs a
descrever a formação do espírito científico. Este, por sua vez, se formou a partir da superação
da percepção ingênua - denominada de espírito pré-científico e presente até o século XVIII –
por meio da transposição dos obstáculos epistemológicos, conceito central da filosofia
bachelardiana.
O conceito de obstáculo epistemológico é justificado por Bachelard (1996, p.17) ao
dizer que “quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência, logo se
chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento
científico deve ser colocado”. Conforme aponta Bachelard (1996), tais obstáculos, não são
decorrentes da complexidade ou fugacidade dos fenômenos, nem das limitações de nossos
sentidos. Eles se encontram no próprio ato de conhecer, fundamentado na ideia pré-concebida.
Existe, portanto, uma dimensão psicológica a qual é responsável por criar analogias, imagens
e metáforas, muitas vezes responsáveis por bloquear o conhecimento.
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O conhecimento do real nunca é imediato e pleno. Todas as revelações do real são


recorrentes, isto é, se voltam para concepções anteriores. Bachelard (1996, p.17) afirma que
“o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal
estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”.
Consequentemente, o conhecimento científico só será possível a partir de um método, isto é,
um conjunto de passos trilhados pelo cientista e que devem partir necessariamente de um
problema. A respeito, Bachelard argumenta que:

É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito


científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta.
Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada
é gratuito. Tudo é construído (BACHELARD, 1996, p.18).

A dimensão psicológica presente no ser humano contribui para a obstacularização do


conhecimento científico, pois dificulta o processo de abstração. Segundo Bachelard (1996,
p.19) “pode-se reconhecer que a ideia científica muito usual fica carregada de um concreto
psicológico pesado demais, que ela reúne inúmeras analogias, imagens, metáforas e perde aos
poucos seu vetor de abstração, sua afiada ponta abstrata”. A superação da experiência
primeira, altamente contaminada pela dimensão psicológica na construção do saber abstrato
não foi um caminho trilhado facilmente. O abandono de conceitos tais como o de unificação
(ação do Criador, unidade lógica, organização da Natureza) levou vários séculos para ocorrer.
Bachelard apresenta em A formação do espírito científico os principais obstáculos
epistemológicos. São discutidos de que forma a experiência primeira, o conhecimento geral, o
vocábulo único, o conhecimento unitário e pragmático, o substancialismo, o realismo, o
animismo e o conhecimento quantitativo representam obstáculos na construção do
conhecimento científico. Também merecem menção situações particulares tais como a libido
e o mito da digestão. Os obstáculos devem ser superados para que se estabeleça e se
desenvolva uma mentalidade verdadeiramente científica. Na sequência iremos apresentar
alguns.
O obstáculo da experiência primeira consiste no conhecimento baseado na percepção
imediata. Por fascinar, a experiência primeira valoriza as imagens em detrimento das ideias.
Neste sentido a compreensão de um fenômeno cede lugar para a contemplação e para o
encantamento, conforme percebemos a respeito da eletricidade (para um espírito pré-
científico não é necessário compreendê-la, basta apenas vê-la e encantar-se). A imagem, às
vezes, dispensa a verificação de uma hipótese. Neste sentido, Cardoso argumenta que:
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A história do conhecimento objetivo terá que mostrar uma superação à adesão


imediata. O conhecimento vulgar está impregnado de surdas paixões, de desejos
inconscientes e de certas quimeras. Uma hipótese pré-científica apoia-se,
antecipadamente, sobre uma convicção profunda. Assim, o primeiro conhecimento
constitui um primeiro erro (CARDOSO, 1985, p.20).

Para Bachelard, o conhecimento geral representa um obstáculo ao conhecimento


científico, pois generalizações precoces são responsáveis por equívocos. Para Cardoso (1985,
p.20) “ao embargar a experiência, a ciência do geral propõe grandes verdades primeiras que
pretendem esclarecer completamente uma doutrina”. A prova experimental permite que um
conceito seja deformado de modo que ocorra o seu aperfeiçoamento. Este mesmo autor (1985,
p.21) aponta que para Bachelard “um conhecimento geral corre o risco de se converter em um
conhecimento extremamente vago”.
Outro obstáculo epistemológico é o verbal. Citada como exemplo por Bachelard, a
palavra esponja reflete a situação em que uma única palavra é tida como explicação
suficiente. Bachelard (1996) menciona alguns casos em que tal palavra aparece na História da
Ciência: na compressibilidade do ar, na eletricidade, na passagem de luz através dos vidros e
no esfriamento de um corpo quente. Em tais exemplos percebemos o apelo às metáforas na
formulação das teorias. Cardoso (1985, p.21) argumenta que, para Bachelard, “um espírito
científico vale-se da analogia depois do estabelecimento da teoria, ao passo que o espírito pré-
científico o faz antes”.
O obstáculo do conhecimento unitário e pragmático reflete a visão pré-científica da
busca pela unidade das coisas e pela utilidade. Para um espírito pré-científico, a unidade é um
princípio facilmente alcançado. Por sua vez, “a predisposição às analogias leva a uma espécie
de triângulo universal, cujos vértices Céu, Terra e homem apresentam estreitas
correspondências” (CARDOSO, 1985, p.21). Ao longo dos séculos diversas enfermidades
foram tratadas a partir da crença nas afinidades existentes entre um órgão afetado, algum
metal e o planeta correspondente. Tal concepção – pragmática - considera o mundo natural
como uma estrutura cuja finalidade é prática. Um espírito pré-científico sempre associa
verdade e utilidade, negando qualquer possibilidade empírica que possa colocá-las em
conflito.
O obstáculo substancialista deriva-se do fato de que “um espírito pré-científico conhece
um objeto segundo o papel por este desempenhado” (CARDOSO, 1985, p.21). As substâncias
possuem apenas qualidades, muitas vezes ocultas. Tal interpretação é uma impressão
superficial e, de acordo com Cardoso (1985, p.22), “a afirmação de uma qualidade oculta ou
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íntima trava tanto o progresso do pensamento científico, quanto a substancialização de uma


qualidade imediata, captada através de uma intuição direta”.
O realismo ingênuo se converte em outro obstáculo epistemológico. De acordo com
Cardoso (1985, p.22) “ao tomar um objeto como um bem pessoal, um realista ingênuo
satisfaz um prazer avaro”. O desejo em possuir pedras preciosas conduz a domínios alheios a
sua valorização inicial, sobretudo na Farmácia. Os tratados de medicina do século XVIII
apontam numerosas virtudes às matérias preciosas, tais como a esmeralda, o topázio e o ouro.
As propriedades elencadas não se restringem ao âmbito físico, mas também ao mental. Para
Bachelard, reconhecer que um metal - o ouro, por exemplo – “não é uma riqueza que se presta
ao coração e ao ânimo exige uma atividade intelectual intensa e alheia a toda valorização
inconsciente” (CARDOSO, 1985, p.23). Um realista ingênuo não foi capaz de alcançar este
estágio.
O obstáculo animista se deve ao fato de que pensamento animista buscou determinar a
importância de cada um dos três reinos da natureza (animal, vegetal e mineral) através de
analogias compatíveis com um plano que se imagina natural. Um espírito pré-científico
identifica, por exemplo, no ser humano os três reinos da natureza. Cardoso (1985, p.24)
destaca que, para Bachelard “por ser mais natural, a imagem animista é mais convincente.
Mas, por exprimir apenas um desejo, ela traz uma falsa clareza”.
Por fim, o conhecimento quantitativo se converte em obstáculo epistemológico.
Cardoso (1985) aponta que para Bachelard um conhecimento quantitativo imediato é
subjetivo. Com isso se constata que as certezas prematuras não são apropriadas. Para este
mesmo autor (1985) o problema consiste em como levar o ser humano a renunciar às
magnitudes comuns e considerar a relatividade de suas medidas, ante as deficiências dos
métodos empregados. Um espírito científico concebe o seu método de medida antes de pensar
no objeto a ser medido.
A superação dos obstáculos epistemológicos permite que o espírito atinja o estado
científico. Como já afirmamos tal superação não é nada trivial e ocorre em diferentes
momentos. Para efeito de análise consideraremos dois exemplos da Física: a mecânica e a
estrutura da matéria.
O estudo da mecânica tem longa data. Remonta a Antiguidade as primeiras concepções
filosóficas acerca do movimento. Coube a Aristóteles (384-322 a.C.) sistematizar uma teoria
que se propusesse a explicar tal fenômeno. Baseado na experiência primeira, este filósofo
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concebeu a teoria de que, numa queda livre, os corpos mais pesados chegariam ao chão
primeiro. Tal argumento, bastante prático e fortemente vinculado à percepção sensorial, só
seria derrubado dezoito séculos após pelos trabalhos de Galileu Galilei (1564-1642) e,
posteriormente por Isaac Newton (1642-1727). A mecânica newtoniana introduziu formas
geométricas no estudo dos movimentos, refinando os erros presentes na doutrina aristotélica.
Mesmo assim, a teoria de Newton sobre os movimentos foi alvo de críticas à época de seu
surgimento, pois “para um espírito pré-científico, às vezes, calcular um fenômeno
correspondia a uma forma de fugir de sua explicação” (CARDOSO, 1985, p.26).
Por sua vez a busca pela compreensão da estrutura da matéria também remonta a
Antiguidade. As primeiras teorias cunhadas por volta do século VI a.C. eram filosóficas,
embora fossem fortemente marcadas pelo misticismo. Pensadores como Tales de Mileto e,
Anaxímenes atribuíram a origem da natureza a substâncias simples tais como a água e o ar
respectivamente. Coube a Leucipo e Demócrito, por volta do século V a.C. conceber a ideia
de uma porção de matéria maciça e indivisível a qual deram o nome de átomo. Vale ressaltar
que também para estes pensadores não havia uma necessidade de comprovação empírica. Os
objetos pertencentes ao mundo natural e espiritual seriam resultantes da combinação dos
átomos. Cerca de vinte e três séculos após, as bases científicas da teoria atômica foram
lançadas pelo químico John Dalton (1766-1844). Os átomos passaram a ter existência
fundamentada cientificamente, porém sua estrutura começa a se revelar mais complexa do que
se acreditava. O modelo indivisível cede lugar para a estrutura divisível proposta por Joseph
John Thomson (1856-1940) e aperfeiçoada por Ernest Rutherford (1871-1937). Com tais
trabalhos percebemos nitidamente a superação da experiência primeira (da percepção
ingênua) e a formulação de explicações que valorizam estruturas geométricas, como é o caso
da órbita planetária presente no modelo atômico de Rutherford.
Em ambos os exemplos apresentados percebemos nitidamente a transição do estado
pré-científico para o estado científico. Tal transição segundo Bachelard só se tornou possível
mediante a superação dos obstáculos que barravam o conhecimento científico. Entretanto os
avanços em tais áreas não pararam por aí. Novas indagações motivaram a transição para uma
nova era. Conforme mencionamos anteriormente, seria inaugurada no início do século XX o
novo espírito científico.
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O novo espírito científico

A respeito do novo espírito científico, Bachelard argumenta que neste período as


abstrações mais audaciosas foram propostas através da religação de conceitos que até então
produziam noções fundamentais consideradas imutáveis. O filósofo argumenta que neste
período surgiram “ideias, das quais uma única bastaria para tornar célebre um século,
apareceram em apenas vinte e cinco anos, sinal de espantosa maturidade espiritual”
(BACHELARD, 1996, p.9).
No que se refere ao estudo dos movimentos, o novo espírito científico é caracterizado
pela teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), na qual os pilares da mecânica
newtoniana são reinterpretados. A dilatação do tempo e a contração do espaço em velocidades
próximas a da luz são as consequências desta teoria que visava inicialmente completar as
lacunas deixadas pela teoria anterior. A relatividade é fortemente baseada na abstração, sendo
considerada uma refundação da mecânica, conforme aponta Bachelard (1974, p.269) ao dizer
que “do ponto de vista astronômico, a refundição do sistema einsteiniano é total. A
astronomia relativística não sai de maneira alguma da astronomia newtoniana. O sistema de
Newton era um sistema acabado”.
Segundo Bachelard não existe transição direta entre o sistema de Newton e o de
Einstein. Para que a teoria da Relatividade pudesse ter sido formulada houve a necessidade de
se haver uma indução transcendente. Ao se reduzir a teoria einsteiniana se obtém como caso
particular a teoria de Newton. Bachelard argumenta a respeito:

Segue-se, portanto uma indução transcendente e não uma indução amplificante, indo
do pensamento clássico ao pensamento relativístico. Naturalmente, após esta
indução pode-se, por redução, obter a ciência newtoniana. A astronomia de Newton
é pois finalmente um caso particular da Pan-Astronomia de Einstein, como a
geometria de Euclides é um caso particular da Pangeometria de Lobatchewski
(BACHELARD, 1974, p.269).

No que se refere à compreensão da estrutura da matéria, o novo espírito científico é


evidenciado, sobretudo, através da mecânica quântica cristalizada nos trabalhos de físicos
como Niels Bohr (1884-1962), Louis de Broglie (1892-1987), Werner Heisenberg (1902-
1976) e Erwin Schrödinger (1887-1961). A explicação oferecida pela Física Clássica
conflitava com os resultados experimentais obtidos por Rutherford sendo, portanto, necessário
repensar os fundamentos da teoria atômica. Coube a Bohr corrigir as limitações do modelo de
Rutherford e abrir o caminho que culminaria com a mecânica quântica. A melhor
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representação do átomo deixa de ter uma estrutura geométrica e passa a ser dada pela solução
da equação de Schrödinger através das funções de onda e pela mecânica matricial proposta
por Heisenberg. Fica evidenciado que o conhecimento científico sobre a estrutura da matéria
se tornou altamente abstrato e desvinculado da percepção sensível.
O novo espírito científico não é caracterizado pelo acúmulo de conhecimentos. A
passagem do estado científico ao novo espírito não se deu por meio de uma evolução linear.
Pelo contrário, é necessária uma refundição das bases e isso só se dará mediante uma indução
transcendental. Bachelard (1974, p. 269) argumenta que “não se vai do primeiro ao segundo
acumulando conhecimentos, redobrando de cuidado nas medidas, retificando ligeiramente os
princípios. Pelo contrário, é necessário um esforço de novidade total”. E isso só se dará
mediante elevada maturidade do espírito científico conforme observado nos exemplos
abordados.

Possibilidades para o ensino de Física

É consensual que o ato de ensinar tenha, no mínimo, uma finalidade prática a ser
alcançada. Os documentos oficiais nacionais sinalizam que tal finalidade está relacionada à
formação de um sujeito autônomo e crítico, capaz de exercitar plenamente sua cidadania. Para
tal, no que tange ao ensino de Física, entendemos que se faz necessária primeiramente a
superação de práticas em sala de aula marcadas pela transmissão dos conteúdos escolares
como verdades eternas e imutáveis e não como possibilidades de construção humana.
De modo a contribuir na superação da propagação de imagens equivocadas sobre a
natureza da ciência e da atividade científica, o ensino de Física pode ser orientada por meio de
uma abordagem histórico-filosófica da ciência (abordagem HFC). Neste sentido a História e
Filosofia da Ciência representa uma área de conhecimento que pode trazer contribuições ao
ensino/aprendizagem de Física. Esta abordagem se caracteriza como uma estratégia didática
facilitadora na compreensão de conceitos, leis, modelos e teorias científicas, podendo
contribuir para a formação de uma cultura científica, levando os estudantes a assumirem uma
postura crítica.
A compreensão – por parte do professor - do papel da História e Filosofia da Ciência no
ensino de Física tende a contribuir na melhoria do ensino. À medida que favorece o trabalho
do professor, esta abordagem auxilia os estudantes na compreensão dos conceitos físicos. Por
meio desta abordagem é possível trazer à discussão elementos relacionados aos aspectos
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internalistas e externalistas na produção do conhecimento científico, evidenciando assim que


a construção do conhecimento científico não é um processo puramente linear, fechado em si
mesmo e desprovido de um contexto social. Outro aspecto possível de ser abordado está
relacionado ao caráter provisório do conhecimento científico. Assim cremos que esta
abordagem pode contribuir para a superação de visões equivocadas em relação à ciência e ao
trabalho do cientista.
A apropriação por parte do professor em relação a uma tendência historiográfica –
Bachelard, por exemplo – é fundamental para o êxito desta abordagem. Por meio da
compreensão dos fundamentos da epistemologia bachelardiana é possível orientar os
encaminhamentos metodológicos ao se abordar conteúdos de Física. Entendemos que uma
abordagem HFC para conteúdos de Física baseada na epistemologia Bachelard pode permitir
a correta caracterização da Física por meio de suas transições: da Física Escolástica Medieval
à Física Newtoniana e, a partir das limitações desta última até o surgimento da Física
Quântica. Por exemplo, é possível dirigir o estudo sobre queda dos corpos dentro de uma
perspectiva que explore a passagem do estado pré-científico para o estado científico. Outro
conteúdo que pode ser explorado nesta mesma perspectiva seria o de resistência elétrica. Um
estudo em torno deste conceito por meio de um viés bachelardiano permitirá evidenciar aos
estudantes as dificuldades enfrentadas na compreensão desta grandeza.
No que se refere à inserção de tópicos de Física Moderna no currículo da Educação
Básica, citamos como exemplo os conteúdos relacionados à Física Quântica. Destes os
possíveis temas, destacamos a teoria quântica de Planck, o efeito fotoelétrico, os modelos
atômicos, a natureza dual da matéria, bem como aspectos inerentes à Mecânica Quântica.
Entendemos que a inserção destes tópicos não deve ser feita de forma sequencial, numa
perspectiva puramente cronológica, de modo a se evitar que a abordagem de Física Quântica
não se reduza apenas à resolução de problemas. Neste caso pode-se desenvolver uma
abordagem que explore a passagem dos três estados: do pré-científico ao científico e, por fim,
a passagem ao novo espírito científico. Entendemos que tais conteúdos podem ser abordados
por meio do estudo da evolução da compreensão da estrutura da matéria. Ao se estruturar tal
estudo por meio da epistemologia de Bachelard, é possível abordar a compreensão da
estrutura da matéria por meio das passagens: do espírito pré-científico ao espírito científico e,
por fim, ao novo espírito científico. Por meio deste eixo condutor é possível transmitir
aspectos inerentes à natureza da Física enquanto ciência e também de aspectos relacionados à
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atividade científica. Os conteúdos de Física Quântica podem ser inseridos numa perspectiva
de exploração dos limites da Física Clássica na compreensão da estrutura da matéria.

Considerações finais

A filosofia de Bachelard é significativa na medida em que agrega a dimensão


psicológica à dimensão epistemológica. A formação do espírito científico só foi possível a
partir da retificação dos erros. Isso nos leva a entender que o objeto cognoscível não é um
objeto imediato. A percepção sensorial não se reverte imediatamente em conhecimento
científico. É necessário passar os dados empíricos pelo crivo da razão, de modo a depurar os
enganos e equívocos. Bachelard (1996) afirma que um conhecimento científico não pode se
fundamentar sobre um conhecimento sensível, estimulado por pragmatismo e ideias pré-
concebidas.
A compreensão de cada obstáculo permite um entendimento mais amplo da evolução do
pensamento científico moderno, marcado por sua superação. O conhecimento científico não
se constitui de um empirismo imediato e sem rigor, haja vista que a linguagem, entendida
como capacidade de representação, é marcada por metáforas e analogias. Tais características
refletem, em parte, a dimensão psicológica presente no ato de conhecer.
A compreensão das três fases do progresso da ciência apresentadas por Bachelard –
estado pré-científico, estado científico e novo espírito científico – permite um entendimento
mais amplo sobre a dinâmica das ideias científicas, bem como a percepção das limitações da
própria ciência. Por ser produto da atividade humana a ciência estará sempre em elaboração e
reconstrução. Estas características devem estar presentes nas aulas de Física de um modo
geral, na medida em que contribuem para minimizar eventuais equívocos na compreensão dos
estudantes a respeito de aspectos relativos à natureza da Física enquanto ciência, ao mesmo
tempo em que contribuem para um melhor aprendizado dos conceitos científicos. As
sugestões apresentadas aqui não esgotam as possibilidades a partir da epistemologia de
Bachelard, cabendo ao professor em sua prática pedagógica aprofundá-las e refletir sobre
novas possibilidades.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. In: Os pensadores. São Paulo: Abril,
1974. v.38.
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BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto,


1996.

CARDOSO, Walter. Os obstáculos epistemológicos, segundo Gaston Bachelard. Revista da


Sociedade Brasileira de História da Ciência. São Paulo, n.1, p.19-27, jan.-jun. 1985.
Disponível em: < http://www.mast.br/arquivos_sbhc/18.pdf>. Acesso em: 19 mai. 2013.

REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2006. v.7.

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