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AS RELAÇÕES

DE GÊNERO
NO ENSINO
FUNDAMENTAL

SUMÁRIO

v. 6 • n. 33 ENTREVISTA: O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma


maio/jun. 2000 Jean Hébrard
EDITORA DIMENSÃO • V.6 • N.33 • MAIO/JUN. 2000 • ISSN 1413-1862 R$ 8,50
As relações de gênero no Ensino Fundamental: temas transversais e prática docente
Alessandra Luisa Teixeira
Maria Madalena Silva de Assunção

Trabalho e educação - a proposta do MST


Antonio Júlio Menezes Neto

Por uma pedagogia do poético


Maria Auxiliadora Cunha Grossi

Aprender a aprender: garantia de uma educação de qualidade?


Maria Auxiliadora Monteiro

A biblioteca nos Parâmetros Curriculares Nacionais


Bernadete Santos Campello
Mônica do Amparo Silva

Problemas com projetos pedagógicos


Sueli Barbosa Thomaz

REPORTAGEM:O Brasil em outra sintonia


Roberto Alves

PRESENÇA DE LIVROS: Um Machado que não assusta

Educação
Valéria Maria Pena Ferreira

SABER EM MOVIMENTO: Agricultura orgânica : a solução da lavoura


Marise Muniz

DICIONÁRIO CRÍTICO: Ensinar Ciências


Maria Emília C.C. Lima
Orlando G. Aguiar
Selma A.M. Braga
na Rádio
AGENDA

PONTO DE VISTA: O Brasil não descobriria Portugal


Antônio Machado de Carvalho
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EDITORIAL

P assadas as "celebrações" oficiais dos 500 anos, ficaram-nos na memória ima-


gens de um Brasil com grupos excluídos cujos problemas se tornaram evi-
dentes para a maioria da população. Os índios e os sem-terra, especialmente,
mostraram-se para as autoridades, para a polícia e para a imprensa.
Presença Pedagógica traz, neste número, uma visão do MST que destoa da que domi-
nou outras revistas, jornais e canais de televisão: descreve-se aqui o projeto de edu-
cação e trabalho que o Movimento desenvolve para garantir melhores condições de vida
aos acampados e aos "assentados".
Destaca-se ainda, neste número, o relato da pesquisadora Sueli Thomas, que acom-
panhou por um ano as reações dos professores de uma escola pública contra um proje-
to pedagógico imposto pelo governo do Rio de Janeiro. Atitudes veladas ou explícitas,
trabalhos apenas aparentemente desenvolvidos, falas nas quais se manifesta a força de
uma resistência sutil e ambígua, capaz de anular todo o desenvolvimento do projeto.
Nossa capa, por sua vez, alude a uma experiência nova, que vem demonstrando ser
possível o diálogo entre professores da Universidade e agentes sociais aparentemente
distantes: a Rádio Favela, única rádio comunitária a representar o Brasil na ONU,
torna-se educativa e atinge a comunidade de maneira exemplar.
É com tudo isso que vamos construindo a nós e a nosso país: utopias, contradições,
memórias, resistências... Forma-se assim o descobrimento de cada dia, através da luta,
do trabalho e da produção de novas interações sociais.
Fundação: 1985
DIRETORIA: Gilberto Gusmão de Andrade
Zélia Almeida

V.6 • N. 33 • MAIO/JUN. 2000 • ISSN 1413-1862


PRESENÇA PEDAGÓGICA é uma publicação bimestral da Editora Dimensão
Endereço: Rua Rosinha Sigaud, 201 - Caiçara - Cep 30770-560 - Belo Horizonte - MG
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Editora Geral: GRAÇA PAULINO

Editora Assistente e Jornalista Responsável: CLÁUDIA TELES (Reg. prof. n. 70.593/SJP-MG)

Secretária: ISAURA DE FREITAS ARAÚJO

Comitê Editorial:
AMARÍLIS COELHO CORAGEM, ANGELO BARBOSA MACHADO, ANTÔNIO AUGUSTO GOMES BATISTA,
ANTÔNIO MACHADO DE CARVALHO, EDUARDO FLEURY MORTIMER, IVETE WALTY, LUCÍOLA PAIXÃO SANTOS,
MARIA EMÍLIA CAIXETA e MARILDES MARINHO.

Conselho Editorial Consultivo:


ÂNGELA TONELLI VAZ LEÃO, CARLOS ROBERTO CURY, MAGDA BECKER SOARES e NEIDSON RODRIGUES (Belo Horizonte);
ÍRIA BRZEZINSKI, JOSÉ CARLOS LIBÂNEO (Goiânia); EDNÉIA POLI MIGNONI (Londrina); JOSÉ DE SOUZA MIGUEL LOPES
(Moçambique); ARNON DE ANDRADE (Natal); ATTICO INÁCIO CHASSOT e LIANE HENTSCHE (Porto Alegre); MÁRCIA ANGELA S. AGUIAR
(Recife); GAUDÊNCIO FRIGOTTO, MÍRIAN PAURA S. ZIPPIN GRINSPUN e REGINA LEITE GARCIA (Rio de Janeiro);
ANNA MARIA PESSOA DE CARVALHO e MYRIAN KRASILSHIC (São Paulo).

Atendimento ao Assinante/Números Atrasados: ISAURA DE FREITAS ARAÚJO - Telefax (031) 411-2122

colaboradores:
ALESSANDRA LUISA TEIXEIRA, ANTONIO JÚLIO MENEZES NETO, ANTÔNIO MACHADO DE CARVALHO,
BERNADETE SANTOS CAMPELLO, MARIA AUXILIADORA CUNHA GROSSI, MARIA AUXILIADORA MONTEIRO,
MARIA EMÍLIA C. C. LIMA, MARIA MADALENA SILVA DE ASSUNÇÃO, MARISE MUNIZ, ORLANDO G. AGUIAR,
SELMA A. M. BRAGA, SUELI BARBOSA THOMAZ E VALÉRIA MARIA PENA FERREIRA

Revisão: MARIA LINA SOARES SOUZA e BÁRBARA SAMPAIO C. FLECHA

Produção Gráfica: TOMÁS BERSCH

Diagramação: SÉRGIO PESSOA

Impressão e Acabamento:
Revista produzida sem o uso de fotolitos pelo processo de “PRÉ-IMPRESSÃO DIGITAL” por:
W. Roth (0xx11) 6436-3000

Reportagem: ROBERTO ALVES REIS

Fotografia: JÚLIO BERNARDES (Entrevista e reportagem)

Aceitam-se colaborações. Os artigos serão submetidos à Editora, Comitê e Conselho Editorial.


É imprescindível nome e endereço completos do(a) autor(a) para contato. Originais não serão devolvidos.
NESTE NÚMERO

ENTREVISTA

TRABALHO E EDUCAÇÃO:
A PROPOSTA DO MST. JEAN HÉBRARD - O OBJETIVO DA ESCOLA
O movimento social mais comen- É A CULTURA, NÃO A VIDA MESMA
tado hoje pela imprensa se mostra Hébrard, pesquisador e Inspetor Geral do Mi-
aqui em outro ângulo: sua con- nistério da Educação da França, fala sobre o
cepção de escola voltada para o Brasil e sobre a falta de comunicação com os
trabalho. alunos, que tanto aflige professores do mundo
inteiro.

Nossa capa:
APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA
A Rádio Favela mostra seu
EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?
poder de agente educativo.
Imagem: Morro, Di Caval- Um dos grandes mitos da educação contemporânea — o de que
canti, 1930 alunos devem ser autônomos — é questionado por uma argu-
mentação que revaloriza o papel dos professores.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 3


SUMÁRIO

ENTREVISTA: O objetivo da escola é a cultura, não a vida mesma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5


Jean Hébrard

As relações de gênero no Ensino Fundamental: temas transversais e prática docente . . . . . . .19


Alessandra Luisa Teixeira
Maria Madalena Silva de Assunção

Trabalho e educação - a proposta do MST . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29


Antonio Júlio Menezes Neto

Por uma pedagogia do poético . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39


Maria Auxiliadora Cunha Grossi

Aprender a aprender: garantia de uma educação de qualidade? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47


Maria Auxiliadora Monteiro

A biblioteca nos Parâmetros Curriculares Nacionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .59


Bernadete Santos Campello
Mônica do Amparo Silva

Problemas com projetos pedagógicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .69


Sueli Barbosa Thomaz

REPORTAGEM: O Brasil em outra sintonia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .76


Roberto Alves

PRESENÇA DE LIVROS: Um Machado que não assusta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .84


Valéria Maria Pena Ferreira

SABER EM MOVIMENTO: Agricultura orgânica: a solução da lavoura . . . . . . . . . . . . . . . . . .88


Marise Muniz

DICIONÁRIO CRÍTICO: Ensinar Ciências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .90


Maria Emília C.C. Lima
Orlando G. Aguiar
Selma A.M. Braga

AGENDA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .93

PONTO DE VISTA: O Brasil não descobriria Portugal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .94


Antônio Machado de Carvalho

EDUCADOR-LEITOR: escreva para PRESENÇA PEDAGÓGICA, manifestando sua opinião sobre este número da
Revista.
ASSINANTE: não deixe de atualizar seu cadastro junto à Revista. Não se esqueça de que é preciso renovar sua
assinatura.
EM TEMPO: Maria Laura Magalhães Gomes, colaboradora em “Presença de Livros”, do número 32, é professora
do Departamento de Matemática da UFMG

4 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

O objetivo da escola é a
cultura, não a vida mesma

J ean Hébrard, formado em Filoso-


fia e História, é, atualmente, pes-
quisador na École des Hautes Études en
Sciences Sociales (EHESS) e Inspetor Geral
No Brasil, além de artigos publicados
em revistas, há traduções de alguns de seus
livros, como Discursos sobre a leitura (Edi-
tora Ática), escrito em co-autoria com
do Ministério da Educação francês. Tem-se Anne-Marie Chartier e Ler, escrever:
dedicado a estudos e pesquisas nas áreas de entrando no mundo da escrita (Editora
História da Educação e História Cultural. Artes Médicas), em co-autoria com Anne-
Com uma formação profundamente marca- Marie Chartier e Christiane Clesse.
da pelo sistema de base primário francês, Nesta entrevista concedida a Presença
dedica-se particularmente ao estudo da Pedagógica em Belo Horizonte, onde esteve
história das aquisições das habilidades a convite da Faculdade de Educação da
básicas de ler, escrever e contar e aos Universidade Federal de Minas Gerais, ele
processos autodidatas de aprendizagem. Há fala sobre uma diversidade de assuntos.
dois anos participa do Centro de Estudos Atuando nos campos da pesquisa e da

• Entrevista concedida a sobre o Brasil Contemporâneo da EHESS, política pública de Educação, Jean Hébrard
Ana Galvão
Antônio Augusto Batista e onde tem desenvolvido pesquisas sobre o possui um perfil singular, pouco comum aos
Isabel Frade.
Transcrição e edição de nosso país. Tem vindo periodicamente ao pesquisadores atuais. Talvez por isso consi-
Ana Galvão
Brasil para dar conferências, palestras, ga falar de lugares tão diferenciados,
fazer pesquisas nos acervos e prestar asses- trazendo, tanto para educadores, como para
soria na elaboração de políticas de edu- quem trabalha com a elaboração e acom-
cação e de leitura, como por exemplo, dos panhamento das políticas educacionais,
Parâmetros Curriculares Nacionais de reflexões fundamentais para se pensar a
História e do Programa Pró-Leitura. educação no mundo contemporâneo.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 5


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

PP: Com que temas você tem traba- balho muitas vezes e trazia para nós toda
lhado ao longo de sua trajetória? a bibliografia do momento. Especia-
Hébrard: Tive uma formação pro- lizei-me na história da alfabetização.
fundamente marcada pela educação Meu primeiro artigo nos Annales é sobre
primária, como professor e como aluno, a história da alfabetização. Foi muito
e pelo ambiente rural, onde se deu importante para mim ter desenvolvido
minha formação de base. Tenho traba- uma maneira nova de pensar a história
As questões lhado, ao longo do tempo, especialmente cultural, que é precisamente essa his-
relacionadas à
com os fenômenos da aculturação e com tória dos equipamentos intelectuais.
educação me
o autodidatismo. As questões rela- Fiquei muito impressionado quando
interessam
cionadas à educação me interessam pro- descobri Lucien Febvre, para mim o
profundamente:
fundamente: minha área específica de maior historiador francês. Ler sua obra
minha área
atuação é a escola primária, a aprendiza- foi uma experiência maravilhosa. Lucien
específica de
gem elementar. Quando trabalhei na Febvre tornou-se, para nós que somos
atuação é a
escola primária, a Escola Normal de Saint-Cloud, forman- interessados na educação, que fazemos

aprendizagem do professores para as escolas normais, História Cultural, uma leitura impres-
elementar. fui progressivamente, ao longo dessa cindível. Porque para mim é muito
formação, percebendo a importância da importante ficar no campo da educação.
História. Para trabalhar com esses pro-
fessores, de todas as disciplinas, o pro- PP: É um campo muito desprestigia-
blema era como falar, como inventar um do esse da educação, não é?
discurso capaz de constituir uma for- Hébrard: A educação é a minha
mação geral para eles. A evidência esta- vida. Para mim não existe nada mais
va na História. Fui, então, fazer for- forte do que a educação. É muito
mação em História, na École de Hautes importante.
Études. Deixei a minha formação em
Filosofia e fiz uma formação em PP: E a pedagogia?
História, tendo como professores Roger Hébrard: Não. Penso que a peda-
Chartier, Jacques Revel e Dominique gogia é um discurso vazio. A educação é
Julia. Uma coisa muito importante para um campo político e cultural. Um
mim foi a ligação de Roger Chartier com desafio permanente para as democra-
os Estados Unidos, porque ele ia lá a tra- cias.

6 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

PP: E o que você está chamando de preciso saber muito bem como fun-
pedagogia? Por que você a considera cionam. Penso que a única forma de inter-
um discurso vazio? venção é a descrição da escola. Se você é
Hébrard: A pedagogia era uma coisa capaz de descrever bem o que acontece na
terrível na França. Uma de suas funções escola, o que é a escola, você é capaz de
era, por exemplo, a de justificar por que se mudá-la um pouquinho. Essa capacidade
faziam determinados exercícios em sala de descrição é fundamental, porque a
Não é possível de aula. É terrível esse discurso de articu- coisa mais importante na vida da escola é
montar apenas
lação de um exercício, herdado de um a repetição, a repetição permanente. Os
com a vontade
século de história da educação. Como problemas com os quais a aritmética tra-
uma escola
articular esse exercício com uma finali- balha são tão fortes, que é impossível
diferente. A escola
dade filosófica? Cada vez que uma pessoa encontrar, a cada século, uma forma tão
é um processo tão
me fala, normalmente um professor em forte. O ditado é uma forma tão forte de
complexo, mas
formação, de pedagogia, cito Nietzche, intervenção pedagógica que não é pos-
tão complexo que
é impossível, com a Genealogia da Moral. A Genealo- sível inventar a cada século um exercício

apenas com a gia da Moral é o livro mais antipeda- tão forte. Assim, a repetição é o núcleo da
vontade, mudá-la. gógico que conheço, porque o discurso pedagogia, e define em parte os tempos
Você herda os pedagógico é precisamente o discurso da da escola.
dispositivos, e moral. A idéia é que a intervenção na edu-
para modificar um cação, particularmente na formação, não é PP: Quais seriam os tempos da escola?
pouquinho esses uma intervenção que se faz com o objeti- Hébrard: O tempo de base é o
dispositivos é vo pedagógico, é uma intervenção que se tempo das práticas. É um tempo muito,
preciso saber faz dentro da determinação da própria muito lento. O segundo é o tempo das
muito bem como história. Penso que os eventos na história políticas da educação, da organização da
funcionam. da educação, no campo da educação, são escola, dos grandes modelos de organi-
eventos muito determinados. Não é pos- zação. Em vinte séculos ou mais, por
sível montar apenas com a vontade uma exemplo, existiram somente dois mode-
escola diferente. A escola é um processo los: o ensino individual e o ensino
tão complexo, mas tão complexo que é simultâneo. E o terceiro tempo é o do
impossível, apenas com a vontade, mudá- discurso, muito forte e de uma veloci-
la. Você herda os dispositivos, e para mo- dade muito rápida. Uma invenção discur-
dificar um pouquinho esses dispositivos é siva a cada ano, a cada mês, a cada dia. O

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 7


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

trabalho da universidade é fazer essa forma escolar continue a mesma, há


invenção permanente de um discurso fenômenos que alteram completa-
pedagógico novo para falar da organiza- mente o significado dessa forma esco-
ção política, que é muito lenta, e da práti- lar. E você fala da educação antes de
ca, que é imóvel. É a prática. Unica- tudo na sua dimensão política. Então,
mente. Anne-Marie Chartier e eu usamos como articular essas coisas?
muito a noção de forma escolar. Anne- Hébrard: Os anos 70, na Europa, no
A família Marie fala que é preciso trocar o discur- mundo, são os anos da educação. É um
tradicional,
so de maneira muito rápida, para se ficar momento importante, porque é o momen-
acabada, falida,
na moda. Para isso, usamos o termo dis- to de uma mudança muito grande, com o
enfrenta uma
positivo. São poucos os dispositivos que aparecimento de uma cultura nova, que
realidade nova,
podem funcionar na escola, numa situ- não existia. Aliás, não propriamente o
particularmente a
ação na qual você tem um sujeito em aparecimento de uma cultura nova, mas
da adolescência.
frente a quarenta, cinqüenta alunos, em um grupo social novo, que são as cri-
Há, no sistema
educativo, uma um tempo organizado com um ritmo par- anças. As crianças como realidade no

ruptura definitiva ticular, com a restrição do desenvolvi- mundo, e não mais uma realidade
em face de uma mento mental do aluno, da idade do somente da família. A família tradicional,
realidade que o aluno... São poucos os dispositivos acabada, falida, enfrenta uma realidade
professor não capazes de funcionar dentro desse mode- nova, particularmente a da adolescência.
consegue mais lo, dentro dessa quantidade de restrições. Há, no sistema educativo, uma ruptura
trabalhar. Esta definitiva em face de uma realidade que o
realidade é uma PP: No momento em que você estava professor não consegue mais trabalhar.
oposição muito fazendo a sua formação em História e Esta realidade é uma oposição muito
clara: os alunos pensando em educação, vivemos um clara: os alunos existem. Antes existiam
existem. quadro de vários impactos: o im- as famílias e não os alunos. Eu penso que
pacto de 68, o impacto dos trabalhos os anos 60 e 70 foram anos terríveis para
sobre o sistema de ensino francês, a educação, porque todos os modelos
que mostram a articulação entre o educativos se mostraram fracassados. As
sistema de ensino e as desigualdades idéias naquele momento — éramos todos
sociais. Quando analisamos a His- marxistas — estavam ligadas ao fracasso
tória numa perspectiva de longo dos alunos. E ante a nossa vontade de
prazo, esquecemos que, embora a democratizar a educação, os sociólogos

8 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

diziam que o sistema educativo era um na França – penso particularmente no


sistema de reprodução. A verdade é que o trabalho sobre o colégio e os adoles-
fracasso do próprio sistema é devido às centes, de François Dubet. Seu trabalho
pessoas: são os alunos que fazem o sis- revela que os adolescentes estão na escola
tema falir e não o grande capital, nem não para aprender, mas para viver a cul-
mesmo a revolução do proletariado. São tura deles. O que é mais importante é que
os alunos, são as crianças que quebram o os alunos, dentro do colégio, organizam,
O problema é que, sistema. E agora é terrível porque os ado- estruturam, inventam uma cultura e vivem
a partir dos anos
lescentes são capazes de provocar a falên- essa cultura, que não é a cultura escolar.
70, o sistema de
cia do sistema. Para eles, a cultura escolar é um preço a
transferência da
pagar para viver, juntos, essa realidade,
cultura não
PP: É possível estabelecer o laço essa sociabilidade que é da juventude.
funciona mais.
entre a cultura jovem e a cultura da
Porque os alunos
geração anterior? PP: Na tentativa de acompanhar essa
não são alunos
sem cultura ou Hébrard: Esse é um grande proble- cultura jovem, as propostas educa-

com a cultura da ma para nós hoje. É por isso que os anos cionais, mais do que aproximar, tal-
família. São alunos 70 são anos muito decisivos, porque mar- vez tenham promovido, como você
com uma cultura cam o nascimento de uma contradição. disse, uma fratura na transmissão
que não é mais a Pensávamos que a escola era um disposi- dessa cultura. O que você acha des-
cultura da família, tivo muito simples para transferir os co- sas novas propostas centradas na
mas que existe e nhecimentos de uma geração a outra. O cultura dos alunos?
que é forte. problema é que, a partir dos anos 70, o Hébrard: É importante pensar sobre
sistema de transferência da cultura não a primeira reação diante dessa situação
funciona mais. Porque os alunos não são difícil. Lembro como os professores, nos
alunos sem cultura ou com a cultura da anos 70, mesmo na universidade, tinham
família. São alunos com uma cultura que horror de trabalhar como professores,
não é mais a cultura da família, mas que nessa situação. Sentiam-se diante de
existe e que é forte. Isso é muito impor- alunos que não estavam "nem aí" para o
tante. E no primeiro momento, a Sociolo- saber, não tinham nenhum desejo de
gia — de Bourdieu, de Baudelot — foi aprender. É impressionante essa con-
uma ilusão. O trabalho real sobre a Socio- tradição. O que fazer? A primeira idéia
logia da Educação se faz nos anos 80 e 90, da escola foi a de jogar com esse público,

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 9


ENTREVISTA

JEAN HÉBRARD

de uma maneira muito simples: se não se muda de maneira permanente. Um dia


era capaz de escolarizar a cultura do ele consegue falar a língua do momento.
jovem, era mais fácil guardá-lo na esco- Uma semana depois, a língua do momen-
la. Foi um momento de uma invenção, to já não existe, é uma língua nova que
penso que nos Estados Unidos. O fracas- funciona.
so da escola é a sua incapacidade de tra-
balhar, de uma maneira escolar, a cultura PP: Então é preciso que a escola con-
A vida não é um "selvagem". Para Labov a cultura "sel- siga, ao mesmo tempo, considerar
objeto para a vagem" era a cultura dos guetos, dos essa cultura jovem e fazer um traba-
escola. O objeto negros dos Estados Unidos. Para nós, era lho de transmissão do patrimônio
da escola é a a cultura da periferia urbana. A questão cultural?
cultura, não é a era como trabalhar e, talvez, se possível, Hébrard: Penso que foram neces-
vida. Você não escolarizar essa cultura estranha. Quando sários vinte anos para entender isso. A
pode trabalhar estive na Guiana, vivi exatamente o questão é como fazer da transmissão do
com a vida, a vida mesmo problema, ao trabalhar com os patrimônio algo que possa interessar a
viva. A vida não índios. Na verdade, foi um fracasso, um essa cultura "selvagem". Como fazer? O
serve para segundo fracasso. Porque essa cultura é a grande desafio de hoje é reinventar uma
trabalhar. Na vida deles. Não é um sistema estético- escola que seja capaz de assumir uma
escola, é preciso ético, é a vida mesma. A vida não é um posição adulta. Porque toda a geração
haver um objeto objeto para a escola. O objeto da escola é dos professores dos anos 70 e 80 foi uma
fixo, que não a cultura, não é a vida. Você não pode geração de professores crianças, que não
mude demais. Não trabalhar com a vida, a vida viva. A vida aceitava mais assumir a posição da anti-
é a vida. não serve para trabalhar. Na escola, é ga geração. Cada vez mais concordo
preciso haver um objeto fixo, que não com a posição de Hannah Arendt, na
mude demais. Não é a vida. A vida é Crise da cultura: a função da escola é
impossível. Isso é muito interessante. assumir a posição do passado, não a
Meu filho é professor na escola de base posição do futuro, porque o futuro é a
em um bairro de Paris habitado por invenção da nova geração. Não pode ser
africanos. Tem formação em literatura e a invenção da geração precedente. Para
uma grande sensibilidade para com a lín- que a nova geração possa inventar o
gua. Tenta sempre aprender a língua dos futuro é preciso que a antiga geração —
alunos. Impossível, porque a língua nós, os professores — assuma a posição

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JEAN HÉBRARD

de passado. Na França, é evidente que escola, que seja preciso inventar um


agora — não asseguro que seja seme- outro dispositivo para transmitir o
lhante em todos os países, cada um com patrimônio cultural. Para construir os
posições um pouco diferentes — a nova equipamentos intelectuais dos alunos. a
geração de professores tem a possibili- escola não é a única possibilidade, são
dade de assumir essa posição de adultos. muitas as possibilidades.
Penso que agora meu filho é mais adul-
O problema to do que quando eu era professor. Bem PP: E você acha que tem surgido
educativo que mais. Porque ele é capaz de assumir uma algum sistema paralelo que se está
temos na França, e posição de autoridade. instaurando, pela mídia, por exemplo?
imagino que seja Hébrard: Sim. Uma revista semanal
semelhante no PP: Porque é a posição daquele que francesa, muito lida pelos professores,
Brasil, em todas as vai ser morto... que se chama Nouvel Observateur, me
classes sociais, é Hébrard: Exatamente. Na evolução pediu para escrever uma utopia. De cada
que os adultos são da sociedade, a família não é mais capaz área da sociedade, escolheram uma per-
incapazes de de assumir uma posição de adulto. E as sonalidade para escrever uma utopia.
assumir a posição crianças que estão na escola têm essa Escrevi uma utopia da escola. Penso que
de adultos diante educação familiar. O problema educati- a escola do futuro poderia ser um sis-
das crianças. As vo que temos na França, e imagino que tema muito diferente, muito restrito,
crianças não são seja semelhante no Brasil, em todas as com poucos anos. Uma formação ime-
capazes de aceitar classes sociais, é que os adultos são diata: ler, escrever, contar, falar. Depois,
a disciplina da incapazes de assumir a posição de adul- trabalho. Para todos. É preciso inventar
escola. O que é a tos diante das crianças. As crianças não uma sociedade que seja capaz de fazer
disciplina da são capazes de aceitar a disciplina da os adolescentes trabalharem — o caso
escola? escola. O que é a disciplina da escola? É francês é bem diferente do brasileiro —
preciso um trabalho muito, muito grande introduzindo-os na vida da cidade.
no presente. E isso só é possível quando, Depois, a escola seria um sistema per-
na educação familiar, os adultos não são manente de educação, até o fim da vida,
crianças. Eu penso que, hoje, é mais difí- e nós, professores, seríamos capazes de
cil usar a escola do que foi no século ensinar a essas pessoas na condição de
passado. Poderíamos pensar que a esco- adultos e não mais de alunos. E com
la do século XXI não seja mais uma adultos até o fim da vida. Por quê?

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JEAN HÉBRARD

Porque o que é importante na escola não não é mais capaz de educar; instrução,
é a formação. Bom, onde se dá a for- que é a função normal da escola; e guar-
mação? No trabalho. Para nós é uma da, porque a cidade não é mais um local
certeza, pelo menos para nós que traba- adequado para uma infância livre. O que
lhamos com a educação, que a única for- é mais importante na escola não é a
mação do professor é a aula. Todos os instrução, é a vigilância. É um problema
discursos são discursos totalmente muito grande para nós essa confusão das
A sociedade não vazios. Na formação, mais importante é funções da escola. A formação de um
tem lugares
organizar esse encontro, realizar essa professor é uma formação acadêmica
próprios para as
mediação com a prática. Hoje, a escola muito longa, para fazer o quê? Guardar?
crianças. O
continua essencialmente como um sis-
problema central
tema de guarda. E a função de guarda se PP: Na sua trajetória, você tem atua-
hoje é: como fazer
confunde com a função de formação. do em diferentes áreas: na pesquisa,
com que as
Aliás a função de guarda é bem mais no ensino, na política...
crianças tenham
uma vida que não importante do que a função de for- Hébrard: É verdade. Quando as

seja perigosa, mação. Para nós, na França, é bem evi- escolas normais desapareceram, traba-
ociosa,e, ao dente que quando uma escola está fecha- lhei, durante cinco anos, como pes-
mesmo tempo, da por causa de uma greve de profes- quisador numa equipe no INRP. Mas
que não seja essa sores, o importante não é que haja al- foi um trabalho muito chato ficar como
vida escolar guns dias de aula a menos, o importante pesquisador sem dar aulas. Eu penso
absurda, em que é o que fazer com os alunos, o que fazer que não é bom o pesquisador fazer o
se confunde a das crianças. A sociedade não tem seu trabalho e não poder falar com
segurança da lugares próprios para as crianças. O alunos sobre ele. Os alunos são um
criança e a problema central hoje é: como fazer com bom controle da pesquisa. Depois, por
instrução. que as crianças tenham uma vida que um acaso da vida, eu passei a atuar na
não seja perigosa, ociosa,e, ao mesmo política. Comecei uma carreira ligada à
tempo, que não seja essa vida escolar política da educação. Foi muito interes-
absurda, em que se confunde a segu- sante e penso que foi uma formação
rança da criança e a instrução. Eu penso muito maior do que a da pesquisa e da
que o grande problema da escola hoje é formação acadêmica. Aprendi tudo
a confusão desses dois papéis, ou me- sobre a educação em cinco anos de tra-
lhor, três: educação, porque a família balho político. Hoje sou Inspetor Geral

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JEAN HÉBRARD

e gosto muito. Fui para muitos países política, se você é capaz de saber que
estrangeiros conhecer diferentes sis- existem modelos muito melhores do que
temas educativos. Agora sou um dos o seu, você tem uma posição de humil-
responsáveis pela organização da esco- dade. Você sabe que o que faz não é
la primária. muito bom. Que existem coisas muito
melhores para fazer, mas não são pos-
PP: São lógicas muito diferentes: uma síveis porque a conjuntura da ação
A pesquisa é a é a lógica da ação política, que nos política não permite. E aceitamos fazer
possibilidade de
leva a ter muito uma posição norma- tal ação política, sabendo que não é a
não ficar idiota,
tiva com relação à realidade. Já na melhor, mas que é a que a sociedade é
imbecil; é um
pesquisa precisamos evitar esse tipo capaz de aceitar. Para nós é muito
exercício da
de projeto de intervenção, não é? importante ter um necessário distancia-
inteligência. Sua
Hébrard: Exatamente. É preciso mento da ação política. E a pesquisa tem
primeira função
evitar essa postura tanto para fazer uma essa capacidade de constituir uma dis-
para pessoas
como nós, boa pesquisa quanto para fazer uma boa tância. De que gosto mais? Não sei se é

que têm a política. Para se fazer uma boa política é de fazer política ou de fazer pesquisa.
responsabilidade preciso também um trabalho de pes- Os dois, eu acho.
política, é a de quisa. Penso que em alguns campos
inventar acadêmicos, como o da economia, da PP: E essa sua ação na pesquisa e na
possibilidades, saúde, da educação, é impossível espe- política acabou gerando alguns produ-
mesmo que depois rar, porque a ação é cada dia, é aqui, com tos, como livros para professores...
não possam usá- uma força terrível. Como trabalhar na Hébrard: Escrever demanda muito
las na realidade. urgência da ação política e no tempo da tempo. O problema é que, quando se faz
pesquisa? O problema é aceitar que a pesquisa e ação política, é difícil reser-
pesquisa não é um sistema de aplicação var tempo para escrever. A escrita é a
imediata. A pesquisa é a possibilidade capacidade de verificar a ausência de
de não ficar idiota, imbecil; é um exercí- contradições. Sem a escrita ninguém é
cio da inteligência. Sua primeira função capaz de ver a ausência de contradições.
para pessoas como nós, que têm a A formação é um trabalho político.
responsabilidade política, é a de inventar Quando escrevo um livro para a for-
possibilidades, mesmo que depois não mação dos professores faço um trabalho
possam usá-las na realidade. Na ação político, não um trabalho científico.

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JEAN HÉBRARD

PP: Você vê relações entre o que está nia, Bósnia, todas essas coisas não
ocorrendo na cultura em diferentes banalizam um pouco a própria
países? emoção?
Hébrard: As grandes evoluções da Hébrard: Não. A violência ao
nossa sociedade estão muito rela- mesmo tempo é uma fascinação e uma
cionadas, muito ligadas. A globalização revolta. É impossível haver revolta sem
não é somente econômica, é também fascinação e fascinação sem revolta. O
Os grandes social e cultural. Somos muito seme- que você disse é uma posição dos inte-
progressos da
civilização se lhantes, todos, no mundo. Sou pouco lectuais. É muito fácil viver essa po-
fazem sobre essa nacionalista. Eu penso que o nacionalis- sição crítica sem ser capaz de propor
maneira de mo é a maior maneira de provocar catás- uma ação real. A nossa especialidade, a
partilhar não
trofes. A nossa sensibilidade mudou educação, é um problema diretamente
somente os
grandes valores – muito: a televisão, o cinema, são sis- ligado à ação. Que bom ser crítico toda
moral, ética – mas temas maravilhosos de constituição de uma vida, nada a impor... Que infelici-
também os emoções mundiais. Isso faz com que dade estar no poder... É uma incapaci-
sentimentos. O
que sustenta um nós, do mundo inteiro, sejamos inca- dade de assumir uma posição de poder,
valor moral é a pazes de suportar certos fenômenos que que é uma posição de aceitar o erro, o
emoção. Não é a ocorrem em alguns locais. É um grande erro da ação. Por sorte, na educação,
racionalidade, é a
progresso da civilização. E os grandes somos obrigados a educar as crianças.
emoção. Por
exemplo, não progressos da civilização se fazem sobre Somos obrigados a ensinar todas as
somos mais essa maneira de partilhar não somente os manhãs. Isso é uma sorte extraordinária,
capazes de grandes valores — moral, ética — mas porque nos prende ao chão, à realidade
suportar a morte
de uma criança, também os sentimentos. O que sustenta concreta. Gosto muito da poesia de
por fome ou atos um valor moral é a emoção. Não é a Manoel de Barros, A gramática do
de agressividade. racionalidade, é a emoção. Por exemplo, chão, porque ele tem uma visão estética
não somos mais capazes de suportar a do mundo sem jamais perder essa
morte de uma criança, por fome ou atos maneira de ter os dois pés na terra. A
de agressividade. ação humana não pode esperar o mode-
lo. É preciso haver uma ação antes de se
PP: Mas, ao mesmo tempo — temos estar seguro de que um bom modelo
tantas vezes visto isso na televisão — existe. Por isso gosto da História, não só
a guerra do Golfo ao vivo, Tchetchê- da História da Educação, mas da

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JEAN HÉBRARD

História de modo geral. Penso ser Marc Para mim, foi a alteridade total. O que é
Bloch quem disse que História é uma isso que ela está me contando? Foi um
maneira de cercar no passado a urgência momento totalmente irreal. E a partir
do presente. desse momento, me senti como Cabral,
como todos... Não foram os índios
PP: Qual é o lugar do Brasil nesse tra- antropófagos, mas foram os canga-
balho que você realiza de estar sempre ceiros... E tudo isso em Ouro Preto, esse
O Brasil gerou um lidando com processos de aculturação Brasil barroco, um barroco completa-
imenso trabalho, a
cada dia, de e de contato com outras culturas? mente diferente dos outros. E o que
entender uma Hébrard: O Brasil tem uma im- mais me impressionou foi o teatro, mais
cultura tão portância muito grande na minha vida. do que as igrejas, foi o teatro. Eu estava
diferente da
Eu acho que o Brasil, para os europeus, no camarote do governador e imaginei,
minha. A fantasia
do historiador é é encontrar na vida o que foi esse horror vivi imediatamente um espetáculo do
encontrar o do primeiro encontro entre Cabral e o século XVIII no camarote do gover-
passado diante índio antropófago. Descobrir um mundo nador, um momento em que havia ouro
dele. E aqui não
era o passado, era novo. Para mim, uma coisa muito por toda a parte... Eu pensava: o que é
a diferença. Penso importante é como pensar a diferença tudo isso? Impossível descrever através
que para entender total. No meu caso, o primeiro momen- de representações. Tudo era maravi-
a diferença é
to dessa descoberta do Brasil foi no lhoso, como diziam os primeiros
preciso haver
semelhança. avião. E no avião foi o tempo: um país europeus que aqui chegaram, e me fazia
tão grande que, para viajar, já no Brasil, pensar a alteridade. Isso gerou um
é preciso esperar quatro horas... O imenso trabalho, a cada dia, de entender
segundo momento foi a cidade, e foi uma cultura tão diferente da minha. A
Belo Horizonte. Uma cidade que não fantasia do historiador é encontrar o
conhecia. Uma cidade do primeiro passado diante dele. E aqui não era o
mundo. E o terceiro momento, o mais passado, era a diferença. Penso que para
importante para mim, foi Ouro Preto. entender a diferença é preciso haver
Lembro muito bem, estava perto de uma semelhança. Gosto muito de viajar no
fonte, na praça, e uma amiga brasileira Maroni, no Oiapoque, para ver as
começou a me falar de Guimarães Rosa. aldeias, os índios, mas é uma distância
Eu não conhecia nem mesmo o nome. E muito mais radical. Há tão pouca seme-
começou a me contar Grande sertão. lhança que essa diferença para mim não

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é importante. Aqui no Brasil o mais A pesquisa é exatamente isso: a paciên-
JEAN HÉBRARD marcante é que as semelhanças são cia de não entender. É o inverso da
grandes e as diferenças também. É a ação. Se alguém é capaz dessa paciên-
conjunção das diferenças e das seme- cia de não entender e de conservar na
lhanças. Conheço o Chile, a Argentina, pequena gaveta os problemas que não
o México, mas, para nós, europeus, aqui entende, isso é muito bom. Sem a gave-
se sente muito mais a aventura da ta não pode mais agir. É preciso haver
descoberta. Aqui, imediatamente, se gavetas bem claras, precisas, bem cons-
sente uma presença real do encontro de cientes da nossa incapacidade de pensar
dois mundos. Como foi possível tanta e, particularmente, da nossa incapaci-
incompreensão... E penso que a reali- dade de pensar a diferença.
Como foi dade da colonização é a incompreensão,
possível tanta
é a violência da incompreensão. Como PP: A escrita no Brasil é uma gaveta
incompreensão?
Quando não se foi possível tanta incompreensão? também?
compreende, a Quando não se compreende, a única Hébrard: A escrita é um grande
única solução solução possível é a violência. Para nós problema. As peculiaridades do Brasil
possível é a
é muito importante pensar sobre esse em relação a outros países da América
violência. Para
nós é muito momento da história da humanidade. A Latina, nessa questão, não se encon-
importante pensar cultura de um mundo que se julgava tram nas diferenças entre as coloniza-
sobre esse homogêneo e que se descobre heterogê- ções de Portugal e Espanha, mas no
momento da
neo. Como pensar a diferença? que existia antes. Quando você com-
história da
humanidade. A para a Idade Neolítica do tupi-guarani
cultura de um PP: É a mesma questão que se apre- com a civilização inca, é muito dife-
mundo que senta para nós. Desde o final do sécu- rente. Para entender a questão da escri-
se julgava
lo passado, a grande pergunta nossa ta no Brasil é preciso entender o
homogêneo e que
se descobre é: afinal, quem somos nós? E como império jesuíta, porque na verdade não
heterogêneo. nos pensar? Esse que é o grande é o Império de Portugal, mas a Com-
Como pensar a problema. Que categorias usar para panhia de Jesus que chega aqui. Penso
diferença?
pensar quem somos? particularmente em Anchieta, mais do
Hébrard: Trata-se de uma catego- que em Nóbrega, que teve essa idéia de
ria difícil de construir, mas que é muito inventar, com o homem neolítico, uma
importante: é a categoria do que não civilização da escrita. Como transferir
pode ser pensado. Organizar nosso sis- para o homem neolítico uma parte da
tema de conhecimento com uma peque- civilização, uma das civilizações mais
na gaveta para depositar o que nesse fortes da cultura ocidental, que é a civi-
momento não somos capazes de pensar. lização dos jesuítas? Na verdade, os

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jesuítas são os maiores intelectuais do outros países. Essa correlação entre
JEAN HÉBRARD mundo ocidental no século XVI. memória oral e memória escrita é uma
Anchieta não tinha muita educação for- especificidade da cultura brasileira.
mal, mas os jesuítas eram a maior insti- Uma conseqüência é a presença da poe-
tuição de cultura naquele momento. sia, na literatura. Não conheço país onde
Diante deles, os índios tupinambás. É a poesia seja tão forte na literatura. As
fascinante. Como resolver essa con- pessoas da rua conhecem poesia, pes-
tradição? É o Brasil. soas com pouca educação escrita gostam
Como uma colônia vai desenvolver de poesia. Penso que isso é muito impor-
uma cultura da escrita sem a imprensa? tante para entender bem qual a relação
Sem a imprensa, mas com duas coisas do Brasil com a escrita.
A escrita é um bem mais fortes que a imprensa: a língua
sistema parcial de
e a própria escrita. Por isso a cultura PP: Então o Brasil não é um país da
memorização, não
total. É importante manuscrita é uma coisa muito impor- falta da escrita, nem um país de uma
pensar que no tante no Brasil. Eu penso que grande presença positiva, dominante da
Brasil, a escrita parte do patrimônio cultural brasileiro escrita...
não foi suficiente
ainda não é conhecido, é todo um Hébrard: Há inter-relação entre as
para destruir a
capacidade do patrimônio manuscrito. É preciso reen- duas, a falta e a presença. É um labo-
trabalho oral. Ele contrar esse patrimônio manuscrito do ratório de invenção do pensamento, de
permaneceu bem Brasil. A relação do Brasil com a escrita uma maneira diferente de entender o
mais que em
é uma relação paradigmática. Até o mundo. No Brasil, a permanência da
outros países.
Essa correlação momento da vinda da Corte, só existia retórica, que é exatamente o lugar dessa
entre memória oral no Brasil – e hoje ainda existe – essa confluência entre o oral e o escrito, é
e memória maneira de pensar dentro da escrita, não muito forte. A retórica como sermão,
escrita é uma
a escrita impressa, mas a escrita manus- lugar da conversão, da crença. O Brasil é
especificidade da
cultura brasileira. crita. Por isso são muito importantes os uma sociedade que funciona muito na
trabalhos que investiguem como se faz base da crença. Nós, particularmente na
no Brasil essa intervenção entre o oral e França, funcionamos negando a crença,
o escrito, entre a memória oral e a escri- mas, na verdade, a negação da crença é
ta. A escrita é um dispositivo, uma arte uma crença. A posição científica é muito
da memória, que não elimina a memória. presente na França, desde o século XVII.
A escrita é um sistema parcial de memo- Isso é muito forte. Mas a capacidade de
rização, não total. É importante pensar explicitar a crença e não escondê-la tem
que no Brasil, a escrita não foi suficiente uma força que não existe em todos os
para destruir a capacidade do trabalho países, em todas as civilizações. No
oral. Ele permaneceu bem mais que em Brasil, existe. •
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As RELAÇÕES de GÊNERO
no Ensino Fundamental:
temas TRANSVERSAIS
e prática DOCENTE
ALESSANDRA LUISA TEIXEIRA*
MARIA MADALENA SILVA DE ASSUNÇÃO**

A s reflexões acerca das relações de gênero, até há poucos anos


presentes apenas nos meios acadêmicos, passam atualmente a
fazer parte das discussões e debates em revistas, jornais, televisão,
Internet. Apesar disso, nem sempre há uma clareza em relação a
esse conceito e por isso optamos por apresentar, mesmo que pareça
repetitivo, a concepção de gênero que orienta estas discussões.

*Pedagoga, bolsista de aperfeiçoamento na FAE/UFMG.


**Professora de Psicologia do Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI. BH.
Imagem: La mère laboriense, 1740, Jean-BaptisteChardin.
AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO FUNDAMENTAL: TEMAS TRANSVERSAIS E PRÁTICA DOCENTE

Entendemos gênero como anos, fundamentaram-se nas dife- que vimos surgir a preocupação de
uma construção social e histórica renças de gênero, de modo que a trabalhar tais questões na sala de
que ocorre envolvendo o corpo do reflexão sobre as relações de aula. Nesse sentido, a proposta em
homem e da mulher em sua poder estabelecidas entre homens relação ao tema transversal "Ori-
dimensão biológica. Por tratar-se e mulheres se tornou condição entação Sexual" objetiva a re-
de uma construção histórica e para o exercício da plena cidada- flexão e a discussão sobre sexo e
social, as relações entre homens e nia, principalmente para as mu- sexualidade como expressão do
mulheres e os conceitos de mas- lheres. Em conseqüência dessas ser humano desde seu nascimento.
culino e feminino são plurais e relações historicamente desiguais, Incluem-se nessa discussão as
diversificados em culturas dife- vem-se observando, atualmente, o questões atinentes às relações de
rentes e até em uma mesma cul- surgimento de novos modelos de gênero, às doenças sexualmente
tura, em função da classe, religião, relacionamento entre homens e transmissíveis, principalmente a
raça, idade etc. Sendo assim, os mulheres e, nesse sentido, as AIDS e a gravidez na adolescên-
discursos, as representações e as questões relacionadas à sexuali- cia.
relações entre homens e mulheres dade e às relações de gênero pas- Mesmo reconhecendo o estrei-
estão em constante transformação saram a fazer parte dos temas to vínculo existente entre esses
e mudança. transversais propostos pelos temas, optamos por enfatizar as
Nos últimos anos, a conquista PCNs – Parâmetros Curriculares questões relacionadas ao gênero,
feminina de novos espaços sociais Nacionais. pois, mesmo estando os temas
e políticos tem trazido à tona Foi, portanto, a partir de uma estreitamente imbricados, falar
questionamentos acerca de dis- realidade, a discriminação entre sobre sexualidade implica outras
criminações que, durante muitos gêneros, existente na sociedade, dimensões teóricas aqui não abor-

20 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


dadas. Consideramos, portanto, mente, elas estão sempre re- postas dadas por 14 alunos/as (9
que trabalhar com Orientação Se- feridas às representações que meninas e 5 meninos) na faixa
xual na escola pressupõe, antes de um dado grupo faz de femini- etária de 8/9 anos, da série e esco-
qualquer coisa, levar em conside- no ou de masculino; do mes- la mencionadas. Essa escola aten-
ração a construção das relações de mo modo, as identidades se- de a uma clientela predominante-
gênero, uma vez que os conceitos xuais também se produzem mente de classe média.
relacionados ao que é socialmente, através das dis- Nossa intenção não é fazer
pertencer a um ou outro tintas formas de experimentar uma análise comparativa entre
sexo se dá pelo tratamento prazeres e desejos corporais, livros infantis — didáticos e/ou
diferenciado para meninos e de pôr em ação a sexualidade. paradidáticos —, que tratam dessa
meninas, inclusive nas ex- (...) elas não são, pois, a mes- questão, tampouco uma análise
pressões diretamente ligadas à ma coisa, ainda que se consti- gráfica ou do valor estético da
sexualidade e pelos padrões tuam em instâncias extrema- obra, mas sim uma reflexão sobre
socialmente estabelecidos de mente articuladas e, freqüen- o conteúdo das respostas dadas
feminino e masculino. Esses temente confundidas. (Louro, pelos/as alunos/as às atividades
padrões são oriundos das re- 1998, p. 89) propostas pelo livro, de modo a
presentações sociais e cultu- discutir as representações já incor-
rais construídas a partir das Com o intuito de verificar poradas a respeito dos papéis
diferenças biológicas dos se- como as questões relacionadas ao socialmente definidos sobre o que
xos e transmitidas pela edu- gênero são percebidas por alu- é ser menino e ser menina.
cação, o que atualmente re- nos/as e escola, sugerimos a uma De acordo com o relato da pro-
cebe a denominação de re- professora da 2ª série do Ensino fessora, alguns pais — todos pais
lações de gênero. Essas repre- Fundamental, da rede privada de de meninos — questionaram o
sentações absorvidas são re- ensino de Belo Horizonte, traba- conteúdo do livro, talvez com
ferências fundamentais para a lhar com o livro Menino brinca receio de que esta leitura desviasse
constituição da identidade da de boneca?, de Marcos Ribeiro. seu filho do caminho da masculi-
criança. (PCN – Pluralidade Vale ressaltar que essas discussões nidade. Ou ainda pelo fato de que
cultural e orientação sexual – não faziam parte da proposta da muitas pessoas consideram ser
1ª a 4ª séries, p.118). escola, sendo aceitas pela profes- esses temas de responsabilidade
Apesar da estreita relação sora como um trabalho comple- exclusiva da família, não devendo,
entre identidade sexual e identi- mentar ao já definido em seu pro- portanto, fazer parte das dis-
dade de gênero, elas não são a grama de ensino. cussões da escola. Assim, caberia
mesma coisa, como lembra Guaci- Apresentamos aqui o resultado exclusivamente à família cuidar,
ra Lopes Louro: que tem como objetivo a reflexão com muito zelo, da pas-
...as identidades de gêne- sobre questões relacionadas ao sagem/construção de menino/ho-
ro são construídas social- gênero. São resultantes das res- mem/heterossexual.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 21


AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO FUNDAMENTAL: TEMAS TRANSVERSAIS E PRÁTICA DOCENTE

O livro de Marcos Ribeiro, batom, usar vestido, usar sutiã etc. nas, sendo que o ponto de concen-
que ora discutimos, apresenta pe- Quanto às desvantagens, as res- tração desse desejo encontra-se
quenos textos abordando as postas relacionam-se a comporta- em jogar bola, soltar pipa e se
relações de gênero, a partir dos mentos que são considerados co- sujar. Além disso, observamos
seguintes temas: comportamento, mo típicos de meninos e que elas também uma alta recorrência em
sentimentos, estética, brincadei- lamentam não fazer: tirar a blusa, relação a considerar desvantagem
ras, físico e moda. Após esses tex- fazer xixi na rua, não poder usar o fato de cuidar do irmão.
tos, o autor propõe ao leitor ques- barba e bigode, ser forte, não A criança, ao chegar ao espaço
tões relacionadas a cada tópico poder brigar, pular muro etc. Em escolar, já está marcada do ponto de
discutido. Trata-se de um exercício relação às brincadeiras menci- vista do gênero, e a escola, de modo
que possibilita às crianças ques- onam: não poderem brincar na geral, reforça essas marcas. A
tionarem padrões culturais acerca rua, na lama, de tapão, jogar bola, família é fortemente domesticadora
dos papéis e comportamentos soltar pipa e andar de carrinho de para ambos os sexos, pois, como
atribuídos socialmente a homens e rolimã. Em relação às atividades instituição social, acaba por assumir
mulheres. domésticas, apresentam como o papel, designado pela cultura e
Na primeira questão, o autor desvantagem de ser menina o fato pelas gerações precedentes, de
apresenta dois quadros a serem de cuidar do irmão. inculcar nas novas gerações os valo-
preenchidos com as vantagens e Apesar de essas meninas res e atitudes relativos à sexualidade
desvantagens de ser menino ou terem em média 8/9 anos de idade, e às relações de gênero.
menina. Os alunos completam o elas já demonstram em suas Por isso a escola ainda não
quadro destinado a MENINOS, respostas uma sólida incorporação pode contar, efetivamente, com a
enquanto as alunas completam o dos valores culturais, mas ao participação da família em inicia-
quadro intitulado MENINAS. mesmo tempo demonstram a não- tivas que abordem tais questões.
Nas respostas das meninas, aceitação do estabelecido e o dese- No entanto, qualquer trabalho que
observa-se que elas consideram jo da mudança. venha a desenvolver nesse sentido
como vantagens, para o sexo femi- Pelas respostas podemos não pode relegar o importante
nino, algumas brincadeiras: brin- inferir que existe, por parte das papel que a instituição familiar
car de boneca, de casinha, de car- meninas, uma tímida recusa das desempenha nessa construção. A
rinho; alguns comportamentos: das normas estabelecidas social- escola deve buscar meios não só
mostrar carinho, ter medo, ajudar mente, como também um desejo para a participação da família, mas
a mãe, e comportamentos rela- de ter acesso a brincadeiras con- também para que esta não difi-
cionados à moda e à beleza: passar sideradas culturalmente masculi- culte a realização do trabalho.

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É comum em nossa referente às vantagens e
cultura educarmos a desvantagens de ser meni-
menina, desde a mais nas e vice-versa, o que
tenra idade, para poderia trazer elemen-
exercer, futura- tos que mostrassem
mente, a mater- mais efetivamente
nagem. Infeliz- as representações
mente, nos es- acerca do outro
quecemos de e- sexo.
ducar o menino A segunda ques-
para exercer a pa- tão é composta pelas
ternagem, o que tal- perguntas: " Você tem
vez explique o alto algum colega que usa
índice de abandono dos brinco? O que você acha?",
filhos pelos pais, ratificando, "Você menino, usaria brinco?", "E
assim, a idéia de que a educação você menina, o que acha do meni-
do filho é responsabilidade da rinho, pular, andar de patins, cor- no de brinco?", "Cabelo comprido
mãe e que a presença do pai rer, lutar com pau e andar de car- tem problema?", "Você conhece
nessa relação não é tão impor- rinho de rolimã. Quanto às des- algum homem que usa bolsa a tira-
tante. Com esse modelo de edu- vantagens, observamos que estas colo?". Nessas respostas as meni-
cação, não estamos contribuindo dizem respeito aos comportamen- nas se mostraram mais flexíveis,
para a construção de homens e tos proibidos culturalmente para apresentando índices maiores de
pais mais sensíveis e carinhosos, os meninos, mas ao mesmo concordância com os comporta-
sem medo de demonstrar sensi- tempo desejados por eles: não mentos que normalmente são dis-
bilidade e afeto. poder ajudar a mãe a fazer o criminados para meninos. Já as
Os meninos, por sua vez, almoço, não poder chorar, não respostas dos meninos apresen-
apontaram como vantagens de ser poder ter medo. Além de não taram menor índice de tolerância
menino aspectos relacionados a poderem participar das brin- em relação a usos considerados,
comportamentos e brincadeiras, cadeiras de meninas: não poder socialmente, pouco comuns para
os quais apresentamos em ordem brincar de boneca, não poder os homens. Talvez essa rigidez
decrescente de preferência: tirar a pular com as meninas. seja conseqüência de uma forte
blusa na rua, se sujar, pular muro, Salientamos que a orientação repressão social em relação ao uso
tomar banho rápido, levantar do livro não é clara o suficiente de determinados adereços, o que
peso, não chorar, fazer xixi na para que a questão seja explorada não ocorre no caso das meninas,
rua, escalar montanha, jogar fute- em sua totalidade, pois os meni- que, ao contrário, são incentivadas
bol, soltar pipa, brincar de car- nos não preencheram o quadro a se enfeitarem.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 23


AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO FUNDAMENTAL: TEMAS TRANSVERSAIS E PRÁTICA DOCENTE

A partir dessas respostas, para meninas?". Algumas meninas que os meninos?" Em relação a
parece-nos que os meninos tendem conseguiram apontar para a pers- esse item observamos que a maio-
a se mostrar mais estereotipados pectiva do arbitrário, ou de ser ria dos meninos consideram as
que as meninas, pois os primeiros "apenas" uma "escolha", enquanto meninas mais frágeis porque elas
ainda são alvo de maior pressão no os meninos manifestaram posição choram, são molengas ou mais
sentido de uma tipificação quanto contrária, não conseguindo inferir delicadas. Quase a metade das
a comportamentos. Nesse sentido, que a relação cor/sexo faz parte de meninas concordou com os meni-
parece haver um receio, por parte uma construção cultural e social. nos. Outra questão nesse mesmo
da família, da escola e de outras No entanto, para a maioria das item foi: "Você conhece alguma
instituições sociais, receio este, já meninas e dos meninos essa menina que é mais esperta que
incorporado pelos meninos, de que relação foi considerada como muito menino?". As respostas a
o uso de adereços poderá transfor- natural e simbiótica, ou seja, como essa pergunta refletem bem as re-
má-los em homossexuais. Em con- se nas cores já houvesse a priori as presentações prevalecentes em
trapartida, a questão da homos- características do sexo a que são nossa sociedade em relação ao
sexualidade feminina ainda faz associadas e, em conseqüência gênero. Os meninos foram unâni-
parte de um terreno menos visível, disso, o azul passasse a ser mas- mes em afirmar que não conhe-
ou mais silenciado. culino e o rosa, feminino. cem alguma menina mais esperta
Na terceira questão, o autor A quarta atividade traz as que os meninos; já as meninas se
pergunta: " Por que o azul é uma seguintes questões: "Você acha dividiram entre respostas negati-
cor usada para meninos e o rosa que as meninas são mais frágeis vas e afirmativas.
Ainda nessa questão o autor
pergunta: "Existe alguma coisa de
errado nisso?" (no fato de as meni-
nas serem mais espertas). Todos os
meninos responderam que nada há
de errado nisso, porém, como foi
visto, nenhum deles conhece uma
menina mais esperta. Das nove
meninas, sete responderam que
nada há de errado nisso. Duas
meninas responderam que há algo
de errado no fato de a menina ser

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construída em relação ao femini-
no/masculino? Será que o interesse
das meninas pelas brincadeiras dos
meninos não representaria uma
tentativa inconsciente de acesso ao
universo masculino, mais valoriza-
do social e culturalmente?
Na última atividade o autor
apresenta duas agendas, uma re-
mais esperta, reafirmando e as- enquanto apenas um menino não ferente ao horário do pai e outra
sumindo assim a suposta ingenui- via nada de errado nesse fato. referente ao horário da mãe, mos-
dade feminina. Podemos assim inferir que os trando a disparidade entre as atri-
Também a quinta questão é meninos se mostram mais rígidos buições da mulher dona-de-casa e
composta por uma série de pergun- em relação à transgressão dos as atividades do homem. A seguir
tas: "O que os meninos podem comportamentos considerados o autor faz a pergunta: "Na sua
fazer?", "O que os meninos não masculinos. casa como é que acontece"? Os/as
podem fazer?", "O que as meninas Em todas as questões desse alunos/as deveriam preencher a
podem fazer?", "O que as meninas bloco de atividade, os maiores agenda do pai e a da mãe. A per-
não podem fazer?", "Menino pode índices de respostas favoráveis à gunta final é: "Você acha que está
brincar de boneca?", "Menina pode transgressão de comportamentos certo que seja sempre assim"?
subir em árvore?", "É feio menino foram encontrados nas respostas Entendemos que, com essa
que brinca de casinha?", "Menina das meninas. Mas, felizmente, questão, o objetivo do autor era o
pode jogar bola, soltar pipa e jogar comportamentos, valores, atitudes de transpor a discussão das
bola de gude?". Constatamos que não são tão mecânicos como ten- relações de gênero, até o momen-
as respostas dadas a essas pergun- demos a pensá-los, e assim, meni- to voltada para as experiências da
tas vieram reafirmar nossa hi- nas não aceitam, como já vimos, criança, para as experiências e
pótese inicial de que, mesmo em tão passivamente a dicotomia apre- realidade do mundo adulto. En-
tão tenra idade, meninos e meninas sentada para os diferentes sexos, e tretanto, essa questão não foi ade-
já passaram por um processo de sentem-se atraídas pelos "jogos de quadamente respondida pelos/as
internalização dos papéis social- meninos", enquanto os meninos alunos/as, que se limitaram a
mente definidos quanto ao gênero. raramente se deixam atrair pelas preencher o quadro apresentado
Exemplo desse fato foram as brincadeiras de meninas. Esse fato pelo autor. Supomos, desse modo,
respostas dadas à pergunta sobre o poderia ser entendido como sim- que a professora não tenha dado
brincar de boneca. Apenas uma ples desinteresse em relação às ênfase a essa questão ou não
menina não concordou com o fato "brincadeiras de meninas" ou tenha compreendido a proposta
de menino brincar de boneca, teríamos que pensar na imagem já do autor.

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AS RELAÇÕES DE GÊNERO NO ENSINO FUNDAMENTAL: TEMAS TRANSVERSAIS E PRÁTICA DOCENTE

No decorrer da análise das que as meninas também sobre como efetivar os temas
respostas às questões apresentadas gostam de chutar bolas. O que transversais propostos pelos Pa-
no livro Menino brinca de importa aqui é a maneira râmetros Curriculares Nacionais.
boneca?, foi possível constatar como os adultos aprovam ou Talvez possamos entender tais
que, ainda em tão tenra idade, 8/9 desaprovam tais transgres- dificuldades como um refúgio
anos, as crianças já passaram por sões, o que vai deixar claro os para o silenciamento sobre essas
um sólido processo de construção modelos prevalecentes. Quan- questões.
das relações de gênero, ao mani- do chegam à escola, os pe- Trabalhar com as questões
festarem concepções a respeito de quenos atores carregam tais relacionadas ao gênero constitui,
comportamentos, valores e ati- modelos, reforçados para a ainda, um grande desafio: para os
tudes típicas daquelas conside- menina, hoje mais do que pais que temem, mesmo que
radas como padrão para meninos e nunca, baseando-se em bo- inconscientemente, que seu filho
meninas em nossa sociedade. necas em série, cada vez mais se torne afeminado, que sua filha
Pensamos, no entanto, que desejadas nos desvarios da transgrida os padrões de compor-
esse tipo de trabalho, mesmo que a sociedade de consumo. (Whi- tamento aceitos socialmente para a
princípio pareça pouco efetivo, taker, 1995, p.40) mulher; para professores que nem
representa uma oportunidade para sempre detêm o conhecimento
discutir e procurar modificar tais Com essas discussões pre- teórico sobre o assunto e, muitas
posições, pois felizmente a identi- tendemos chamar a atenção para a vezes, incorporaram e vivem va-
dade de gênero nunca está pronta importância de se trabalhar no
ou acabada em um determinado espaço escolar o tema “Orientação
momento: ela está sempre se cons- Sexual,” aí incluídas as relações de
tituindo, e por isso é instável e gênero. Queremos chamar a aten-
passível de transformações. ção também para as inúmeras difi-
Ao apresentarmos tais dis- culdades ainda encontradas para a
cussões, assim como Dulce Con- realização desse trabalho: resistên-
suelo Andreatta Whitaker salienta, cia dos pais; ausência de investi-
Não estamos ignorando mento e de propostas efetivas, por
que meninos, às vezes, acom- parte da escola; dificuldades teóri-
panham suas irmãs ou amigui- cas e pessoais do/a professor/a;
nhas em brinquedos de casi- falta de clareza, por parte da esco-
nha. E nem nos esquecemos de la, professores/as, pais e alunos/as

26 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


lores preconceituosos em relação formam, informam, deformam... Concluímos afirmando que,
ao ser homem ou mulher na principalmente nossas crianças e ao trabalharmos com as questões
sociedade; para a escola, que até adolescentes. referentes ao gênero na escola,
o momento ainda não conseguiu Ora, parece impossível poderemos estar combatendo as
definir a forma de trabalhar os separar a escola de tudo isso. relações autoritárias, os padrões
temas transversais, transforman- Se a escola é uma instituição rígidos de comportamento defi-
do-os, muitas vezes, em tópicos de social ela está, obviamente, nidos culturalmente para os dife-
uma determinada disciplina. envolvida com as formas cul- rentes sexos, e buscando assim
Apesar de todas essas dificul- turais e sociais de vivermos e transformações que apontem para
dades, entendemos ser a escola constituirmos nossas identi- a eqüidade nas relações, ainda tão
um espaço onde as questões rela- dades de gênero e nossas díspares, entre homens e mulhe-
cionadas ao gênero eclodem, e identidades sexuais. (Louro, res.
não há como silenciar sobre elas, 1998, p. 88)
pois o próprio silenciamento já Referências bibliográficas /
evidencia valores referentes às Ressaltamos ainda que, para o Sugestões de leitura

relações entre homens e mulheres. tema Orientação Sexual — aí BRASIL. Secretaria de Educação Funda-
mental. Parâmetros Curriculares
No entanto, entendemos que esse incluídas as relações de gênero, as Nacionais: pluralidade cultural, orien-
tação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997.
trabalho só terá sucesso se houver doenças sexualmente transmis- 164p.
_____. Parâmetros Curriculares Nacionais:
uma constante interlocução entre síveis, a gravidez na adolescência
terceiro e quarto ciclos: apresentação
escola e família. Além disso, ou- — ser trabalhado nas escolas, dos temas transversais. Brasília:
MEC/SEF, 1998. 436p.
tras instâncias sociais, como a torna-se necessária uma formação FELIPE, Jane. Sexualidade nos livros infan-
tis: relações de gênero e outras impli-
Igreja e a mídia, não podem ser de professores diferente da que cações. In:MEYER, Dagmar E. (Org.)
Saúde e sexualidade na escola. Porto
negligenciadas, pois elas também temos, atualmente, em nossos cur- Alegre: Mediação, 1998. p.111-124..
sos de graduação, seja nas licen- LOURO, Guaciria Lopes. Sexualidade:
lições da escola. In: MEYER, Dagmar
ciaturas — Educação Física, Geo- E. (Org.) Saúde e sexualidade na
escola. Porto Alegre: Mediação, 1998.
grafia, História, Letras, Mate- p.85-96.
_____. Gênero, sexualidade e educação:
mática etc —, ou na Pedagogia, uma perspectiva pós-estruturalista.
pois serão os profissionais dessas Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. 179p.
RIBEIRO, Marcos. Menino brinca de
áreas que estarão nas escolas tra- boneca? Conversando sobre o que é
ser menino e menina. 4.ed. Rio de
balhando, sem nenhuma formação Janeiro: Salamandra, 1990. 56p.
WHITAKER, Dulce Consuelo Andreatta.
específica, com os temas transver- Menino-menina: sexo ou gênero?
sais. Tendo em vista essa reali- Alguns aspectos cruciais. In: SERBINO,
Raquel Volpato & GRANDE, Maria
dade, faz-se necessário e urgente Aparecida Rodrigues de Lima (Orgs.).
A escola e seus alunos: estudos sobre
criar e viabilizar novas perspecti- a diversidade cultural. São Paulo: Edi-
tora da Universidade Estadual
vas de qualificação para os profes- Paulista, 1995. p. 31-52.
sores.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 27


TRABALHO E
EDUCAÇÃO:
a proposta do MST
ANTONIO JÚLIO DE MENEZES NETO*

O trabalho rural sempre foi considerado como desqualificado,


prescindindo de treinamento prévio, ao contrário do trabalho
urbano-industrial, que sempre exigiu alguma forma de treinamen-
to ou adestramento dos trabalhadores. O pequeno produtor, por
exemplo, vivendo uma realidade distante do modo capitalista, não
vê necessidade de maiores investimentos em sua formação profis-
sional. Nos sindicatos de trabalhadores rurais, observa-se a pouca
importância dada a essa questão. Possivelmente, por ser mais
urgente a luta pela terra, a educação escolar e seus efeitos sobre o
mundo do trabalho rural não têm tanta importância... E o sistema
educacional oferecido às crianças e aos jovens do campo encon-
tra-se em estado de quase abandono. Entretanto, o Movimento dos
Sem-Terra dá grande ênfase à educação e mantém uma escola de
Ensino Médio que une o ensino ao trabalho, numa proposta pró-
xima à idéia da politecnia.

*Professor da Faculdade de Educação da UFMG.


*Imagem: Composição, 1962, Victor Vasarely.
TRABALHO E EDUCAÇÃO: A PROPOSTA DO MST

Os assentamentos, advindos A proposta política do MST, tração da terra e alavancar um


das ocupações de terras, mesmo ao apesar de ter por base a reforma desenvolvimento da agricultura,
arrepio da legalidade, mostram um agrária, procura ir além, tentando construindo um novo modelo
grau de organização, e muitas organizar o trabalhador rural tam- econômico. Afirma que a tecno-
vezes de produtividade, bem satis- bém na luta por melhores salários logia de ponta nas indústrias traz
fatórios, principalmente em relação e na luta contra os grandes grupos o desemprego e que a reforma
às dificuldades vividas pelo produ- que monopolizam a terra e o capi- agrária estaria resolvendo pelo
tor pobre. Com avanços e recuos, tal. Busca apoio dos trabalhadores menos o problema da fome, mes-
entre diversos problemas referen- urbanos para a sua causa, reafir- mo dentro do capitalismo. O
tes à sua proposta, o MST busca mando sempre que a luta pela terra modelo discutido, apresentado e
organizar a produção de forma não é exclusiva dos trabalhadores proposto por João Pedro Stédile
coletiva, caminhando na contramão do campo. baseia-se numa postura de efi-
das idéias globalizantes e neoli- João Pedro Stédile, um e- ciência produtiva aliada a uma
berais. Busca ainda propiciar conomista que é uma das princi- reforma social e política, des-
melhores condições de vida nos pais lideranças do MST, propõe fazendo as análises que vêem no
assentamentos, como demonstra a reforma agrária como uma MST apenas um projeto de políti-
sua preocupação com a educação. necessidade de reduzir a concen- cas sociais. Stédile afirma:

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(...). Todos os casos de
assentamento que têm uma
boa produção, uma alta pro-
dutividade e um crescimento
econômico, são coletivos. A
política oficial do movimento
é estimular ao máximo a coo-
peração agrícola, nas suas
várias etapas, porque os inves- leite em saquinho etc. Produzem-se O projeto do MST apresenta
timentos em comum para de- também sementes agroecológicas o trabalho como um processo
senvolver essa cooperação em suas cooperativas, principal- educativo. Baseia-se na premissa
agrícola exigem uma base mente aquelas situadas no Sul do da íntima relação entre trabalho e
político-ideológica mais avan- Brasil. Em resumo, o MST tem escola no meio rural e nas análises
çada. É muito difícil conseguir diversas cooperativas funcionando e da escola politécnica que mar-
que um camponês atrasado produzindo. caram as discussões acerca de
politicamente adira à coo- Mas para encaminhar esse tra- "qual escola interessa aos tra-
peração agrícola. Com a coo- balho, o movimento sabe que balhadores".
peração agrícola há cres- necessita qualificar os seus com- O MST apresenta nos "Princí-
cimento econômico nos as- ponentes. É nesse sentido que pios da Educação no MST”, de
sentamentos, e o resultado em investe em seu projeto educativo e 1996, uma proposta educacional
vez de vir pelo aburguesamen- em suas escolas de formação que não aparece como direciona-
to, como muita gente poderia profissional. da para um público camponês
pensar, com o trabalho políti- tradicional, apesar de buscar ser
co, ele rende em militância. O trabalho e a uma escola pensada no campo e
(1996, p.11) educação no campo não para o campo, valorizando
Recente pesquisa da FAO, enti- dessa forma a vida, a cultura e o
dade ligada à ONU, constatou que a O MST dedica grande trabalho do camponês. Mas as
renda média das famílias assentadas importância às escolas. Atuam nos propostas apresentadas pelo movi-
chega a 3,4 salários mínimos men- assentamentos cerca de 1.500 pro- mento para o seu projeto educati-
sais por família, e onde existem fessores, trabalhando com mais ou vo inserem-se nas propostas da
agroindústrias em funcionamento, menos 50.000 alunos. Ressalte-se escola unitária. O modelo escolar
caso mais comum no sul do Brasil, que são escolas públicas, sob a está próximo da educação voltada
a renda média mensal sobe para 5,6 direção do MST. Apenas uma para o mundo do trabalho coope-
salários mínimos. O movimento escola — a de formação profis- rativo e agroindustrial do MST.
também possui indústria de lati- sional — o movimento mantém Isto porque busca conciliar a
cínios que produz leite longa vida, com recursos próprios. importância que o sujeito cam-

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 31


TRABALHO E EDUCAÇÃO: A PROPOSTA DO MST

ponês dedica ao trabalho no con- E é nesse sentido de uma esco- uma de suas práticas as várias
texto da escola com novas neces- la politécnica que o projeto educa- dimensões da pessoa humana
sidades de formação profissional tivo do MST busca romper com a de um modo unitário ou associ-
evidentes no mundo de hoje, sem milenar separação teoria/prática, ativo, em que cada dimensão
capitular frente ao projeto neoli- manual/intelectual. Propõe que a tenha sintonia com a outra,
beral. Não existe um direciona- educação seja integral, múltipla, tendo por base a realidade
mento único, pois as realidades no reintegrando as várias esferas da social em que a ação humana
campo são diversas e o MST vida humana: vai acontecer. (Princípios,
busca contemplar e respeitar essas Estamos defendendo então 1996, p.8)
diferenças. Mas existem princí- que a educação no MST as- Os Princípios da Educação do
pios que norteiam o projeto edu- suma este caráter de unilate- MST buscam romper com a velha
cativo. ralidade, trabalhando em cada lógica capitalista de fragmentação
do conhecimento, sem perder de
vista a disputa pelo controle da
tecnologia, da ciência, trabalhando
com parâmetros que superam a
simples resistência, pois apresen-
tam propostas concretas. Desse
modo, também o projeto educa-
cional do MST seria alternativo ao
projeto homogeneizador do capi-
talismo globalizado.
No livro Coragem de Educar
(1994), publicado pela Fundep,
uma fundação educacional ligada
ao MST, existe uma discussão
acerca da cooperação agrícola,
fundamental ao projeto educativo
do MST. Nesta discussão,
propõe-se a construção de Agro-
vilas para tirar o trabalhador rural
do isolamento, possibilitando a

32 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


construção de escolas, postos de
saúde e uma vivência social mais
próxima. A produção e comercia-
lização cooperativa seria a pri-
meira forma de ampliar o limite
artesanal e de ter contato com o
mercado, com o objetivo da agro-
industrialização dos produtos.
Este processo cooperativo é con-
trolado pelos trabalhadores, desde
a produção até a comercialização
e a distribuição, passando pela
pesquisa genética. Para isso,
existe um desafio da escola para
reeducar os sujeitos. Essa reedu- TAC: A Escola uma escola de nível médio ofereci-
cação implica importantes dis- de Formação da para jovens do campo, princi-
cussões educativas, como a pre- Profissional do MST palmente para jovens de poucos
paração para a produção, para o recursos financeiros.
trabalho coletivo e para a popula- O MST tem trabalhado essas Já o curso de Magistério é um
rização da ciência. Tudo isso den- teorias, confrontando-as com a sua curso supletivo que cumpre as
tro da radicalidade democrática, prática de uma maneira conflitu- exigências legais. O curso é de
da vivência ecológica, da for- osa e diferenciada. O movimento é dois anos, divididos entre uma
mação político-ideológica, da pobre e luta com muitas dificul- parte presencial ( nas férias) e uma
revisão dos modelos tecnológi- dades. O MST mantém cursos de parte realizada a distância. Atual-
cos, com a construção e vivência formação profissional nas áreas de mente está sendo ampliado para
de uma ética solidária e a recons- Magistério no Rio Grande do Sul e dois anos e meio. Os alunos são
trução da identidade cultural e no Espírito Santo, e de Técnico em jovens e adultos com alguma
popular. Administração de Cooperativas experiência de magistério e algu-
Situar o processo educativo no no Rio Grande do Sul. Nesses cur- ma ligação com o movimento.
trabalho é um passo para a supera- sos, procura vincular o processo Funciona em caráter nacional e é
ção do ensino tradicional, buscan- de educação a algum tipo de exclusivo para educadores de
do o conhecimento no mundo inserção econômica. Caldart e assentamentos. Ressalte-se que,
material da produção humana, Cerioli, ambos do setor educativo com todas as suas limitações,
principalmente para o trabalhador do MST, produziram trabalhos busca-se trabalhar de acordo com
do campo, onde a escola já é vista sobre o funcionamento desses cur- os princípios educativos do movi-
como um espaço de trabalho. sos. Destaca-se a importância de mento (Caldart, 1997).

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 33


TRABALHO E EDUCAÇÃO: A PROPOSTA DO MST

Já o curso de Técnico em Antes, os alunos eram desafia- eixos interligados: a organização


Administração de Cooperativas dos, pelo Animador Pedagógico, a da cooperativa, a qualificação téc-
localiza-se no município gaúcho de montar uma empresa real, que nica e a educação geral humanísti-
Veranópolis. Possui estatuto legal deveria, inclusive, manter finan- ca . A escola, cujo nome é Josué
como um curso supletivo de Ensino ceiramente uma parte do curso. de Castro, visa implantar e con-
Médio, sendo o MST, através do Esse patrimônio real que os alu- solidar empresas associativas
Iterra e da Concrab, o responsável nos deveriam gerir implica o rurais e tem como objetivos
econômico, político e pedagógico movimento de prática e teoria. Os desenvolver a consciência de
por ele. A duração é de dois anos e recursos eram repassados pela organizacão com mentalidade
meio, divididos em seis etapas, Concrab para os alunos. Desde a empresarial e ética, capacitar os
sendo obrigatório o estágio nos segunda turma, esse processo alunos na gestão empresarial
assentamentos e um trabalho pedagógico, depois de feitas as cooperativa, aprofundar conheci-
monográfico final, defendido pe- devidas avaliações, foi abandona- mentos sobre a proposta do sis-
rante banca e colegas. Surgiu em do em troca de um novo projeto no
1992, tendo por base um Labo- qual toda a escola é uma empresa,
ratório de Curso (OFOC) dirigido com o envolvimento de todos os
pelo Professor Clodomir Santos de alunos de todos os cursos.
Moraes. Este método tem origem Os alunos recebem, inicial-
na década de 1960, nas Ligas Cam- mente, os conteúdos teóricos.
ponesas e foi recomendado pela Nessas teorias iniciais, discute-se
OIT — Organização Internacional a organização do trabalho. Os
do Trabalho — e pela FAO — alunos são desafiados também a
Organização das Nações Unidas montar um jornal ou boletim
para a Agricultura e a Alimentação. informativo para circular na esco-
Até o ano de 1997, haviam ini- la. Além disso, têm de elaborar
ciado o curso 233 alunos, prove- um plano de trabalho, pois a pro-
nientes em sua grande maioria do posta da escola é que ela seja
sul do Brasil e indicados pelo autogerida pelos alunos. Devem
MST. Também existem alunos decidir, e aprovar em assembléia,
indicados por sindicatos de traba- a proposta metodológica, as ofici-
lhadores rurais e por cooperativas nas, a produção e a comercializa-
urbanas. ção. O curso tem três grandes

34 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


tema cooperativista autoges- pelos alunos, deveria dar consulto-
tionário dos assentados, desen- ria sem tutela, pois a responsabi-
volver habilidades pedagógicas lidade seria deles, que deveriam ir
para a cooperação e ampliar o passando de um estágio inicial de
horizonte dos alunos para o anomia e descontrole, para um
entendimento da realidade. estágio de planejamento e organi-
Inicialmente o Animador Pe- zação final. Esse processo tam-
dagógico é o contato dos alunos, bém foi reavaliado e hoje esta
mas, com o desenrolar do curso, empresa é um sistema de co-
ele afasta-se, para não criar gestão dos alunos, com direção da
dependência. Na primeira turma, escola e da Concrab.
a relação dos alunos com a pro- A escola funciona, pois, em
dução e a comercialização era regime de co-gestão entre a di-
através da EAP (Empresa de reção e os alunos. Estes são res- A Escola Josué de Castro fun-
Assessoria Pedagógica), ligada ao ponsáveis pelas mais diversas ciona como uma empresa, buscan-
sistema cooperativista do MST. atividades, tais como trabalhar na do, dessa forma, conciliar o estu-
Essa empresa, que era contratada horta, na padaria, numa pequena do teórico e a prática. Mas não é
agroindústria de doces, conservas uma empresa para competir e
e geléias, na limpeza da escola, na crescer individualmente. A escola
secretaria, na biblioteca, nas salas trabalha dentro de sólidos ideais
de estudos, na comercialização de cooperação e se compromete
dos produtos, nas finanças e no com o socialismo. O conteúdo
planejamento. Normalmente as teórico é voltado para a transfor-
aulas são realizadas no período da mação social, buscando construir
manhã, e no período da tarde os uma sociedade diferente. Assim,
alunos trabalham nas atividades conscientes dessa missão, os
citadas acima. O período da noite alunos dedicam-se com esforço ao
é reservado para reuniões de avali- seu aprendizado e ao crescimento
ação, planejamento e atividades da escola, contribuindo, inclusive,
culturais. Trata-se, portanto, de com o seu trabalho para mantê-
uma escola que busca dar uma for- la.Os alunos também são cobra-
mação integral ao aluno. É impor- dos pelos assentados e pelas coo-
tante salientar que a formação perativas, que ajudam a manter a
profissional é trabalhada em todas escola e sabem que necessitam
as etapas, ou seja, produção, desses profissionais que estão for-
comércio e administração. mando.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 35


TRABALHO E EDUCAÇÃO: A PROPOSTA DO MST

Para não deixar de viver a laços familiares e comuni- com seus pares, unidos num só
prática do trabalho, realizam via- tários. Duplamente entre pa- objetivo: formarem-se e ca-
gens, e em cada etapa do curso res, na condição de jovens e de pacitarem -se.
existe um período chamado de TC assentados, eles vivem um A Escola Josué de Castro,
(tempo comunidade), destinado a processo de transformação mantida por um movimento social
um estágio obrigatório num as- através do ensino direcionado e sindical, apresenta diversas
sentamento. Nesse estágio, o e vivenciado na prática. Não especificidades, entre elas uma
aluno recebe as lições e é avaliado só na prática do gerenciamen- perspectiva mais ampla de for-
pelos cooperados e pela direção to de uma cooperativa, mas mação profissional, justamente
estadual do MST, criando-se, também na prática social de pelo fato de ser uma escola manti-
assim, um movimento dinâmico compartilhar, solidarizam-se da por um movimento social.
entre as teorias e a prática. No TE
(tempo escola) os alunos passam
dois meses em cada etapa, en-
volvidos em atividades de aulas,
estudo, oficinas, atividades cultu-
rais e participando da empresa que
gerem. Essa etapa é dividida em
diversos tempos: Tempo Aula (5
horas-aula por dia), Tempo Traba-
lho, Tempo Oficina, Tempo Edu-
cação Física, Tempo Reflexão
Escrita, Tempo Estudo, Tempo
Verificação de Leitura, Tempo
Cultura, Tempo Formatura, Tempo
Lazer. Andrade (1997, p. 259)
observa que:
Nos moldes alternativos
de funcionamento da escola, o
Tempo-Escola configura-se
como um novo processo de
socialização que ultrapassa os

36 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


Assim, tem um perfil definido princípios da escola unitária e
pelo movimento, conteúdos cur- politécnica, dentro de especifici-
riculares e práticos também de- dades necessárias à luta dos traba-
finidos pelo MST, além da seleção lhadores sem-terra, que possui
de alunos ser feita também pelo uma proposta mais global para o
movimento. Brasil, questionando não só a dis-
Mas não se pode perder de tribuição de terra, mas todo o mo-
vista a perspectiva de que essa delo econômico, social e político. Referências bibliográficas /
Sugestões de leitura
escola apresenta uma prática pen- Destaca-se a preocupação de
CALDART, Roseli S. Educação em movi-
sada sob os interesses dos traba- um movimento social e sindical mento. Petrópolis: Vozes, 1997.
_________________Formação de Edu-
lhadores e usa uma metodologia com a proposta de formação e cadoras e Educadores no MST: um
currículo em movimento. Contexto e
original, adaptada, reconstruída e escolarização de seus militantes e Educação, Ijuí, n.47, p.35-61, jul./set.
construída de propostas e práticas de sua base, pois a escola muitas 1997.
_________________A formação dos traba-
que pensaram a educação unida ao vezes foi vista pelos movimentos lhadores no MST: um estudo sobre o
curso técnico em administração de
trabalho. Assim, ela resgata os como uma instituição com pouco cooperativas. Porto Alegre, 1996.
Mimeo.
peso de transformação na so- CERIOLI, Paulo. Educação para a coope-
ciedade. E nesse período de confli- ração: experiência do curso técnico
em Administração de cooperativas do
tos sociais, tecnológicos, econô- MST. São Leopoldo: Unisinos-RS, 1997.
FUNDEP. Coragem de Educar. Petrópolis:
micos e políticos, a discussão Vozes, 1994.
IANNI, Otávio. Agricultura e mundializa-
acerca do papel da educação e da ção. Cadernos de sociologia.
formação profissional torna-se Out.1994.
MENEZES NETO, Antônio Júlio. Educação,
fundamental para o mundo do tra- sindicalismo e novas tecnologias nos
processos sociais agrários. Boletim Téc-
balho. Nesse sentido, o MST nico do SENAC. Ed. SENAC, v. 23, n.3,
set./dez.1997.
busca demarcar uma proposta __________________Globalização e mo-
político-pedagógica que, presa a dernização nas relações sociais no
campo e o projeto educativo do MST.
uma materialidade, apresenta a Contexto & Educação. Ijuí, jul./set.
1997.
escola como uma relação social __________________O MST e a escola
unitária. Economia Rural. Viçosa, n. 2
concreta. abr./jun. 1997.
PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO NO MST.
Pode-se dizer que é uma pro- Cadernos de educação n. 8. Movi-
posta que critica a fragmentação e mento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra, julho de 1996.
não busca apenas a qualificação STÉDILE, João Pedro. João sem terra.
Atenção, ano 2, n.6, 1996a.
de mão-de-obra para a hipotética __________________ O MST é um movi-
mento social. Cadernos do Terceiro
inserção no mercado capitalista Mundo. 197, nov./dez. 1996.
globalizado. Mas ao contrário, ___________________(Org.) A reforma
agrária e a luta do MST. Petrópolis:
está procurando caminhos alterna- Vozes, 1997.

tivos a um sistema excludente. •


v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 37
Por uma
PEDAGOGIA
do POÉTICO
MARIA AUXILIADORA CUNHA GROSSI *

C om bastante freqüência, os discursos erigem e refletem uma


linguagem em que as palavras, isoladas de sua magia de sig-
nificados, de sua possibilidade de invenção, imaginação e me-
mória, acabam condensadas, reproduzidas e reduzidas a um tipo
de desencantamento e de impossibilidade de transgressão e de
construção da leitura do mundo. Essas práticas provocam uma
ruptura entre o pensar e o sentir, disseminando linguagens padro-
nizadas, desencantadas, sem metáforas. Atribuem primazia à leitu-
ra dos textos voltada para a aquisição de conhecimentos formais e
não sensíveis da linguagem, desenvolvendo uma relação utilitária
com a palavra .

* Mestre em Ciências da Informação e Documentação pela ECA/USP.


Imagem: A cuca, 1924, Tarsila do Amaral.
POR UMA PEDAGOGIA DO POÉTICO

Encontramos na escola inú- entende por despertar poéti- bidas ilusoriamente como simples
meros textos poéticos, muitas co. Tudo isso permanece instrumentos, são lançadas como
vezes trabalhados de forma rígida muito marcado, muito nítido, projeções, explosões, vibrações,
e pouco criativa, inviabilizando como se poesia e declamação maquinarias, sabores: a escritura
um tratamento lúdico que poderia fossem conceitos antinômicos, faz do saber uma festa. (Barthes,
desenvolver-se pelo jogo das esta destinando-se a preser- 1989, p. 21)
palavras, pela imaginação, pela var aquela, e a suplantá-la
brincadeira. Encontramos também definitivamente no espírito A poesia — segundo Ba-
a leitura desses textos assemelhan- das crianças. (Porcher, 1982, chelard — continua a beleza do
do-se à eterna aula de declamação p.49) mundo, estetiza o mundo. Em seu
da escola primária, o que torna Nesse sentido, o que se produz livro Poética do devaneio, ele
reduzido e precário o espaço reser- é a linguagem informativa, sem nos fala da necessidade de uma
vado à poesia. Sobre esses usos da dar margem à possibilidade de ‘tomada de consciência da lin-
poesia na escola Louis Porcher uma relação mais sedutora e trans- guagem’ no nível dos poemas. A
afirma: gressora com a palavra. Se, ao linguagem poética abriria, então,
Nos dias de hoje ainda contrário, num outro universo de um infinito de possibilidades. Ao
continua existindo na escola percepção, tomamos a ‘escritura’, tratar dos devaneios voltados para
primária a velha e indes- como nos diz Roland Barthes, em a infância, o filósofo se refere à
trutível contradição entre as seu aspecto de imagens que suge- necessidade de desenvolvermos
finalidades atribuídas à aula rem formas, cores e significados, todos os privilégios da imagi-
de declamação e aquilo que se as palavras não são mais conce- nação.

40 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


Do devaneio poético di- os privilégios de uma comuni- Do latim, o termo audire,
ante de um grande espetáculo cação dos sentidos, é que requer o ouvir, saber de ouvido, ficar a
do mundo ao devaneio da redimensionamento das relações saber, entender já à primeira mão,
infância há um comércio de entre poesia e educação para que difere de escutar, auscultare , apu-
grandeza... Habitamos me- elas possam contribuir na efetiva rar o ouvido, "prestar ao que é
lhor o mundo quando o habi- transformação da linguagem, dito uma atenção que falta a
tamos como uma criança abrindo espaços de reflexão e cri- quem se limita a ouvir", pois
solitária habita as imagens. ação, de sensibilidade e autono- "falar é uma necessidade, escutar
Nos devaneios da criança, a mia. é uma arte". Uma pesquisa nos
imagem prevalece acima de Portanto, é preciso resgatar o dicionários de etimologia deixa
tudo... A criança enxerga ouvir poético, a poesia do texto; é clara essa diferença entre os dois
grande, a criança enxerga preciso chamar a atenção para esse termos. Refletir e praticar esse
belo... As raízes da grandeza ouvir, contra o desencantamento da escutar silencioso — escuta sen-
do mundo mergulham numa palavra poética que cria estereóti- sível que possibilita educar os
infância. O mundo começa pos, produtos acabados, em detri- ouvidos para a percepção dos
para o homem por uma revo- mento dos processos criadores; é níveis simbólicos e metafóricos
lução de alma que muitas preciso, enfim, trabalhar esse da linguagem, presentes na poesia
vezes remonta a uma infân- instrumento essencial à recepção e e nas diferentes formas compo-
cia.(Bachelard, 1960, p. 97) à fruição da poesia, possibilitando- nentes do fazer poético — con-
Dessa perspectiva, a lin- nos um estar no mundo entendido tribui, entre outros aspectos, para
guagem da imaginação, que busca pelo viés da sensibilidade. uma percepção interativa com a
própria linguagem de que o su-
jeito faz uso.
Ouvir e escutar exigem com-
portamentos diferenciados. A
relação simbólica e mágica com
os elementos sensíveis da lin-
guagem se dá quando escutamos,
quando levamos o texto a dialo-
gar com o contexto subjetivo cri-
ado de forma particular . Ouvir
pode tornar-se um gesto mecâni-
co que despreza os processos de
imaginação e memória que en-
volvem a compreensão da lin-
guagem.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 41


POR UMA PEDAGOGIA DO POÉTICO

sível’ provoca uma reação dos desinteresse pela leitura, a dificul-


sentidos e permite expressar este dade de expressão, as dificuldades
mundo que vai além dos limites da de interpretação de textos talvez
própria palavra, atinge o irreal, o pudessem ser, no mínimo, ame-
inefável, o extasiante e estabelece nizadas.
um conflito permanente com o Dessa maneira, acreditando na
mundo concreto, condição indis- poesia como um tecido libertador
pensável para pensá-lo, refleti-lo e das amarras que aprisionam a
transformá-lo. palavra e os sentidos, acreditando
Os problemas de escrita, com- na função lúdica da linguagem
preensão e interpretação de textos, poética como um antídoto à lin-
mais propriamente os dos alunos guagem normativa e acreditando
que cursam as séries mais avan- em sua natureza crítica, imaginati-
Em decorrência disso, "escu- çadas do Ensino Fundamental, va e criativa, torna-se necessária
tando" o tratamento dado à palavra pressupõem o fato de que essas uma pedagogia que se constitua
poética como forma encantada, dificuldades progridem em razão num aprendizado verbal cuja pri-
estaremos abrindo perspectivas a de um trabalho precário desen- vação, nos primeiros anos da edu-
leituras estéticas fundamentais, à volvido com a linguagem desde as cação, muitas vezes causa danos.
compreensão e percepção da lin- séries iniciais. Esse fato ocorre,
guagem poética como prazer. É, primordialmente, pelo tratamento
portanto, o princípio da linguagem indiferente dado à palavra, toman-
pelo que ela pode ser e não pelo do-a como objeto para mera de-
que dela podemos "aproveitar, uti- codificação. Trata-se de uma re-
lizar ou usufruir". O trabalho com lação que consiste, fundamental-
a poesia busca enfatizar priorita- mente, na valorização excessiva
riamente o desenvolvimento dessa dos elementos formais de repro-
escuta sensível. A ‘escuta’ é a dução. Se, ao contrário, a com-
leitura caracterizada por um mo- preensão da linguagem pelo su-
mento atencioso, perceptivo, pers- jeito se der a partir de suas expe-
picaz, que interpreta de diversas riências subjetivas, de uma relação
maneiras o objeto contemplado (o menos artificial com esse compo-
mundo) através da palavra; o ‘sen- nente essencial à comunicação, o

42 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


Uma pedagogia pela qual nos pos- com a autonomia, a diversidade, a
samos reiniciar nos ensinamentos ludicidade. Conseqüentemente,
estéticos oferecidos pela comuni- estimulam complicadas relações
cação poética, pela linguagem no nível da afetividade e da socia-
descoberta — de onde, na verdade, bilidade.
viemos quando crianças. Um esta- A rigor, de forma inconse-
do de ver, sentir e pensar que recu- qüente, nossa sociedade vem
pere a memória que perdemos e apresentando às crianças o
ignore a história fadada a compen- consumo como resposta à
diar-se na aridez das linguagens crise que as vitima. Leviana-
sem ressonância. Uma pedagogia mente, tentando imitar, mesmo
que, além de seu discurso próprio sem condições, exemplos nada
essencial, projete-nos para esta lisonjeiros de países de Pri- se veicula como um discurso
comunicação em diálogo com as meiro Mundo, onde a crise há excessivamente alheio aos senti-
outras formas de convívio, com- muito já está instalada, o país dos. Em muitos casos, essa comu-
portamento e criação humanos. vem estimulando fantasias nicação se faz um veículo limitado
Certas alternativas propostas consumistas compensatórias a modelos e padrões obsoletos,
por instituições mediadoras de para consolar nossas crianças gerados por essas práticas que se
cultura e educação tendem a do vazio de relações sociocul- pretendem educativas.
desenvolver um processo de mas- turais plenas. Tudo se passa Frutos desse contexto, foram-
sificação que vai aos poucos difi- como se graciosos ursinhos e se definindo paradigmas em
cultando a experiência do sujeito delicados cachorrinhos de função de uma ideologia que pre-
pelúcia pudessem substituir tende ‘conservar’ e ‘difundir’ a
com vantagens relações huma- cultura. O surgimento dessas pro-
nas subtraídas. (Perroti, 1986, moções culturais, em muitos casos
p. 23) — principalmente nos centros
maiores —, reflete as saídas
Coloca-se, então, em evidên- encontradas para amenizar os pre-
cia, um importante problema que juízos provocados pela perda do
se estabelece com o surgimento de espaço de brincar e conviver
um discurso passivo e ineficaz socialmente. Com a privatização
dentro das práticas. Na qualidade dos espaços públicos, a infância e
de elemento indispensável à comu- a juventude vão, aos poucos, per-
nicação, a linguagem produzida dendo o seu caráter espontâneo, de
transforma-se numa expressão que plenitude nas relações com os
passo a passo vai tomando corpo e jogos e com as brincadeiras.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 43


POR UMA PEDAGOGIA DO POÉTICO

O caráter ‘conservacionista’
da promoção cultural se funda no
aspecto da preservação de uma
cultura que, do ponto de vista da
prática, valoriza a passividade e a
memorização. O texto está dado e
tem em si uma verdade que inibe,
descarta o diálogo com o leitor.
Tenta-se preservar a memória do
grupo na perspectiva de uma ide-
ologia estática, de uma idéia opos-
ta às ações e interferências do
sujeito. Não que seja indevida a
preservação de uma memória —
esta é uma das faculdades de
invenção que o homem possui —
mas indevida é a forma como se
pretende entender a memória na
esfera das necessidades da vida
humana. A memória é suporte fun- Nesse sentido, indagamos Um aumento crescente do
damental da identidade e um acú- sobre o caráter funcional dos pro- interesse da escola pela pro-
mulo de experiência. É, como nos dutos de uma cultura que gera moção de textos infanto-juve-
diz Benjamin, a musa da narrativa: simplesmente um comportamento nis, ainda que esse aumento
A capacidade épica por de ‘difusão’ e de transmissão de venha quase sempre impreg-
excelência. Só graças a uma informações. Nesse contexto, nado de preocupações utili-
memória abrangente pode a instala-se a ideologia do ‘acesso’, taristas que facilitam a re-
épica, por um lado, apropriar- que cuida de passar adiante um dução da leitura a mero exer-
se do curso das coisas e, por objeto cultural com o intuito cício didático de transferência
um outro, fazer as pazes com o mesmo de difundir conhecimen- de informação (...) A adoção
desaparecimento delas, com o tos. Do ponto de vista da pro- do pragmatismo implícito da
poder da morte. (Benjamin, moção da leitura no Brasil, por "ideologia das necessidades"
1995, p.66) exemplo, notamos: não consegue, todavia, escon-

44 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


der aqui a lacuna produzida O paradigma ‘interacionista’ que o sujeito possa vivenciar e
pela ausência da reflexão traz em si um diálogo entre cul- entender em seus aspectos lúdi-
aprofundada sobre os compo- turas e memórias. Implica forte- cos, em sua estrutura de jogo,
nentes socioculturais que es- mente uma (inter)ação, uma re- realidade e imaginação.
tariam na raiz da falta de lação dialógica entre as formas de Buscar elementos para uma
leitura de crianças e jovens. relacionamento do sujeito com nova pedagogia, hoje, implica
Centrado nos procedimentos outros seres humanos com as necessariamente encarar a dinâ-
promocionais, ativistas, o dis- coisas criadas ou em processo de mica entre o pensar e o sentir, que
curso não se preocupa em criação. Nessas formas de rela- são categorias específicas e ao
perguntar sobre as questões cionamento, por um lado senso- mesmo tempo dialógicas. Não se
essenciais que afetam as rela- rial, por outro intelectual, deverá trata apenas de equilibrá-las, mas
ções da infância com os haver um equilíbrio entre o sentir de percebê-las em suas porções
livros. Segundo ele, o fosso e o pensar, o coletivo e o indivi- insubstituíveis e relevantes. •
existente seria facilmente dual , uma vez que "evocando um
preenchido por medidas ad- ontem e projetando-se sobre o
ministrativas que, associadas amanhã, o homem dispõe em sua
às modernas técnicas de ani- memória de um instrumental para,
mação, tornariam possível e a tempos vários, integrar expe-
interessante o acesso aos ma- riências já feitas com novas expe-
teriais impressos. (Perrotti, riências que pretende fazer".
1986, p.15-17) (Ostrower, 1978, p.18)
As linguagens nascem nessa
Por outro lado, novas formas interação das relações entre
de redimensionar essa comuni- sujeito, imaginação e memória,
cação vieram surgindo em nome constituindo-se em culturas que Referências bibliográficas /
Sugestões de leitura
de um novo paradigma: o ‘intera- dialogam numa perspectiva de for-
BACHELARD, Gaston. A poética do deva-
cionista’. Nesse paradigma, o que mação de novas culturas. Esses neio. São Paulo: Martins Fontes, 1960.
BARTHES, R. Aula. Aula inaugural da ca-
importa é a relação entre a elementos adquiriram enorme deira de semiologia literária do Colé-
gio de França, pronunciada dia 7 de
memória do sujeito e a experiên- significação no processo que, ini- janeiro de 1977. São Paulo: Cultrix,
cia. A memória coletiva de um ciado no âmbito das experiências 1989.
BENJAMIN, Walter. O narrador . In: Magia e
lado e a individual do outro. A ten- com a linguagem poética, buscou técnica, arte e política. Obras escolhi-
das. v.1, São Paulo: Brasiliense, 1995.
são entre elas instauraria a intro- possibilitar a formação de sujeitos OSTROWER, Faiga. Criatividade e proces-
sos de criação. Petrópolis: Vozes, 1978.
dução desse sujeito na cultura, agentes de cultura. Daí, podemos PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na lite-
criando uma ‘circularidade’, um entender a importância da comu- ratura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
PORCHER, Louis. A escola e a poesia. In:
movimento recíproco que as com- nicação no âmbito de um espaço Educação artística: luxo ou neces-
sidade? São Paulo : Summus, 1982.
plementa. escolar que valorize a linguagem

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 45


APRENDER
a APRENDER:
GARANTIA de uma
educação de qualidade?
MARIA AUXILIADORA MONTEIRO*

A ssiste-se hoje a uma tendência de secundarizar ou mesmo


excluir o primeiro elemento do binômio conhecido como
"ensino/aprendizagem". São muitos os autores que descaracteri-
zam e criticam a atividade docente centrada no ensino e fazem
uma supervalorização da aprendizagem, que, segundo eles, só
pode ser conseguida pela via da pesquisa independente do aluno.

* Professora da PUC-Minas.
Imagem: Vieilard avec un enfant, séc xv, Domenico Ghirlandajo.
APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?

Nessa perspectiva, apregoa-se (...) Atualmente, o professor para fazer sua viagem ao mundo
a emergência de um "novo" para- quanto mais ausente da sala, instigante da investigação. Sabe-se
digma, consubstanciado no "apren- quanto menos interferir no ainda que a pesquisa deve consti-
der a aprender" que se centra na processo de aprendizagem do tuir-se como princípio formativo
aprendizagem, tida como única aluno, é melhor. O aluno tem a da docência.
forma de construção do conheci- capacidade de pesquisa autôno- Entretanto, o papel do professor
mento: ma e pode, assim, desenvolver torna-se cada vez mais necessário,
(...) É preciso construir a seu pensamento independente. nesta sociedade extremamente tecni-
didática do "aprender a apren- O aluno deve definir seu percur- cista, pois a ele cabe fazer a media-
der", no contexto globalizado so, usando o "aprender a apren- ção entre o acervo crescente de in-
do conhecimento moderno. As der". Na sociedade globalizada formações — multifacetadas e frag-
teorias mais atuais em edu- do conhecimento e da infor- mentadas — e os alunos, contex-
cação apontam, com insistên- mação, o professor tornou-se tualizando-as, integrando-as e criti-
cia persistente, para esta dispensável. (Barbosa, 1998) cando-as, para que se possa assegu-
direção, a par do reconheci- Não se trata de menosprezar a rar o desenvolvimento da reflexão e
mento consensual em torno da pesquisa, que é muito importante, a construção do conhecimento.
relevência da educação, ciência tanto para o professor, para que Além disso, só através da
e tecnologia para o desenvolvi- sua prática se renove, quanto para intervenção docente, da sua com-
mento. (Demo, 1993, p.215) o aluno que precisa ser orientado, petência na transmissão do conhe-

48 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


cimento, da sua habilidade em via- A didática, tanto no nível da Fatores que
bilizar a interlocução com o aluno graduação, quanto no da pós-gra- influenciam a
e nele despertar o interesse pela duação lato e stricto-sensu, está educação
investigação é que se pode assegu- centrada no ensino, como explici- contemporânea
rar a aprendizagem. tam as citações a seguir:
Contudo, o "aprender a apren- Para se compreenderem os
der" tem contribuído, e mesmo (...) A didática tem como rumos seguidos pela educação
servido de justificativa para a falta objeto de estudo o processo de brasileira contemporânea, é ne-
de orientação/direção dos profes- ensino, na sua globalidade, cessário levar em conta as trans-
sores, na medida em que os alunos isto é, suas finalidades so- formações que vêm ocorrendo no
pesquisam o que lhes interessa, ciopedagógicas, princípios e cenário sociopolítico e econômi-
numa perspectiva marcada pelo condições e meios de direção co, traduzindo-se, principalmente,
democratismo e pelo espon- e organização do ensino e da na emergência da globalização, do
taneísmo. Os professores que aprendizagem, pelos quais se neoliberalismo e da revolução tec-
optaram por essa "nova" con- assegura a mediação docente nológica.
cepção, grosso modo, recusam-se de objetivos, conteúdos, méto- A globalização da economia
a ministrar aulas, ausentando-se dos em vista da assimilação vem provocando, nos países, um
do espaço físico da sala da aula, crescente de conhecimentos. processo de perda de sua identi-
enquanto os alunos se dedicam à (Libâneo, 1997, p. 16) dade nacional, redefinindo novos
"pesquisa", sem receber orien- rumos de atuação que extrapo-
tação e acompanhamento neces- (...)Apesar das divergências lam, em muito, os limites traça-
sários à atividade investigativa. quanto ao objeto de estudo da dos anteriormente. Segundo
Em decorrência disso, os didática, presentes em dis- Lanni (1996), assiste-se, na atua-
alunos, além de se sentirem "per- cussões principalmente na dé- lidade, a alterações das condi-
didos" no processo de desenvolvi- cada de 80, no interior do deno- ções sob as quais se organizam e
mento da pesquisa, acabam care- minado movimento de revisão se desenvolvem as atividades de
cendo de uma sustentação teórico- crítica da área, no Brasil, esta indivíduos, coletividades e clas-
conceitual, pois os princípios bási- vem tratando, historicamente de ses sociais.
cos, os conteúdos fundamentais da temas relativos ao ensino. (Oli- Em decorrência dessa globa-
disciplina não são assegurados. veira, 1997, p.133) lização ou transnacionalização,
exige-se a reforma do Estado. Para
que ele possa entrar na competição
mundial, tem de modernizar as
estruturas e fazer com que as
empresas e organizações também
se modifiquem.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 49


APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?

Por outro lado, esses parâme- parâmetro do que parece exce- porânea. Prega a redução do poder
tros transnacionais impactam áreas lente. Tudo isso está sendo do Estado, a ampliação e a liber-
sociais, como a educação e a saúde. orquestrado pelo Banco Mun- dade do mercado. No âmbito edu-
No caso da educação, apregoa-se dial cuja visão de Sistema de cacional, pode-se afirmar que o
que o sistema escolar tem de se Ensino está atrelada na profis- neoliberalismo penetra no campo
configurar como um mercado edu- sionalização, visando adequar da educação brasileira, principal-
cacional, levando as escolas a de- os individuos às exigências mente, a partir da participação do
finir estratégias competitivas, con- das atividades produtivas e da País na Conferência de Educação
quistando nichos que atendam, de circulação do mercado mun- para Todos, ocorrida em Jointien,
forma competente, à diversidade dial. (Ianni, 1996, p.6) em 1990. Assiste-se, a partir de
presente nas demandas de consumo O neoliberalismo, segundo então, a uma crescente participação
por educação. Segundo essa lógica, fator a ser analisado, constitui-se na educação, não só de agentes
a escola deve ter tanto a função de como uma alternativa de poder econômicos externos — Banco
transmitir certas competências e extremamente rigorosa, formada Mundial (antigo BIRD) e Banco
habilidades, para que as pessoas por um conjunto de estratégias Interamericano de Desenvolvimen-
atuem competitivamente, quanto a político-econômicas e jurídicas, to (BID) — como do empresariado
função de classificar e hierarquizar voltadas para a busca de uma saída nacional. Na verdade, o empresa-
os postulantes aos denominados frente à crise capitalista contem- riado se tornou, por um lado, o
empregos do futuro. principal ator educacional e, por
Essa "nova" concepção de outro, um importante intermedi-
educação tem a pretensão de se ador das políticas dos agentes fi-
tornar universal e as reformas dos nanceiros internacionais.
sistemas de ensino ora empreendi- A política educacional brasi-
das por diversos países possuem, leira, ancorada na visão de mundo
geralmente, os mesmos princípios, dos mencionados agentes externos
bases e estruturas: e internos, elabora, no início da
(...)Que coincidência inte- década de 90, o conhecido "Plano
ressante, todo mundo, de re- de Qualidade Total em Educação"
pente, acordou para melhorar (PQTE, 1991), que visa às se-
o Sistema de Ensino, preparar guintes metas: privatização da
quadros profissionais e ajus- educação; descentralização; pri-
tar a nação à modernidade, ao orização de um novo modelo edu-

50 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


Aprender a
aprender:
o que é isto?

Atualmente, na perspectiva do
mundo globalizado, exige-se mui-
to mais do que a simples univer-
salização da escola básica. É
requerido que a educação tenha
qualidade. Difunde-se a idéia de
que a implantação de uma edu-
cacional, fundado na sofisticação Encontra-se disponível uma cação competente e consistente,
tecnológica; qualidade do ensino, vasta bibliografia sobre as impli- pode levar o País da posição de
entendida como produtividade; cações das novas tecnologias na mero consumidor de tecnologia
atendimento às necessidades do determinação do novo perfil ocu- importada à posição de produtor
mercado; avaliação sistemática do pacional e dos requisitos de quali- de tecnologia. O pior é que, apesar
Sistema Educacional, tendo em ficação do trabalhador. Muitos dos discursos e da diminuição dos
vista as demandas do mercado. pesquisadores explicitam que, índices de fracasso escolar (con-
A revolução tecnológica, últi- neste novo contexto produtivo, re- seguida pela promoção automáti-
ma variável a ser enfocada, tam- quisita-se uma qualificação peda- ca, aceleração etc.), a educação
bém denominada de IIIª Revo- gogizada, que possibilite aos tra- brasileira vem perdendo muito em
lução Industrial, consubstancia-se balhadores os meios e as condições termos de consistência teórica,
no recurso às novas tecnologias de para sua qualificação e reatualiza- aplicabilidade, prática, formação
base microeletrônica, na mani- ção profissionais. Afirmam, inclu- omnilateral, como denunciam
pulação da estrutura atômica e sive, que a politecnia, orientada pesquisadores: Gentilli (1994),
molecular da matéria e na pes- pelo princípio da relação entre Silva (1993), Frigotto (1995),
quisa biotecnológica (Machado, ciência e aplicação tecnológica, Oliveira (1998).
1995). Essa revolução provocou poderia responder às necessidades É muito difícil definir quali-
muitas transformações, que se e aos desafios atuais, porque ela dade. Segundo Manilha (1989), o
traduziram na adoção de uma nova pressupõe uma sólida formação termo qualidade sofreu dispersão
dinâmica na estrutura organiza- geral que contribui para superar a semântica, tantos e tão variados são
cional do setor produtivo, no tradicional dualidade, consubstan- os sentidos que lhe são atribuídos.
aumento da produtividade, na ciada na dicotomização entre for- Para Demo (1995), a quali-
demanda por uma qualificação da mação técnica e geral, apontando dade tem dois aspectos: formal
força de trabalho e no aumento do na direção de uma qualificação (referente aos instrumentos e
desemprego estrutural. ampla, integrada, flexível e crítica. métodos) e política (referente a

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APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?

finalidades e conteúdos). A quali- dutividade, rentabilidade e mensu- representantes, que nos Estados
dade formal é neutra, porque não é rabilidade. (Frigotto, 1995) Unidos, nas primeiras décadas do
perversa em si, mas na sua utiliza- Essa visão produtivista de século XX, criou as Escolas Ati-
ção. A qualidade política diz educação vem, como alguns pes- vas. Nessas escolas difundia-se o
respeito ao relacionamento do quisadores explicitam, articulan- princípio do "aprender a aprender"
homem com a natureza e com os do-se com o "aprender a apren- que, colocando a criança como
outros homens e, nessa medida, der". (Warde e Hadad, 1996) centro do processo (pedocentris-
pode ser positiva ou negativa, pois Esse "aprender a aprender" mo), enfatizava a importância,
a política é ambivalente. São os não constitui uma concepção nova, tanto de descobrir suas neces-
usos e valores sociais que definem pois está vinculado ao escola- sidades, quanto de estimular sua
as acepções de qualidade e, em novismo e, mais especificamente, atividade, isto é, a ação prática, a
educação, a qualidade, na sua a Dewey, um dos seus principais experiência pessoal.
dimensão positiva, é que garante a As idéias de Dewey, entre elas
formação do indivíduo, como o "aprender a aprender", foram
cidadão e sujeito da práxis social. divulgadas no Brasil por Anísio
Segundo Singer: Teixeira, seu ex-aluno e um dos
(...) A visão democrática de pioneiros da Escola Nova, nas
qualidade em educação não vê décadas de 20 e 30.
contradição entre a formação A partir da penetração maciça
do cidadão e a formação do do neoliberalismo no País, vem-se
profissional, da futura mãe ou dando ênfase às denominadas
pai de família, do esportista, do Necessidades Básicas de Apren-
artista e assim por diante. dizagem que, além de priorizar
(Singer, 1996) apenas a aprendizagem, margina-
São essas dimensões de quali- lizando o ensino, enfatizam as
dade que devem ser priorizadas, necessidades individuais, em
mas a educação brasileira contem- detrimento das sociossistêmicas.
porânea, por estar mais voltada (Torres, 1994)
para o mercado, propõe que a Segundo essa "filosofia", os
qualidade se oriente por princí- processos de aprendizagem devem
pios como: adaptabilidade e ajuste voltar-se para a incorporação e
de mercado, competitividade, pro- difusão do desenvolvimento tec-

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nológico e devem contemplar a aprender-fazendo, aprender em Buscando o diálogo
ação (saber fazer) a utilização serviço , aprender-praticando. ou acirrando o
(saber usar) e a interação (saber O "saber comunicar" signifi- debate?
comunicar). ca que o conhecimento só tem
O "saber fazer" identifica-se validade se for recriado pelas Visualizando-se a educação
com o "aprender a aprender", e novas tecnologias, devendo, as- como campo de discussão e de
está voltado para a operacionali- sim, circular pelo mundo, através contradição é que se pode cons-
dade do conhecimento. Parte do da informática e das telecomuni- truir uma proposta educacional
pressuposto de que toda ou quase cações. A necessidade de constru- que contemple tanto as neces-
toda aprendizagem passa pela ir e acessar o "conhecimento" é sidades emancipatórias, que se
mediação da ação. Então, o princí- uma exigência do mundo moder- traduzem na formação do ci-
pio do "aprender a aprender" no. Nessa perspectiva, a infor- dadão, na construção do sujeito
incorpora a necessidade de o co- mação se confunde com o conhe- ético-histórico, quanto nas ne-
nhecimento ser previamente de- cimento e o ato de conhecer vai cessidades requeridas pelo setor
finido por sua operacionalidade: ficando, cada vez mais, identifi- produtivo.
mais importante do que saber é cado com os procedimentos de Contudo, como a retórica do-
saber fazer, saber buscar infor- documentação e acesso às infor- minante tende para uma con-
mações, saber adaptar-se a novas mações. cepção pragmática e produtivista
funções. Em síntese, a opção pelo de educação, é preciso, embora
O "saber usar" refere-se a tipos "aprender a aprender" implica, na possa parecer um tanto obsoleto
de aprendizagem que se efetivam verdade, fazer uma escolha pelo para aqueles que acreditam que a
mediante o uso de sistemas com- emprego do pragmatismo/utili- "história acabou", recorrer à
plexos. Saber para quê? Espera-se tarismo no campo educacional e denominada Teoria da Curvatura
que o processo de "aprender a ainda, a opção por uma educação da Vara, de Lênin. Assim, volta-se
aprender" se restrinja a uma neces- que vê o mercado como principal à análise crítica, para ver se se
sidade de aplicação imediata: fonte referenciadora. consegue colocar a vara no centro.

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APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?

É importante frisar que essa conhecido, a fim de incorporá-lo,


concepção — "aprender a apren- mediante a pesquisa, ao domínio
Aluno como centro der" —, hoje predominante no do já conhecido. (1989, p.38)
e artífice da sua País, nada produz de novo, apenas Sem uma base teórica consis-
aprendizagem resgata os princípios norteadores tente, sem a direção e o acompa-
do pragmatismo-escolanovista, nhamento docentes, corre-se o
O deslocamento do centro da numa versão rearticulada, segundo risco de realizar pesquisa de "men-
aprendizagem do professor para o os cânones neoliberais. tirinha", que pouco contribui para
aluno não é novo, pois como foi Além disso, a soberania da o real aprendizado do aluno.
visto, vincula-se ao escolanovismo pesquisa e da investigação sobre o
e, conseqüentemente, ao "aprender ensino, isto é, a perspectiva do Novas tecnologias
a aprender". Segundo Saviani "aprender a aprender", pode levar como fontes
(1989), esse deslocamento foi à dissolução da diferença existente principais de
muito mais intenso, pois implicou entre ensino e pesquisa, o que produção do
transferir o eixo da questão peda- pode acarrretar o empobrecimento conhecimento
gógica do intelecto para o sentimen- do primeiro e a inviabilidade da
to; do lógico para o psicológico; dos segunda. A informática na escola tor-
conteúdos cognitivos para os méto- Saviani esclarece: nou-se importante, pois se consti-
dos e para os recursos; do esforço (...)pesquisa é incursão no tui como o locus preferencial no
para o interesse; da disciplina para a desconhecido e, por isso, ela não qual são veiculados os pressupos-
espontaneidade;do diretivismo para pode ficar atrelada a esquemas tos básicos para a formação do
o não-diretivismo; de uma peda- lógicos e pré-concebidos. O des- consumidor da principal mercado-
gogia de inspiração filosófica cen- conhecido só se define por con- ria neste século XX: a informação.
trada na ciência da lógica, para uma fronto com o conhecido, isto é, se A tecnologia está aí, e não se pode
experimental, baseada na Biologia e não se domina o já conhecido, não ignorá-la como importante recurso
na Psicologia. é possivel detectar o ainda não educativo.

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Frente a esse quadro, os pro- na busca da qualidade de ensino, Desvalorização
fessores assumem diferentes posi- desde que não se restrinja à mera do professor e
ções. Há desde os entusiastas ou informatização do processo tradi- da ação docente
adoradores até os apocalípticos, cional. Para que esse novo recurso
que só vislumbram aspectos nega- obtenha resultados positivos, é Analisando retrospectivamen-
tivos nas criações tecnológicas. preciso que o professor seja te a história da educação brasi-
Parece, contudo, que o melhor preparado, tanto para o uso e leira, constata-se que, apenas em
posicionamento é aquele que con- domínio dessas novas linguagens, raros momentos, o professor foi
sidera que as novas tecnologias são quanto para a sua articulação com valorizado. Esse desprestígio do
criações humanas e, como tais, as atividades específicas da sua professor e, conseqüentemente, da
devem estar sob o controle e a disciplina. carreira docente, começa pela pre-
serviço de todos os homens. No Além disso, se a função do cariedade da sua formação.
âmbito especificamente educa- computador não for bem com- Segundo Warde (1996), a for-
cional, a informática e outros recur- preendida, e se ele for implemen- mação docente nunca conseguiu
sos tecnológicos devem ser consi- tado na escola como um mero ser muito bem acomodada no
derados como meros recursos, "virador de páginas" de um livro âmbito do sistema educacional
tendo, assim, seus alcances e pos- eletrônico, ou como um recurso brasileiro, tanto no nível básico,
sibilidades relativizados. O com- para fixar um conteúdo, corre-se o quanto no do ensino superior.
putador é uma nova metáfora que risco de informatizar a escola, Na atualidade, a formação
nos ajuda a compreender muitos criando um novo fetiche educa- docente se torna um intenso
aspectos do mundo, mas subjuga o cional. (Valente,1996) desafio, pois diferentes áreas do
espírito, que não é capaz de recor- Finalmente, é preciso res- conhecimento, como a Antropolo-
rer a outras metáforas, a outros saltar que as tecnologias não gia, a Sociologia e a Comunicação
recursos. (Weizembaum, 1991) podem substituir o professor, a vêm apresentando novas questões
Em síntese, a utilização dos ação docente. Constituem porém, para a compreensão dos processos
novos recursos na sala de aula, importantes recursos, valiosas de transformação, presentes na
principalmente o uso do computa- ferramentas auxiliares no proces- nossa sociedade. Globalização,
dor, pode representar um avanço so de ensino/aprendizagem. multiculturalismo, questões de
gênero e de raça, novas formas de
comunicação, manifestações cul-
turais e religiosas, diversas formas
de violência e exclusão social,
configuram novos e diferenciados
cenários sociais, políticos e cultu-
rais que impactam a educação e a
formação docente.

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APRENDER A APRENDER: GARANTIA DE UMA EDUCAÇÃO DE QUALIDADE?

Essa realidade social, com-


plexa e multifacetada, não pode
ser desconhecida pela educação e,
especialmente, pelos processos de
formação de professores.
Entretanto, a formação docen-
te vem-se transformando em mera
capacitação em serviço, na medida
em que se negligenciam a for-
mação inicial e a importância de
uma fundamentação teórica e
política consistentes. A perda da
perspectiva teórico-epistemológi-
ca tende a reduzir a formação do
educador a uma dimensão mera-
mente técnico-prática.

(...) a formação do profes-


sor passa a ser preferencial- sendo implementadas pelas políticas Tal quadro, marcado por medi-
mente vista como algo prático. públicas contemporâneas: a con- das que promovem a desvaloriza-
O conceito de prática social tenção salarial, pois difunde-se que ção docente, vem trazendo desdo-
tende a ser reduzido ao con- não existe correlação entre elevação bramentos para a área da for-
ceito de problemas concretos, salarial e qualidade de ensino; a mação/profissionalização do pro-
e esses últimos orientam a for- supervalorização do livro didático, fessor, que se evidenciam não só
mação do educador. Com isso, pois parte-se do pressuposto de que no Brasil, mas em outros países:
a formação teórica do profes- os professores, sendo incompe-
sor corre sérios riscos. (Frei- tentes, não conseguem exercer sua (...) O atual momento não
tas, 1992, p.96) prática sem o auxílio do livro didáti- se presta para grande otimis-
Pode-se afirmar que a desva- co; o aumento do número de alunos mo, pois não se vem assistin-
lorização do professor se torna mais na sala de aula, pois veicula-se a do, na prática, à valorização
evidente, quando se analisa toda idéia de que esse aumento pouco do professor, que permanece
uma série de medidas que vêm influencia no sucesso escolar. cada vez mais mergulhado

56 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


numa série crise de identi- uso das novas tecnologias como
Referências bibliográficas /
dade, bem aparente nas taxas fonte principal de produção do co- Sugestões de leitura
de abandono do ensino e nos nhecimento, desvalorização do pro- BARBOSA, C. Aprender a aprender: um novo
índices de mal-estar docente. fessor e da ação docente —, chega- paradigma para uma nova educação.
Conferência proferida na PUC-Minas,
(Nóvoa, 1992, p. 63) se à conclusão de que elas não as- 1998. Texto não publicado.
BIANCHETTI, L. Dilemas do professor frente ao
seguram a aprendizagem do aluno. avanço da informática na escola. Encon-
tro Nacional de Didática e Prática de Ensi-
Acresce-se, ainda, que o traba- Para que a atividade e a pes- no, n.VIII, 1996. Florianópolis. ENDIPE: UFSC,
1996, 20-28.
lho e a responsabilidade docentes quisa discentes e o uso das novas CANDAU, V.M. (Org.). Magistério: construção
cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1996.
vêm aumentando neste contexto tecnologias possam contribuir pa- DEWEY, J. Vida e educação. São Paulo:
Nacional, 1980.
da denominada pós-modernidade ra a construção do conhecimento, FERRETI, C.J. (Org.) Novas tecnologias, traba-
lho e educação: um debate interdiscipli-
que, segundo Rojas, está con- é necessário que a atividade do- nar. Petrópolis: Vozes, 1994.
FONSECA, M. O Banco Mundial e a edu-
tribuindo para a formação do "ho- cente, o ensino, intervenha de for- cação. In: GENTILLI, P. (Org.) Educação e
crise da pedagogia da exclusão.
mem light", isto é, do homem pós- ma competente. Petrópolis: Vozes, 1995.
FREITAS, L. C. Conseguiremos escapar do
moderno. O conhecimento do aluno é, neotecnicismo. Coletânea do CBE.
Campinas: Escola básica, 1997.
O aluno que adentra as nossas normalmente, fragmentado, caóti- FRIGOTTO, G. Educação e crise no capitalis-
mo real. São Paulo: Cortez, 1995.
salas de aula tem um pouco de co, estereotipado, e as novas tec- GENTILLI, P. & SILVA, T. Neoliberalismo, quali-
tudo que caracteriza esse homem nologias veiculam, sobretudo, in- dade total e educação. Petrópolis: Vozes.
IANNI, O. Teorias da globalização. Cadernos
pós-moderno: descomprometido formações descontextualizadas. de Problemas Brasileiros, n.318, nov./ dez.
1996.
com a aprendizagem, seduzido por Por isso, é preciso que o professor LIBÂNEO, J.C. Educação, pedagogia e didáti-
ca. In:PIMENTA, S. G. Didática e formação
leituras artificiais, exigente de reordene o saber e as informações, de professores. São Paulo: Cortez, 1997.
MACHADO, L.R.S. Mudanças tecnológicas e
prazer e comodidade, ávido por elucidando-as, tornando-os coe- educação da classe trabalhadora.
Campinas: Papirus, 1992.
novidades, individualista e indife- rentes. NÓVOA, A. Os professores e sua formação.
Lisboa: Dom Quixote, 1992.
rente ao social. É a partir dessa tarefa diretiva OLIVEIRA, Maria Auxiliadora M. Empresa ou
escola ? Petrópolis: Vozes, 1998.
Nesse novo contexto, torna-se que professores e alunos, juntos, OLIVEIRA, Maria Rita N.S. A pesquisa em
didática no Brasil: da tecnologia do ensi-
evidente que o professor, ao con- ganham consciência da qualidade no à teoria pedagógica. In: PIMENTA, S.
G. Didática e formação de professores.
trário do que apregoa o "aprender do seu conhecimento e de como São Paulo: Cortez, 1997.
ROJAS, E. O homem moderno: a luta contra
a aprender", deve conduzir o ele é produzido. o vazio. São Paulo: Mandarim, 1996.
SAVIANI, D. Escola e democracia. São Paulo:
processo de ensino, exercendo sua Dessa forma, o "aprender a Cortez, 1999.
SILVA, T.T. Teoria educacional em tempos pós-
autoridade, orientando o aluno e aprender", desvalorizando o obje- modernos. Porto Alegre: Artes Médicas,
desempenhando sua insubstituível to preferencial da didática que é o 1993.
SINGER, P. Poder político e educação. Revista
função de conhecer, explicitar e ensino, optando pelo espontaneís- Brasileira de Educação, n. 1, 1996.
TEIXEIRA, A. Educação no Brasil. São Paulo:
avaliar. mo e pelo pragmatismo, vem con- Nacional, 1976.
TORRES, R.M. Que (e como) é necessário
Retomando as três premissas tribuindo para que a educação per- aprender? Campinas: Papirus, 1994.
WARDE, M. J. & HADAD, S. Banco Mundial e
do "aprender a aprender", men- ca, tanto consistência teórica, políticas públicas em educação. São
Paulo: Cortez, 1996.
cionadas anteriormente — aluno quanto formação integral dos WEIZEMBAUM, J. Ciência Hoje. Anais do
SBPC, São Paulo, 1991.
como artífice de sua aprendizagem, alunos. •
v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 57
A BIBLIOTECA
nos PARÂMETROS
Curriculares Nacionais
BERNADETE SANTOS CAMPELLO*
MÔNICA DO AMPARO SILVA**

O s Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1ª a 4ª


séries, entregues à comunidade educacional brasileira em
1997, estabelecem direções para a renovação das propostas cur-
riculares das escolas brasileiras. Pretendem oferecer aos edu-
cadores do País um referencial para auxiliá-los no esforço "de
fazer com que as crianças dominem conhecimentos de que neces-
sitam para crescerem como cidadãos plenamente reconhecidos e
conscientes de seu papel em nossa sociedade." (PCN, v. 1, p. 5).

* Professora da Escola de Biblioteconomia da UFMG.


** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da
Escola de Biblioteconomia da UFMG.
Imagem: Le rat de bibliothèque, 1850, Carl Spitzweg.
A BIBLIOTECA NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

Como instituição educativa, a


biblioteca tem buscado um com-
promisso com o acesso ao conhe-
cimento e com o exercício da
cidadania. Portanto, sua inserção
na escola como um espaço de
ação pedagógica é algo natural. A
origem da biblioteca coincidiu
com a invenção da escrita e sua A função da biblioteca escolar oferecendo serviços e atividades
expansão ocorreu, sobretudo, no Brasil tem sido discutida por que apóiam de fato a aprendiza-
com o aparecimento de suportes diversos autores que a analisam de gem dos conteúdos curriculares e
de baixo custo, duráveis e portá- diferentes perspectivas. Um tra- preparam o aluno para conviver na
teis para os registros escritos, balho que sintetiza essas análises sociedade da informação e contan-
suportes estes que deram enorme foi apresentado no I Seminário do com pessoal capacitado para
impulso à leitura e à educação em Biblioteca Escolar: espaço de interagir com alunos e com pro-
geral. Na sociedade contem- ação pedagógica. Nele são exami- fessores comprometidos com a
porânea, dominada pela tecnolo- nados 42 artigos sobre o assunto, educação.
gia, o imperativo de acesso e uso publicados em revistas brasileiras, Como os PCN visualizam a
eficaz da informação transforma de 1972 a 1996. Com base nesses biblioteca na proposta educacional
a biblioteca de escola num espaço artigos, as autoras caracterizam a das escolas brasileiras? Qual o
privilegiado, onde o conhecimen- biblioteca escolar real e a ideal. papel dessa instituição nas pro-
to, em seus portadores tradi- Com relação à primeira, postas de aprendizagem por eles
cionais (impressos), é oferecido chegam à conclusão de que é sugeridas? Ela aparece como um
ao lado das novas opções tecno- precária em todos os aspectos espaço onde as crianças terão
lógicas. Na concepção atual, a observados: espaço físico, acervo, oportunidade de desenvolver ha-
biblioteca é um espaço educativo pessoal e serviços. A biblioteca bilidades que as instrumentalizem
que deve propiciar às pessoas ideal, por sua vez, é apresentada para uso independente e eficaz dos
oportunidade de se prepararem pelos autores como um espaço recursos informacionais durante
para conviver na sociedade da físico que atrai e agrada ao sua educação escolar e no futuro?
informação, oferecendo possibili- usuário, contendo um acervo for- Como a biblioteca deve ser plane-
dades de educação continuada e mado por uma variedade de mate- jada e gerenciada pelos dirigentes
autônoma. riais adequadamente selecionados, educacionais?

60 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


A biblioteca escolar ambiente informacional complexo Ao longo dos dez volumes dos
e a diversidade e mutável que influencia a própria Parâmetros Curriculares Nacio-
de fontes denominação dada por alguns nais, a biblioteca escolar aparece,
autores à época atual: sociedade explícita ou implicitamente, em
O comprometimento com o da informação. Os PCN reforçam suas variadas facetas.
exercício da cidadania, um dos a importância do uso da infor-
objetivos gerais do Ensino Funda- mação quando incluem como um Biblioteca e leitura
mental na perspectiva dos PCN, dos objetivos do ensino fundamen-
exige que a escola crie condições tal que o aluno saiba utilizar dife- O volume relativo à Língua
para o uso eficaz da linguagem em rentes fontes de informação e Portuguesa é o que reflete com
suas diferentes conformações. recursos tecnológicos para adqui- maior nitidez o papel que se espera
Nesse sentido, a aprendizagem rir e construir conhecimentos. da biblioteca na escola. Baseada
proposta pelos PCN é fundada na (PCN, v. 1, p. 108) fortemente no texto de fato, a
diversidade textual, ou seja, parte Isso significa que as crianças aprendizagem da língua proposta
do princípio de que precisam ser preparadas para pelos PCN é, conseqüentemente,
interagir nesse ambiente mutável, baseada na biblioteca.
… um leitor competente só que exige habilidades diferentes Isso fica patente quando a bi-
pode constituir-se mediante daquelas até então desenvolvidas blioteca da escola é mencionada
uma prática constante de pela escola. O aluno precisa saber como a primeira das condições
leitura de textos de fato, a par- lidar com a informação, apren- favoráveis para a formação de
tir de um trabalho que deve se dendo a utilizá-la para se educar bons leitores, ao lado do acervo de
organizar em torno da diversi- de maneira independente e con- classe e das atividades de leitura.
dade de textos que circulam tínua. (PCN, v. 2, p. 58)
socialmente. (PCN, v. 2, p. 54) A biblioteca reproduz em um Reforçando o papel dos textos
micro-universo o ambiente infor- autênticos como o principal recur-
Para tanto, é necessário garan- macional com o qual a criança vai so didático necessário para viabi-
tir o acesso ao universo de textos interagir ao longo de toda a sua lizar a proposta da área de língua
disponíveis na sociedade e ensinar vida. Constitui, portanto, o espaço portuguesa, o documento destaca
as crianças a selecioná-los, inter- coletivo para a prática do uso da a posição da biblioteca escolar
pretá-los e produzi-los. informação, oferecendo oportu- que, ao lado da chamada bibliote-
Os textos são representados nidades de apoio para o domínio ca de classe, é considerada um
por uma variedade de recursos de conhecimentos, habilidades e recurso fundamental para o traba-
informacionais que, na sociedade atitudes que ajudarão a criança a lho proposto.
contemporânea, atingem enorme ser um cidadão participativo, As práticas de leitura baseadas
abundância. Aliada à tecnologia da reflexivo e autônomo, conhecedor na diversidade textual prevêem o
informação, essa situação cria um de seus direitos e deveres. uso de acervos e bibliotecas pelos

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 61


A BIBLIOTECA NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

alunos. No primeiro ciclo (1ª e 2ª também de atitudes referentes a ler em casa. No dia combina-
séries) este uso prevê as seguintes aspectos de socialização e com- do, uma parte deles relata
situações didáticas: partilhamento, e de padrões de suas impressões, comenta o
… busca de informações e gosto pessoal. que gostou ou não, o que pen-
consulta a fontes de diferentes A biblioteca, entendida como sou, sugere outros títulos do
tipos (jornais, revistas, enci- um estoque de materiais variados, mesmo autor ou conta uma
clopédias etc.), com ajuda; utilizados para aprendizagem da pequena parte da história
manuseio e leitura de livros na leitura, torna-se, no volume cor- para ‘vender’ o livro que o en-
classe, na biblioteca e, quando respondente à Língua Portuguesa, tusiasmou aos colegas. (PCN,
possível, empréstimo de mate- um espaço que abriga v. 2, p. 63)
riais para leitura em casa … textos dos mais variados
(com supervisão do profes- gêneros, respeitados os seus
sor); socialização das expe- portadores: livros de contos,
riências de leitura. (PCN, v. 2, romances, poesia, enciclopé-
p. 115) dias, dicionários, jornais, revis-
tas (infantis, em quadrinhos, de
No segundo ciclo (3ª e 4ª palavras cruzadas e outros
séries) o uso de acervos e bibliote- jogos), livros de consulta das
cas é expandido para incluir, além diversas áreas do conhecimen-
das atividades acima menciona- to, almanaques, revistas de lite-
das, o rastreamento da obra de ratura de cordel, textos grava-
escritores preferidos e a formação dos em áudio e em vídeo, entre
de critérios para selecionar outros. (PCN, v. 2, p. 92)
leituras e desenvolvimento de
padrões de gosto pessoal. (PCN, A biblioteca, como local onde
v. 2, p. 131) os livros são compartilhados,
A biblioteca é vista, portanto, aparece em diversos momentos. A
como um espaço de aprendiza- roda de leitores é um exemplo de
gem, uma continuidade da sala de atividade, em que os alunos
aula, que propicia não só o desen- … tomam emprestado um
volvimento de habilidades ligadas livro (do acervo de classe ou
ao uso eficaz da informação, mas da biblioteca da escola) para

62 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


O acervo da fere à biblioteca escolar quan- A biblioteca de classe não
biblioteca escolar to à de classe, para a organiza- precisa ser excessivamente
ção de critérios de seleção de ampla no que se refere ao
O acervo da biblioteca escolar material impresso de quali- número de volumes dispo-
deverá então ser não só variado, mas dade ... (PCN, v. 2, p. 92) níveis. Ao contrário, é preciso
de qualidade. A preocupação com a Ainda com relação ao acervo, que a variedade de materiais
qualidade do acervo da biblioteca observa-se uma preocupação de e títulos esteja garantida, o
escolar é visível nos PCN, quando que a biblioteca abrigue materiais que permite uma diversifi-
mencionam a responsabilidade do produzidos pelos alunos, resul- cação de leitura aos alunos.
professor no tocante à definição de tantes dos chamados projetos de Também é possível que se
critérios para seleção do material: leitura, que são situações de tenha, em algumas situações,
O papel da escola (e prin- aprendizagem contextualizada que um volume para cada aluno
cipalmente do professor) é fun- resultam num produto final, para a de um único título: nesse
damental, tanto no que se re- realização do qual os alunos tra- caso, é preciso que se tenha
balham coletivamente Sugere-se propostas específicas de tra-
que esses produtos sejam, por balho que justifiquem essa
exemplo, a gravação em fita cas- opção. Do acervo da classe
sete, de contos ou poemas lidos, também podem constar pro-
para fazerem parte do acervo da duções dos próprios alunos.
biblioteca escolar. (PCN, v. 2, p. 92)

O acervo de classe A biblioteca de classe repre-


sentaria um conjunto de material
Ao lado da biblioteca escolar de uso freqüente que, pela proxi-
aparece o acervo de classe, tam- midade, teria como objetivo facili-
bém chamado de "biblioteca de tar as atividades de leitura, per-
classe". Presente exclusivamente mitindo um contato mais estreito
no volume relativo à área de Lín- dos alunos com os textos, estimu-
gua Portuguesa, o acervo de classe lando sua utilização e criando
é também considerado um recurso mais oportunidades de leitura.
fundamental para a formação de A forma como a biblioteca de
bons leitores. Sua existência classe é mencionada nos PCN su-
funda-se, provavelmente, na van- gere que ela não deverá substituir a
tagem que a proximidade de uma biblioteca escolar, mas, sim, com-
coleção dentro da sala de aula traz plementá-la, no que diz respeito às
para as atividades de leitura. atividades ligadas à leitura.

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A BIBLIOTECA NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

A biblioteca
como espaço de
aprendizagem

A idéia da biblioteca como um


espaço de aprendizagem perma-
nente, ao qual as pessoas irão
recorrer ao longo de sua vida,
aparece em diversos volumes dos
PCN.
Nesse sentido é necessário que ção de bibliotecas, centros de A necessidade de se desen-
sua organização e funcionamento documentação e redes de infor- volver uma atitude positiva com
sejam entendidos pelos alunos. Os mação. (PCN, v. 2, p. 110 e 127) relação à biblioteca é reforçada
PCN enfatizam a orientação dos Mais do que um espaço cuja quando, ao listar os conteúdos
alunos para a aprendizagem de organização e funcionamento pre- gerais do ensino fundamental, o
procedimentos de utilização de cisa ser entendido, a biblioteca é documento arrola o interesse em
bibliotecas (empréstimo, seleção um espaço que precisa ser apre- tomar emprestado livros do acervo
de repertório, utilização de ín- ciado. Assim, da classe ou da biblioteca escolar
dices, consulta a diferentes fontes … a organização do (PCN, v. 2, p. 110 e 127), enfati-
de informação, seleção de textos espaço físico [da biblioteca] zando a responsabilidade da escola
adequados às suas necessidades, - iluminação, estantes e dis- na formação de valores, normas e
etc.) ... (PCN, v. 2, p. 62 e 120) posição dos livros, agrupa- atitudes que, por sua importância,
como uma responsabilidade fun- mento dos livros no espaço são configurados como conteúdos
damental da escola e principal- disponível, mobiliário, etc. - curriculares nos PCN.
mente do professor. deve garantir que todos os A biblioteca é também um
Essa preocupação é reforçada alunos tenham acesso ao lugar onde o aluno vai ter oportu-
nas sugestões de conteúdos gerais material disponível. Mais nidade de desenvolver atitudes de
do 2º ciclo, que são ampliados que isso: deve possibilitar cuidado e zelo com o espaço cole-
(em relação ao 1º ciclo), para de- ao aluno o gosto por fre- tivo e, especialmente, de desen-
senvolver qüentar aquele espaço e, volver valores ligados ao "cuidado
… interesse no uso e conhe- dessa forma, o gosto pela com os livros e demais materiais
cimento das regras de utiliza- leitura. (PCN, v. 2, p. 92) escritos" (PCN, v. 2, p. 92, 110 e

64 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


127). Isso é especialmente impor- … os questionamentos … buscar e saber organi-
tante, tendo em vista que o sejam realizados a partir do zar informações sobre a arte
respeito mútuo é um tema que está entorno do aluno, com o em contato com artistas, docu-
presente nos conteúdos de Ética, objetivo de levantar dados, mentos, acervos nos espaços
concretizado, entre outros aspec- coletar entrevistas, visitar da escola e fora dela (livros,
tos, pelo zelo na conservação das locais públicos, incluindo os revistas, jornais, ilustrações,
dependências da escola. Espera-se que mantêm acervos de infor- diapositivos, vídeos, discos,
que, à medida que cresçam, as cri- mações, como bibliotecas e cartazes) e acervos públicos
anças tenham condições de gene- museus. (PCN, v. 5, p. 61 e v. (museus, galerias, centros de
ralizar o conceito de espaço públi- 6, p. 54 e 81) cultura, bibliotecas, fonotecas,
co para espaços mais amplos A busca de informação em videotecas, cinematecas) ...
(como a cidade) e mais abstratos acervos organizados (incluindo a (PCN, v. 6, p. 54)
(como as instituições políticas). biblioteca) aparece como um dos
(PCN, v. 8, p. 122) objetivos gerais de Arte para o Dentro da área de Arte e mais
A biblioteca aparece como um Ensino Fundamental, de modo que especificamente, da Música, o
centro de informação quando os os alunos sejam capazes de papel da biblioteca se revela na
PCN a visualizam como um acer- perspectiva do conhecimento
vo de informações diversas, que pelos alunos de fontes de registro e
irão responder aos questionamen- preservação (partituras, discos,
tos levantados pelos alunos nas etc.) e recursos de acesso e divul-
situações de aprendizagem que gação da música disponíveis na
ocorrem em sala de aula, dentro classe, na escola, na comunidade
das diferentes áreas curriculares. e nos meios de comunicação (bi-
O ensino baseado na problemati- bliotecas, midiatecas, etc.)" (PCN,
zação, conforme proposto pelos v. 6, p. 81)
PCN, envolve a desestabilização O aspecto de valorização da
dos conhecimentos prévios dos cultura e, conseqüentemente, de
alunos, a conscientização da insu- sua preservação, que envolve
ficiência de determinado modelo diversos tipos de instituições,
para explicar um fenômeno, crian- entre elas a biblioteca, também é
do a necessidade de buscar infor- trabalhado pelos PCN, que su-
mações para reconstruir ou ampli- gerem que o aluno seja avaliado
ar esse modelo. (PCN, v. 4, p.117) no que diz respeito à sua atitude
Na parte correspondente ao em relação a esses espaços de
ensino e aprendizagem de His- preservação cultural. O aluno
tória, por exemplo, sugere-se que deve, portanto,

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A BIBLIOTECA NOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS

… valorizar as fontes de Considerações finais


documentação, preservação e
acervo da produção artística. A análise feita, buscando
Com esse critério pretende-se entender a função da biblioteca
avaliar se o aluno valoriza, escolar na perspectiva dos PCN,
respeita e reconhece o direito sinaliza para a biblioteca ideal.
à preservação da própria cul- Fica claro o papel que se espera
tura e das demais e se percebe da biblioteca no apoio às ativi-
a necessidade da existência e dades de leitura: a existência de
a importância da freqüen- uma boa biblioteca na escola é
tação às fontes de documen- fundamental para o trabalho
tação, espaços de cuidados e com a linguagem, trabalho este
acervos de trabalhos e objetos fundado nos textos que circu-
artísticos em diferentes ambi- lam socialmente e que fun-
entes (museus, galerias, ofici- governamentais, grupos cul- cionam como modelos a partir
nas de produtores de arte, bi- turais, etc.) compromissadas dos quais os alunos se vão
bliotecas, midiatecas, videote- com as questões apresentadas familiarizando com os códigos
cas). (PCN, v. 6, p. 96 e 97) pelos Temas Transversais, que da escrita e com as característi-
desenvolvem atividades de cas discursivas dos diferentes
A interação com a comu- interesse para o trabalho gêneros. O acervo da biblioteca
nidade e com instituições culturais educativo, é uma rica con- reflete a proposta de aprendiza-
a ela relacionadas (incluindo a tribuição, principalmente pelo gem baseada nos textos autênti-
biblioteca) é recomendada pelos vínculo que estabelece com a cos: precisa abrigar a variedade
PCN, como forma de enriquecer realidade da qual se está de discursos e seus portadores,
as situações de aprendizagem dos tratando. Por outro lado, re- mantendo-se atualizado e di-
temas transversais. No volume re- presenta uma forma de inte- nâmico, acompanhando a pro-
lativo a esse tópico considera-se ração com o repertório socio- dução acelerada dos recursos
que cultural, permitindo o resgate, informacionais na atualidade.
… o contato com as insti- no interior do trabalho esco- Precisa estar em consonância
tuições e organizações (tais lar, da dimensão de produção com os objetivos da escola e
como postos de saúde, bi- coletiva do conhecimento e da manter a qualidade na seleção
bliotecas, organizações não realidade. (PCN, v. 8, p. 52) dos materiais.

66 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


Os PCN situam a biblioteca vavelmente, os alunos irão encon- esse estoque e promovam o encon-
como um espaço onde os alunos trar, tais como bibliotecas públi- tro entre usuário e informação. Só
irão buscar informações que pos- cas e universitárias. assim a biblioteca se tornará um
sam responder aos questionamen- É inegável a importância que a espaço democrático, onde intera-
tos levantados em sala de aula. biblioteca assume na perspectiva jam alunos, professores e infor-
Desvela-se então a função da bi- dos PCN. A opção da escola por mação. •
blioteca escolar como um espaço um projeto educativo, conforme
de informação, que, nas suas mais proposto no documento, vai exigir
variadas formas, é posta à dis- investimentos na biblioteca, de
posição dos alunos, permitindo- forma que ela não constitua um
lhes elaborar suas interpretações órgão sem vida dentro do organis-
sobre os temas que estudam, num mo escolar, mas seja colocada no
processo contínuo de confronto centro da ação pedagógica.
entre diferentes idéias. O domínio Segundo Briquet de Lemos,
desse processo vai permitir a for- para que a biblioteca se posicione
mação de uma pessoa com perfil como uma instituição social
de pesquisador, apta a problemati- … são necessários cinco
zar e buscar soluções para seus pré-requisitos: a intencionali-
problemas. dade política e social, o acervo Referências Bibliográficas /
Sugestões de leitura
É também clara nos PCN a e os meios para sua permanen-
BRASIL. Ministério da Educação e do
perspectiva da biblioteca como te renovação, o imperativo de Desporto. Secretaria de Educação
um estoque de informações orga- organização e sistematização, Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais. Brasília, 1997. 10 v.
nizadas, que será utilizado pelo uma comunidade de usuários, LEMOS, A.A. Briquet de.Bibliotecas.
In:CAMPELLO, Bernadete S. et al.
aluno ao longo de sua vida. Nesse efetivos ou potenciais, com (Orgs.) Formas e expressões do conhe-
cimento; introdução às fontes de infor-
sentido, a escola tem a respon- necessidades de informação mação. Belo Horizonte: Escola de Bibli-
oteconomia da UFMG, 1998. p. 347-
sabilidade de estimular o interesse conhecidas ou pressupostas e 366.
pelos acervos bibliográficos ex- por último, mas não menos QUEIROZ, Raimunda Augusta de. A bi-
blioteca escolar e seu papel no sis-
ternos e de preparar os alunos importante, o local, o espaço tema educacional. Revista de Cultura
UFES, v. 22, p. 47-56, 1982.
para sua futura utilização. A orga- físico onde se dará o encontro RIBEIRO, MARIA Solange Pereira. Desen-
volvimento de coleção na biblioteca
nização do acervo da biblioteca entre os usuários e os serviços escolar: uma contribuição à formação
escolar não deve, portanto, ser da biblioteca. (Campello,1998) crítica sociocultural do educando.
Transinformação, v. 6, n. 1/3, p. 60-73,
planejada apenas para facilitar a A administração dessa estrutura 1994.
VIANNA, M.M. et. al. (Ed.) Biblioteca esco-
utilização imediata, mas numa vai exigir profissionais que domi- lar. espaço de ação pedagógica. Belo
Horizonte: Escola de Biblioteconomia
perspectiva de servir como labo- nem os processos de organização da UFMG, 1999 (Anais do Seminário
ratório para a aprendizagem de do estoque de informações abriga- promovido pela EB/UFMG e ABMG em
outubro de 1998, em Belo Horizonte).
uso de outros acervos que, pro- do, mas que, sobretudo, dinamizem

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PROBLEMAS
com PROJETOS
PEDAGÓGICOS
SUELI BARBOSA THOMAZ*

É consenso entre os educadores que os projetos pedagógicos


devem ser construídos a partir de rigorosas análises, de am-
plos debates, numa organização de esforço comum, em busca de
um processo educacional de qualidade, capaz de construir uma
sociedade mais justa, mais democrática.
Tais projetos, no nível do discurso, estão atrelados ao mito de
Prometeu, no sentido de um projeto de vida, de louvor ao traba-
lho, à ordem e ao progresso. A idéia básica é que através dos
planos, programas e projetos, bem estruturados, a educação pode
mudar caminhos, oferecer alternativas e tornar o ser humano
mais produtivo.

* Professora da Universidade do Rio de Janeiro -UNIRIO.


Imagem: Mulher na poltrona vermelha, 1932, Picasso.
PROBLEMAS COM PROJETOS PEDAGÓGICOS

Mas, para Maffesoli, as pes- Alguns projetos chegam à rede. O que ficou mais próximo da
soas costumam dar a impressão de escola prontos, discriminados com realidade para as professoras é que
que atuam segundo os desejos títulos, objetivos, clientela, justi- se tratava de uma exigência para
daqueles a que estão subordinados. ficativa e estratégias de ação. Ou- melhoria do salário, advinda da
Executam as tarefas do modo tros são lançados apenas como implantação do Fundep (Fundo
como foram solicitadas, num pro- idéias que podem ser desenvolvi- Nacional de Desenvolvimento do
cesso de teatralidade. Conservam das ou acabam por morrer no Ensino Fundamental).
as aparências da normalidade, mas nascedouro. A reunião, que seria destinada
acabam por atuar numa duplici- à capacitação das professoras,
dade protetora que combina, de O cotidiano de um tornou-se um quebra-cabeças no
modo consciente ou quase incons- projeto pedagógico: sentido de saber quem faria o quê,
ciente, a necessidade e os espaços ações e relações quando e onde? Para a professora
de liberdade que permitem uma de Matemática e Ciências, da 3ª
atuação segundo a formação, os No primeiro dia de retorno à série, isso não significou um pro-
valores, a ideologia que possuem. escola, após o período de férias, blema, pois ela já ministrava aulas
A dinâmica dos projetos é rica as professoras foram notificadas de Inglês e Artes para seus alunos.
de significados. Com um olhar sobre a nova exigência da rede Nesse aspecto, dispôs-se ime-
atento pode-se apreender o proces- central, que estabeleceu a obriga- diatamente a resolver a questão:
so e também os pontos de insatis- toriedade de cada professor de- nas segundas-feiras ficaremos
fação, de estrangulamento, de dicar quatro horas por semana todo o tempo com nossos alunos.
duplicidade e de astúcia que fazem para atuar em outras atividades, Nos outros dias da semana, das
parte da escola, como organização com outra turma. 16:00 horas até as 17:00 horas,
sociocultural. A diretora-geral, a diretora poderemos ir para outra turma. As
Os projetos, de um modo adjunta e a orientadora pedagógica professoras da 3ª e 4ª séries fazem
geral, são sugeridos pela orienta- não sabiam explicar o que pre- o rodízio entre si e as da 1ª e 2ª
dora educacional, pela orientadora tendia a rede com tal orientação. séries, também.
pedagógica e pela rede oficial. São Não havia documento algum que A professora da 1ª série, por
apresentados às professoras nas mostrasse a importância, a finali- ser religiosa, ofereceu-se para tra-
reuniões destinadas ao planeja- dade, o objetivo. A exigência foi balhar com religião, o que, aliás,
mento anual/semanal, nas quais passada pela diretora adjunta, que, ela já fazia nas suas aulas. A idéia
passam a se conhecer, trocam su- por sua vez, recebeu tal orientação de se escolher a área de trabalho
gestões e pontos de vista. numa reunião geral na sede da foi imediatamente descartada. O

70 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


fato é que apenas duas professoras panhavam a fala da orientadora horas semanais com outra ativi-
sabiam o que poderiam/gostariam pedagógica. Uma professora, em dade na escola junto aos alunos
de trabalhar. especial, demonstrava educada- acabou transformando-se, no mês
A orientadora pedagógica su- mente, com um sorriso, a sua insa- de maio, na fixação de um ca-
geriu que, num projeto, fossem tisfação. A orientadora parecia não lendário com atividades quin-
desenvolvidos os temas arrolados entender e continuou a discussão zenais.
nos Parâmetros Curriculares Na- do projeto. As professoras muda- Esse calendário também não
cionais (PCNs). A princípio, as ram o veio da discussão. foi obedecido pelas professoras,
professoras consideraram a propos- O horário das atividades foi em função da coincidência entre
ta interessante. A orientadora fez, elaborado a várias mãos. Primeiro os horários destinados aos conse-
então, um resumo com os princi- pela professora de Matemática e lhos de classe e os do Projeto
pais pontos de cada um dos temas e Ciências da 3ª série, depois pela Rodízio, problema agravado pelo
o apresentou a elas, apesar de cada professora de Matemática e Ciên- fato de que algumas professoras
uma já ter recebido do MEC os cias da 4ª série. deixavam para tirar "seu dia de
exemplares dos Parâmetros. O fato é que o horário foi folga do mês", ou para faltar nes-
O quê, o como e o quando tra- refeito pela orientadora, em fun- ses dias.
balhar estavam resolvidos. O passo ção das reclamações das professo- O pouco que foi realizado
seguinte foi montar o horário, para ras, mesmo antes de ser posto em transformou-se em lamentações.
que o projeto pudesse ser executa- prática. Argumentaram as profes- Diziam as professoras: eu não
do. O projeto passou a ser identifi- soras: ficar com os alunos só até estou preparada para trabalhar
cado como o "Rodízio do Fundef". as 16:00 horas é muito pouco com Educação Sexual, esses
Vários planejamentos foram es- tempo para passar o conteúdo. No alunos sabem mais do que eu. Pedi
tabelecidos, discutidos, refeitos, caso das turmas de 2ª, 3ª e 4ª que eles escrevessem o que eles
adiados pelos mais diferentes séries, em que a professora não gostariam de saber sobre o as-
motivos. Embora o período letivo trabalha com eles todos os dias, o sunto, recolhi e disse que iria con-
se tivesse iniciado em fevereiro, no prejuízo é ainda maior. Como versar com a direção para saber o
mês de março nada havia sido vamos dar o conteúdo da série, se que eu poderia responder. Há
mudado ainda. todos os dias efetivamente só tere- assuntos "cabeludos", não sei o
Nova reunião foi realizada, e a mos duas horas e meia de aula, que fazer.
dinamização do projeto foi um dos pois trinta minutos são para o Uma outra professora confes-
temas em pauta. Foi possível obser- recreio e a hora final para o proje- sou: estou estarrecida, uma aluna
var, durante a reunião, algumas to? descreveu o ato sexual nos míni-
professoras conversando, arruman- Mais uma vez a programação mos detalhes, fiquei horrorizada.
do seus pertences na bolsa, jogando foi desfeita, e surgiu um novo Não toco mais nesse assunto, vou
fora papéis, corrigindo trabalhos horário. A exigência da rede de passar filmes para eles, é menos
dos alunos, enquanto outras acom- que cada docente atuasse quatro arriscado.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 71


PROBLEMAS COM PROJETOS PEDAGÓGICOS

Essa aluna a que a professora


se referiu, com doze anos de
idade, adorava exibir seu corpo no
jogo de queimada. Dois meses
depois estava grávida.
Mas o Projeto Rodízio tinha
de continuar, afinal era uma
exigência para que as professoras
obtivessem mais cem reais no
salário mensal, e elas já estavam
recebendo tal quantia. A orientadora pedagógica afir- orientadora pedagógica afirmou:
Numa reunião, quase no tér- mou que prepararia a letra do hino, quando conseguirem iniciar o
mino do semestre letivo, as profes- num álbum seriado, para que as Projeto haverá uma nova história,
soras iniciaram críticas mais aber- crianças acompanhassem e nada a começar por hoje, com a entra-
tas ao Rodízio. Reclamaram que foi feito. da do novo secretário de edu-
nem todas as pessoas envolvidas No decorrer das discussões, cação.
no Projeto estavam atuando; que a uma professora afirmou não estar A orientadora pedagógica não
coordenadora de turno, responsá- gostando do Projeto Rodízio. Ou- se deixava convencer pelos argu-
vel pela parte cívica (hino, ban- tra foi mais veemente e disse estar mentos das professoras, tentando
deira), nunca havia desenvolvido detestando. Reclamaram que o mostrar a validade do Projeto, sua
nenhuma daquelas atividades. A tempo era pouco, que não dava importância para a formação inte-
coordenadora se desculpou, ale- para ministrar o conteúdo. Argu- gral do aluno, mas tudo o que con-
gando que sabia da sua respon- mentaram que se cada professora seguiu é que as professoras trans-
sabilidade, mas nada podia fazer, tinha dois dias de aula em cada formassem o Projeto Rodízio em
pois as tais atividades tinham sido turma — um dia por semana era uma atividade semanal esvaziada
marcadas para 5ª feira, seu dia de dividido entre dois professores e de sentido.
folga. E desabafou: lavo minhas os alunos ainda tinham aula de As professoras apresentaram
mãos, 5ª feira não é meu dia na informática — elas perdiam comportamentos os mais diversos:
escola, como posso desenvolver tempo com o Projeto Rodízio. uma delas, responsável pela
essas atividades? Além do mais Cada vez que essas discussões recreação, sentou-se à sombra de
não tenho voz, precisaria de ocorriam, o Projeto não avançava. uma amendoeira, enquanto os
ajuda, e quem poderia me ajudar? Em uma das inúmeras reuniões, a alunos brincavam livremente, cor-

72 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


riam, jogavam futebol, brincavam Vestida com bermuda, usando tratando os alunos com carinho, a
de queimada, trocavam beijos em tênis e meia, portando a bolsa a outra professora usava sandálias,
brincadeiras do tipo "causa ou tiracolo, como se estivesse de par- sentava-se à sombra, deixando os
conseqüência", próxima da brin- tida, pediu aos alunos, que tam- meninos livres para estabelecer
cadeira "pêra, uva, maçã". bém portavam as suas mochilas, seus próprios jogos e regras, com
Sentei-me ao seu lado e per- que sentassem em círculos e uma postura clara de desagrado
guntei-lhe sobre o Projeto Rodízio. lançou a brincadeira de "chicoti- pela atividade que era obrigada a
Confidenciou-me que esse projeto nho queimado", de jogo de bola desenvolver.
é uma perda de tempo. Disse-me: para o alto, afirmando ser um Uma das professoras respon-
O que os alunos precisam é de treino para um futuro jogo de sáveis pela educação sexual
aula. É um dia perdido da semana. vôlei. A professora era meiga e resolveu "dar um tempo", pois os
O pátio fica lotado de crianças, e firme nesses momentos, exigindo alunos estavam fazendo perguntas
eu não sei diferenciar os alunos que os alunos obedecessem à regra "cabeludas" e ela não sabia o que
das diversas turmas. Nunca traba- do jogo. responder. Outra afirmou não ter
lhei com recreação, não tenho o Ao perceber a queda do entu- formação suficiente para trabalhar
menor jeito. A orientadora peda- siasmo das crianças com o jogo, com essa área e que colegas de
gógica ficou de me emprestar um sugeriu outro, e as crianças ganha- outra escola consideraram uma lou-
livro sobre recreação, mas até hoje ram forças para uma nova brin- cura as aulas de educação sexual.
nada. A escola não oferece nenhum cadeira. Nesse momento, a profes- Essa professora mostrou-se
material capaz de ser usado na re- sora que estava sentada à sombra bastante insatisfeita com o Projeto
creação. aproximou-se dela, procurando Rodízio. Disse que outras escolas
A preocupação única da pro- participar dos jogos. O novo jogo só apresentaram o projeto por
fessora era a exclusiva obediência apresentava dois grupos de alunos, escrito, que não o estavam desen-
ao horário, no sentido de receber enfileirados à frente de cada uma volvendo e que a exigência de que
as turmas no pátio, avisá-las de das professoras. Eles deveriam a professora desenvolvesse outra
que o horário havia terminado, receber a bola do colega, passar atividade, em outra turma, era uma
receber a turma seguinte e assim, por trás da professora e entregá-la grande desculpa para se receber o
sucessivamente, até o final do a outro colega. A fila que termi- dinheiro do Fundef. Reclamou do
dia. nasse primeiro seria a vencedora. pouco tempo que tinha para traba-
Enquanto essa professora ti- Observei que o modo de atu- lhar com os alunos, que eram fra-
nha uma atitude de passividade ação das professoras era diferenci- cos, não sabiam ler nem escrever e
frente à recreação, outra, também ado. Enquanto uma se vestia em precisavam de muita leitura e de
responsável por essa atividade, condições de atuar junto aos escrever mais. Para ela, esse dia do
oferecia sugestões, passava mes- alunos (bermuda, tênis, meia), projeto seria um dia perdido para
mo a brincar, ainda que sem muito sugeria as atividades, dava as os alunos, e, no final do ano, a
"jeito", dizendo-se perdida. regras e controlava os jogos, direção os quereria aprovados.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 73


PROBLEMAS COM PROJETOS PEDAGÓGICOS

Desabafou: quero dar minha aula, nos meus moldes, são mal acostu- O sentido da
fazer o que sei fazer – dar aula de mados com as outras professoras, resistência
Português, não quero fazer como fico muito tempo exigindo com-
algumas colegas estão fazendo, portamento necessário ao desen- O Fundef passou a ser o pai
faltando às quartas-feiras, para volvimento das atividades. Não do Projeto Rodízio. Aceito em
não terem que participar do Pro- estou dando aula de arte, não função da melhoria financeira que
jeto. Como elas não vêem nenhu- concordo com o Projeto Rodízio, trazia no seu bojo, as professoras
ma validade no Projeto, conside- apenas mando os alunos pin- foram contornando as regras e
ram que, se faltarem, não trarão tarem os desenhos mimeogra- atuando de modo diferente do pre-
prejuízo para os alunos. fados. Antes eu sentia prazer de visto, com medo de críticas aber-
Uma outra professora argu- propor várias atividades artísti- tas que poderiam levá-las a entrar
mentou que não tinha voz sufi- cas aos meus alunos, que traba- em conflito com a escola, com a
cientemente alta para controlar os lhavam com sucata, faziam rede. Tornou-se um segredo que
alunos no pátio durante a re- arranjos florais, potes, dobra- não podia ultrapassar os muros da
creação. A orientadora pedagógi- duras. organização.
ca sugeriu que ela usasse um Chegou-se ao fim do ano leti- Insatisfeitas com as atividades
apito. A professora voltou a insis- vo sem que o Projeto Rodízio a serem desenvolvidas, por não se
tir que os alunos não iriam escutá- fosse aceito pelas professoras: sentirem capazes, preparadas,
la. Mais uma vez, a orientadora acabou transformando-se em estimuladas, as professoras usam
pedagógica justificou que ficaria práticas existentes nos anos ante- o discurso do tempo, aparente-
com uma turma de cada vez no riores na escola, tais como re- mente em favor do aluno. Suas
pátio. Era uma professora recém- creação, sala de vídeo e bibliote- mensagens podem ser facilmente
chegada na escola, não tinha ca. A aula de Artes, o Inglês e a decifradas. É clara a visão que
poder de barganha. Religião foram abandonados. Às portam de educação: a transmissão
A professora que sempre quartas-feiras tinha-se a impres- do saber acumulado, que não com-
desafiou o currículo, ministrando são de que o Projeto Rodízio esta- porta outras formas de aprender.
aula de Artes e Inglês para seus va em pleno funcionamento, e É a imagem do conservadoris-
alunos, também não concordou que as professoras faziam jus ao mo cego e obstinado (Chevalier,
com o projeto e afirmou: quero percentual recebido, dedicando 1996), mantendo a tradição da
dar aula de arte para os meus quatro horas semanais a outras escola de local do saber, do apren-
alunos, não para os de outras atividades, com outros alunos da der a ler, escrever e contar. Fazem
professoras. Os alunos não estão escola. uso da sala de aula, com cadeiras e

74 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio./jun. 2000


mesas organizadas, quadro de giz cionária, de transformação da rea- É um espaço-tempo marginal,
repleto de conteúdo, livros, cader- lidade, humanizando o mundo, em que a professora se encontra
nos e lápis sobre a mesa. Diversi- mas a preocupação com o tradi- num estado intermediário, não
ficar as atividades, conviver com cional: o tempo, a produção. O acatando o estabelecido e atuando
alunos de outras séries, viver a tempo passa, portanto, a ser o de modo individualizado.
alteridade assusta e acaba, na maior argumento das professoras O que se pode afirmar é que
visão das professoras, por con- com relação ao Projeto, enquanto não se muda a realidade pela lei.
sumir o tempo útil e necessário à o prazer, a alegria, o estar-junto Impor projetos pode parecer uma
educação. são o motor que impulsiona os boa intenção do sistema, mas
As professoras, nas entrevistas alunos na escola. Para eles essas acaba por gerar mecanismos que
realizadas, foram claras ao admi- atividades diferentes são conside- driblam o poder, pois o Estado
tirem que o trabalho que desem- radas ótimas, e a escola, nesse dia, continua a ser o protetor/provedor,
penham está muito próximo do se transforma numa grande festa. e a escola, submissa. A escola, nos
das boas escolas particulares, que Cronos, Deus do tempo, se limites de um espaço imposto,
o conteúdo é trabalhado no mesmo defronta com Dionísio, deus da organizado fora de seus muros,
nível de exigência, que os alunos alegria. Nesse embate, os alunos deixa de oferecer condições que
da escola nada ficam a dever aos buscam o sentido da plenitude da poderiam melhorar a qualidade de
alunos de outras escolas, e que têm vida, enquanto as professoras aler- vida dos alunos.
chegado alunos de escolas pri- tam sobre a ação do tempo, para É preciso compreender a cul-
vadas que não se encontram no atingirem seus ideais, ligados à tura da escola — o modo de viver
mesmo patamar de conhecimento astúcia e à inventividade. No caso das pessoas, como pensam, sen-
dos seus alunos. Se deixarem de desse Projeto Rodízio, se as pro- tem, como se comportam, os seus
atuar como sempre atuaram, com- fessoras não podem usar as es- valores, a visão de mundo que por-
prometerão o processo de quali- padas para lutarem contra o inde- tam — para que projetos peda-
dade da escola. sejável, enfraquecem-no pelo dis- gógicos possam ser dinamizados
Preocupadas com a transmis- curso do tempo, da produtividade na sua plenitude. •
são do saber acumulado, com o e do saber.
conhecimento que o aluno levará Apresenta-se um "ritual de
para a série ou para o ciclo poste- resistência" (McLaren,1992), com Referências bibliográficas/
Sugestões de leitura
rior, a fim de não serem motivo de seu poder de desestruturação, no
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos.
crítica de outros colegas, as pro- que se refere às formas ativas: Mitos, sonhos, costumes, gestos, for-
mas, figuras, cores, números. Rio de
fessoras apostam no ensinar e no intencionalmente as professoras Janeiro: José Olympio, 1996.
MAFFESOLI, Michel. A Conquista do Pre-
aprender, lutando contra Cronos, o subvertem, sabotam as normas sente. Rio de Janeiro: Rocco,1984.
tempo mortal. estabelecidas, num caminho inver- MCLAREN, Peter. Rituais na Escola. Em
direção a uma economia política de
Entretanto, não se percebe tido da estrutura imposta pelo símbolos e gestos na educação.
Petropólis: Vozes, 1997.
uma luta messiânica, revolu- poder do sistema escolar.

v.6 n.33 • maio./jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 75


REPORTAGEM

Na entrada da Rádio Favela, a união de esforços: universidade e comunidade.

O Brasil em outra sintonia


A Rádio Favela partiu da Vila Nossa Senhora de Fátima, em Belo Horizonte, como
rádio pirata, conquistou três prêmios da ONU, virou rádio comunitária e foi
descoberta pela imprensa nacional. Em janeiro deste ano, obteve concessão para
funcionar como rádio educativa. O trabalho inovador tem despertado o interesse de
educadores, professores, pesquisadores e cineastas.
ROBERTO ALVES, jornalista.

O professor Tarcísio Mauro leu na capa: "Rádio comunitária Uma ano e meio depois, em 14
Vago, depois de trabalhar o dia baseada em favela de Belo Hori- de março de 2000, nascia o pro-
inteiro em sua tese de doutorado, zonte opera sem concessão, será grama Favela em sintonia com a
decidiu relaxar. Sentou-se no sofá representante do Brasil em con- educação. Como apresentadores,
de sua casa na capital mineira, gresso na Itália e chega a atingir o Wemerson de Amorim, professor
apanhou o caderno de cultura de 4º lugar em audiência na Grande da Faculdade de Educação da Uni-
um grande jornal de São Paulo e BH". Era 23 de julho de 1998. versidade Federal de Minas Gerais

76 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


(UFMG), a técnica em saneamen- Tarcísio ligou para a rádio, colo- Prêmios
to ambiental Jairsa Fernandes cou-se à disposição e recebeu o
Rocha e a auxiliar de educação convite para ser entrevistado no "A idéia do programa parte de
Madeleine Miranda Valadares. programa Peladinha na favela, um conceito amplo de educação:
No papel de âncora, o próprio sobre futebol. "Foi amor à que ela não se reduz às práticas
Tarcísio Vago. Tendo finalizado o primeira vista. Entrei na rádio e escolares. A escola é um campo
doutorado, pôde dividir seu tempo achei aquilo muitíssimo interes- especial de educação, mas não o
entre as aulas na Faculdade de sante", conta. Após o programa, único. Dentro desse conceito, era
Educação Física da UFMG, o tra- convidado a ter uma seção no possível pensar as práticas sociais
balho no Centro Pedagógico, esco- Peladinha na favela, aceitou. e culturais como práticas educati-
la de Ensino Fundamental, e a Diferentemente de outros vas", explica o professor Tarcísio
Rádio Favela FM (104,5 MHz). amores, esse perdurou. Tanto que Vago.
"Profissionalmente, é um dos o fato de o programa ter acabado Essa maneira diferente de
projetos mais gratificantes com os por falta de patrocínio e Tarcísio encarar a educação fez com que o
quais eu me envolvi, e olha que eu ter-se mantido afastado da rádio programa abarcasse uma seção de
só tenho feito coisas que me dão por alguns meses para escrever poesias, a seção Brincadeiras e
muito prazer", revela Tarcísio, sua tese não esfriou o romance. Jogos, com ditados populares, tra-
que, como os outros apresenta- No final do ano passado, ele va-línguas e adivinhas, e a seção
dores, trabalha como voluntário. O propôs à direção da Rádio Favela Nossa memória, sobre história de
professor não se contém: "Por ser um programa com formato edu- Belo Horizonte, de Minas Gerais
outro veículo, a rádio tem algo de cativo. Estava ali o embrião do ou até do Brasil. Outras seções do
inédito para mim. Antes, meu Favela em sintonia com a edu- programa são a Contação de His-
veículo era a aula. Estou comple- cação, hoje, projeto de extensão tórias, sob responsabilidade do
tamente apaixonado por essa pos- da UFMG, com apoio da organi- grupo Conta Mais, e a de música
sibilidade". zação não governamental Visão clássica, coordenada pelo pianista
Igual a toda paixão, essa Mundial. O horário reservado foi Oscar Marcos Tibúrcio, professor
aconteceu de imediato. No mes- o das 20h às 21h, todas as terças- da Escola de Música da Universi-
mo dia em que leu a reportagem, feiras. dade do Estado de Minas Gerais.

v.6 n.33 • maio/jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 77


REPORTAGEM O BRASIL EM OUTRA SINTONIA

Vale destacar a seção Mestres recebeu o prêmio Referência em José Mendes Júnior nunca teve os
da favela, que traz para serem Gestão Escolar, em abril deste muros pichados ou sofreu depre-
entrevistadas pessoas da própria ano. O prêmio é concedido por dação.
comunidade onde se situa a entidades como o Conselho dos Desconstruir a violência foi
Rádio Favela, o Aglomerado da Secretários de Educação, a Fun- também o caminho escolhido pela
Serra. Formado por seis vilas, é o dação Roberto Marinho e a Unes- Rádio Favela para combater o uso
maior aglomerado de favelas da co. de drogas entre os jovens do
Região Metropolitana de Belo Ambos, quando entrevistados, aglomerado. "Todo mundo quer
Horizonte, localizado na zona sul falaram da violência. Ele, porque combater as drogas com arma,
da capital. desenvolveu a tese de mestrado a com colete à prova de bala, com
Já passaram pela seção entre- respeito dos mitos sobre criminali- grandes penitenciárias. Isso nunca
vistados como o sociólogo Wilson dade e comunidade. Ela, porque vai acabar com elas, porque são o
Cruz, que mora na comunidade há lida com a violência no seu dia-a- que mais movimenta dinheiro no
35 anos, e a professora Maria Car- dia. "A gente não fala em comba- mundo. Contra esse poderio, você
men Barbosa de Matos, ex-direto- ter a violência, seria um contra- tem de ir com a conscientização",
ra da Escola Estadual José Mendes senso. A gente fala em descons- defende Mizael Avelino dos San-
Júnior, que fica no aglomerado. truí-la", argumentou Maria Car- tos, presidente da rádio e um de
Sob a direção de Maria Carmen, a men. Exemplo de como a tática seus fundadores. Esse posiciona-
escola foi a única da capital que vem dando certo é que a Escola mento fez a Rádio Favela receber
da ONU, em 1996, 1997 e 1998, o
prêmio Dia Mundial sem Drogas.
Reconhecimento que veio
depois de a rádio ser fechada
várias vezes ao longo da sua
história, que começou no final dos
anos 70, quando um grupo de 50
jovens e adolescentes do aglome-
rado montou uma rádio com trans-
missor à base de bateria de cami-
nhão. Época, como lembra Miza-
el, em que na favela não havia
Misael, fundador da Rádio Favela energia elétrica, era proibido usar

78 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


cabelo comprido e não se podiam
reunir mais de quatro pessoas.
Tempos de ditadura militar.
Alguns jovens foram presos,
outros sumiram, veio a democra-
cia, mas a perseguição continuou.
Adquiriu a face do Dentel (Depar-
tamento Nacional de Telecomuni-
cações) e, mais tarde, da Anatel
(Agência Nacional de Telecomu-
nicações), já que a Rádio Favela
era considerada pirata. Acabou
Vista panorâmica do estúdio da Rádio Favela
apenas em janeiro deste ano, com
a concessão do Ministério das conjunto de preconceitos e por aproximar, cada vez mais, a
Comunicações para que ela fun- exclusões. É o preconceito de que rádio da comunidade escolar. Au-
cionasse como rádio educativa. lá só vive o traficante, o bandido. xiliar de educação, Madeleine Va-
Dos 50 jovens, restaram ape- Na verdade, é uma cidade dos ladares também mora no Aglome-
nas quatro, entre eles, o próprio excluídos econômica e social- rado da Serra e, há dois anos, está
Mizael. Hoje, a Rádio Favela mente. Muitos são secretários, envolvida com a Rádio Favela.
enfrenta outros problemas. "No administradores ou professores". Aproximação que deve ocor-
momento em que a rádio é reco- rer com respeito, seja com a comu-
nhecida como de utilidade pública Ouvintes cidadãos nidade escolar, seja com o público
e educativa, ela passa a ser cobra- em geral, segundo o âncora Tarcí-
da pelo Ecad com um tratamento Foi o interesse pela sua comu- sio Vago. "Pensamos em um for-
igual ao das rádios comerciais", nidade, a Vila Nossa Senhora de mato de programa para uma rádio
critica o professor Wemerson de Fátima, que levou a técnica em cuja maior audiência está entre
Amorim, que participa do progra- saneamento ambiental Jairza Fer- cidadãos, na maioria das vezes,
ma Favela em sintonia com a edu- nandes Rocha a colaborar no sem acesso à discussão de quali-
cação. Ecad é o órgão que contro- Favela em sintonia com a edu- dade sobre educação. Mas o pro-
la os direitos autorais e taxa a vei- cação. "Todo mundo fala que a vio- grama não os trata como despos-
culação de músicas. lência está aumentando, mas todos suidores de um saber", explica o
Para Wemerson, o papel da se trancam em casa. Você tem de professor.
Rádio Favela não deve ser subesti- fazer alguma coisa", sugere. O perfil de público da Rádio
mado. "Ela permite aglutinar pes- O caminho, na opinião de Ma- Favela FM vem mudando nos últi-
soas com interesses comuns. A deleine Miranda Valadares, outra mos anos. Com uma potência em
favela é um espaço que aponta um apresentadora do programa, passa torno de 100 watts, a rádio não

v.6 n.33 • maio/jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 79


REPORTAGEM O BRASIL EM OUTRA SINTONIA

alcança hoje apenas o Aglomerado rap, também podem ser acompa-


da Serra. É possível escutá-la em nhados pelo endereço www.radio-
vários bairros de Belo Horizonte e favelafm.com.br, destinado ao ou-
até em outras cidades da Região vinte internauta. Para falar direto
Metropolitana. Com o auxílio de com as pessoas que fazem a rádio,
organizações não governamentais o telefone é (31) 282-1045.
(ONGs) da Itália, a rádio receberá
um equipamento que elevará sua Revolução
potência a 5.000 watts. sem sangue
"Elas gostam muito da gente",
confessa o presidente da rádio, Agora cosmopolita, a Rádio
Mizael Avelino dos Santos. Em Favela FM destaca-se por seu per- dade brasileira. Vamos fazer isso
1998, a Rádio Favela representou fil peculiar, sempre atento à comu- captando a fala deles", explica a
o Brasil no 7º Encontro da Asso- nidade de onde veio. Essa carac- estudante Paula Guimarães Si-
ciação Mundial de Rádios Comu- terística despertou a atenção de mões, bolsista de iniciação cien-
nitárias, em Milão. um grupo de pesquisadores do tífica.
Pela Internet, a rádio pode ser curso de Comunicação Social da A Rádio Favela se auto-intitu-
acompanhada em qualquer parte Universidade Federal de Minas la a voz do morro e, para se
do mundo. O italiano Giancarlo Gerais. expressar, vale-se do "favelês",
Palmesi, responsável pelo Sabato No projeto que analisa a iden- linguagem diferente da utilizada
Italiano, veiculado nas tardes de tidade do país construída durante por quem vive no "asfalto", os
sábado, tem ouvintes em sua terra esses 500 anos, Imagens do Brasil: outros moradores da cidade."A
natal, na Argentina e em outros modos de ver, modos de conviver, a importância da rádio está no fato
estados do Brasil, como a Bahia. rádio insere-se no subprojeto Dis- de ela ser a fala de quem sempre
O programa, falado em italiano, curso da identidade, discurso da foi calado em termos de meio de
traz notícias e músicas daquele alteridade: o outro por si mesmo. comunicação, dar direito a voz,
país europeu. "Esse subprojeto está voltado mesmo que debaixo de pancada",
Atrações de sucesso da rádio, para o segmento das classes po- destaca o professor Tarcísio Vago.
como o Rosa Choque, dirigido ao pulares, dos grupos de baixa Direito a voz, direito a educação.
público feminino, e o Uai Rap Sô, renda. O objetivo é ver o lugar Na visão do presidente da rádio,
que toca músicas, principalmente, que esses grupos ocupam na conscientizar já é educar. "Quando a
de conjuntos locais de hip hop e construção do discurso da identi- gente fala do lixo, quando a gente

80 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


Vista panorâmica de Belo Horizonte a partir da Serra
A química de
aprender
com prazer

fala da violência durante os progra- Borboleta, chulé, Internet, alimentos transgênicos.


mas, a gente está levando as pessoas No programa Ciência na favela, que vai ao ar todas as
a pensarem de maneira diferente", terças-feiras, das 16h às 17h, pela Rádio Favela FM, os
acredita Mizael Avelino dos Santos. temas são tão variados quanto a curiosidade humana.
Ao lado do antigo trabalho de cons- O programa estreou em julho do ano passado e é
cientização, a rádio também pro- comandado pela bióloga Ana Paula Bossler da Costa e
move campanhas educativas. pelo professor de Ciências Carlos Henrique Albu-
Só no ano passado, uma cam- querque Mendes, que também coordena o Museu de
panha para arrecadar material Física Itinerante. Foi pelo museu, que roda todo o esta-
escolar conseguiu 7.000 cadernos do de Minas Gerais, que o pessoal da Rádio Favela
para as crianças da região. A rádio teve contato com os futuros apresentadores do Ciência
oferece ainda cursos de alfabetiza- na favela.
ção e aulas de reforço. Para Miza- "Nossa proposta é fazer um bate-papo. Nós nos
el todo esse trabalho tem um senti- colocamos não como especialistas, mas como alguém
do claro: "A revolução que a que quer levantar o debate, cutucar os ouvintes", expli-
Rádio Favela faz é uma revolução ca o físico Carlos Henrique Mendes. Nesse bate-papo,
sem sangue. Para a gente con- o improviso não é descartado. "É claro que a gente se
seguir fazer essa revolução, as pes- prepara, mas se tiver acontecido algo na imprensa, por
soas têm que ter conhecimento. exemplo, podemos mudar o programa", conta o pro-
Conhecimento a gente adquire fessor.
onde? Na escola". •
v.6 n.33 • maio/jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 81
REPORTAGEM O BRASIL EM OUTRA SINTONIA

Essa alteração de rumos já ocorreu. Subindo Contra a apatia


as vielas do morro onde se localiza a vila Nossa
Senhora de Fátima, Carlos Henrique reparou no O trabalho dos dois professores não se limita
esgoto a céu aberto. Redirecionou o programa do ao programa. Em parceria com a Escola Leonardo
dia para o assunto. Ele sabia o que estava fazendo: da Vinci, da cidade de Lagoa Santa, próxima a
"A gente não usa a rádio para falar, como eles Belo Horizonte, Ana Paula e Carlos Henrique dão
chamam, do ‘asfalto’. Nós falamos muita coisa impulso ao Centro de Ciências e Artes Leonardo da
referente à situação daqui da favela. Tivemos uma Vinci/Favela FM. Um barraco, na própria vila, foi
receptividade ótima". reformado para abrigá-lo.
Carlos Henrique, Ana Paula e Ana Carolina Biblioteca, minimuseu e espaço para experi-
Dutra Siqueira, estudante de jornalismo que ajuda mentos científicos, o centro estará aberto a toda
na produção do programa, apostam em uma edu- comunidade. "A idéia é trabalhar com os meninos
cação fora da sala de aula. "A gente acredita que e com os professores, mostrar que há outras possi-
existe uma sede de saber muito grande e que a bilidades de aprendizado", explica Carlos Hen-
academia complica isso demais. As pessoas não se rique, que informa serem bem-vindas parcerias e
sentem seguras para discutirem certos assuntos. patrocínio de empresas ou escolas para esse ou
Quando você está em casa e liga seu rádio, você para os outros projetos.
não tem esse compromisso", detalha Carlos Hen- Na opinião de Ana Paula, esses projetos têm o
rique. Para o professor, o objetivo é não escolarizar propósito de despertar o desejo do ser humano. "O que
o programa, deixá-lo aberto ao diálogo. a gente vê é uma apatia geral. Os meninos não têm von-
Ana Paula, que também leciona, é enfática: tade de nada e o professor também, o que acho mais
"Mudei minha vida depois da rádio. Descobri um grave. Ele não quer nem instigar o aluno, porque, se esse
novo jeito de trabalhar com educação". O entusias- aluno ficar instigado, vai subir em cima dele e ele não
mo fez com que ela formulasse mais dois progra- dá conta dessa pessoa doida por saber", afirma para,
mas: um sobre geografia e outro sobre histórias depois, sugerir: "Temos de resgatar o desejo e perder o
infantis, folclore e música. A direção da Rádio medo de mudança".

Favela deve definir dia e hora em que vão ao ar.

82 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


A favela sob Além do
novos olhos shopping
Nem bandidos, nem coitadinhos. Para o Uma rádio na favela já captou cerca de um
cineasta Helvécio Ratton, as pessoas que fazem a terço de seus recursos por meio da Lei do Audio-
Rádio Favela não correspondem à imagem que o visual, da Rouanet e das leis de incentivo à cultura
cinema reservou aos moradores da periferia. "São de Belo Horizonte e do estado de Minas Gerais. A
pessoas que constroem uma alternativa. Daí meu idéia é começar as filmagens no segundo semestre
interesse por elas. Fico vendo a dignidade da rádio, deste ano. Helvécio Ratton planeja trabalhar, prin-
a postura dela de criar auto-estima, de trabalhar a cipalmente, com não-atores e atores desconheci-
autovalorização do jovem. É um outro caminho. dos. "É um filme que deve ter uma dose de realis-
Não sei se o cinema brasileiro já o abordou", afir- mo muito grande e acho que rostos desconhecidos
ma Helvécio Ratton. ajudam nesse sentido", explica. Testes para seleção
Diretor de filmes como O menino maluquinho de atores vão ocorrer em bairros da periferia da
e Amor & cia., Ratton pretende mostrar outra capital mineira.
imagem em seu próximo trabalho, Uma rádio na O lançamento do filme pretende fugir ao for-
favela. O filme inspira-se na história da rádio, mato tradicional. O diretor sentiu a necessidade de
passa pelo movimento negro no país, mas não será fazer um circuito paralelo de exibição, levando-o
um documentário. O próprio diretor explica por também a regiões carentes do país, se houver apoio
que: "Essa história é exemplar no Brasil de hoje. A financeiro. "A presença nos cinemas, atualmente,
questão dos excluídos e a da desigualdade social está quase que exclusiva à classe média que fre-
são temas prioritários para o cinema". qüenta shopping. Esse tipo de comportamento afas-
O roteiro, praticamente fechado, encontra-se ta um jovem da favela de ir ver um filme. É capaz
na terceira versão. Surgiu de extensas entrevistas de ele ser barrado pelo segurança na porta", analisa.
com as pessoas da Rádio Favela e com moradores Outro caminho que o filme deve percorrer
do local. "Ele tem vários tons. A vida deles não é são as escolas. Ratton indica a razão: "É um filme
só uma tragédia. Pelo contrário, tem muita criação que coloca em discussão a história do Brasil hoje,
e um humor fantástico", destaca. Para colaborar na o que acontece agora, por que estão se criando
empreitada, Helvécio Ratton chamou Jorge Duran, certos abismos entre as classes sociais, transpos-
roteirista de Pixote — A lei do mais fraco. tos apenas pela violência". Discussão que vai
Falta agora adequar os diálogos do roteiro, que muito além do que se viu na recente comemo-
pretende resgatar termos e gírias usados pelos per- ração dos 500 anos de descobrimento do país.
sonagens em diferentes épocas, já que o filme "Não há como criarmos pontes de contato entre
passa por três tempos: o atual, 15 anos atrás e 20 nós?", pergunta Helvécio Ratton. A Rádio Favela
anos atrás, quando a rádio surgiu. FM e o próprio filme parecem dizer que sim. •
v.6 n.33 • maio/jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 83
Presença de Livros

Um
Machado
que não
assusta Conto de Escola, Machado
de Assis. Belo Horizonte:
Dimensão, 1999.

VALÉRIA MARIA PENA FERREIRA

M achado de Assis para crianças? É, isso


mesmo, para crianças. O que aparente-
mente é contra-senso e provoca espanto pode se
revelar uma surpresa agradável e promissora.
Vamos ver como.

* Professora do UNI-BH.

84 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


Por mais incrível que isso
possa parecer, não é incomum
ouvir de alunos que iniciam o
curso de Letras frases do tipo:
"Nunca consegui ler por inteiro
um romance de Machado de
Assis." "Credo! Machado de Assis
é chato, cansativo." "Li Memórias
póstumas de Brás Cubas e não
entendi nada."
Ouvindo um pouco mais esses
alunos, ficamos sabendo que
foram obrigados a ler não só
Machado, mas também José de
Alencar, Aluísio Azevedo ou Raul
Pompéia, por exemplo, com o A Editora Dimensão nos dá dos grandes e a impotência dos
único objetivo de fazerem uma agora mais uma excelente oportu- pequenos. Se nas ruas vemos
prova de Português. E isso aos 13 nidade de oferecer Machado de nosso herói caminhando com
ou 14 anos. Assim podemos enten- Assis. Desta vez, para as crianças. desenvoltura e curiosidade, na
der o motivo da má vontade com escola notamos o tédio experimen-
um dos nossos mais importantes Trata-se do “Conto de escola”, tado pelo seu Pilar, como era trata-
autores. publicado originalmente no livro do pelos colegas e pelo professor.
No decorrer do trabalho com Várias histórias. No conto, ambi- Enquanto equilibrava nos joelhos a
esses alunos, entretanto, não é entado no ano de 1840, um nar- gramática, fazia a lição de escrita
raro vê-los completamente sedu- rador relata um fato ocorrido com sem perder de vista a pesada
zidos por contos como "Idéias de ele na infância. Inicia a sua nar- palmatória — rainha absoluta da
canário", "Trio em lá menor", rativa pela afirmação de que a pedagogia da época:
"Galeria póstuma", "A carto- decisão de ir para a escola num O pior que ele [o profes-
mante", "Entre santos", "O reló- determinado dia se devera antes ao sor] podia ter, para nós, era a
gio de ouro", "O enfermeiro", medo de levar uma outra surra do palmatória. E essa lá estava,
"Evolução" etc. Como isso ocor- pai, que a um desejo de aprender. pendurada no portal da jane-
re? Onde está a mágica? Primei- Com imagens muito sugesti- la, à direita, com os seus cinco
ramente, nos textos. Depois, na vas, representando os adultos exa- olhos do diabo. Era só levan-
forma de oferecê-los, nas esco- geradamente maiores que as cri- tar a mão, despendurá-la e
lhas que fazemos e que deixamos anças, o ilustrador salienta a opo- brandi-la, com a força do cos-
os alunos fazerem. sição entre o ameaçador domínio tume, que não era pouca.

v.6 n.33 • maio/jun. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 85


PRESENÇA DE LIVROS UM MACHADO QUE NÃO ASSUSTA

Nesse ambiente, o jovem es- No dia seguinte, com um


tudante, que, de fato, "não era um tambor à frente, um batalhão de
menino de virtudes", viu-se soli- fuzileiros chama a atenção de
citado por Raimundo, um colega nosso jovem estudante. Desta
com mais dificuldade em apren- vez, o encanto das ruas vence o
der, a ensinar-lhe uma lição de medo.
sintaxe em troca de uma moeda de É verdade que não existem
prata. Acontece que o solicitante mais palmatórias nas escolas. Mas
era filho do professor e, por isso não é difícil que um estudante de Como vimos nos depoimentos
mesmo, principal alvo de sua vi- hoje possa identificar-se com seu dos alunos, entretanto, as histórias
gilância. Pilar. Se não são tão freqüentes, de Machado de Assis nem sempre
Ao ver a pratinha que Raimun- pelo menos nas grandes cidades, provocam o prazer que faz o
do insistia em exibir, o garoto Pilar os papagaios no céu, o movimento tempo passar rapidamente, menos
teve uma sensação esquisita: das ruas ainda parece exercer forte talvez pelo que contam, mais pela
Não é que eu possuísse da atração sobre os alunos. Os dana- maneira como são dadas a ler nas
virtude uma idéia antes pró- dos ainda matam aula! escolas. Na quarta capa do livro
pria de homem; não é também Acompanhar a narração de seu agora publicado pela Dimensão,
que não fosse fácil eu empre- Pilar, entretanto, pode envolver- fala-se sobre a "eterna atualidade"
gar uma ou outra mentira de nos tanto ou mais que o burburi- do texto clássico. Um dos sentidos
criança. Sabíamos ambos en- nho da cidade. Ouvir o relato de que o termo clássico apresenta é o
ganar ao mestre. A novidade suas memórias e conhecer seu de autor que se lê nas classes, por
estava nos termos da propos- conflito diante da tentadora prati- ser considerado excelente. Macha-
ta, na troca de lição e dinhei- nha prende a nossa atenção e nos do de Assis merecidamente vem
ro, compra franca, positiva, torna espectadores ansiosos pelo sendo lido nas escolas. Porém,
toma lá, dá cá; tal foi a causa desfecho da história. parece necessário repensar as
da sensação. Com isso, o autor atende ao estratégias de apresentação de
O impasse pelo qual passa o conselho de Diderot, usado como seus textos para os alunos, o que
narrador é superado pelo desejo e, epígrafe ao livro que trouxe, pela exige um maior conhecimento de
assim, faz-se a troca. Mas um dela- primeira vez, o texto: "Meu caro, sua obra e uma disposição de abrir
tor aparece, denuncia o "negócio". façamos sempre contos...O tempo mão da avaliação institucional da
Corrupção e delação são evidencia- passa, e o conto da vida termina, leitura literária. Pelo menos do
das simultaneamente. E o castigo? sem que nos demos conta." modo como vem sendo feita. •
86 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000
HISTÓRIA É NOTÍCIA

Lançamento

A história ganhou as
manchetes. Exatamente como hoje em
dia, os fatos mais relevantes, os aconte-
cimentos mais importantes do passado estão lá,
na primeira página dos jornais. Mais que uma idéia criativa de como
aproximar o jovem leitor do estudo da História, é uma bela maneira de introduzir uma
noção básica - a de que a História foi e sempre será feita no cotidiano.
São 6 edições especiais, fartamente ilustradas com diagramação que permite leitura ágil e atraente
a alunos de 5ª a 8ª séries:

• Jornal do Brasil - Descobrimento


• Jornal da Idade da Pedra
• Jornal do Egito
• Jornal da Grécia
• Jornal de Roma
• Jornal dos Astecas
Coleção premiada pela FNLIJ:
Melhor Tradução Para Jovem
Rua Rosinha Sigaud, 201– Caiçara
Telefax: (31) 411-2122 – Fax: (31) 411-2427
30770-560 – BELO HORIZONTE (MG)
SABER EM MOVIMENTO

Agricultura orgânica:
a salvação da lavoura
MARISE MUNIZ, jornalista

Quem busca no cardápio natu- adubos orgânicos, reciclando os desse sistema, ele garante que é
ralista à base de legumes, verduras resíduos e usando racionalmente possível produzir frutas e legumes
e frutas uma alternativa alimentar os recursos naturais. "Quando o tão bonitos quanto aqueles que
saudável nem sempre está livre de solo é enriquecido com material recebem aditivos químicos, com a
riscos. A maior parte desses "ino- orgânico, melhora de forma signi- vantagem de oferecer maior valor
centes" vegetais contém defen- ficativa sua capacidade de for- em nutrientes e sabor mais apura-
sivos agrícolas que contaminam necer nutrientes, aumentando tam- do, sem contaminação de defen-
não apenas sua parte externa, pois bém sua resistência a pragas", sivos. Quando levamos esses ali-
a planta absorve pela raiz essas explica o médico veterinário Ra- mentos da horta para a mesa, sabe-
substâncias químicas aplicadas ao fael Paiva Isidoro, que atua há mos que estão ainda vivos; não é
solo de cultivo, incorporando-as nove anos como consultor na área um cadáver que se coloca no
integralmente. Que não se deses- e há sete como produtor de horta- prato.
perem, porém, os vegetarianos: já liças empregando esse sistema.
começa a ganhar campo no País a Para Isidoro, é um equívoco Bases ecológicas
agricultura orgânica, que produz pensar que os produtos orgânicos
saudáveis hortaliças e legumes são necessariamente feios e ra- Tida até pouco tempo como
sem uma só gota de veneno contra quíticos. Ele alega que a primeira uma prática alternativa restrita a
pragas. coisa capaz de garantir saúde à hortas caseiras, a agricultura or-
A alternativa orgânica reúne planta é uma boa nutrição forne- gânica apresenta-se gradativamente
técnicas que fertilizam o solo com cida por um solo sadio. Através como a opção mais promissora

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para uma produção agrícola em solo é um excelente fungicida, com longo do tempo, sua disponibilidade
bases ecológicas. Entusiasta do uso a vantagem de não deixar resíduos. de nutrientes para as plantas.
dessa prática, Isidoro tem colhido Mais moderno, o controle É, entretanto, aconselhável que
em vários experimentos resultados biológico permite a eliminação de a substituição do sistema conven-
que confirmam essa tendência: ali- pragas através da introdução de cional pelo orgânico seja feita de
mentos saudáveis, livres de conta- seus inimigos naturais no ecos- forma gradativa. "O produtor que
minação, gerados através de um sistema. Isso pode ser feito pelo está convertendo seu cultivo para a
processo agrícola sustentável. "O cultivo de plantas que funcionam agricultura orgânica deve agir como
ganho é duplo: conserva-se o meio como atrativas desses predadores. se lidasse com um doente terminal.
ambiente e a saúde humana, pres- Numa agricultura diversificada, os Não dá para convidá-lo de imediato
supostos indispensáveis à qualidade inimigos naturais das pragas a jogar uma partida de futebol",
de vida", ele atesta. encontram ambiente propício para compara o médico, que é membro
Os praticantes da agricultura se instalar, atuando seletivamente. do Instituto de Ecodesenvolvimento
orgânica entendem que o solo não é Já os agrotóxicos agem de forma Agrícola (Idea), cujo objetivo é
apenas um meio onde a planta se indiscriminada: junto com as pra- transferir tecnologia aos agricul-
desenvolve, mas um organismo gas, matam outros insetos e elimi- tores orgânicos e abrir portas para
vivo, em constante transformação. nam microorganismos necessários comercializar seus produtos.
À medida que nele se incorpora ao equilíbrio ecológico e ao cresci- Estatísticas mostram que a
matéria orgânica, melhora a sua mento sadio das plantas. agricultura orgânica é uma alter-
capacidade de absorver nutrientes e nativa que caminha a passos lar-
de resistência a pragas, sem que seja Herança gos em todo o mundo. Estima-se
necessário o uso de fertilizantes sin- para o futuro hoje a existência de 10 mil pro-
téticos ou de agroquímicos. dutores orgânicos certificados,
Em contraposição à monocul- Com três anos de plantio 80% deles situados nos EUA e
tura, existe a alternativa de consór- orgânico, já é possível observar Europa. Na Alemanha, país eu-
cios de espécies diversas em uma redução significativa dos níveis de ropeu que mais consome produ-
mesma área de cultivo. "A natureza infestação de pragas e razoável me- tos orgânicos, o setor tem uma
mostra que, quanto maior a diversi- lhoria na qualidade dos alimentos participação de 10% do mercado
dade, maior é o equilíbrio do ecos- cultivados. "Usamos um pouco mais de produtos alimentícios. No
sistema", argumenta Isidoro. O de técnica, mas a base está, na ver- Brasil, a agricultura orgânica
combate a pragas pode ser feito por dade, assentada nos métodos usados cresceu cerca de 500% só nos
meio de produtos naturais fabrica- por nossos avós", admite Isidoro. últimos três anos. O país já
dos na própria fazenda: caldas de Hoje, aliando essa herança aos exporta café, cacau, soja, óleos,
fumo e pimenta, pulverizadas na recursos tecnológicos, é possível frutas em suco e secas, caju, mate
planta, substituem os agroquími- produzir um adubo orgânico que e açucar mascavo produzidos em
cos, enquanto o cobre aplicado ao potencializa o solo, aumentando, ao bases orgânicas. •
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ENSINAR CIÊNCIAS
MARIA EMÍLIA C. C. LIMA / ORLANDO G. AGUIAR JR./ SELMA A. M. BRAGA *
DICIONÁRIO CRÍTICO DA EDUCAÇÃO

Embora as disciplinas compreendidas no tária de uma visão largamente positivista


campo das ciências naturais, que é muito acerca das ciências naturais e alimentada
vasto, envolvam saberes, metodologias e lin- por uma crença implícita de que a apren-
guagens diversos, comportam uma certa dizagem decorre diretamente de uma trans-
identidade cultural e didático-pedagógica, missão de conhecimentos sistematizados.
que nos permite aqui tratá-las em conjunto, Nesse sentido, ensinar ciências envolve
mesmo que reconhecendo algumas especifi- apresentar, de modo organizado e hierar-
cidades. Pensar no ensino de ciências quicamente seqüenciado, um conjunto de
envolve, necessariamente, uma concepção do conceitos e teorias científicas. Assim,
que são as ciências naturais e como se cons- parece lógico apresentar a Biologia a partir
tituem, das necessidades formativas dos da célula, a Química a partir do átomo,
estudantes e dos processos de aprendizagem. tratando assim o todo como a soma das
Nos últimos anos, essas questões foram con- partes. Por sua vez, o conhecimento físico
sideradas de diferentes modos, gerando se estrutura a partir da cinemática, substi-
práticas educativas e projetos diversos que tuindo-se a compreensão dos fenômenos
repercutem, ainda hoje, no fazer e no pensar por seu tratamento matemático. O ensino
dos professores. consiste assim em uma seqüência didática
de definições, exemplificações e exercícios
Convivemos com uma representação destinados à fixação da aprendizagem. A
hegemônica que orienta o modo como se avaliação da aprendizagem consiste em
organizam a sala de aula e o currículo de verificar se o aluno possui um repertório
ciências. Infelizmente, ela é ainda tribu- adequado de definições e se é capaz de

* Professores da UFMG

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operacionalizar sua aplicação em exercí- ingênuo supor que, sem uma instrução
cios padronizados, de preferência com específica, os estudantes pudessem, por si
algum tratamento matemático. mesmos, "descobrir" ou "construir" con-
Esse modo de organizar o ensino de ciên- ceitos científicos, dado o seu afastamento da
cias oferece uma falsa imagem de sucesso experiência primeira.
escolar. Entretanto, há um relativo consenso Nos últimos anos, posições construtivis-
de que esse ensino de ciências não constitui tas têm-se afirmado como largamente domi-
ferramenta para o pensar e o agir, sendo nantes no cenário da pesquisa e do discurso
inócuo como processo formativo. De outro pedagógico. Embora haja um consenso bem
lado, pesquisas revelam que mesmo estu- estabelecido quanto ao caráter ativo das
dantes bem sucedidos na resolução de pro- aprendizagens, várias são as posições e ori-
blemas numéricos e com bom repertório de entações sobre como promover a cons-
definições falham ao interpretar fenômenos trução, pelos estudantes, de representações
de um modo enformado pelo pensamento pessoais que se aproximem daquelas cien-
científico. tificamente aceitas. Muitas têm sido as
pesquisas sobre concepções dos estudantes
Outra representação do ensino de ciên- acerca dos mais variados temas do ensino de
cias consiste em focar os processos em detri- ciências (energia, força e movimento, calor e
mento de seus produtos. Assim, a abordagem temperatura, reações químicas, natureza da
do ensino desloca-se para o "método cientí- matéria, equilíbrio químico, células,
fico", apresentado como seqüência de pro- nutrição, reprodução, respiração, fotos-
cedimentos preestabelecidos, capazes de síntese etc.) examinados em dissertações e
gerar conhecimentos válidos, objetivos e teses, publicados em vários livros e periódi-
seguros. O ensino consiste então na organi- cos. Tais pesquisas têm informado a elabo-
zação de situações a serem investigadas ração de estratégias didáticas e a produção
pelos estudantes a partir da aplicação do de diretrizes curriculares, livros e materiais
método, resultando disso a descoberta ou de apoio ao ensino de ciências.
indução de conceitos científicos. Entretanto, Muito se tem falado na mudança de foco,
pode-se argumentar que esse modo de con- antes centrado num sujeito ativo, para as
ceber o ensino é filosoficamente equivocado relações do sujeito com o mundo, isto é, um
e pedagogicamente ineficiente. Há muito, a sujeito agora interativo. Assim, a partir de
filosofia das ciências demonstrou a insufi- uma perspectiva sociointeracionista, as
ciência de posições empírico-indutivistas questões pedagógicas passam a ser compreen-
que deram embasamento à noção de "méto- didas a partir de um outro referencial. O papel
do científico" tal como apresentado em tex- do professor e dos discursos argumentativos
tos didáticos de ciências. Além disso, seria são novamente postos em evidência sem, con-

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tudo, significar uma volta ao ensino baseado Entretanto, essas duas dimensões, cultu-
nos processos de transmissão. ral e pessoal, às vezes se contrapõem nas
práticas do ensino e da aprendizagem em
Assim, o ensino de ciências envolve sala de aula. De um lado, aprender envolve
dimensões não excludentes. A primeira uma liberdade de explorar e criar modelos
delas diz respeito à cultura, aos mecanismos explicativos; de outro, o ensino guarda um
que tornam relevantes certos saberes de uma compromisso de convergir significados
dada sociedade, e ao conjunto de suportes numa dada direção. O equilíbrio entre essas
necessários para que possam ser apreciados duas dimensões é frágil, não podendo ser
e examinados pelas novas gerações. Nesse determinado de antemão, mas, sim, regulado
sentido, aprender ciências envolve a intro- no curso das interações em sala de aula.
dução a um modo de pensar e interrogar a
natureza distinto daqueles que empregamos Além dessas questões, a didática das
normalmente em nosso cotidiano. Essa ciências tem vivido, nos últimos anos, um
introdução aos paradigmas da ciência forte apelo para relacionar ciência, tecnolo-
envolve, necessariamente, instrução, ou gia e sociedade, incorporando na discussão
seja, ação intencional do ensino. A segunda científica as questões da ética, da estética e
dimensão diz respeito ao sujeito do conhec- da política. Tais orientações decorrem, em
imento e aos processos através dos quais se parte, da intenção de promover um ensino de
apropria dos objetos de seu conhecimento, ciências atraente, interessante e relevante
DICIONÁRIO CRÍTICO DA EDUCAÇÃO

interpreta-os e assimila-os. Aprender para todos, e não apenas para aqueles que
envolve esforço, disponibilidade e abertura irão prosseguir seus estudos em níveis supe-
para rever pontos de vista e elaborar novos riores. Observa-se assim um deslocamento
significados. Assim, construção e instrução dos objetivos do ensino de ciências para
são elementos de um mesmo processo, e a além das aprendizagens de conteúdos especí-
questão central da didática em ciências é ficos, de forma a construir competências na
como propor a instrução de modo a favore- argumentação e raciocínio sobre problemas
cer processos construtivos que conduzam a relevantes. •
uma apropriação de conceitos e habilidades
científicas.

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JUNHO/2000

II ENCONTRO DE EDUCADORES DE JOVENS E ADULTOS


Programa Alfabetização Solidária
Universidade Federal de Ouro Preto
Secretarias Municipais de Educação de Juripiranga, Pedras de Fogo e
Pilar-PB

PERÍODO: 12 A 14 DE JUNHO DE 2000.

LOCAL DO EVENTO: Escola Municipal Valdeci Cavalcante


Pedras de Fogo-PB
INFORMAÇÕES : Secretaria Municipal de Pedras de Fogo
Janaina Mendes de Lima
Fone (0XX81) 635.1034

JULHO

• SEMINÁRIO INTERNACIONAL DA OMEP


Agenda

Infância- Educação infantil - Reflexões para o início do século


Período: 24 a 26
Local: Riocentro - Barra da Tijuca
Rio de Janeiro - RJ
Informações: (5521)285.622 - www.alternex.com.br/~omeprj

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PONTO DE VISTA

O BRASIL não
descobriria Portugal
ANTÔNIO MACHADO DE CARVALHO

O caricaturista Caruso publi- mais que uma trapalhada digna de indiretos gerados pela sua pri-
cou na última semana de abril do anedota, mostra a magnitude dos mazia nos múltiplos campos da
corrente ano uma preciosa charge. desafios que nos esperam nos dias vida social. Os que ficaram, por
Nela, o então Ministro Rafael de hoje. qualquer motivo, na rabeira das
Greca aparece na ponte de coman- As civilizações humanas se transformações adentraram o ciclo
do da submersa nau capitânia, constituíram em torno de incon- histórico gerado por aquelas revo-
encimada com o título "O Brasil táveis revoluções tecnológicas do luções tecnológicas de maneira
não descobriria Portugal". A ironia Neolítico até a atual pós-moder- subordinada e fragilizada, gravi-
com o fracasso da réplica do barco nidade, passando pelas revoluções tando em torno dos projetos
de Cabral — um mastro quebrou metalúrgicas, do vapor e outras. históricos daqueles que estavam à
no início da viagem e, em seguida, Através delas os homens foram frente do processo.
os dois motores entraram em transformando seus sistemas pro- As revoluções tecnológicas
colapso, deixando a embarcação à dutivos, adaptativos e ideológicos nunca foram, entretanto, mono-
deriva em alto mar; além disso, numa espiral evolucionista, porém pólio de quem quer que seja. Povos
foram equivocados os cálculos não linear. Essas sucessivas muta- que lideraram as mudanças em
sobre a quantidade de lastro ções, porém, atingiam a todos (ou determinada época podiam per-
necessário, o que levou os respon- a quase todos os povos) de feitamente ficar a reboque de ou-
sáveis pela aventura a misturar maneira diferencial. Aqueles que tros num momento seguinte. Exem-
chumbo com sacos de cimento encabeçaram as transformações plos não faltam: os árabes se bene-
para tentar resolver o problema —, gozaram dos benefícios diretos e ficiaram extraordinariamente das

* Professor da FAE-UFMG.

94 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • v.6 n.33 • maio/jun. 2000


vantagens militares de sua cavala- mente e nunca alcançarão a vislum- Algo parecido aconteceu há
ria, dez séculos atrás, e se impuse- brada recompensa, pois o que lhes pouco mais de vinte anos com o
ram a uma miríade de outros povos falta mesmo é um pouco mais de carro de Fórmula Um dos irmãos
com suas convicções, seu sistema inteligência. Tentativas de apropri- Fittipaldi: foi um fiasco total.
político e sua maneira de ganhar a ação de inovações tecnológicas Nossas tentativas de cópia pro-
vida. Hoje, vivem em situação podem ficar bizarras, se não houver duziram imitações patéticas em
marginal no mundo, sem maior base real para tanto, pois querer não todos os sentidos. Aliás, poucos
importância que aquela oriunda da significa poder, necessariamente. são os sucessos do nosso esforço
posse de eventuais reservas de pe- Por exemplo, tentar construir igre- de acompanhar as vanguardas
tróleo. Ibéricos (espanhóis e por- jas revestidas de azulejos, num científicas e tecnológicas con-
tugueses) avassalaram a orbe ter- lugar como a Ouro Preto do século temporâneas existentes em ou-
restre e hauriram riquezas jamais XVIII, onde não se dominava a téc- tras plagas. Se quisermos fazê-lo
vistas, tirando proveito das vanta- nica da cerâmica. Então, com a bem-feito, fugindo de nossa
gens relativas advindas de seu inexistência desses ladrilhos vidra- vocação barroca, temos de inves-
domínio das técnicas de navega- dos, o que faziam os construtores? tir em gente, o que significa ter
ção; seu papel contemporâneo, Pintavam madeiras imitando azule- uma escola de verdade, que pre-
todavia, é inexpressivo, sendo jo e as pregavam nas paredes. Esse pare para o futuro do Brasil os
pouco mais que um apêndice da barroquismo tem uma certa graça quadros técnicos e científicos
rica Europa central. A biotecnolo- quando aplicado em enfeites e ou- capazes de nos tirar da infeliz
gia e a microeletrônica (fundamen- tros adornos. Mostra, mesmo, cria- retaguarda em que nos encon-
tos da atual revolução tecnológica) tividade e competência na utiliza- tramos. A "barroca" escola pú-
alavancam a moderna sociedade ção dos recursos disponíveis em blica brasileira de nível funda-
do conhecimento, dando aos norte- cada época e lugar. Merece aplau- mental, por exemplo, denunciada
americanos, aos japoneses e aos sos pelos talentos humanos mostra- em sua falsidade pela condes-
alemães (marcantemente), uma dos e valorizados. mas pode gerar, cendência em funcionar com
hegemonia ampla sobre os viventes também resultados ridículos como inúmeros turnos, conforme já o
nas demais nacionalidades. Alguns os do navio do Greca. Pois como é apontava Anísio Teixeira no iní-
tentam cobrir com grandes investi- possível que, meio milênio depois, cio dos anos 50, precisa ser
mentos humanos as enormes dis- não tenhamos conseguido repro- superada, em prol de uma ver-
tâncias que os separam dessa van- duzir a construção de uma rudimen- dadeira escola de turno único,
guarda contemporânea. Os que tar caravela? Pois não é que alguns igual à existente em todos os
perderem esse último bonde da dias depois da viagem que não lugares avançados do mundo. Se
História ficarão a ver navios, ou houve, chega ao Brasil, comandada não fizermos isso continuaremos
fazendo como o burro que puxa a por um almirante de verdade, uma a fazer, ao longo do tempo, imi-
carroça, iludido pela cenoura na caravela (igual àquelas de Cabral), tações com o desempenho do
ponta da vara: trabalharão brutal- construída lá em Portugal? navio do Greca. •
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COLEÇÃO
REDESCOBRINDO O BRASIL
Quem não gosta de uma boa história?
Com belas ilustrações e bem cuidada produção gráfica,
momentos históricos transformam-se em ficção, envolvendo
e cativando os leitores de 3ª a 6ª séries.

A história recontada especialmente para quem está


descobrindo um mundo novo a cada dia.
Em uma linguagem leve e descontraída, um grumete
da esquadra de Cabral nos dá a sua versão do
relato original de Pero Vaz de Caminha.
Texto: Lucília Garcez
Ilustrações: Jô Oliveira

Uma Europa tropical? Nessa adaptação da narrativa


original, vamos acompanhar a trajetória de Jean de
Léry, um viajante francês que se desentendeu com
Villegaignon e passou a viver entre os Tupinambás.
Villegaignon tentou criar uma França americana em
plena baía de Guanabara.
Texto: Margarida Patriota
Ilustrações: Jô Oliveira

As surpresas, emoções e aventuras vividas pelo ale-


mão Hans Staden após seu naufrágio em terras bra-
sileiras no início da colonização portuguesa. A lin-
guagem, saborosa e atual, revela como o conhe-
cimento dos fatos reais do passado pode ser uma
experiência agradável e instigante.
Texto: Lucília Garcez
Ilustrações: Jô Oliveira

Rua Rosinha Sigaud, 201– Caiçara


Telefax: (31) 411-2122 – Fax: (31) 411-2427
30770-560 – BELO HORIZONTE (MG)

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