Você está na página 1de 98

oX?

>>

:f^.

P. ' 3

^-'.Q £>
Z) .
0
ó o
?/W; O c-

.'o ?V ■
edição
comemorativa

00 anos

UMA EDIÇÃO ITATIAIA É SEMPRE UM BOM LIVRO

■■
ISBN 85-319-0123-5
ASTRONOMIA
DO MACUNAÍMA
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão

Dentre as obras mais significativas do pri­


meiro Modernismo brasileiro, ocupa o
Macunaíma um lugar de destaque. Debruçan­
do-se e recriando mitos e lendas dos índios
caxinauás, taulipangues e arecunás, principal­
mente, pretendeu Mário de Andrade
revalorizar o folclore índio, reavaliar a mito­
logia pré-cabralina, desejando destarte chamar
a atenção para as coisas do Brasil.
Neste Astronomia do Macunaíma,
Ronaldo Mourão volta-se para o folclore
ameríndio para abordar aquilo que o atinge
mais de perto: mitos e lendas relativos aos as­
tros e fenômenos celestes. A correlação exis­
tente entre as lendas indígenas e certos aspec­
tos da observação astronómica primitiva serve
de ponto de partida ao livro. E convém assina­
lar, desde logo, que os nossos índios acredita­
vam na existência de vários céus, imaginando
que todos os astros se situassem a distâncias
diferentes, o que explicaria a diversidade do
brilho, pois deveriam achar que as estrelas ti­
vessem igual intensidade luminosa.
Mas ao contrário de outros povos da Amé­
rica pré-colombiana, nossos indígenas não de­
senvolveram sua astronomia além das costu­
meiras relações entre o aparecimento de cer-
ASTRONOMIA
DOMACUNAÍMA
OBRAS DE
RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO

VOL.l

EDITORA ITATIAIA LTDA


Belo Horizonte
Rua Sào Geraldo, 67 - Floresta - Cep.: 30150-070 — Tel.: (031) 212-4600
Fax.: (031) 224-5151
Rio de Janeiro
Rua Benjamin Constant, 118 - Glória — Cep.: 20214-150 - Tel.: 252-8327
RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO

ASTRONOMIA
DO MACUNAÍMA

EDITORA ITATIAIA
Belo Horizonte - Rio de Janeiro
2000

Direitos de Propriedade Literária adquiridos pela


EDITORA ITATIAIA LTDA
Belo Horizonte - Rio de Janeiro

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Do mesmo Autor:

Astronomia Popular. Edições da Ciência Popular,


1960 (esgotado).
Atlas Celeste. Editora JCM, 1971 (1.a edição);
Editora Civilização Brasileira S.A.; 1973 (2.a edi­
ção); Editora Vozes, 1981 (3.a edição ampliada),
1982 (4.a edição).
Carta Celeste (planisfério celeste móvel). Editora
JCM, 1971 (1a edição); Gráfica Themis, 1975
(2.a edição); Livraria Francisco Alves Editora,
1981 (3.a edição).
Céu da Bahia (planisfério celeste móvel), Funda­
ção Universidade Feira de Santana, 1975 (1 a
edição).
Da Terra às Galáxias. Edições Melhoramen-
tos/lnstituto Nacional do Livro, 1977 (1.a im­
pressão); Edições Melhoramentos, 1977 (2.a
impressão); Editora Vozes, 1982 (3a edição,
ampliada), 1984 (4.a edição).
Astronomia e Poesia. Difel/Difusão Editorial
S.A., 1977.
Alô, Galáxia (linha ocupada). Imago Editora Ltda.,
1978.
Astronomia e Astronáutica. Livraria Francisco
Alves Editora, 1978 (1.a edição), 1981 (2.a edi­
ção), 1982 (3.a edição).
Buracos Negros: Universos em colapso. Editora
Vozes, 1979 (1 a edição), 1980 (2.a edição), 1981
(3.a edição), 1984 (4a edição).
Universo: As inteligências extraterrestres. Livra­
ria Francisco Alves Editora, 1980 (1.a edição),
1982 (2.a edição).
Anuário de Astronomia 1981. Cap. Editora,
1981.
Anuário de Astronomia 1982. Cap. Editora,
1982.
Em Busca de Outros Mundos. Livraria Francisco
Alves Editora, 1982.
Anuário de Astronomia 1983. Livraria Francisco
Alves Editora, 1982.
Universo Inflacionário. Livraria Francisco Alves
Editora, 1983.
Anuário de Astronomia 1984. Livraria Francisco
Alves Editora, 1984.
SUMÁRIO

Prefácio 9

Astronomia do Macunaíma 17

Vénus 23

As Plêiades 31

Cometas 39

Meteoros 43

Sol 47
Lua 53
Centauro 59

Bibliografia 71
Sobre o autor 73

Sobre o ilustrador 83
Prefácio
Dentre as obras mais significativas do pri­
meiro Modernismo brasileiro, cujos limites
podem situar-se entre 1922 e 1928, ocupa o
Macunaíma um lugar de relevo. Buscando sin­
tetizar mitos e lendas dos indígenas, em geral
caxinauás, taulipangues e arecunás, pretendia
Mário de Andrade revalorizar o folclore índio,
dar realce à mitologia pré-cabralina, querendo
desse modo chamar a atenção para as coisas
do Brasil — num momento em que os jovens
escritores se voltavam marcadamente para o
populário brasileiro, num nacionalismo não
raro xenófobo cuja contrapartida era a intelec­
tualidade dominante, a se babar com a cultura
francesa e europeia em geral.
Macunaíma foi publicado em 1928, ano-
chave na evolução do nosso Modernismo.
Nesse ano saíram o Retrato do Brasil, de
Paulo Prado, e A Bagaceira, de José Américo
de Almeida. Esta, iniciando o moderno ciclo
regionalista do Nordeste; aquele, pondo no
espírito otimista dos modernos o tempero do
pessimismo e do desencanto. Ambos, a seu
modo, relacionam-se com o Macunaíma de tal
sorte que a obra de Mário vale bem como
uma síntese. À Bagaceira está ligado pelos
elementos regionalistas do entrecho, funda­
dos sobretudo na tradição e no folclore, em­
bora em Mário esses elementos tenham
sempre um aspecto funcional e não pitoresco.
Ao Retrato do Brasil, une-o a visão pessimista
que comparece nos desacertos do herói e
principalmente na sua desilusão final —
quando, não achando mais graça nesta Terra,
decide ser "o brilho inútil" de uma constela­
ção a mais no vasto campo do céu. Compa­
re-se, apenas a título de observação, com a
desilusão expressa pelo próprio Mário de An­
drade, no final da vida, relativamente ao Mo­
dernismo (que ajudara a instaurar) e ao que
considerava a pouca ou nenhuma importância
de sua obra — na sua célebre conferência
sobre O Movimento Modernista (1942). Em­
bora pessoal, o desgosto de Mário transpunha
os limites da sua individualidade para se es­
tender a toda uma concepção de arte, que
preferia fosse pragmática. Sabemos hoje ava­
liar melhor a severidade de seu autojulgamen-
to, visto que Macunaíma aí está, várias vezes
reeditado, relido e estudado — tido quase
sem contraste como sua obra maior e mais
representativa.

Hesitou longamente Mário na classificação


do gênero de Macunaíma, decidindo-se enfim
chamá-lo de "rapsódia" — atentando essen­
cialmente para os aspectos poéticos e musi­
cais observáveis na obra: a narração dos fei­
tos de Macunaíma remete às antigas "can­
ções de gesta", que são em geral fragmentos
de poemas épicos cuja origem ou continui­
dade permanece obscura. E há todo um as­
pecto sinfónico (ou quando nada, operístico,
isto é, de música dramática) no desenrolar da
trama. Assim, Mário de Andrade, ao batizar de
rapsódia a sua obra, tencionou ressaltar o que
nela havia de composição poético-musical.

Vários aspectos outros dessa rapsódia já


têm sido estudados com maior ou menor

I
agudeza. Cabe destacar o extraordinário Ro­
teiro de Macunaíma, de M. Cavalcanti Pro-
ença (Edições Anhembi, 1955), obra básica
para a compreensão do livro de Mário. E entre
os aspectos especiais a importância dada à
astronomia dos índios tem aqui um desenvol­
vimento e explanação metodizados e do
maior interesse não só para os estudiosos da
obra de Mário de Andrade, como também
para quem se debruce com curiosidade e pro­
veito sobre o folclore dos ameríndios.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é as­


trónomo bastante conhecido, no Brasil e no
exterior, como especialista em estrelas duplas
visuais. Recentemente, no Chile, foi um dos
descobridores de 14 novos asteróides na faixa'
I
compreendida entre as órbitas de Marte e Jú­
1
piter. Mas não somente: como humanista de
(
boa cepa, profundamente ligado à nossa cul­
1
tura e nossas letras, é autor de pequenos en­
( saios aproximando astronomia e poesia, bem
( como, em trabalhos de extrema valia históri­
I co-científica, chega a identificar os cometas
citados expressamente em Gregório de Ma­
tos e nas Cartas Chilenas.
]

<
1
Neste Astronomia do Macunaíma, Ronaldo
Mourão volta-se para o folclore ameríndio na­
quilo que o atinge de mais perto: os mitos e
lendas relativos aos astros e a fenômenos ce­
lestes. Chamou-lhe a atenção o fato de os ín­
dios considerarem que todo herói, ao morrer,
"vira estrela no céu", o que sucede com vá­
rias personagens do Macunaíma, inclusive a
que dá título à obra. A correlação existente
entre as lendas indígenas e alguns aspectos
da observação astronómica primitiva serve de
ponto de partida ao livro.

Assim, por exemplo, ao se referir ao mito


que envolve o planeta Vénus (indistintamente
chamado Papa-ceia e Taína-cã pelos nossos
índios), Mourão mostra os motivos de ordem
astronómica que levaram os silvícolas a cria­
rem esse mito: o fato de o aparecimento de
Vénus à tardinha (a estrela Vésper) coincidir
com a hora da ceia. E quanto à denominação
"Taína-cã" ("estrela grande"), constitui ela
uma expressão bastante apropriada, pois Vé­
nus é um dos "astros mais luminosos do fir­
mamento". Cabe aqui ressaltar que nossos
índios acreditavam na existência de vários
céus (no que se aproximavam singularmente
da concepção de Ptolomeu aproveitada por
Dante na Divina Comédia), imaginando que
todos os astros se situassem a distâncias di­
ferentes, o que explicaria a diferença no
brilho, pois deveriam achar que as estrelas ti­
vessem a mesma intensidade luminosa. E
Vénus, como para todos os povos primitivos,
também lhes deveria parecer uma estrela, ou
melhor, duas estrelas, uma vespertina e outra
matutina.

Mas os nossos indígenas não desenvolveram


suas noções astronómicas além da costumeira
correlação do aparecimento de certos astros (ou
constelações) com a mudança das estações.
Quando muito, buscavam explicar certas carac-
terísticas dos astros, como o brilho trémulo das
estrelas, os meteoros, as manchas da Lua, etc.
Para eles, contudo, o céu era, segundo as pala­
vras de Ronaldo Mourão, "um espelho das nos­
sas flora e fauna". Profundamente arraigados à
natureza, vivendo nela e com ela, parte inte­
grante da paisagem que os rodeava, os índios
simbolizavam no céu seu obscuro anseio de su­
blimação. Faltando-lhes a expressão escrita e
um sistema numérico que levasse à invenção
de um calendário, não atingiram o conheci-
mento especializado de outras civilizações mais
avançadas, como a dos maias e dos babilónios.
E isso, que poderia ser contado negativamente,
revela-se, afinal, um dado positivo. Não tendo
conhecimento maior do Universo e da mecânica
celeste, não sabendo calcular matematicamente
os eclipses e as órbitas dos planetas, criaram
uma cosmologia bem desenvolvida, a que não
faltam explicações pitorescas sobre a origem
das fases da Lua, os cometas, os meteoros, a
Via-láctea, etc.

Mas a maior qualidade dos nossos índios foi


não haverem incidido na astrolatria comum aos
babilónios, egípcios, sumerianos e maias. Em­
bora mais atrasados do ponto de vista cultural,
não chegaram a esse retrocesso — pois os as­
tros no céu eram para eles a representação dos
mortos, a sua alma. E nada mais.

O livro de Ronaldo Rogério de Freitas Mourão


lê-se com agrado crescente. Em suas poucas
páginas perpassa o interesse pelos estudos de
antropologia e etnografia, folclore e ciência — e
tudo isso servido por uma linguagem simples,
acessível, isenta de vocabulário técnico e mala­
barismos verbais. Um livro, enfim, que valoriza a
obra de Mário de Andrade e, principalmente, a
cultura indígena.

Fernando Py
Astronomia do
Macunaíma

Ml
&
K

sniw-

&ásEli\
1

JgBI ws
Em Macunaíma, encontram-se reunidos al­
guns dos principais conhecimentos astronómi­
cos dos índios brasileiros. No seu estudo e pes­
quisa, Mário de Andrade deve ter utilizado como
principais fontes as lendas astronómicas reuni­
das pelo alemão Theodor Koch-Grunberg, no
livro Mitos e Lendas dos índios Taulipangue e
Arecuná; pelo nosso historiador Capistrano de
Abreu, na obra Rã-txa-hu-ni-ku-7, mais conhe­
cida pelo seu subtítulo "A Língua dos Caxi-
nauás"; pelo cientista Barbosa Rodrigues, autor
da notável Poranduba Amazonense; assim
como pelos estudos do General Couto de Ma­
galhães, em O Selvagem, e de Oliveira Cou-
tinho, em Lendas Amazônicas.

Baseado no que havia de mais fundamental


sobre astronomia nessas obras, conseguiu Má-

19
rio de Andrade realizar uma síntese representa­
tiva do sincretismo astronómico dos índios brasi­
leiros. Seu valor não é unicamente literário, mas
também o de objetivar uma tomada de cons­
ciência das nossas tribos indígenas que, além
de conviverem intimamente com a natureza,
mantiveram sempre notável adoração e respeito
ao meio que as envolvia.

Aliás, é tão marcante a influência indígena na


mente do autor de Macunaíma que ele próprio
passou a aceitar algumas tradições indígenas,
entre elas a de que todos os heróis se trans­
formam em estrelas depois de mortos. Tanto
que, na primitiva dedicatória de Macunaíma,
vamos encontrar, ao lado do nome de José de

20
Alencar, a justificativa de que "hoje é estrelinha
no céu". Tal tradição indígena, de supor que
seus heróis serão estrelas no céu, está relatada
também nas obras de Capistrano de Abreu. Em
carta a Manuel Bandeira, escreveu certa vez
Mário de Andrade que o poeta "acabaria sendo
astro, que é o destino fatal dos seres". Destino
semelhante iria ter o personagem principal, Ma-
cunaíma, que acaba por se transformar na cons­
telação da Ursa Maior.

i
i.
Nessas ideias observa-se um desejo de ca- i

racterizar que o homem branco, o atual brasi­


leiro que ocupou a terra dos índios, não deveria
deixar de admirá-los, pois, embora não tivessem 1
;■

uma cultura tão avançada como os da América


Central, possuíam em compensação uma admi­
rável vivência e compreensão da natureza, que ■

21

I
poderiam ser adotadas, por homens cultos,
como o fez Mário de Andrade. Sua mensagem
não é só nacionalista, mas humana e cósmica,
pois os nossos índios viam no céu um espelho
das nossas flora e fauna.

22
Vénus
Em Macunaíma o planeta Vénus é desig­
nado tanto como Papa-ceia, como Taína-cã. O
brasileirismo papa-ceia provém da aparição ves­
pertina do planeta coincidir, em geral, com a
hora da ceia. Por outro lado, pelo vocabulário
dos índios carajás, sabemos que taína significa
estrela e cã, grande. Assim, Taína-cã equivale à
nossa expressão estrela grande, o que constitui
uma designação muito apropriada para o planeta
Vénus, que surge após o pôr-do-sol como um
dos astros mais luminosos do firmamento.

fl»

25
Segundo a lenda, existiam na tribo carajá duas
irmãs: Imaerô, mais idosa, e Denaquê, mais jo­
vem. A irmã mais velha se enamorou de Taí-
na-cã, mas, quando este veio para pedi-la em

casamento, Imaerô se recusou a esposá-lo, pois


não desejava um velho trémulo. Com pena do
visitante, a irmã mais jovem resolve casar com
Taína-cã, que aproveita a vinda do céu para en­
sinar os segredos da agricultura aos carajás,
pois, quando isto ocorreu, os carajás quase nada
conheciam de agricultura. Foi Taína-cã que,
além de trazer as sementes, ensinou como pre­
parar o campo para a semeadura. Todos os dias,
muito cedo, ia aos rios e ao roçado para traba­
lhar.

26
Em uma das vezes em que Taína-cã vai ao
roçado, sua esposa o segue, apesar das suas
advertências para não acompanhá-lo. Ao vê-lo
trabalhar, descobre Denaquê que o esposo é
um rapaz belíssimo. Inconformada, Imaerô re­
clama que Taína-cã lhe pertence, pois viera do
céu à sua procura. Mas, ao se ver desprezada,
Imaerô se desespera, dá um grito e cai, trans­
formada em araponga, segundo Mário de An­ I
drade, embora na lenda original se tenha trans­
formado, realmente, em um urutau. Além des­ í
i
tas, existem outras inúmeras adaptações, tais
como a introdução do pai do sono, Emoron-Pó-
dole, oriundo da mitologia taulipangue, relata''
por Koch-Grunberg, que não tem nenhuma
ção com a lenda carajá.

A estrela matutina que nada mais é que


planeta Vénus, que desponta antes do nascer
do Sol, é em Macunaíma denominada Caiuano-
gue. Tal designação provém da lenda narrada
por Akúli, índio arekuná, ao escritor alemão
Koch-Grúnberg. Conta esta lenda que um índio
arecuná, ao sentir muito frio, pediu a Caiuano-
gue, -a estrela da alvorada, que lhe desse fogo
õúTo levasse para o céu. A estrela respondeu:
"Não te quero ajudar! O Sol que te ajude, pois é

27
Segundo a lenda, existiam na tribo carajá duas
irmãs: Imaerô, mais idosa, e Denaquê, mais jo­
vem. A irmã mais velha se enamorou de Taí­
na-cã, mas, quando este veio para pedi-la em

casamento, Imaerô se recusou a esposá-lo, pois


não desejava um velho trémulo. Com pena do
visitante, a irmã mais jovem resolve casar com
Taína-cã, que aproveita a vinda do céu para em
sinar os segredos da agricultura aos carajás,
pois, quando isto ocorreu, os carajás quase nada
conheciam de agricultura. Foi Taína-cã que,
além de trazer as sementes, ensinou como pre­
parar o campo para a semeadura. Todos os dias,
muito cedo, ia aos rios e ao roçado para traba­
lhar.

26
Em uma das vezes em que Taína-cã vai ao
roçado, sua esposa o segue, apesar das suas
advertências para não acompanhá-lo. Ao vê-lo
trabalhar, descobre Denaquê que o esposo é
um rapaz belíssimo. Inconformada, Imaerô re­
clama que Taína-cã lhe pertence, pois viera do
céu à sua procura. Mas, ao se ver desprezada,
Imaerô se desespera, dá um grito e cai, trans­
formada em araponga, segundo Mário de An­
drade, embora na lenda original se tenha trans­
formado, realmente, em um urutau. Além des­
tas, existem outras inúmeras adaptações, tais
como a introdução do pai do sono, Emoron-Pó-
dole, oriundo da mitologia taulipangue, relatada
por Koch-Grunberg, que não tem nenhuma rela­
ção com a lenda carajá.

A estrela matutina que nada mais é que o


planeta Vénus, que desponta antes do nascer
do Sol, é em Macunaíma denominada Caiuano-
gue. Tal designação provém da lenda narrada
por Akúli, índio arekuná, ao escritor alemão
Koch-Grúnberg. Conta esta lenda que um índio
arecuná, ao sentir muito frio, pediu a Caiuano-
gue, -a estrela da alvorada, que lhe desse fogo
ou o levasse para o céu. A estrela respondeu:
"Não te quero ajudar! O Sol que te ajude, pois é

27
ele quem ganha os bolos de mandioca.'' Assim
falando, Caiuanogue desapareceu deixando ao
Sol o domínio do céu. Com efeito, é velho há­
bito dos índios colocarem os bolos de man­
dioca, depois de assados, sobre o teto de casa,
com o fim de secarem ao Sol.

Nestas duas lendas relativas ao planeta Vé­


nus, além do brilho muito intenso, existe
sempre o aspecto trémulo de Taína-cã e Caiua-
nogue. Este piscar que, segundo os índios, seria
um tremer da estrela, deve estar relacionado ao
fenômeno da intensa cintilação da luz de Vénus,
quando o planeta se encontra próximo ao hori­
zonte, fenômeno que deve ter impressionado
os índios e os poetas. Tal imagem acabou
sendo absorvida pelos nossos poetas, dentre
eles Manuel Bandeira, que, no poema "Madru-

28
1.

í
\ -

!
i

Í>'J

i: r.
»
f i

&

29
gada”, admite ter visto estrelas a tremerem no
ar frio.

3_L-Jf

Convém lembrar ainda, com relação a Vénus,


que a associação das aparições matutinas e
vespertinas a um único astro é uma idéia pro­
veniente dos exploradores, pois para os nossos
índios a estrela Vésper e a estrela Matutina
constituíam dois astros diferentes. Idéia esta
comum a todos os povos primitivos.

30
As Plêiades
Pela análise das lendas da astronomia dos
índios brasileiros colhidas por Koch-Grúnberg,
Barbosa Rodrigues e inúmeros outros estudio­
sos, é fácil compreender a importância das
Plêiades.

Duas são as razões desta importância: a pri­


meira, o fato de as Plêiades constituírem um
dos objetos celestes de mais fácil identificação;

33
a segunda relaciona-se com o fato de sua apari­
ção no céu coincidir com os primeiros sinais da
descida das águas, com a época de muda dos
pássaros e com o renascimento periódico da
vegetação.

Na realidade, o aparecimento matutino das


Plêiades em junho, antes do nascer do Sol, no
lado do nascente, indicava aos índios que em
breve chegaria a primavera. Aliás, segundo uma
lenda tapuia, esse surgimento significava que,
nesta época, tudo começava a se renovar. As
Plêiades são a principal prova do conhecimento
astronómico dos índios, pois era graças a elas
que se marcava não somente o começo do ano
como também o início das estações.

Assim, apesar de constituírem o mais impor­


tante agrupamento estelar que caracteriza o co­
nhecimento dos índios brasileiros, as Plêiades
não receberam em Macunaíma o relevo que
mereciam, principalmente se considerarmos ser
este sinal celeste de primavera a indicação de
que tanto a flora como a fauna se revestem de
uma nova roupagem. Existem, entretanto, em
Macunaíma, duas passagens relativas às Plêia­
des.

34
í

35
A primeira está associada a uma lenda caxi-
nauá, colhida por Capistrano de Abreu, que re­
lata a história de um irmão solteiro, Boró, que
trai o irmão casado, Macari, ao brincar com a
linda esposa deste, Iriqui. Em Mário de An­
drade, Iriqui, desprezada por Macunaíma, pede
a seis araras-canindés que a conduzam ao céu.

1B8II

Lá chegando, Iriqui e as araras se transformam


no aglomerado estelar das Plêiades, ou Setes-
trelo. A outra referência às Plêiades está rela­
cionada com a lenda de um índio da tribo dos
taulipangue, que após ter a perna amputada
pede ao irmão que entre em casa. Impedido de
entrar pela esposa do irmão, chora e toca flauta
toda a noite, e depois despede-se e vai para o
céu, onde se transforma nas Plêiades.

36
Esta lenda foi colhida por Koch-Grúnberg,
através do índio Maiuluaipu, da tribo dos tauli-
pangue. Para esses índios, as Plêiades formam,
com o grupo de Aldebarã e uma parte de Órion,
a figura do perneta Jilicavaí, ou Jiliguaipu, que
tendo tido uma das pernas decepadas pela es­
posa adúltera, subiu ao céu. Antes de sua as­
censão, mantém uma conferência com o irmão
e o filho, quando anuncia a subida ao céu e que
o seu desaparecimento anual seria o sinal do
princípio da época das chuvas. Sua cabeça
constitui o aglomerado das Plêiades, o corpo é o
grupo das Híades e a estrela Aldebarã, e a perna
é uma parte de Órion.

''Ceiuci", título de um dos capítulos de Ma-


cunaíma, significa as Plêiades, ou uma fada in­
dígena que vivia perseguida por uma fome
eterna, como relata o General Couto de Ma­
galhães, que coligiu a lenda durante os quatro
meses que passou no Tocantins em 1865. Se­
gundo o relato, a jovem virgem Ceiuci era a
mãe de Jurupari, que fora concebido pelo sumo
do curura-do-mato que escorreu pelo ventre da
rapariga distraída. Tal sumo constituiu um mero i

agente do Sol, Coaraci, que encontrou em i

Ceiuci a mãe-modelo que deveria dar à luz o

37
índio encarregado de modificar e corrigir os de­
feitos e males que assolavam o mundo, e, em
particular, acabar com o domínio das índias
sobre os índios. Depois de eliminar a influência
das mulheres, Jurupari estabeleceu uma série
de cultos e festas sagradas, proibidas ao sexo
feminino. Caso ouvissem os cantos ou ruídos
dessas festas, as mulheres morriam imediata­
mente. Embora conhecesse este perigo, Ceiuci
desobedeceu ao filho e procurou assistir a um
dos rituais. Faleceu por causa disso. Não po­
dendo restituir-lhe a vida, Jurupari conduziu a
mãe para o céu, onde ela se transformou nas
Plêiades, conjunto de estrelas que os índios
chamam de Ceiuci.

38
Cometas

Wa?.?
^í.

<;-3

Em sua obra, Mário de Andrade não absor­
veu Ceiuci como a jovem que se transformou
nas Plêiades. Aceitou, no entanto, a história da
mulher gigante de fome pantagruélica. Da lenda
surgiu uma rapsódia de rara beleza literária, que
conservou, entretanto, o seu objetivo de expli­
car como surgiram os cometas. Com efeito,
com relação à origem dos cometas, Mário de
Andrade colheu em O Selvagem, de Couto Ma­
galhães, a lenda da velha Ceiuci, que teria rou­
bado a tarrafa de um pescador. Ao levar o peixe
para casa, a filha de Ceiuci depara com o jovem
pescador. Depois de acender o fogo, a velha
não mais encontra o pescado. A filha recusa-se
a entregar o peixe e, expulsa de casa, se trans­
forma em cometa. Na rapsódia andradiana, o
pescador desta lenda astronómica foi substi­
tuído pelo herói, Macunaíma, que, depois de

41
possuir a filha de Ceiuci, assiste à sua transfor­
mação em cometa, que corre o céu "batendo
perna de déu em déu".

42
Meteoros

J1

:*&«*

t
Em Macunaíma, o meteoro, esse fenô­
meno celeste mais conhecido como estrela ca­
dente, é Suzi, esposa de Jiguê, o qual, depois
de encontrá-la em amores com Macunaíma,
expulsa-a de casa: "Vai embora, perdição." Suzi
sorri, cata piolhos e vai para o céu, onde passa a
ser uma "estrela que pula". A história tem fun­
damento na crença popular segundo a qual as
estrelas que correm no céu são espíritos erran­
tes, zelações, que estão pagando os seus peca­
dos antes de entrar no Paraíso, como nos relata
Pereira da Costa em Folclore Pernambucano.

Q(g!íS ■ ?&?&

45
Sol

o
*
A designação de Vei aplicada ao Sol provém
duma lenda narrada pelo índio arekuná Akúli ao
etnólogo alemão Koch-Grúnberg. Segundo o re­
lato, o Sol, Vei, e a Lua, Capei, eram dois gran­
des companheiros que andavam sempre juntos.
Capei era um índio jovem e forte que tinha um
rosto muito bonito e limpo. Um dia se apaixo­
nou por uma das filhas de Vei e brincou com ela
durante a noite. Como Vei não desejasse tal ca­
samento, pediu à filha que passasse sangue do
menstruo no rosto de Capei. Desde então, os
dois passaram a se odiar, razão pela qual an­
dam, no céu, longe um do outro. É motivo,
também, pelo qual a Lua, Capei, tem manchas
no rosto.

Nesta lenda taulipangue, tanto a Lua como o


Sol pertenciam ao sexo masculino. Em Macu-

49
naíma, porém, o Sol e a Lua são femininos, tal­
vez por influência tupi, que designava o Sol pelo
nome de Coaraci e a Lua por Jaci. Nestes dois
vocábulos, o final ci significa mãe.

Em Mário de Andrade, o sangue que deu ori­


gem às manchas escuras da cara da Lua são os
munhecaços, ou seja, os socos que Macunaíma
aplicou no rosto de Capei, que lhe recusou auxí­
lio, em virtude do seu cheiro desagradável. Exis­
te, entre os índios norte-americanos, uma
íenda segundo a qual as manchas escuras da
superfície lunar são explicadas de maneira aná­
loga.

50
O casamento de Vei, o Sol, com Macunaíma,
deve ser associado a uma lenda narrada pelo
índio Maiuluaipu, da tribo taulipangue, segundo
a qual um rapaz chamado Akalapijeima desejava
pegar um sapo, Waloma.. que perseguido jurou I

que se fosse alcançado lançaria o jovem ao [


mar. Como o homem o atingiu, Waloma carre­ I
I
gou-o para uma ilha, onde o deixou abando­ !
nado, dormindo sob uma árvore, de cima da
qual os urubus defecaram nele. Ao relatar esta >
história, Mário de Andrade substitui Akalapi­
jeima pelo seu herói Macunaíma, que acaba car­
regado pela Lua, e não pelo sapo, para a ilha de
Marajó, único lugar do Brasil onde existem tra­
ços de uma civilização indígena superior às de­
mais. Enquanto o herói da lenda prefere ficar
com todas as jovens, o herói andradiano es­
colhe uma portuguesinha, alusão aos nossos co-
lonizadores.

i
li

I
51
Lua
I

u'rfún‘

h
l

r
I

•'
Aproveitando uma história contada pelo ín­ II
dio Maiuluaipu, que relata como a Lua chegou
ao céu, Mário de Andrade faz uma adaptação ll
imaginando a figura de uma boiúna Capei, ou
seja, de uma cobra-preta Capei, que vivia em
companhia das saúvas, formigas que consti­
tuem uma das piores pragas que prejudicam a
nossa agricultura. De acordo com os índios tau- <1
lipangues, Capei e as filhas sobem ao céu por
um cipó, que um pássaro teria amarrado no céu.
Em Macunaíma, Capei sobe ao céu comendo o 1
fio da teia de uma aranha tatamanha. As filhas
de Capei, segundo a crença dos taulipangues,
vão para dois céus, um mais próximo e outro
mais distante. Parece que os taulipangues acre­
ditavam na existência de dez céus, imaginando li
que os astros estivessem a distâncias diferentes.
Tal idéia deve estar associada à noção de que,
quanto mais afastada uma estrela, menos lumi-

55

i
nosa, pois deviam imaginar que todos os astros
possuíam o mesmo brilho. Ao contrário do que
imaginavam os gregos, que colocavam as estre­
las incrustadas numa única esfera de cristal, o
que os conduziu a classificarem as estrelas com
base na intensidade do brilho. Ambas as idéias,
embora verdadeiras, representam só uma parte
da realidade.

Para explicar as fases da Lua, Mário de An­


drade diz que ela acabou gorducha de tanto fio
que comeu, e muito pálida em virtude do es­
forço para atingir o céu. Na realidade, pela lenda
taulipangue, as fases da Lua estão associadas a
um mito gastronómico. Deste modo, Capei é
um homem que possui duas mulheres — uma
a leste e outra a oeste — que estão associadas
aos planetas Vénus e Júpiter. Capei vive ora
com uma, ora com outra. A primeira lhe dá
muita comida, de forma que ele se torna cada

56
vez mais gordo. Depois a outra, que lhe dá
pouca comida, e ele, então, emagrece. Por I
ciúme, ambas brigam. A fim de evitar essas bri­
gas é que os índios dessa tribo não têm duas, e
sim três ou quatro mulheres.

Em sua rapsódia, Mário de Andrade cria Ci,


mãe do mato, que Macunaíma possui, adqui­
rindo o título de Imperador do Mato Virgem. O
filho de Ci e Macunaíma, por infelicidade, morre
envenenado ao chupar o seio materno, que ha­
via sido, também, sugado por uma cobra-preta.
Depois do enterro do filho, Ci presenteia Macu­
naíma com um muiraquitã, pedra verde da
Amazônia, à qual se atribui a propriedade de dar
sorte. Logo depois, Ci sobe ao céu por um
cipó, e lá se transforma na Beta do Centauro.
No lugar do túmulo do filho nasce uma planta, o
guaraná, que além de ter poderes medicinais,
refresca do calor de Vei, o Sol, nos dias quen­
tes. Na realidade, a estrela Beta do Centauro,
segundo a mitologia taulipangue, é Cunauá, es­
pécie de planta trepadeira ou cipó que brilha
como uma estrela.

57
Centauro

ô I
I

í
|W
d
I

Em outra parte de Macunaíma, ficamos sa­


bendo que o Cruzeiro do Sul se originou de
Pauí-Pódole, pai do Mutum, que em sua via­
gem ao céu foi conduzido por dois vaga-lumes,
que lhe iluminam o caminho. Estes dois vaga-
lumes são, segundo Mário de Andrade, Ca-
maiuá e o seu sobrinho, Cunavá, que se trans­
formam, respectivamente, em Alfa e Beta do
Centauro. Na mitologia taulipangue, Camaiuá, i
Alfa do Centauro, é uma vespa, e Cunavá, Beta
■ i
do Centauro, é uma planta trepadeira e não va-
ga-lume, como diz Mário de Andrade.

Como o herói de Mário de Andrade não


achou nenhuma graça neste mundo, resolveu,
no fim da vida, ir para o céu, onde seria o brilho
inútil de mais uma constelação. Uma vez no
céu, Macunaíma procura a maloca de Capei, a
í
61
[
Lua, que o confunde com o Saci, como aliás o
faria também o escritor alemão Lehmann
Nietsche, em sua Mitologia sudamericana. Pro­
cura Caiuanogue, a Estrela da Manhã, que o
manda tomar banho. Ao encontrar o Cruzeiro do
Sul, Pauí-Pódole, é recebido com alegria, pois o
pai do Mutum não havia esquecido o discurso
que Macunaíma fizera em seu favor e, em
agradecimento, resolve transformá-lo na Ursa
Maior. Assim, Macunaíma, o capenga sem ne­
nhum caráter, acabou no céu, fim de todos os
heróis.

62
Através de sua extraordinária rapsódia, Mário
I
de Andrade faz que o nosso povo participe do
cosmo, levando-o para o céu, onde se torna es­
trela, não por meio de idéias provenientes da
civilização colonizadora, mas através dos contos
e lendas astronómicas da mitologia autóctone. I

â3B

Macunaíma é, como diz Ronald de Carvalho,


"uma força pura da cosmogonia pré-co­
lombiana". Tal afirmativa é muito justa, pois
em nenhuma obra literária brasileira existe uma
tão intensa influência de astronomia pré-cabrali-
na, para sermos mais exatos, do que na rapsó­
dia de Mário de Andrade. I

A astronomia sul-americana é bem inferior


em fertilidade cien+:fica à da América Central.

63
Os motivos são, em resumo: a falta de uma lin­
guagem escrita e de um sistema de numeração
que permitisse o desenvolvimento de um ca­
lendário, com o qual fosse possível marcar e de­
limitar datas e ocorrências dos fenômenos as­
tronómicos. A ausência do instrumental mate­
mático impossibilitou que se criassem as mais
elementares correlações astronométricas. Por
outro lado, a falta de uma escrita contribuiu para
que as lendas e os mitos, ao se desenvolverem,
permitissem a criação de uma cosmologia, em
nada inferior à de qualquer outra civilização pri­
mitiva. Com efeito, no mito babilónico existia a
Água, mãe de todas as coisas e suporte do Céu
e da Terra. Esta última era uma montanha que
flutuava num Oceano, no interior do qual habita­
vam os mortos. A abóbada celeste era de cons­
tituição sólida e fixa, através da qual os astros
— animais, deuses e heróis — percorriam os
seus caminhos usuais. Assim, o Sol, todas as
manhãs, aparecia na porta do Oriente, subia até
o meio-dia e descia para retornar à sua casa
pela porta do Ocidente.

Os egípcios imaginavam o universo como


uma longa caixa retangular, tão extensa como o
seu próprio país. No fundo, encontra-se a Terra,

64
e no centro, limitado pelas montanhas, fluía um
grande rio, do qual se originou o Nilo. A Via- h
láctea constituía o Nilo Celeste, através do qual
se deslocam os astros-deuses, em seus bar­
cos.

Sr

A cosmologia brasiliana, tão bem sintetizada


na rapsódia de Mário, possui a mesma caracte-
rística das outras, orientais e ocidentais. Além
de um ente semelhante, Ci, mãe de todas as
coisas, surge a cada ponto uma associação co­
mum. Uma das características dessas represen-

65
tações é a projeção no firmamento das particu­
laridades terrestres. Assim, o céu dos nossos ín­
dios é a imagem projetada da flora e da fauna
brasileiras. É o domínio de um antropocentrismo,
de um animismo, enfim, de um naturocen-
trismo comum na estrutura do processo mental
de todos os povos primitivos. Deste modo,
quando não são heróis ou deuses, são animais
e árvores que povoam os céus. Por suas rela­
ções entre si justifica-se o aparecimento dos as­
tros e fenômenos de duração etemera. Os co­
metas são almas não aceitas; os meteoros,
mulheres que pagam seus pecados; as manchas
da Lua, sinais primitivos de uma relação inces­
tuosa de irmãos; os eclipses, lutas ou disputas
entre dois irmãos ou casais que não se com­
preendem; a Via-láctea, como em todas as
cosmologias, sempre um caminho, seja das al­
mas ou das antas, como dizem os nossos ín­
dios.

66
i

Todos esses mitos, sejam eles europeus,


asiáticos ou americanos, constituíam o princípio
simbólico dos pensamentos astronómicos de
cada povo. Com eles surgiu a necessidade de
conceituação de tempo, que entre os índios bra­
sileiros se limita à estação da chuva e da seca, !|
pois faltou-lhes um sistema numérico que permi­
tisse a elaboração de um calendário. Foi a ne­
cessidade de medir o tempo (calendário), de
I
planejar para a agricultura através da determina­ :i
ção do retomo das épocas de chuvas e secas,
ou melhor, das estações, que conduziu os pri­
meiros astrónomos a prever, pelo cálculo, o
movimento dos astros. Nessa atividade foi ne­
cessária uma paciência milenar, destinada a
acumular as observações, deduzir as regularida­
des, agrupar as estrelas em constelações, ano­
tar as particularidades dos astros errantes (pla­
netas) ao longo do zodíaco e ensaiar com os í
meios disponíveis os métodos que permitissem
prever os eclipses. Tudo isso foi.possível aos
povos mais avançados, tais como os egípcios,
babilónios, hebreus, maias, etc., que, apesar
de possuírem um sistema numérico, não con­
seguiram atingir os processos que os conduzi­
riam a uma representação racional da natureza
do universo. Elaboraram soluções místicas tão

67 í
i
evoluídas como as dos nossos índios que, em­
bora mais atrasados, não chegaram ao retro­
cesso cultural da astrolatria. Só no século VI
a.C. surgiram, entre os gregos, as primeiras
grandes concepções, num verdadeiro milagre,
que marca o início do espirito científico, quando
as idéias místicas começaram a ser abandona-

Entretanto, se é exato que todas aquelas


idéias são falsas, é bom conhecê-las como se
escutássemos um velho de grande experiência,
pois nelas encontramos os pensamentos mais
rudimentares da história das cosmologias primi­
tivas, tão cheias de poesia como as atuais.

68
II

Por que teria Mário de Andrade procurado em


sua criação valorizar justamente esse pensa­
mento astronómico tão primitivo? Talvez na
procura de uma autenticidade, pois até então a
literatura brasileira estava voltada para uma ado­
ração quase irracional de tudo aquilo que não
fosse genuinamente brasileiro. Sem dúvida, II
essa nos parece ter sido a principal razão pela
qual o herói Macunaíma acabou associado a
uma constelação do hemisfério norte, a Ursa
Maior, quando a constelação símbolo da nossa
pátria, o Cruzeiro do Sul, tão estimada dos por­
tugueses, ficou em segundo plano.

i
I
69 Ç
l
I

Bibliografia I

ABREU, J. Capistrano de, Rã-txa-hu-ni-ku-1 (A


língua dos Caxinauás), Rio de Janeiro, 1914.
ANDRADE, Mário de, Macunaíma, o Herói sem
Nenhum Caráter (edição crítica de Telê Porto
Ancona Lopez), Rio de Janeiro, 1978.
ANTONIADI, E. M., L'Astronomie Égyptienne,
Paris, 1934.
CARVALHO, Ronald de, Estudos Brasileiros, Rio 1
de Janeiro, 1931.
CASCUDO, Luiz da Câmara, Dicionário do Fol­
li
clore Brasileiro, Brasília, 1972.
COUTINHO, J. Oliveira, Lendas Amazônicas,
Pará, 1910.
DONATO, Hernâni, Dicionário das Mitologias
Americanas, São Paulo, 1973.

71 í
II I
DUHEM, Pierre, Le Système du Monde, His-
toire des doctrines cosmologiques de Platon a
Copernic, Paris, 1913a 1959.
FAYE, H., Sur L'origine du Monde, Paris, 1907.
GARCIA, Rodolfo, Dicionário de Brasileirismos,
Livraria Leite, s.d.
GRUNBERG, Theodor Koch-, Von Roraima zum
Orinoco II. Mythen und Legenden der Taulipang
und Arekuná, Berlim, 1916.
MAGALHÃES, Couto de, O Selvagem, São
Paulo, 1940.
MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas, Astro­
nomia e Poesia, São Paulo, 1977.
------------ Atlas Celeste, Rio de Janeiro, 1971.
PROENÇA, M. Cavalcanti, Roteiro de Macu-
naíma, São Paulo, 1955.
RODRIGUES, João Barbosa, Poranduba Ama­
zonense, Tipografia Leuzinger, 1890.
------------ .0 Muiraquitã e os ídolos Simbólicos,
Imprensa Nacional, 1899.
VON DEN STEINEN, Karl, Entre os Aborígines
do Brasil Central, Revista do Arquivo de São
Paulo, N.° 34 s 58, São Paulo, 1940.

72
Sobre o autor

. _ i

i!
;•

È
I

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão nasceu a


25 de maio de 1935, no Rio de Janeiro. Publicou
seus primeiros artigos de divulgação científica
na revista Ciência Popular (1952). Entrou em
1956 para a Universidade do Estado da Guana­
bara (atual UERJ), onde obteve, em 1960, os tí­
tulos de Bacharel e Licenciado em Física pela
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.

Foi nomeado em setembro de 1956 Auxiliar


de Astrónomo do Observatório Nacional,
quando ainda cursava a universidade. Nesse
mesmo ano, o Observatório editou as suas
observações do planeta Marte efetuadas antes
da sua admissão. Algumas dessas observações
foram reproduzidas em revistas estrangeiras, !
dentre elas: L'Astronomie, da Société Astrono-
mique de France. Em 1960 publicou seu pri­
meiro trabalho sobre estrelas duplas visuais,

75
tendo sido, no ano seguinte, convidado pela
União Astronómica Internacional e pela Acade­
mia de Ciências dos EUA para participar do
Simpósio sobre Estrelas Duplas Visuais que se
realizou em Berkeley, Califórnia, EUA. Ainda em
1960, publicou o seu primeiro livro: Astronomia
Popular, edição especial da revista Ciência Popu­
lar.

Em 1962 fez estágio de vinte dias no Obser-


vatoire Royal de Belgique sob a orientação do
Dr. S. Arend. Em setembro de 1963, como bol­
sista do Ministère des Affaires Étrangeres da
Bélgica, estagiou durante um ano no Départe-
ment de Mécanique Céleste et Astrometrie do
Observatoire Royal de Belgique, onde publicou
mais de uma dezena de trabalhos de pesquisa.

Em 1965 iniciou um estágio na França, como


bolsista do Ministère des Affaires Étrangeres,
quando então trabalhou em diferentes observa­
tórios franceses, principalmente nos de Paris,
Lyon, Toulouse, Pic-du-Midi e Haute-Provence.

Em julho de 1967 obteve o título de doutor


pela Universidade de Paris com menção "très
Honorable". Em dezembro desse ano voltou
para o Brasil, reassumindo suas funções de as-

76
i
l

trônomo no Observatório Nacional e de pesqui­


sador no Conselho Nacional de Pesquisa. Em
março do ano seguinte foi nomeado Astrôno-
mo-Chefe da Divisão de Equatoriais.
I
Tem colaborado intensamente no jornalismo
escrito, falado e televisado, dedicando-se à di­
vulgação dos fenômenos e pesquisas astronó­
micas. Em 1970 foi convidado a escrever para o
Jornal do Brasil, um dos principais periódicos
brasileiros. Além de artigos normais sobre pes­
quisas astronómicas, iniciou uma série mensal
intitulada "O Céu do Mês", que foi publicada
em diversos jornais do interior do Brasil, dentre
eles: o Correio do Povo, de Porto Alegre, e Tri­
buna da Bahia, de Salvador. No mesmo ano saiu
publicado o seu livro Atlas Celeste, onde apre­
senta, além de inúmeras cartas celestes, uma
detalhada descrição do céu visível nas latitudes
brasileiras; publicou também um planisfério
móvel intitulado Cartas Celestes. Em 1972, pas­
sou a colaborar, também a convite, em O
Globo, no qual manteve uma coluna sobre o as­
pecto mensal do céu brasileiro até 1976,

Elaborou todos os verbetes sobre astronomia i

e astronáutica do Novo Dicionário da Língua


Portuguesa (1975) de Aurélio Buarque de Ho-

77
i
landa. Coordenou os setores de Matemática e
Astronomia da Enciclopédia Mirador Internacio­
nal, publicada em 1975 pela Encyclopaedia Bri-
tannica do Brasil. Nessa obra, além dos inúme­
ros verbetes monográficos sobre astronomia,
redigiu e desenhou uma uranografia com mais
de vinte e seis pranchas.

Em 1975 publicou um planisfério celeste mó­


vel, intitulado Céu da Bahia, pela Universidade
de Feira de Santana.

Em 1977 a Editora Melhoramentos de São


Paulo publicou o seu livro Da Terra às Galáxias
(atualmente em 3.a edição, ampliada, pela Edi­
tora Vozes) e a Editora Difusão Editorial o livro
Astronomia e Poesia, no qual associa aos fe­
nômenos e conceitos astronómicos, poesia e
folclore brasileiro. Este último livro é um resumo da
série "Céu do Brasil”, programas radiofónicos que
produziu para o Projeto Minerva.

Em 1978 publicou Alô Galáxia (linha ocupada)


pela Imago Editora. A partir desse ano passou a
publicar no Jornal do Brasil uma coluna sema­
nal, intitulada "Astronomia e Astronáutica",
onde divulga os mais recentes e importantes
resultados sobre astrofísica, cosmologia, relati-

78
vidade, física e astronáutica, e procura demons­
trar a importância da astronomia, assim como
da astronáutica, na atualidade e no futuro.

Obteve em 1978, pelo conjunto de seus tra­


balhos, o Prémio José Reis de divulgação cientí­
fica, do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.

Nesse mesmo ano a Editora Francisco Alves


publicou Astronomia e Astronáutica, coletânea
de seus artigos publicados no Jornal do Brasil.
No ano seguinte, coordenou para a Rede Globo um
programa de uma hora sobre astronomia.

Seus mais recentes livros publicados intitulam-


se Buracos Negros: Universos em Colapso
(1979), já em terceira edição pela Editora Vozes,
e Universo: Inteligências Extraterrestres (1980) e
Em Busca de Outros Mundos (1982) pela Livraria
Francisco Alves.

As suas principais contribuições astronómicas


foram efetuadas no campo das estrelas duplas,
asteróides, cometas e estudos das técnicas de
astrometria fotográfica. Participou e apresentou
trabalhos em diversas reuniões científicas na­
cionais e internacionais.
i
1 79
I
Possui mais de uma centena de artigos de
pesquisas publicados em diversas revistas in­
ternacionais especializadas em astronomia e
mais de quatrocentos artigos de divulgação pu­
blicados em revistas e jornais.
Descobriu em 1971 uma estrela companheira
invisível da estrela dupla visual Aitken 14. Tal
descoberta foi confirmada pelo astrónomo fran­
cês P. Baize e pelo astrónomo austríaco J.
Hoppmann, que determinou sua órbita provisó­
ria.

Recentemente em missão no Observatório


Europeu Austral, em La Silla, no Chile, desco­
briu, em colaboração com o astrónomo belga
Henri Debehogne, quatorze novos asteróides.

Suas atividades de divulgáção têm estimulado


músicos, poetas e escritores para os assuntos
espaciais. Um dos exemplos mais notáveis de
tal influência é a composição musical de Al­
meida Prado intitulada "Cartas Celestes". Pos­
sui inédito um livro de poesia: Lágrimas Secas, com
prefácio de Antônio Carlos Villaça.

Pertence a inúmeras associações astronómi­


cas internacionais, dentre elas a Royal Astro-
nomical Society (Londres), Société Astronomi-

80

que de France (Paris), Societá Astronómica Ita­


liana, etc. É membro da Comissão de Estrelas
Duplas, Asteróides e Cometas, assim como de
História da Astronomia da União Astronómica
Internacional.

81
Sobre o ilustrador

*
■:

i
i

i
i

Bruno Liberati nasceu em 3 de outubro de


1949 na cidade de São Paulo, onde foi criado, no
bairro da Água Fria. Formou-se técnico em Quí­ I

mica Industrial e trabalhou na indústria química.


Estudou na Escola de Sociologia e Política de
São Paulo, onde colou grau de bacharel. Traba­
lhou como assessor comunitário e técnico em
Comunicação Social na Fundação Ação Comuni­
tária do Brasil-SP.
Em 1976 começou a trabalhar como ilustrador.
Publicou seus desenhos no Jornal da Tarde, de
São Paulo, nas revistas Visão e Escrita e nos jor­
nais alternativos Movimento e Versus. Desde
1977 vem ilustrando os vários cadernos do Jor­
nal do Brasil, onde publica também uma tira de
quadrinhos chamada AVIS BABA. Publicou ainda
trabalhos em jornais do Japão, Grécia (TO
BHMA), Paquistão (Pawn), Itália (La Stampa),
Hungria (Magyar Nemzet), México (Excelsior),
Espanha (EI País), Polónia (ZYCIEWABSZAWY),
índia (Indian Express)|e no jornal da ONU (Deve-
lopment Fórum).
Seus trabalhos estão sendo expostos na Bienal
de Artes Gráficas de Brno, na Tchecoslováquia.

85
H

X
í

í
í
í
*

I
I

A presente edição de ASTRONOMIA DO


MACUNAÍMA de Ronaldo Rogério de Freitas
Mourão. Capa Cláudio Martins. Impressa na Editora
e Gráfica Líthera Maciel Ltda, Rua Simão Antônio
1070, Contagem, para Editora Itatiaia Ltda, a Rua
São Geraldo, 67 - Belo Horizonte. No Catálogo
i
geral leva o número 856/6B.
1

I
I
I

I
!

I
tos astros, ou constelações, e as mudanças sa­
zonais. Quando muito, tentavam explicar, atra­
vés de lendas, algumas características dos as­
tros, como o brilho trémulo das estrelas, o apa­
recimento de meteoros, as manchas na super­
fície da Lua, etc. Para eles, contudo, o céu era
“um espelho das nossas fauna e flora”. Viven­
do em estreita comunhão com a natureza, os
índios simbolizavam no céu o seu obscuro an­
seio de sublimação. E, não tendo conhecimen­
to maior do universo e da mecânica celeste,
criaram uma cosmologia mitológica bem de­
senvolvida, a que não faltam explicações pito­
rescas acerca das origens dos cometas, das fa­
ses da Lua, dos meteoros, da Via-láctea, etc.
Mas sua maior qualidade parece residir nc
fato de não haverem incidido numa astrolatria
comum aos babilónios, egípcios, sumerianos e
maias. Embora mais atrasados culturalmente,
não chegaram a esse retrocesso — pois os as­
tros do céu eram para eles a representação da
alma dos mortos, e nada mais.
Astronomia do Macunaíma é um livro que
se lê com agrado cada vez maior. Em suas pá­
ginas, nota-se o interesse permanente pelos
estudos de antropologia e etnografia, folclore
e ciência — e tudo isto servido por uma lin­
guagem que valoriza a obra de Mário de
Andrade (sempre tão cioso de uma fala colo­
quial) e, principalmente, a cultura indígena.

FERNANDO PY

Você também pode gostar