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A AMERICA INDÍGENA1*
I. INTRODUÇÃO.
1 Este artigo é resultado das leituras feitas nos anos 1997-99 preparando aulas para meus alunos de
graduação, pós-graduação e especialização latu-sensu. A eles, por suas constantes perguntas e generosas
inquietações, é que dedico este trabalho.
2 Professor MS5-III, Livre Docente Professor de História Económica e Estudos Internacionais Latino-
tinha que se impor ao inferior. Em outras palavras: foi o resultado natural do processo
de desenvolvimento histórico. Foi uma fatalidade histórica que demostra uma vez mais o
domínio das formações sociais técnica e institucionalmente superiores (neste caso
Europa) sobre as inferiores (América Indígena). De tão óbvia, esta é uma verdade quase
axiomática, evidente por si mesma, sem precisar de explicação.
Este ensaio tem o propósito de mostrar, com alguns exemplos sobretudo na área
do conhecimento técnico, que pelo menos é preciso duvidar dessa verdade quase
3
McNeill: 50-51.
4
Aníbal Quijano é provavelmente o mais importante introdutor da problemática do eurocentrismo no
debate acadêmico latino-americano da atualidade. Uma lista de alguns de seus trabalhos sobre o tema
podem-se encontrar na nota 5 de seu artigo da bibliografia (v. Quijano: 117).
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Mintz: 116.
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milho, fumo, quinina, chá e cana de açúcar e originou a exposição [do Museu
nacional de História Natural de Washington]... 6
Desse grande livro, apresentado por Viola e feito por pesquisadores na maioria
dos Estados Unidos e da Europa, podemos tirar alguns exemplos.
II.I. SAÚDE.
II.I.1. O AZTECA.
Um azteca podia ser escolhido para fazer o serviço militar depois dos 15 anos. Na
sociedade azteca o sucesso no campo de batalha era o meio principal de ascensão social e
por isto muitos moços desejavam ser guerreiros. Mas o campo de batalha era um lugar
perigoso, onde normalmente se usavam flechas, dardos, fundas e clavas com afiadas
bordas de obsidiana que podiam produzir ferimentos terríveis. Para o tratamento dos
feridos o exército azteca tinha um corpo de especialistas que recompunham os ossos
quebrados, recolocavam em seu lugar as articulações e limpavam e suturavam as feridas.
6
Viola: 14. Vale destacar que entre as últimas plantas mencionadas, três são do Novo Mundo (milho, fumo
e quinina) e dois do Velho (chá e cana de açúcar) ainda que nenhuma da Europa.
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II.I.2. O ESPANHOL.
Em termos de higiene pessoal, o conquistador espanhol teve muito que aprender de seu
adversário azteca. O banho era um ritual raramente praticado na Europa do século XVI
e as cidades não eram reconhecidas por terem boas condições sanitárias.
Os europeus quase não tinham noção da natureza contagiosa de algumas
doenças, atribuindo-as geralmente a fenômenos astrológicos, bruxarias, moral pessoal
dissoluta e principalmente castigo divino contra os pecaminosos. O tratamento médico,
que poderia incluir a sangria do paciente e remédios de ervas, tinham por objetivo
recuperar o equilíbrio dos humores corporais como sangue, muco ou bílis. Os ricos
podiam consultar médicos treinados na universidade mas a pessoa comum tinha que
procurar os barbeiros-cirurgiãos, boticários e praticantes autodidatas. Os barbeiros-
cirurgiãos eram os médicos que acompanharam conquistadores e primeiros
colonizadores ao Novo Mundo. A desconfiança em suas qualidades médicas é sugerida
pelo fato de os conquistadores, para cuidar de seus problemas de saúde, frequentemente
preferirem os praticantes aztecas e não seus compatriotas equivalentes.
Os espanhóis que chegaram ao Novo Mundo no século XVI eram violentos,
curtidos aventureiros com cicatrizes de batalhas. Muitos mostravam as marcas deixadas
pela varíola, quando crianças, e também as das feridas de campanhas anteriores. Mesmo
entendendo pouco sobre como proteger sua saúde ou tratar suas doenças, eles eram
sobreviventes. E como os aztecas, seus oponentes no campo de batalha, tampouco
temiam a morte.8
Em outra parte dessa obra, lê-se que preferir um médico indígena era prática
comum nos Vice-Reinados do México e do Peru. Ficamos também sabendo que:
7
Verano e Ubelaker: 222.
8
Ibid: 223.
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II.2. MINERAÇÂO
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Ibid: 216-17; itálico nosso. A Árvore da Quina e o Arbusto da Coca são típicos da Amazônia Andina. O
primeiro é a Árvore Nacional do Peru (assim como no Brasil é o Pau Brasil). A coca tem uma estrutura
complexa e por isso sua folha tem grande utilidade médica. Quase todos seus derivados químicos, que são
dezenas, são positivos, como os anestésicos usados por exemplo na cirurgia ocular. Tem apenas um
derivado químico negativo, a cocaína, e por isto a planta inteira, autêntica maravilha botânica essencial na
cultura andina, é perseguida e ameaçada de destruição.
10
Sem dúvida isso era consequência do conhecimento da imensa farmacopéia que os médicos da América
Indígena tinham à disposição. Já dissemos que os médicos aztecas utilizavam até 1.200 plantas diferentes.
Obviamente isto decorria da extrema biodiversidade do território que habitavam. O México na atualidade é
um dos seis países do mundo (e o único no Hemisfério Norte) que por sua grande riqueza biológica são
chamados de megadiversos (v. “Mapa - Países de Megadiversidad del Planeta - Según Russell
Mittermeier”. In Amazonía sin Mitos: 18). Por sua parte, os trepanadores Incas e pré-Incas tinham acesso
à extraordinária farmacopéia da Amazônia, a área de maior biodiversidade da terra.
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Lockhart e Schwartz: 101; itálico nosso.
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“O ano 1492 marca o início da história mundial eurocêntrica, da convicção de que uns poucos países
europeus centrais e ocidentais estavam destinados a conquistar e governar o globo, a euro-megalomania”
(Hobsbawm 1998: 413).
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II.3. CULTURA
Restabelecer a verdade histórica é difícil mas não impossível, pois felizmente este
caminho é transitado pelos pesquisadores e intelectuais mais sérios. Nesse sentido, de
um belo trabalho, vale a pena ler o seguinte:
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Hobsbawm 1998: 411; itálico nosso. Essa nota foi extraída do capítulo 26: O Velho Mundo e o Novo:
Quinhentos anos de Colombo escrito, segundo seu autor , “para um seminário sobre o quinto centenário,
ocorrido em Sevilha em 1992, e versa sobretudo acerca do impacto do Novo Mundo sobre o Velho,
demonstrando que ele foi criado não pelos conquistadores, mas pelos conquistados, não pelos dirigentes,
mas pelos povos” (Ibid.: 405). Acima Hobsbawm mencionou trigo, cevada e arroz. E é oportuno informar
aqui que nenhum desses valiosos produtos é originário da Europa.
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... o que quero enfatizar é que esses produtos não foram simplesmente
“descobertos” pelos europeus, e menos ainda procurados deliberadamente, da
maneira como os conquistadores procuravam ouro e prata. Eram produtos
conhecidos, colecionados, sistematicamente cultivados e processados pelas
sociedades indígenas. Os conquistadores e os colonos aprenderam a prepará-
los e usá-los nessas sociedades locais. Na verdade, teria sido difícil ou talvez
impossível sobreviver, caso os colonos não tivessem aprendido com os nativos. Até
hoje a grande festa simbólica [dos Estados Unidos], o dia de Ação de Graças,
registra a dívida dos primeiros colonos para com os índios, que a civilização branca
subsequente, em troca, se encarregou de expulsar. O Dia de Ação de Graças é
comemorado com uma refeição preparada basicamente com alimentos do Novo
Mundo, que os colonos aprenderam a manusear com os índios, culminando, como
sabemos, no peru.16
14
Hobsbawm 1998: 412. Esse historiador lembra a razão pela qual o quinino entrou na história mundial.
Mas é bom lembrar que os médicos andinos desde tempos pré-colombianos faziam uso dele. Mas para
controlar a malária depois dos anos 1850 entrou na história do capitalismo pois foi essencial para o
desenvolvimento dos comprimidos no nível de produção de massa. Ou seja que foi um elemento
importante para o estabelecimento da indústria farmacêutica moderna.
15
Ibid: 413; a itálica é nossa.
16
Ibid: 413; a itálica é nossa.
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17
Ibid: 414; itálica nossa.
18
Dobyns: 415
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Apesar dos sofisticados conhecimentos metalúrgicos de muitas das civilizações indígenas americanas ,
nenhuma delas conhecia o aço. Ao mesmo tempo importa informar da possibilidade que que o aço seja um
invento originário da África, o que é bom tema para um outro trabalho.
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doenças endêmicas. Isso talvez ajude a explicar o estado de quase guerra permanente
nesse continente, já que ele possibilitava a pilhagem dos recursos do vencido. Para os
fins deste trabalho, basta apenas isso como explicação, pois este não é o lugar para
aprofundar o estudo sobre porque a história européia foi extremamente violenta. Mas
essa história é a base para explicar porque a Europa do período da conquista já tinha
incentivado e desenvolvido quase exclusivamente a vertente destrutiva da tecnologia
do aço. É inegável que nessa vertente está a origem de uma gama impressionante de
instrumentos para a guerra.
Informação como a que damos acima interessa pouco ou nada aos espíritos
eurocêntricos.
... o conceito de guerra justa é algo escabroso, naturalmente, mas também uma
realidade. Não quer dizer que todas as guerras sejam justas, longe disso. O que
é certo é que muitas delas, como a apocalíptica sangria enfrentada pelo Iraque
e pelo Irã - com um saldo de 1 milhão de mortos -, são absurdas e poderiam ter
sido evitadas. Assim foi a guerrinha entre o Peru e o Equador, há alguns anos,
à qual me opus ...
Ali guerra é usada para descrever uma carnificina de um milhão de mortos, tema
evidentemente tão importante que merece usar-se essa palavra. O escritor, claro, lamenta
esse fato qualificando-o de apocalíptico e absurdo mas, ao mesmo tempo o reconhece
como um assunto sério e por isto o denomina guerra. Ou seja, para ele isso não foi uma
piada como sim foi o choque violento entre peruanos e equatorianos. Em outras palavras
a confrontação entre esses sul-americanos em fevereiro de 1995 foi um assunto pouco
sério e por isto o denomina guerrinha. Então, pareceria estar dizendo que esses andinos
são gente tão pouco séria que não tem capacidade nem para fazer uma guerra em sério e
assim acabam fazendo a piada que é uma guerrinha. Por razões diferentes ás do escritor
parece-me que o diminutivo está certo, pois indicaria que peruanos e equatorianos não
mostraram ter vocação para se matar mutuamente. Os números mostram que os mortos
da guerrinha de Mario Vargas Llosa não foram mais do que 300, quantidade que fica
longe demais de sua guerra de 1 milhão de mortos. Será essa incapacidade dos peruanos
e equatorianos o resultado de seu passado fortemente indígena? Antes de tentar uma
resposta, informemos que, no mesmo artigo, o conhecido romancista expressa o seguinte:
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Hobsbawm 1988: 36.
21
V. bibliografia: Vargas Llosa.
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V. Hobsbawm 1995: 17 e 43.
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essa seja a explicação de sua decisão, poucos dias depois de ter perdido as eleições de
1990 para Presidente da República do Peru, de fixar residência no país dos
conquistadores e de se tornar cidadão espanhol.
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V.bibliografia: Eco.
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McNeill: 43; itálico nosso.
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Num outro livro, resultado de pesquisa séria, fica estabelecido que pelo menos
três tipos de feijão são dos Andes Centrais (território que vai do Sul do Equador ao
Norte da Bolívia). Estes são, de acordo com o nome científico: Phaseolus Vulgaris,
Phaseolus Lunatus e Canavalia SPP (duas espécies). 26
E aqui temos que admitir que
infelizmente não temos à mão um livro sobre a história da agricultura na Mesoamérica.
27 Num livro destes sem dúvida apareceriam os nomes dos outros feijões típicos dessa
parte da América Indígena que são visíveis pois estão em exposição permanente no
Mercado Azteca, reconstruído dentro do Museu Nacional do México, D.F.
Estes dados tornam lícito duvidar das afirmações de Eco relativas à origem dos feijões
na agricultura européia. Na verdade é provável que esse grande romancista tenha
confundido feijões com ervilhas e lentilhas. Mas nos perguntamos, será possível que
ele desconheça a história desses produtos ao ponto de fazer essa confusão?. 28 Por outro
lado, é também possível duvidar de que as ervilhas e lentilhas tenham origem na muito
modesta agricultura européia, embora este não seja lugar para aprofundar esse tema. É
mais provável, no entanto, que tenham sido introduzidas na Europa pelos Árabes. Esta
opinião deriva de um dado proporcionado pelo próprio Eco. Ele afirma que após o ano
1000 DC. é que esses produtos mostraram sua importância na Europa. Ou seja, alguns
séculos depois de os Árabes estarem influenciando a Europa, com sua presença na
Península Ibérica desde o Século VIII, para tirá-la de sua Idade das Trevas (chamada
assim pelo próprio Eco). 29
25
MacLaren e Suguira: 23; itálico nosso.
26
Amanecer en los Andes: 19. É tão obvio o reconhecimento da origem desses produtos que, por exemplo,
o Phaseolus Lunatus (em quechua, idioma dos Incas, palhar), nos Estados Unidos é conhecido
popularmente como Lima Beans (Feijão de Lima). O ruim é que o Lima Beans é um anão, comparado com
seu original andino que, com frequência, tem grãos que fácilmente superam, cada um, a dois centimetros de
comprimento e um de largura.
27
Mesoamérica é o território que vai desde o México até a Costa Rica. Essa é uma das duas partes da
América onde, historicamente, aconteceu a Revolução Agrícola. A outra, os Andes Centrais.
28
Claro, cabe a possibilidade de que a tradução seja a causa dessa confusão. Acontece que o artigo do
jornal O Estado de SP foi traduzido do New York Times Magazine, que por sua vez talvez o tenha
traduzido do italiano, língua nativa de Eco.
29
Admira que nesse artigo, que trata da Europa mais ou menos de 900 a 1400 DC, Eco nunca mencione os
árabes. Igualmente, só uma vez menciona dois países não-europeus, apesar de estes terem sido muito
importantes no período. São a China, mencionada apenas pela seda (e não pela pólvora, apesar de que Eco
faz referência a ela), e a Índia, por suas especiarias.
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Tudo indica que, em relação aos feijões, o grande romancista e linguista italiano
usou o mesmo método do conquistador espanhol com relação ao Huayra, ou seja,
apropriou-se dos feijões, atribuindo aos europeus a criação dos mesmos, e negando ao
mesmo tempo os que verdadeiramente os criaram.
V. CONCLUSÃO.
VI. BIBLIOGRAFIA
Eco, H. “Era uma vez um milênio. Sem feijão, o homem nem teria saído da Idade Média”.
O Estado de S. Paulo (OESP). 13.06.1999: D2-D3.
Hobsbawm, E.J. A Era dos Impérios, 1875-1914. Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro,
1988.
Hobsbawm, E.J. A Era dos Extremos, breve século XX. 1914 - 1991. Companhia
das Letras, São Paulo, 1995.
Mac Laren W, J. e Suguiura, Y. “The Demise of the Fith Sun” In Seeds of Change...
:18-41.
McNeill, W.H. “American Food Crops in the Old World”. In Seeds of Change ... : 43-
59.
Mintz, S.W. “Pleasure, profit and satiation”. In Seeds of Change ... : 112-130.
Verano, J.W. e Ubelaker, D.H. “Health and Disease in the Pre-Columbian World”. In
Seeds of Change... : 210-223.