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Introdução à política externa

e às concepções diplomáticas
do período imperial

Amado Luiz Cervo

A densidade alcançada pelos estudos de história das relações


internacionais reposiciona o peso do homem de Estado, político ou
diplomata, e do meio social, sobre a decisão. E desvenda eventuais
ingenuidades do discurso de dirigentes. Disso nos convence Pour
l’histoire des relations internationales, monumental obra publicada
em 2012 por Robert Frank, herdeiro da linhagem de intelectuais
da Escola Francesa. Ele e seus colaboradores acompanham as
metamorfoses desses estudos à luz das escolas e grupos de pesquisa
consolidados no mundo, desde a Introdução à História das Relações
Internacionais, publicada por Pierre Renouvin e Jean-Baptiste
Duroselle em 1964. Categorias de análise e interpretação, que
também instruem a decisão, são atualizadas: a multicausalidade
sob impulso de forças profundas, a prevalência do econômico, o
condicionamento da cultura e da identidade nacional, a interação
entre interno, externo e transnacional, o complexo contexto
decisório.

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Por sua vez, os estudos de Adam Watson, Hedley Bull e Brunello


Vigezzi, o cerne da Escola Inglesa, acerca da sociedade internacional
europeia do início do século XIX e da ordem internacional dela
decorrente ao longo do mesmo século, aplicam-se diretamente
à compreensão do secular paradigma liberal-conservador de
inserção internacional das nações da América Latina, posto em
marcha desde suas Independências. Especialmente Vigezzi, para
quem o conceito de sociedade internacional consubstancia-se
como poderoso instrumento atrelado à expansão do capitalismo de
potências centrais, expansão levada por componentes congênitos,
tais como superioridade tecnológica, ordenamento jurídico,
conduta diplomática, comércio e uso das armas.
Mergulhamos há décadas na tarefa de situar o Brasil no mundo
dos estudos de relações internacionais. Ultimamente focamos o
papel das correntes de pensamento geradoras de conceitos que
inspiram o processo decisório. Inserção internacional: formação dos
conceitos brasileiros, que publicamos em 2008, identifica três grupos
sociais de construtores de conceitos, cujo conteúdo epistemológico
aplica-se ao campo das relações exteriores: grandes pensadores do
destino nacional, o pensamento político e diplomático, a produção
acadêmica.
Uma interação se estabelece entre diplomacia, política
exterior e relações internacionais, da qual resulta nosso conceito
de inserção internacional, de tal modo que se perceba íntima
conexão entre pensamento político, que perscruta o interesse
nacional, negociação diplomática, propensa ao resultado, e atores
não governamentais, que se movem externamente em busca de
interesses específicos, cuja soma equivale ao interesse nacional. Em
suma, sem o pensamento diplomático, uma das fontes de conceitos
aplicados, e sem medir seus impactos sobre a formação nacional,
não se leva a bom termo o estudo das relações internacionais
de país algum. Em outros termos, nenhuma globalização feita

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de mercado sem Estado com que sonham autores imbuídos de


liberalismo fundamentalista apaga estes condicionamentos das
relações internacionais.
O pensamento diplomático brasileiro evidenciou três grandes
objetivos externos durante o período monárquico, resultantes
da leitura que se fazia do interesse nacional: o reconhecimento da
soberania e a aceitação da autonomia decisória pelos outros
governos, a conformação do comércio exterior e do fluxo de
imigrantes às estruturas da sociedade e da economia, enfim, a
convivência pacífica com os vizinhos mediante o traçado dos
limites do território.
O patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e
Silva, o primeiro que ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros
do Brasil independente, formalizou um pensamento precursor
da formação nacional. Concebeu a comunidade lusa de nações
soberanas e vinculadas entre si, formada por territórios do império
colonial português dos dois lados do Atlântico sul, uma ideia,
é bem verdade, utópica para dirigentes de nações colonialistas;
vislumbrou relações cordiais e cooperativas com países vizinhos,
que zelassem especialmente pela segurança diante de investidas
de Portugal e Espanha; pensou em relações de reciprocidade de
benefícios com Estados Unidos e países europeus. Seu ideário,
entretanto, não coincidia com o do imperador, por tal razão foi já
em 1823 excluído do grupo dirigente e, em sua ausência, o Brasil
firmou duas dezenas de tratados de reconhecimento, entre 1825 e
1828, os quais lançaram profundas raízes de atraso e dependência,
porquanto foram imposição da sociedade internacional de então.
Forças profundas dessa sociedade imiscuíam-se no processo
decisório interno para cavar assimetrias úteis às nações do
capitalismo avançado de então. Ao lidar com essa realidade
internacional, ao avaliar os tratados de reconhecimento e de

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comércio, José Bonifácio abre a galeria do genuíno pensamento


diplomático brasileiro.
O legado histórico da época da Independência, afora o
reconhecimento alcançado, revela-se historicamente empobre-
cedor para a formação nacional. Além de matar o débil processo de
industrialização encaminhado por D. João VI, sequer os interesses
da produção agrícola e dos exportadores de produtos primários
seriam admitidos pelos negociadores europeus. A eles cederam
os brasileiros o mercado de manufaturados e as possibilidades
de modernização industrial em troca de nada. Dessa conjuntura
adversa da época da Independência resulta o pensamento
crítico que aflora no Parlamento, instalado em 1826, e no meio
diplomático, após a abdicação de D. Pedro I em 1831. Pensamento
que, paradoxalmente, reforça a autonomia decisória em matéria
de política exterior, porém a submete ao grupo economicamente
hegemônico, plantadores e exportadores de algodão, açúcar, café e
outros frutos da natureza.
Com efeito, três fases da formação nacional brasileira são
perceptíveis durante o período monárquico que segue a época
da Independência, cada qual requerendo percepções próprias de
interesses a promover por parte dos dirigentes.
Durante a Regência, entre 1831 e 1840, forja-se o Estado
nacional apto ao exercício da autonomia decisória, a cargo de
notáveis homens de Estado, porém condicionada pelo meio interno
e pelo sistema internacional, como acima se observou.
Nos meados do século XIX, assiste-se à emergência do
pensamento industrialista e ao primeiro ensaio de modernização
capitalista, uma experiência de fôlego curto que se dilui. Observa-se,
por outro lado, dificuldade em prover a segurança nacional face à
instabilidade dos países da bacia do Prata, atrasados relativamente
ao Brasil quanto à implantação do Estado nacional em condições de

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gerenciar a nação. Apesar de coerente política de limites, o traçado


das fronteiras é lento.
As décadas finais da Monarquia, perturbadas pela Guerra
da Tríplice Aliança, prolongam e consolidam o paradigma liberal-
-conservador, que se estenderá por mais de um século, entre 1810
e 1930, perpassando, portanto, a independência formal de 1822 e
a mudança do regime político em 1889.
A ideologia que os dirigentes brasileiros esposaram no século
XIX era o liberalismo de matriz europeia. Esse liberalismo estendia-
-se à construção das instituições políticas do Estado monárquico
e, depois, do republicano, como à organização da sociedade,
exceção feita ao regime da escravidão. O liberalismo determinava
o modo de se fixar a propriedade, de organizar a produção, de
se fazer o comércio e de portar-se com o exterior. A ideologia
liberal está presente à época da Regência, quando se moldam as
instituições do Estado nacional e se trava a grande polêmica em
torno de centralização e descentralização do poder. Está presente
na década de 1840, ao expirarem os tratados desiguais da época
da Independência, quando se trava outro debate acirrado entre
livre-cambistas e protecionistas em torno da política de comércio
exterior e da industrialização. Prevalece durante a segunda metade
do século XIX e durante a Primeira República na mentalidade
do grupo social que detinha o poder econômico e configurava o
político em seu benefício.
Esse ambiente interno interage com a política exterior,
tanto quanto as coerções sistêmicas. Como propriedade das elites
agroexportadoras, o Estado, nele incluídos os cargos da diplomacia,
equivalia a grupo impermeável de poder, que procedia de cima à
leitura do interesse nacional e tomava decisões consequentes,
aplicáveis à organização interna e à ação externa. O pensamento
diplomático, como se verá a seguir, quando não se funde com o

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pensamento político na ideia ou na pessoa, com ele se confunde,


sem comprometer aquele grau de liberdade de pensar e de decidir
que a multicausalidade histórica explica.

José Bonifácio, construtor da nação


O capítulo escrito por João Alfredo dos Anjos expõe o
abrangente pensamento do primeiro ministro dos Negócios de
Estado e Estrangeiros, entre 1822 e 1823, José Bonifácio, pensador
da nação em si e de sua inserção na comunidade internacional. São
dele ideias fundacionais: de que o reconhecimento não deveria ser
barganhado mediante o sacrifício de interesses nacionais, como
foi, porém apenas negociado em troca de interesses brasileiros
efetivos; de um Brasil encaixado soberanamente nas tendências
modernizadoras da economia internacional de então e na
distribuição do poder; de cooperação com os vizinhos do sul para
prover a segurança regional à base de forças armadas eficientes;
de negociar com nações avançadas, como Grã-Bretanha, França e
Estados Unidos, a reciprocidade de benefícios que contemplassem
pela via do sistema produtivo e do comércio exterior a
modernização da nova nação; de engendrar um sistema financeiro
aberto aos capitais vindos de fora, porém zeloso pela riqueza
nacional; de unidade territorial do antigo Brasil português para
evitar o esfacelamento da soberania como ocorria com a América
hispana. Essas e outras facetas de José Bonifácio, ao mesmo tempo
pensador denso e gestor público coerente, são aprofundadas e
detalhadas pelo notável texto de João Alfredo.
Três homens de Estado, ousaríamos afirmar e sem pretender
deprimir a ninguém, exibiram, durante a monarquia, pensamento
diplomático comparável ao do patriarca pela sua relevância:

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Honório Hermeto Carneiro Leão, Paulino José Soares de Sousa e


José Maria da Silva Paranhos.

Honório Hermeto consolida matrizes da nação


De Honório Hermeto, Marquês do Paraná, ocupou-se Luiz
Felipe de Seixas Corrêa. Evidencia esse autor em seu texto o elo
entre o pensamento de José Bonifácio, o precursor, e a maturidade
das instituições imperiais que promoveu Hermeto à base da gestão
racional do Estado e da estabilidade, tanto em sua dimensão interna
quanto de relações exteriores. Concebia, aliás, a ação externa como
a outra face da gestão interna. Aí nasce a tradição de racionalidade
e continuidade da política exterior brasileira. Ao tempo em que
os perigos advinham do Sul, especialmente do ditador argentino
Juan Manuel Rosas e da guerra longa no Uruguai, concebeu a
defesa nacional montada sobre as armas e inventou o jeito de lidar
com as ameaças de caudilhos à integridade nacional: o equilíbrio
entre neutralidade e intervenção, submetido à oportunidade de
êxito, enquanto se preparasse a fase futura do entendimento e da
convivência.

O Visconde do Uruguai ao lado do Marquês do


Paraná
Mesmo que pouca referência faça, Gabriela Nunes Ferreira
situa o pensamento e o trabalho de Paulino José Soares de Sousa
ao lado de Honório Hermeto: consolidando o Estado monárquico
centralizado e abrindo perspectivas estáveis na área externa. Paulino
afasta os estrangeiros do Prata e os substitui por uma estabilidade
conveniente ao Brasil. Negocia as fronteiras com generosa política

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americanista. Evita a penetração de flibusteiros americanos na


Amazônia, mas promove a navegação de rios fronteiriços. Suprime
o tráfico de escravos, eliminando outro confronto, e estabiliza as
relações com a Inglaterra.

O Visconde do Rio Branco: síntese do homem de


Estado
Francisco Doratioto descreve o perfil de Paranhos como
síntese do homem de Estado nessa época de apogeu das
instituições monárquicas, especialmente no que diz respeito ao
diplomata ideal: pensamento lógico e denso, ação firme e propensa
ao resultado. Por isso Paranhos esteve acima das lutas mesquinhas
pelo poder, sendo capaz de enfrentar tanto adversidades internas
quanto manifestações da prepotência externa, estas últimas, em
seu entender, vindas de caudilhos hispano-americanos como do
Foreign Office. Colaborou não só para a maturidade política da
nação, mas ainda para a formação de Estados estáveis no Cone Sul.

Gusmão, Ponte Ribeiro, Varnhagen: a geografia e a


história
Alexandre de Gusmão, Duarte da Ponte Ribeiro e Francisco
Adolfo de Varnhagen, cuja atividade e pensamento são expostos,
respectivamente, por Synesio Sampaio Goes Filho, Luis Villafãne
e Arno Wehling, ocuparam-se com a formação territorial e sua
história. Foram, antes de tudo, estudiosos. Gusmão formalizou
a doutrina do uti possidetis, a ocupação humana como princípio
do direito ao território, que passou ao Tratado de Madri de 1750;
Ponte Ribeiro convenceu a diplomacia imperial e republicana de

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que se tratava da melhor doutrina para fundamentar a política


brasileira de limites, como também, em seu entender, a dos
vizinhos. Já Varnhagen assessorou dirigentes em suas negociações
de fronteira, porém ocupou-se de leve com inúmeros outros temas
da ação diplomática: seu métier, mesmo seguindo a carreira, era o
de historiador. Os três contribuíram, por certo, para configurar a
nação, entendida como território, população e unidade soberana.
Não poucos diplomatas da época da Monarquia arrastaram
para a República, além do título nobiliárquico em alguns casos,
pensamento e padrões de conduta. Evidenciam a continuidade
institucional e funcional da diplomacia. Entre eles, o Visconde de
Cabo Frio, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco.

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