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PROF A.

MARIANA ESPOSITO

BIOÉTICA
CAPÍTULO 4. BIOÉTICA

OBJETIVO

• Entender o que é dignidade humana e seu contexto histórico;


• Analisar a história da Bioética, seus objetivos assim como sua aplicação
na realização das atividades;
• Discutir a bioética enquanto significado da humanização na conduta
efetiva do exercício profissional.

SUMÁRIO

Dignidade Humana ......................................................................................... 2


Bioética ........................................................................................................... 7
Temas de bioética ......................................................................................... 10
Aborto ........................................................................................................ 10
Transplante ................................................................................................ 13
Eutanásia ................................................................................................... 15
Referências ................................................................................................... 18
Material de apoio........................................................................................... 18
Dignidade Humana

Falar em dignidade da pessoa humana não é uma novidade na História da


humanidade. Estudos indicam que já na China Imperial, século IV a.e.,
confucionistas afirmavam que cada ser humano nasce com uma dignidade
que lhe é própria, sendo-lhe atribuída por ato da divindade. Aqui, bem
como nas diversas tradições que se seguiram, inclusive cristãs, o homem é
tomado como um ser especial, dotado de uma natureza ímpar perante
todos os demais seres, razão pela qual não pode ser instrumentalizado,
tratado como objeto, nem mesmo por outros seres humanos (FERNANDES,
2017).

Na Antiguidade, todavia, encontraremos culturas que afirmaram que a


dignidade (do latim, dignitas) é expressão da posição social ocupada pelo
indivíduo e pelo grau de reconhecimento que os demais componentes
daquela comunidade atribuíam a um sujeito. Sob esse prisma, existiriam,
então, pessoas mais ou menos dignas socialmente (FERNANDES, 2017).

No período da Escolástica, Santo Tomás de Aquino irá conjugar dignidade


com o fato de que o ser humano foi criado à semelhança de Deus, razão
pela qual reside sua especialidade e, como consequência, sua capacidade
de autonomia, autodeterminação, dando-lhe vontade própria, e, assim,
liberdade por natureza (FERNANDES, 2017).

Apenas com Kant, no Iluminismo alemão, veremos a dessacralização da


ideia de dignidade humana. A partir da defesa da autonomia moral do
indivíduo, o filósofo alemão afirmará que o homem deve ser levado a sério,
sendo sempre o fim maior das relações humanas e nunca um mero meio.
Influenciados por Kant, então, a grande maioria dos teóricos do direito
constitucional irão identificar a noção de que a dignidade representa o
reconhecimento da singularidade e da individualidade de uma
determinada pessoa, razão pela qual ela se mostra insubstituível e
igualmente importante para a ordem jurídica (FERNANDES, 2017).

Hegel, por sua vez, irá sofisticar ainda mais a noção de dignidade humana
quando concebe que esta é fruto de um complexo processo de
reconhecimento. A ideia de reconhecimento surge no discurso filosófico a
partir do pensamento de Hegel, ao trabalhar a dialética do senhor e do
escravo, na Fenomenologia do Espírito. Aqui, o reconhecimento surge como
uma luta. Assim, a mente existe como consciência individual. Cada
consciência é incapaz de reconhecer autonomia em outra consciência;
mais que isso, ela rouba essa autonomia, escravizando-a – impondo sobre
ela sua visão de mundo e seus projetos para garantir o reconhecimento
(FERNANDES, 2017).

Desse modo, em um primeiro momento, o escravo é obrigado, pela força, a


reconhecer no senhor o autor das ideias que guiam suas próprias ações; ao
passo que o senhor não reconhece o escravo - senão como objeto, meio
para atingir suas ideias e projetos. Mas esse reconhecimento conquistado
pela força acaba por perder seu efeito: "ele só é reconhecimento efetivo
quando aquele que reconhece o valor do outro também tem seu próprio
valor honrado por ele". Isso nos revela que a reciprocidade é condição
essencial dessa dinâmica. (FERNANDES, 2017)

Destacamos, portanto, uma diferença fundamental com o pensamento de


Kant. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Viant irá despir o
sujeito de todos os seus predicados contingentes, reduzindo o homem ao ser
racional, que toma decisões morais autônomas, levando em conta apenas
o fato de ele partilhar um mundo com outros indivíduos igualmente racionais
e potencialmente autônomos (FERNANDES, 2017).

Com isso atinge o imperativo categórico. Hegel, por outro lado, por partir da
contingência do particular, afirma que reconhecer o outro como racional -
e com isso, autônomo - transforma o ponto de partida de Kant num
problema crucial. E esse problema somente pode ser solucionado através
de percurso de desenvolvimento que culminará nas instituições complexas
do Mercado e do Estado (FERNANDES, 2017).

Para o Direito, a redescoberta da ideia de dignidade humana vem


acompanhada de diversos documentos internacionais, na qual é citada -
Estatuto (ou Carta) da Organização das Nações Unidas (1945), Declaração
Universal dos

Direitos do Homem (1948), Constituição italiana (1948) e da Lei Fundamental


da República Federal Alemã (1949). Representa, de certo modo, uma
contraposição aos horrores vividos durante o período das Guerras Mundiais.
Na tradição do Direito alemão, isso significou, principalmente, afirmar que
todos têm direito a ser tratado como pessoas, sendo respeitados de modo
igual os seus direitos fundamentais (direitos humanos) independentemente
de sexo, raça, língua, religião ou opiniões políticas, condições de
nascimento, econômicas e sociais (FERNANDES, 2017).

Isso, é claro, vem no sentido de combater a noção nazista de Untermensch


(subumano), que afirmava uma desigualdade eugênica em prejuízo dos
arianos. Para os italianos, a dignidade não é tão intangível e sua
adjetivação não se faz com referência ao "humano", mas, sim, fala-se em
uma "dignidade social" e está ligada ao desenvolvimento "segundo as
próprias possibilidades e a própria escolha, uma atividade ou uma função
que concorra ao progresso material e espiritual da sociedade" (art. 4°, § 2°
da Constituição italiana de i948). Isso significa atar à ideia de dignidade a
um conceito "econômico-social" e, por isso mesmo, associá-la ao "trabalho"
como forma de dignificação do homem. A preocupação aqui não é com a
pessoa em si (a partir de bases jusnaturalistas), como acontece na doutrina
alemã, mas no processo de inserção dessa pessoa no tecido social; isto é, a
pessoa assume não apenas um direito, mas também um dever de contribuir
para o progresso da sociedade com seu trabalho. Ao que parece, essa
vertente da ideia de dignidade parece ter ficado olvidada por alguns
juristas brasileiros que importaram a matriz alemã (FERNANDES, 2017).
Partindo das noções afirmadas pela teoria constitucional majoritária – ainda
que pesem as críticas feitas, bem como as incoerências internas a essa
teoria -com fortes heranças germânicas e bases axiológicas, a dignidade da
pessoa humana (art. i 0 , Ili da CR/88) é erigida à condição de meta-
princípio. Por isso mesmo, esta irradia valores e vetores de interpretação
para todos os demais direitos fundamentais, exigindo que a figura humana
receba sempre um tratamento moral condizente e igualitário, sempre
tratando cada pessoa como fim em si mesma, nunca como meio (coisas)
para satisfação de outros interesses ou de interesses de terceiros
(FERNANDES, 2017).

Sendo assim, para os teóricos do constitucionalismo contemporâneo, direitos


- como vida, propriedade, liberdade, igualdade, dentre outros -, apenas
encontram uma justificativa plausível se lidos e compatibilizados com o
postulado da dignidade humana. Afirmam, portanto, que a dignidade seria
um superprincípio, como uma norma dotada de maior importância e
hierarquia que as demais, que funcionaria como elemento de comunhão
entre o direito e a moral, na qual o primeiro se fundamenta na segunda,
encontrando sua base de justificação racional (FERNANDES, 2017).

Por isso mesmo afirmam alguns autores, que questões limites como
eutanásia, aborto e feto anencefálico fazem remissão (remetem) a uma
discussão da dignidade humana, uma vez que são muitas vezes lidas na
forma de uma colisão entre direitos à liberdade, à integridade corporal e à
vida biológica. Daí ressalta-se, conforme lngo Sarlet, "a função integradora e
hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana que serviria de
parâmetro para a aplicação, interpretação e integração não apenas dos
direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o
ordenamento jurídico". Afirma o autor que, de "modo todo especial, o
princípio da dignidade da pessoa humana acaba por servir de referência
inarredável no âmbito da indispensável hierarquização axiológica inerente
ao processo de criação e desenvolvimento jurisprudencial do Direito.
Justamente no âmbito dessa função do princípio da dignidade da pessoa
humana, pode-se afirmar a existência não apenas de um dever de
interpretação conforme a constituição e os direitos fundamentais, mas
acima de tudo, de uma hermenêutica que, para além do conhecido
postulado do in dubio pro libertati, tenha sempre presente o imperativo
segundo o qual em favor da dignidade não deve haver dúvida"
(FERNANDES, 2017).

Em outra linha de raciocínio, temos a (importante) leitura de Dworkin sobre a


dignidade humana. Esta, na realidade, busca conciliar os princípios da
igualdade e da liberdade, afirmando duas dimensões da dignidade: (1)
através do reconhecimento da importância de cada projeto de vida
individual; e (2) através da proteção da autonomia individual na
persecução desse projeto de vida. Para tanto, falar em dignidade da
pessoa humana somente faz sentido se entendido como vista pelo prisma
da garantia de iguais liberdades subjetivas para ação. Partindo dessa
perspectiva, podemos tentar recolocar a dignidade da pessoa humana
como condição de legitimação não apenas dos direitos fundamentais, mas
de todo o ordenamento jurídico, sem correr os riscos de esbarrar com
questões de fundamentação moral ou assumir uma via de volta ao
jusnaturalismo. Mais que afirmar que o ser humano deve ser tratado como
um ser único, individual, como faz boa parte dos juristas nacionais, a leitura
de Dworkin busca justificar-se na própria autofundação do Direito moderno
(FERNANDES, 2017).

Além disso, para o ex-professor de Oxford, o respeito à dignidade acaba por


legitimar o próprio governo, no sentido de que apenas os governos que
demonstram igual consideração e respeito por cada uma das pessoas sob
seu domínio (isso implica, obviamente, em atender aos dois princípios da
dignidade citados acima) podem ser considerados legítimos (FERNANDES,
2017).

Já Habermas identificará tal proposição com o código da modernidade


(liberdade e igualdade) e buscará explicar como se dá tal processo de
produção de normas jurídicas legítimas, no qual cada sujeito é ao mesmo
tempo autor e destinatário das normas. Isso é fundamental e, por isso parece
ser uma leitura mais adequada, já que não busca assentar a noção de
dignidade humana sob um conjunto de valores que reflete apenas uma
visão particular de mundo - mais exatamente a tradição judaico-cristã. Ao
se abrir a porta para uma fundamentação normativa própria do direito,
participantes de outras concepções podem tomar assento nessa prática
comunicativa, sentindo-se igualmente coautores das normas a que se
submetem (FERNANDES, 2017).

A dignidade da pessoa humana é uma qualidade intrínseca, inseparável de


todo e qualquer ser humano, é característica que o define como tal.
Concepção de que em razão, tão somente, de sua condição humana e
independentemente de qualquer outra particularidade, o ser humano é
titular de direitos que devem ser respeitados pelo Estado e por seus
semelhantes. É, pois, um predicado tido como inerente a todos os seres
humanos e configura-se como um valor próprio que o identifica. Pode-se
trazer à baila a visão antropológica de Leonardo Boff, quando do ultraje da
dignidade (SARLET, 1998):

Nada mais violento que impedir o ser humano de se


relacionar com a natureza, com seus semelhantes, com os mais
próximos e queridos, consigo mesmo e com Deus. Significa
reduzilo a um objeto inanimado e morto. Pela participação, ele
se torna responsável pelo outro e con-cria continuamente o
mundo, como um jogo de relações, como permanente
dialogação.
Carmem Lúcia Antunes Rocha, ao comentar o Art. 1º da Declaração dos
Direitos Humanos, o festejado dispositivo que decreta a igualdade de todos os
seres humanos em dignidade e direitos, faz as seguintes considerações
(SARLET, 1998):

Gente é tudo igual. Tudo igual. Mesmo tendo cada um a


sua diferença. Gente não muda. Muda o invólucro. O miolo,
igual. Gente quer ser feliz, tem medos, esperanças e esperas.
Que cada qual vive a seu modo. Lida com as agonias de um
jeito único, só seu. Mas o sofrimento é sofrido igual. A alegria,
sente-se igual.

Bioética

Se procurarmos o verbete Bioética num dicionário ou enciclopédia, teremos,


provavelmente, a desagradável surpresa de não o achar. Trata-se de um
conceito novo. O neologismo Bioética foi cunhado e divulgado pelo
oncologista e biólogo americano Van Rensselaer Potter no seu livro Bioethics:
bridge to the future. O sentido do termo Bioética tal como é usado por Potter
é diferente do significado ao mesmo hoje atribuído. Potter usou o termo para
se referir à importância das ciências biológicas na melhoria da qualidade de
vida; quer dizer, a Bioética seria, para ele, a ciência que garantiria a
sobrevivência no planeta (CLOTET, 2003).

Certamente se impõe a necessidade de serem adotados determinados


valores até agora considerados de caráter não-relevante. A Terra está em
perigo, vítima do crescimento descontrolado da sociedade industrial e de
sua tecnologia. O respeito à ecologia e a necessidade de estabelecer
limites ao desenvolvimento industrial e tecnológico são inquestionáveis para
a sociedade universal no fim do segundo milênio. Assim foi que a
Organização das Nações Unidas criou em 1983 a Comissão Mundial para o
Meio Ambiente ou Comissão Brundtland. A partir de então, multiplicaram-se
o número de entidades e sessões dedicadas a esses temas. Cabe recordar o
protagonismo brasileiro na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento, em junho de 1992 (CLOTET, 2003).

O termo Bioética poderia ser usado também com o significado amplo


referente à ética ambiental planetária, por exemplo: o tema dos agrotóxicos
ou o uso indiscriminado de animais em pesquisa ou experimentos biológicos.
Mas não é essa, atualmente, sua conotação específica e mais comum.
Segundo a Encyclopedia of Bioethics – resultado da colaboração de 285
especialistas e 330 supervisores, e a maior contribuição coletiva para a
Bioética numa só obra, com sua segunda edição em fase final de
elaboração –, Bioética é “o estudo sistemático da conduta humana na área
das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta
conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais” (CLOTET, 2003).
Outros autores preferem a expressão ética biomédica, porém sem ampla
aceitação. A Bioética ocupa-se, principalmente, dos problemas éticos
referentes ao início e fim da vida humana, dos novos métodos de
fecundação, da seleção de sexo, da engenharia genética, da maternidade
substitutiva, das pesquisas em seres humanos, do transplante de órgãos, dos
pacientes terminais, das formas de eutanásia, entre outros temas atuais.
Convém salientar que a Bioética não possui novos princípios éticos
fundamentais. Trata-se da ética já conhecida e estudada ao longo da
história da filosofia, mas aplicada a uma série de situações novas, causadas
pelo progresso das ciências biomédicas (CLOTET, 2003).

Para K.D. Clouser, a Bioética “não é direcionada para busca de princípios,


mas sim para o esgotamento de todas as implicações relevantes a partir
daqueles que já possui”. A Bioética é a resposta da ética aos novos casos e
situações originadas da ciência no âmbito da saúde. Poder-se-ia definir a
Bioética como a expressão crítica do nosso interesse em usar
convenientemente os poderes da medicina para conseguir um atendimento
eficaz dos problemas referentes à vida, saúde e morte do ser humano
(CLOTET, 2003).

A disparidade existente entre as opiniões morais sobre temas básicos, como


são todos aqueles relacionados com a vida e a morte, evidencia o
pluralismo moral da sociedade hodierna. De outro lado, devemos concordar
que não há normas únicas para resolver as diversas situações que se possam
apresentar. No caso de uma criança recém-nascida, com síndrome de
Down e fistula tráqueo-esofágica, podem ser dadas e justificadas opiniões
diferentes sobre o tratamento ou destino a serem outorgados à mesma. O
importante, no caso anterior, como em todos os casos que se apresentem
como conflitantes, é tentar conciliar as melhores soluções. A Bioética
procura, de maneira racional e pactuada, resolver os problemas
biomédicos, decorrentes de visões diferentes dos mesmos, depois da
consideração de princípios e valores morais. O desenvolvimento da Bioética
exige a atitude reflexiva que descobre se é o homem ou a mulher que usa a
ciência ou se, contrariamente, são por ela usados (CLOTET, 2003).

O princípio da autonomia, denominação mais comum pela qual é


conhecido o princípio do respeito às pessoas, exige que aceitemos que elas
se autogovernem, ou sejam autônomas, quer na sua escolha, quer nos seus
atos. O princípio da autonomia requer que o médico respeite a vontade do
paciente ou do seu representante, assim como seus valores morais e
crenças. Reconhece o domínio do paciente sobre a própria vida e o
respeito à sua intimidade. Limita, portanto, a intromissão dos outros indivíduos
no mundo da pessoa que esteja em tratamento. Os fundamentos filosóficos
desse princípio podem ser encontrados, entre outros autores, em Locke, Kant
e J. S. Mill (CLOTET, 2003).

O princípio da beneficência requer, de modo geral, que sejam atendidos os


interesses importantes e legítimos dos indivíduos e que, na medida do
possível, sejam evitados danos. Na Bioética, de modo particular, esse
princípio se ocupa da procura do bem-estar e interesses do paciente por
intermédio da ciência médica e de seus representantes ou agentes.
Fundamenta-se nele a imagem do médico que perdurou ao longo da
história, e que está fundada na tradição hipocrática: “usarei o tratamento
para o bem dos enfermos, segundo minha capacidade e juízo, mas nunca
para fazer o mal e a injustiça”; “no que diz respeito às doenças, criar o
hábito de duas coisas: socorrer, ou, ao menos não causar danos” (CLOTET,
2003).

O princípio de não maleficência implica no dever de se abster de fazer


qualquer mal para os clientes, de não causar danos ou colocá-los em risco.
O profissional se compromete a avaliar e evitar os danos previsíveis. Para
atender a este princípio, não basta apenas, que o profissional de saúde
tenha boas intenções de não prejudicar o cliente. É preciso evitar qualquer
situação que signifique riscos para o mesmo e verificar se o modo de agir
não está prejudicando o cliente individual ou coletivamente, se
determinada técnica não oferece riscos e ainda, se existe outro modo de
executar com menos riscos (KOERICH et al., 2005).

O princípio da justiça exige equidade na distribuição de bens e benefícios


no que se refere ao exercício da medicina ou área da saúde. Uma pessoa é
vítima de uma injustiça quando lhe é negado um bem ao qual tem direito e
que, portanto, lhe é devido. Para a fundamentação filosófica do princípio
da justiça podem ser utilizados diversos autores, merecendo ser destacados
Aristóteles na época do iluminismo (CLOTET, 2003).

Assim como o princípio da autonomia é atribuído, de modo geral, ao


paciente, e o da beneficência ao médico, o da justiça pode ser postulado,
além das pessoas diretamente vinculadas à prática médica (médico,
enfermeira e paciente), por terceiros, como poderiam ser as sociedades
para a defesa da criança, em defesa da vida, ou grupos de apoio à
prevenção da AIDS, cujas atividades e reclamações exercem uma
influência notável na opinião pública através dos meios de comunicação
social. São esses os princípios que, inicialmente, sustentam o exercício da
Bioética. A aplicação dos mesmos nos diferentes casos nem sempre é fácil,
nem conclusiva; mas o seu uso constitui uma amostra do interesse e
importância pelas formas corretas de agir (CLOTET, 2003).

A bioética, na nossa opinião, deve ser vista não como uma derrubada da
ética médica clássica (tanto que ela adotou os seus princípios básicos, a
beneficência e a não maleficência), mas como a sua adaptação aos novos
tempos, com a consequente mudança de postura do médico, para dar
uma melhor resposta aos desafios éticos surgidos com as mudanças sociais e
a evolução do conhecimento e da tecnologia (MÜNOZ, 2004).

Temas de bioética
Aborto

Entre os problemas que integram a bioética, sobressai o que se refere ao


valor da vida humana, do seu come o a fase terminal. Quanto ao valor da
vida humana nascente, o risco de não ser respeitada advém do aborto;
quanto â sua fase terminal, da eutanásia. Vejamos a questão do aborto,
problema antigo na história da humanidade (BETIOLI, 2015).

Entende-se por aborto a interrupção da gravidez quando o feto não é


viável, isto é, quando não pode subsistir fora do seio materno. A noção
genérica de aborto apresenta matizes específicos na consideração jurídica,
médica e mora. Para o médico, abortar é expulsar o feto não viável. Para o
jurista, só é aborto a ação voluntária e maliciosa de provocar tal expulsão,
empregando para este fim os meios adequados que levem a ele. O aborto
moral se baseia no aborto médico, mas inclui a peculiaridade da instância
ética, ou seja, o peso da "avaliação", entendida tanto do ponto de vista
subjetivo quanto objetivo (BETIOLI, 2015).

Divisão fundamental é a que se faz entre aborto espontâneo e aborto


provocado (BETIOLI, 2015).

a) Aborto espontâneo ocorre quando a interrupção da gravidez se dá


causas naturais, sem a livre intervenção humana. São muitas as suas
causas, mas de modo geral se referem ao mau estado do embrião.
b) O aborto provocado é aquele em que há interrupção deliberada da
gestação pela própria gestante ou por terceiro, com ou sem seu
consentimento, ele se deve, pois, à intervenção livre do homem.

É o aborto considerado pela moral e pelo direito, uma vez que nele intervém
a liberdade humana. Do ponto de vista jurídico, pode ser legal ou criminoso,
conforme seja tolerado ou não pela lei. Do ponto de vista moral, é
considerado com referência à responsabilidade pessoal que induz um
contravalor ou valor negativa no âmbito da decisão. A medicina, por sua
vez, além de considerar o aborto provocado, também leva em conta o
aborto espontâneo, seja para conhecer suas causas, seja para preveni-lo
(BETIOLI, 2015).

Tanto do ponto de vista médica quanto do ponto de vista jurídico e moral,


distinguem-se quatro tipos de aborto: terapêutico, eugênico, humanitário e
psicossocial (Tabela 1) (BETIOLI, 2015).

Aborto Provocado quando o prosseguimento da gravidez põe em risco


a vida de terapêutico gestante, sendo permitido pela lei brasileira (CP, art
128, I).
Aborto Provocado quando existe o risco, e às vezes, a certeza, de que
o novo ser eugênico nasça com anomalias ou malformações
congênitas. É vedado pela lei brasileira (CP, arts 124-125).

Aborto Provocado quando a gravidez veio como consequência de ação


violenta.
humanitário Exemplo clássico é a gravide por estupro. Ele é permitido
pela lei brasileira (CP, arts 128, II).

Aborto Gravidez indesejada por problemas econômicos ou de moradia,


psicossocial mulheres solteiras, relações extraconjugais, motivos psicológicos
na mulher. Vedado por lei brasileira (CP, arts. 124-125).

Interrupção por Quando não ocorre o desenvolvimento correto do


cérebro. Considerado anencefalia aborto terapêutico. Moralmente
aceito por uns e outros acreditam ser violação da vida. Legalmente
permitido.

Tabela 1. Do ponto de vista jurídico e moral, distinguem-se quatro tipos de


aborto (Fonte: BETIOLI, 2015).

Em nosso país, o aborto induzido é considerado crime contra a vida humana


previsto pelo Código Penal Brasileiro desde 1984. Fazer um aborto induzido
pode acarretar em detenção de um a três anos para a mãe que causar o
aborto ou que dê permissão para que outra pessoa o cometa. Neste último
caso, a pessoa que realizou o procedimento pode pegar de um a quatro
anos de prisão. Quando o aborto induzido é provocado sem o
consentimento da mãe, a pessoa que o provocou pode pegar de três a dez
anos de reclusão (BLOG EXAME DA OAB, 2021).

O aborto no Brasil somente não é qualificado como crime em três situações:


(1) quando a gravidez representa risco de vida para a gestante, (2) quando
a gravidez é o resultado de um estupro e (3) quando o feto for anencefálico,
ou seja, não possuir cérebro. Esse último item foi julgado pelo STF em 2012 e
declarado como parto antecipado com fins terapêuticos. As gestantes que
se enquadrarem em uma dessas três situações tem respaldo do governo
para obter gratuitamente o aborto legal através do SUS (Sistema Único de
Saúde) (BLOG EXAME DA OAB, 2021).

Transplante

Desde a Antiguidade, o interesse do homem pelo seu corpo e pelo dos


outros pode ser comprovado através de escritos filosóficos, teológicos,
médicos e de enfermagem, que documentam os cuidados, as experiências
e as curiosidades do homem em relação aos tecidos do corpo humano,
segmento corporal ou órgão em particular, nos diversos períodos históricos.
Várias descobertas foram surgindo no campo médico, e as experiências de
transplantar órgãos em animais se intensificaram a partir do século XX. Dá-se
o nome de alotransplante ao transplante entre diferentes membros da
mesma espécie. Xenotransplante se refere ao transplante entre membros de
diferentes espécies (LIMA, 1997).

O transplante de órgãos vascularizados — rim, fígado, coração, pulmão,


pâncreas e intestino — tornou-se possível quando foram desenvolvidas
técnicas de anastomose vascular. O primeiro transplante renal de longo
funcionamento foi descrito por Emerich Ullmann, em março de 1902.
Transplantou rins em cães, usando sondas de tubo de magnésio e ligaduras
para fazer as anastomoses vasculares. Em 1906, Jaboulay tentou realizar dois
xenotransplantes renais, de um porco e de uma cabra, para pacientes com
insuficiência renal crônica. Em 1909, Unger tentou transplantar rim de
macaco em um homem (LIMA, 1997).

Em 1967, Christian Barnard, desconhecido cirurgião de um hospital


sulafricano, da Universidade de Cape Town, tornou-se o precursor dos
transplantes cardíacos, de humano para humano, bem-sucedidos. No Brasil,
a era dos transplantes teve início no Hospital das Clínicas da USP, na década
de 60, sendo hoje, essa instituição, um centro de referência e de
desenvolvimento de tecnologia em determinadas áreas de transplante em
nível nacional e internacional (LIMA, 1997).

Na década de 1960, com o advento dos transplantes, começaram a ser


questionados os limites da vida, mantida com máquinas. O critério de morte
deixa de ser a parada cardiorrespiratória e passa a ser a morte encefálica
(KOVÁCS, 2003).

O parecer nº 12/98 do Código de Ética Médica se refere à morte encefálica


como o momento do óbito, e a família precisa ser avisada antes do
desligamento dos aparelhos ou da não reanimação. É importante, também,
informar a equipe de enfermagem, que é a que está mais em contato com
o paciente e seus familiares. Como a morte encefálica é considerada, na
maior parte dos países ocidentais, como sinônimo de óbito, só após sua
ocorrência se passa a manipular o corpo cadáver, em caso do uso de
órgãos para transplante. Se for constatada morte encefálica, o
prolongamento dos tratamentos pode configurar obstinação terapêutica,
como já apontado (KOVÁCS, 2003).

Assim, do ponto de vista ético, não se justifica o apressamento da morte,


mesmo que seja para fins de transplante; o argumento de que uma vida
pode ser salva não permite que se disponha de uma que ainda está
presente. Vemos que a compreensão sobre vida e morte no caso da morte
encefálica é complexa, embora os critérios estejam definidos (KOVÁCS,
2003).

O rápido desenvolvimento tecnológico na área biomédica tem obrigado


um constante repensar ético. O nascimento, a vida e a morte de seres
humanos são processos cada vez mais passíveis da intervenção do próprio
homem. Enquanto a ciência traz a possibilidade de poder interferir nestes
processos naturais, a ética, em particular a bioética, surge como instrumento
definidor da propriedade (ou impropriedade) do dever interferir. Tal
circunstância não é diferente no que se refere ao transplante de órgãos. Nas
últimas três décadas a substituição cirúrgica de órgãos insuficientes e
definitivamente lesados por outros, anatômica e funcionalmente íntegros,
aliada aos avanços da imunossupressão, transformou-se de experimento em
opção terapêutica, capaz de prolongar a vida de pacientes, de outra
forma terminais (SILVEIRA, 2009).

Os problemas que dificultam a doação de órgãos (Figura 1) e a realização


de transplantes são ainda classificados como de natureza clínico-biológicas,
logístico administrativas, geográficas, culturais e morais (ROZA, 2005; ROZA et
al., 2010).

Problemas de Problemas de Problemas de


natureza natureza natureza cultural
clínicobiológica geográfica e moral
• Seleção do • Receptores • Convicções
doador que moram religiosas,
compatível próximo aos educação do
biologicamente centros de paciente e seu
com o receptor, transplantes são desejo ou
dificuldade para naturalmente não de
estabelecer a beneficiados em realizar o
morte cerebral, circunstancias de transplante.
problemas de emergências.
saúde que
reduzem o
número de
doadores (AIDS).

Figura 1. Problemas que dificultam a doação de órgãos (ROZA, 2005).

É legítima a recusa de tratamento que envolva a transfusão de sangue, por


parte das testemunhas de Jeová. Tal decisão funda-se no exercício de
liberdade religiosa, direito fundamental emanado da dignidade da pessoa
humana, que assegura a todos o direito de fazer suas escolhas existenciais.
Prevalece, assim, nesse caso, a dignidade como expressão da autonomia
privada, não sendo permitido ao Estado impor procedimento médico
recusado pelo paciente. Tendo em vista a gravidade da decisão de recusa
de tratamento, quando presente o risco de morte, a aferição da vontade
real do paciente deve estar cercada de cautelas. Para que o
consentimento seja genuíno, ele deve ser válido, inequívoco e produto de
uma escolha livre e informada (CONJUR, 2010).
Eutanásia

O debate sobre a legalização da eutanásia está cada vez mais presente,


principalmente depois que a Holanda se tornou o único país a legalizar o ato
de apressar a morte. Todavia, se, por um lado, há grande pressão para essa
legalização, por outro existe o movimento contrário, igualmente forte, pelo
temor de que seja praticada sem limites; este temor é tal que, na própria
Holanda, foi criada uma “Associação de Proteção à Eutanásia”. A discussão
sobre a legalização da eutanásia é trazida à baila quando são cometidos
abusos terapêuticos como, por exemplo, manter a todo custo uma vida que
está se finalizando. São sempre importantes a escuta e a acolhida de
alguém que quer encerrar sua vida com dignidade. Por outro lado, existe o
temor de que a morte será apressada de modo muito fácil com os
chamados excluídos: pobres, idosos, deficientes e psicóticos - como já foi
comentado (KOVÁCS, 2013).

Dodge (1999) aponta que o pedido para descriminar a eutanásia e o


suicídio assistido aparece quando se vê em casos extremos, em que tanto a
manutenção acirrada da vida, como o apressamento da morte, traz o
conflito à tona. Para o autor, o argumento principal para a legalização de
eutanásia é o princípio da autonomia: as pessoas têm direito moral de tomar
decisões a respeito de suas próprias vidas e a lei deveria respeitar este
direito. Entretanto, a própria ideia de autonomia pode ter contornos
polêmicos, quando se pensa na possibilidade de se fazer o que se quer: até
onde se pode ir, quando se ferem os direitos de outros? Quando o tema é
abordado, estamos perante uma pluralidade de pontos de vista. No que se
refere a direitos humanos e, mais particularmente, quando está em jogo a
vida e a morte, é fundamental considerar que são os membros da
sociedade que devem ser protegidos, e não o desejo dos poderosos. A
ligação da morte com dignidade e a permissão para matar é complicada e
pode representar risco para aqueles que são, de alguma forma, vulneráveis.
A ligação da eutanásia com doença terminal não é obrigatória; primeiro,
porque o assunto não é só pensado para estes pacientes e, segundo,
porque a eutanásia não é o único procedimento que resta para pacientes
gravemente enfermos. Então, a questão de ser ou não um doente em
estágio terminal não é o ponto essencial na discussão sobre eutanásia e sua
legalização (KOVÁCS, 2013).

Outro aspecto a ser considerado é o que define um sofrimento como


insuportável, e quem assim o define: o paciente ou a equipe? Pode-se dizer
que um pedido é justificado e outro não? São perguntas complexas que
demandam discussões multidisciplinares. Mais uma questão a ser levantada
é que a legalização da eutanásia pode levar a erro, abuso e desgaste da
relação médica. Cada vez mais é necessário desenvolver o que se chama
de diretrizes futuras, os testamentos de vida e os poderes legais, como já
mencionamos; todos estes são instrumentos jurídicos, que podem ser usados
para decisões subrogadas, quando a pessoa não pode mais falar de si e por
si (KOVÁCS, 2013).

No Direito Brasileiro, a eutanásia é vista como homicídio, portanto, ilícita e


imputável, mesmo que a pedido do paciente (Artigo 66/1988). A morte
termina a existência de uma pessoa e, com isto, cessam seus direitos; mas o
paciente terminal, mesmo que em agonia, mantém a personalidade
jurídica, pois ainda vive. Há um grande paradoxo sobre o fim da vida, e o
Código Civil Brasileiro fala em liberdade e dignidade, mas esta liberdade
não inclui a disponibilidade da própria vida, como aponta Martin (1993), que
realiza uma leitura ético-teológica da relação médico-paciente terminal nos
códigos brasileiros de ética médica. Uma das conclusões importantes desse
autor é a riqueza de aspectos apresentada sobre o tema nos códigos
brasileiros, com um forte cunho humanitário de tradição secular, cujo valor
central é a pessoa humana, com a ênfase na benignidade e que muitos
profissionais desconhecem. A esta tendência se contrapõe uma ética
mercantilista, preocupada com a economia, que vê a medicina como um
negócio como outro qualquer. E, talvez por isso, aumentaram os pedidos
para legalização da eutanásia, relacionados também com a necessidade
de “racionamento” da assistência médica por falta de recursos (KOVÁCS,
2013).

Referências

BETIOLI, A.B. Bioética, a ética da vida. — 2. ed. — São Paulo: LTr, 2015.
BLOG EXAME DA OAB. Aborto – O que diz a lei. Disponível em:
https://examedaoab.jusbrasil.com.br/artigos/414535657/aborto-o-que-diz-a-lei.

Acessado em: 10 de julho de 2021.


CONJUR. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por testemunhas
de jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais.
2010. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/testemunhas-jeova-
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KOERICH, Magda Santos; MACHADO, Rosani Ramos; COSTA, Eliani. Ética e


bioética: para dar início à reflexão. Texto & Contexto-Enfermagem, v. 14, p.
106110, 2005.

KOVÁCS, M.J. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, v. 14,
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LIMA, E.D.R.P.; MAGALHÃES, M.B.B.; NAKAMAE, D.D. Aspectos ético-legais da


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ROZA, B.A. Efeitos do processo de doação de órgãos e tecidos em familiares:
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SARLET, Ingo Wolfgang. A dignidade da pessoa humana. Revista de Direito


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SILVEIRA, P.V.P. et al. Aspectos éticos da legislação de transplante e doação


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