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A América Indígena 3

PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

A AMERICA INDÍGENA1*

Enrique Amayo Zevallos2, Ph.D.

POR UMA AMÉRICA INDÍGENA


... não é exagero dizer que o rápido crescimento industrial da Alemanha é o maior monumento
político gerado pelo impacto, na Europa, dos produtos alimentícios americanos... igualmente, o
extraordinário crescimento do poder e da população da Rússia nos séculos XIX e XX tem a ver
com a superioridade da batata... como alimento básico de uma sociedade em processo de
industrialização... O aumento da população e a expansão da industrialização na Europa do norte,
com seu resultante impacto na distribuição do poder a partir de 1750, simplesmente não poderia
ter acontecido sem a alimentação gerada pela expansão da batata nos campos de cultivo. Nenhum
outro produto americano desenvolveu papel tão decisivo no cenário mundial... 3

I. INTRODUÇÃO.

A conquista do Novo Mundo (finalmente conhecido como América) foi


consequência da superioridade do Velho Mundo, cujo eixo, desde o século XVI, é a
Europa. Ou seja, a conquista e destruição da América pré-colombiana (Indígena) foram o
resultado natural do choque entre dois mundos diferentes. Nesse choque o superior

1 Este artigo é resultado das leituras feitas nos anos 1997-99 preparando aulas para meus alunos de
graduação, pós-graduação e especialização latu-sensu. A eles, por suas constantes perguntas e generosas
inquietações, é que dedico este trabalho.
2 Professor MS5-III, Livre Docente Professor de História Económica e Estudos Internacionais Latino-

Americanos. Departamento de Economia, Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, Fundador do


Núcleo de Estudos sobre o Pacífico e a Amazônia - NPPA - FCL - Campus de Araraquara - UNESP
Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais ‘SanTiago Dantas” UNESP-UNICAMP-PUC-
SP, Membro do Instituto de Estudos Histórico Marítimos do Peru – IEHMP, e-mail:
eazamayo@fclar.unesp.br
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tinha que se impor ao inferior. Em outras palavras: foi o resultado natural do processo
de desenvolvimento histórico. Foi uma fatalidade histórica que demostra uma vez mais o
domínio das formações sociais técnica e institucionalmente superiores (neste caso
Europa) sobre as inferiores (América Indígena). De tão óbvia, esta é uma verdade quase
axiomática, evidente por si mesma, sem precisar de explicação.

Esse tipo de raciocínio é componente essencial da síndrome conhecida como


eurocentrismo. 4
Esse fenômeno histórico-social considera a história mundial,
especialmente a partir do século XVI, quase como uma mera extensão da história da
Europa. Para essa visão, as diferenças ou especificidades locais e regionais não contam
ou contam muito pouco. Assume-se como natural a superioridade dos produtos
institucionais e técnicos europeus, e por extensão do Ocidente, quando comparados com
seus similares de qualquer outra formação social conhecida. E como resultado dessa
comparação, paralelamente à idéia de superioridade, foi-se desenvolvendo a atitude
conhecida como arrogância. Superioridade e arrogância, componentes estruturais do
racismo, são também elementos chaves do eurocentrismo.

É bom dizer que a síndrome eurocêntrica não carateriza todos os nascidos na


Europa ou no Ocidente. Na verdade muitos deles, consciente ou inconscientemente,
tiveram papel essencial precisamente no desenvolvimento da crítica dessa síndrome. Ao
mesmo tempo, muitos latino-americanos, talvez por ignorância, comodidade ou coisas
piores, não se reconhecem em sua própria história. Talvez o medo de aceitar que ela não
é cópia nem prolongação da história européia os faça optar, consciente ou
inconscientemente, pelo fácil caminho do eurocentrismo.

Este ensaio tem o propósito de mostrar, com alguns exemplos sobretudo na área
do conhecimento técnico, que pelo menos é preciso duvidar dessa verdade quase

3
McNeill: 50-51.
4
Aníbal Quijano é provavelmente o mais importante introdutor da problemática do eurocentrismo no
debate acadêmico latino-americano da atualidade. Uma lista de alguns de seus trabalhos sobre o tema
podem-se encontrar na nota 5 de seu artigo da bibliografia (v. Quijano: 117).
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axiológica apontada acima. Igualmente quer indicar alguns exemplos de personalidades


eurocêntricas.

II. LGUNS EXEMPLOS

O Museu Nacional de História Natural de Washington DC, EUA, parte da


mundialmente reconhecida “Smithsonian Institution”, organizou uma exposição para
celebrar as plantas e animais que, transplantados após a invasão da América pela
Europa, foram essenciais para mudar a história mundial a partir de 1492. A partir dessa
exposição editou-se o livro Seeds of Change (v. bibliografia). As plantas eram a batata,
o milho e a cana de açúcar. As duas primeiras são originárias da América Indígena,
sendo a batata do Peru e o milho do México; a última é do Velho Mundo (domesticada
em Nova Guiné 5) mas não da Europa. O animal era o cavalo. O livro também estuda as
doenças, quase sempre consequência dos virus trazidos pelos invasores, um dos
principais fatores que dizimaram a população nativa da América.

O livro contém trabalhos de 20 pesquisadores de diversas nacionalidades, todos


de renome internacional. Mas importa aqui destacar a opinião de Herman Viola,
Diretor dos Programas do Quinto Centenário desse museu e um dos editores do livro.
Viola na apresentação diz:

Quatro desses colaboradores merecem reconhecimento especial devido a que


seus trabalhos e conselhos deram forma ao projeto “Seeds of Change” desde
seu início. O mais importante é Alfred Crosby [Professor de Estudos
Americanos da Universidade de Texas, Austin], porque foi o primeiro
historiador a comprender e interpretar a rápida transformação do Novo
Mundo depois de 1492. Seu livro The Columbian Exchange [e o outro
Ecological Imperialism] abriu uma nova área de pesquisa e foi fonte para o
trabalho de incontáveis pesquisadores... os outros... foram William McNeill
[Professor Emérito de História da Universidade de Chicago] autor de Plages
and Peoples; Sidney Mintz [Professor de Antropologia, Universidade Johns
Hopkins], autor de Sweetness and Power; e Henry Hobhous [jornalista,
agricultor e educador] da Grã Bretanha, a quem devemos nosso título. O livro
de Hobhouse [também chamado] Seeds of Change é a história de cinco plantas:

5
Mintz: 116.
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milho, fumo, quinina, chá e cana de açúcar e originou a exposição [do Museu
nacional de História Natural de Washington]... 6

Desse grande livro, apresentado por Viola e feito por pesquisadores na maioria
dos Estados Unidos e da Europa, podemos tirar alguns exemplos.

II.I. SAÚDE.

Os conhecimentos médicos, relacionados com a saúde em geral, estavam


obviamente mais avançados na Europa do que na América Indígena. Quanto a isso é
bom levar em conta a informação seguinte. Nas páginas 222 e 223 do livro aparecem
frente a frente as figuras de Motezuma, o último rei Azteca, e de Carlos V, Imperador
da Espanha no tempo da conquista da América. Essa é a moldura do pequeno artigo
“Health Profiles”, em seguida traduzido at literis, que compara os perfis de saúde de um
guerreiro azteca e de um conquistador espanhol.

II.I.1. O AZTECA.

Um azteca podia ser escolhido para fazer o serviço militar depois dos 15 anos. Na
sociedade azteca o sucesso no campo de batalha era o meio principal de ascensão social e
por isto muitos moços desejavam ser guerreiros. Mas o campo de batalha era um lugar
perigoso, onde normalmente se usavam flechas, dardos, fundas e clavas com afiadas
bordas de obsidiana que podiam produzir ferimentos terríveis. Para o tratamento dos
feridos o exército azteca tinha um corpo de especialistas que recompunham os ossos
quebrados, recolocavam em seu lugar as articulações e limpavam e suturavam as feridas.

Os desconfortos mais comuns eram problemas intestinais, dores de cabeça,


resfriados e febres. Estava amplamente difundida a idéia de que as doenças eram
enviadas pelos deuses ou eram resultado de feitiçaria. Procurava-se então a orientação
de médicos profissionais para curar a doença e adivinhar sua origem. A sociedade azteca

6
Viola: 14. Vale destacar que entre as últimas plantas mencionadas, três são do Novo Mundo (milho, fumo
e quinina) e dois do Velho (chá e cana de açúcar) ainda que nenhuma da Europa.
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tinha muitos médicos que se especializavam em doenças particulares. A cura


normalmente misturava rituais e remédios feitos de ervas. Cerca de mil e duzentas
plantas eram usadas pelos aztecas com fins medicinais. A maioria dessas plantas ou das
poções feitas com elas se achavam no mercado, com vendedores especializados em ervas,
medicinas e toda a parafernália curativa.
Os aztecas eram muito cuidadosos com sua higiene pessoal. Tomavam banho
regularmente em rios e lagos, além de muitos banhos de vapor. A maioria das casas da
capital Tenochtitlan tinha banheiro, uma pequena estrutura circular esquentada por um
forno na parede externa. Ali se entrava e se jogava água nas paredes para gerar vapor.
Os banhos de vapor eram usados por higiene e também para tratar de resfriados, febres
e problemas nas articulações. Os aztecas também eram cientes da importância da higiene
bucal e por isso limpavam regularmente seus dentes com um pó de carvão vegetal e sal.
Em relação à impressão que causava a saúde dos aztecas, um conquistador
espanhol do século XVI escreveu: “a população desta terra é forte e mais bem alta que
pequena. São morenos como os leopardos... bem treinados, robustos e incansáveis e, ao
mesmo tempo, os homens mais moderados que se possam conhecer. São também
belicosos e confrontam a morte com determinação” (Bray, W. Everyday life of the Aztecs.
New York, Dorset Press, 1968).7

II.I.2. O ESPANHOL.

Os conquistadores espanhóis que chegaram ao Novo Mundo foram os


sobreviventes de um prolongado e violento processo de seleção. A mortalidade infantil
era muito alta na Europa dos séculos XV e XVI. Uma em cada três crianças morria no
primeiro ano e menos da metade chegava aos 15 anos. A nutrição deficiente e as doenças
infecciosas eram as causas principais dessa alta mortalidade. A deficiência de vitaminas
era comum e o escorbuto era o companheiro normal dos navegadores. Epidemias
reincidentes de peste bubônica, varíola, sarampo, tifo e outras doenças periodicamente
vitimavam a população européia, como também o faziam a seca e a fome.
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Em termos de higiene pessoal, o conquistador espanhol teve muito que aprender de seu
adversário azteca. O banho era um ritual raramente praticado na Europa do século XVI
e as cidades não eram reconhecidas por terem boas condições sanitárias.
Os europeus quase não tinham noção da natureza contagiosa de algumas
doenças, atribuindo-as geralmente a fenômenos astrológicos, bruxarias, moral pessoal
dissoluta e principalmente castigo divino contra os pecaminosos. O tratamento médico,
que poderia incluir a sangria do paciente e remédios de ervas, tinham por objetivo
recuperar o equilíbrio dos humores corporais como sangue, muco ou bílis. Os ricos
podiam consultar médicos treinados na universidade mas a pessoa comum tinha que
procurar os barbeiros-cirurgiãos, boticários e praticantes autodidatas. Os barbeiros-
cirurgiãos eram os médicos que acompanharam conquistadores e primeiros
colonizadores ao Novo Mundo. A desconfiança em suas qualidades médicas é sugerida
pelo fato de os conquistadores, para cuidar de seus problemas de saúde, frequentemente
preferirem os praticantes aztecas e não seus compatriotas equivalentes.
Os espanhóis que chegaram ao Novo Mundo no século XVI eram violentos,
curtidos aventureiros com cicatrizes de batalhas. Muitos mostravam as marcas deixadas
pela varíola, quando crianças, e também as das feridas de campanhas anteriores. Mesmo
entendendo pouco sobre como proteger sua saúde ou tratar suas doenças, eles eram
sobreviventes. E como os aztecas, seus oponentes no campo de batalha, tampouco
temiam a morte.8

II.I.3. A MEDICINA NO TEMPO DOS INCAS

Em outra parte dessa obra, lê-se que preferir um médico indígena era prática
comum nos Vice-Reinados do México e do Peru. Ficamos também sabendo que:

Gradualmente numerosas plantas medicinais nativas do Novo Mundo como


o Árvore da Quina (matéria prima do quinino) e a Coca transformaram-se em
adições importantes à farmacopéia dos médicos ocidentais. Algumas das
práticas médicas dos nativos do Novo Mundo claramente excediam em
brilho às equivalentes da Europa. Um exemplo é a trepanação, a prática
cirúrgica de remover uma parte do osso do crânio do paciente, normalmente

7
Verano e Ubelaker: 222.
8
Ibid: 223.
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um tratamento médico reservado a fraturas com afundamento do crânio.


Curiosamente, a trepanação evoluiu de forma independente no Velho e Novo
Mundo e, em 1492, era praticada em ambos os lados do Oceano Atlântico.
Na América a trepanação foi prática comum dos Incas e de outras culturas
importantes dos Andes. Praticada primeiramente na Costa Sul do Peru 400
anos AC, continuou sendo feita até o século XVI em regiões do Peru e da
Bolívia. O mais impressionante da trepanação no Novo Mundo é a
porcentagem de sobrevivência. Enquanto que a trepanação praticada na
Europa tinha uma porcentagem de mortes próxima de 90% até o fim do
século XIX, quando técnicas cirúrgicas de esterilização foram adotadas, os
trepanadores nativos da América do Sul tinham uma porcentagem de
sobrevivência entre 50% e 60%, mesmo tratando-se de pacientes com
fraturas cranianas muito graves.9

A partir do exposto anteriormente, fica claro que, até 1492, em termos de


conhecimentos técnicos médicos, os povos nativos da América não estavam em situação
de inferioridade com relação à Europa. Ao contrário, em algumas áreas da medicina,
estavam na frente. 10

II.2. MINERAÇÂO

A excelência dos conhecimentos da América Indígena não se limitava à saúde.


Também atingia outras áreas como a tecnologia de mineração. Dois historiadores dos
Estados Unidos proporcionam a informação seguinte:

No Perú a exploração da prata transformou-se na atividade econômica


principal antes que no México ... pois os povos andinos tinham conseguido
desenvolver sofisticadas técnicas de mineração e refino ... em 1545 foram índios
(trabalhando para os espanhóis) os que descobriram Potosí. Nessa mina,
localizada a grande altitude, os foles europeus não tinham capacidade para
aquecer o mineral à temperatura adequada. Então o Huayra indígena, um
forno para fundir metais construído nas montanhas de modo a aproveitar os

9
Ibid: 216-17; itálico nosso. A Árvore da Quina e o Arbusto da Coca são típicos da Amazônia Andina. O
primeiro é a Árvore Nacional do Peru (assim como no Brasil é o Pau Brasil). A coca tem uma estrutura
complexa e por isso sua folha tem grande utilidade médica. Quase todos seus derivados químicos, que são
dezenas, são positivos, como os anestésicos usados por exemplo na cirurgia ocular. Tem apenas um
derivado químico negativo, a cocaína, e por isto a planta inteira, autêntica maravilha botânica essencial na
cultura andina, é perseguida e ameaçada de destruição.
10
Sem dúvida isso era consequência do conhecimento da imensa farmacopéia que os médicos da América
Indígena tinham à disposição. Já dissemos que os médicos aztecas utilizavam até 1.200 plantas diferentes.
Obviamente isto decorria da extrema biodiversidade do território que habitavam. O México na atualidade é
um dos seis países do mundo (e o único no Hemisfério Norte) que por sua grande riqueza biológica são
chamados de megadiversos (v. “Mapa - Países de Megadiversidad del Planeta - Según Russell
Mittermeier”. In Amazonía sin Mitos: 18). Por sua parte, os trepanadores Incas e pré-Incas tinham acesso
à extraordinária farmacopéia da Amazônia, a área de maior biodiversidade da terra.
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fortíssimos ventos de Potosí (a denominação do forno homenageia o vento), foi


usado e assim se obteve o primeiro “boom” produtivo. Os índios construíam os
fornos e também eles fundiam o metal. Mas isso não impediu que um espanhol,
dizendo-se seu inventor, estampasse o Huayra sobre seu brasão ... 11

É sabido que o capítulo da história mundial chamado de “período da acumulação


primitiva do capital” (aproximadamente da metade do século XVI até a Revolução
Industrial da década de 1780) foi essencialmente decorrência do envio em massa de
metais preciosos da América à Europa. E o primeiro ciclo de entrada no Velho Mundo
de autênticas montanhas de ouro e prata (mais ou menos até 1590) é, como vemos pela
informação acima, decorrência da tecnologia indígena de mineração. Ou seja,
consequência dos sofisticados conhecimentos metalúrgicos desenvolvidos pela
civilização andina antes da invasão ibérica. Lembremos ainda que esses metais preciosos,
introduzidos na Europa principalmente via Espanha, geraram também a primeira
inflação, em consequência desse primeiro “boom” da produção. Sendo a inflação uma das
caraterísticas da economia moderna, fica claro então que a tecnologia de mineração
indígena andina é um dos alicerces materiais que possibilitaram a passagem para a
modernidade.

Infelizmente pouco se conhece disto tudo, pois já nos primeiros tempos da


conquista começou a se desenvolver a longa carreira do eurocentrismo.12 A exploração e
destruição da América Indígena precisavam ser justificadas e para isto o conquistador
ibérico (ou europeu) desenvolvia sua idéia de superioridade. Com relação à natureza, o
europeu na América não duvidava de que tinha de usar qualquer meio para explorá-la e,
quando falhava, se apropriava das soluções que ali estavam disponíveis. Mas para dar
autenticidade a esse processo de expropriação, para tornar seu o invento que era de
outro, o europeu tinha que negar a existência desse outro. Em outras palavras, o
europeu na América tinha que dizer que ele era o portador de tudo, pois o nativo era
idólatra, bárbaro, inculto, incivilizado, numa palavra, um selvagem, que nada possuía.
Ali estão as raízes da negação total do outro, a justificativa para a morte do índio. Isso

11
Lockhart e Schwartz: 101; itálico nosso.
12
“O ano 1492 marca o início da história mundial eurocêntrica, da convicção de que uns poucos países
europeus centrais e ocidentais estavam destinados a conquistar e governar o globo, a euro-megalomania”
(Hobsbawm 1998: 413).
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explica porque o ibérico do exemplo acima achou natural transformar no mais


representativo do seu brasão o Huayra andino. Esse tipo de negação, total e absoluta do
que originalmente era de outro, ao ponto de não se saber mais nada sobre o destino
daquele, é sem dúvida um problema complicado quando se trata de restabelecer a
verdade histórica.

II.3. CULTURA

Restabelecer a verdade histórica é difícil mas não impossível, pois felizmente este
caminho é transitado pelos pesquisadores e intelectuais mais sérios. Nesse sentido, de
um belo trabalho, vale a pena ler o seguinte:

A contribuição mais importante das Américas ao Velho Mundo foi distribuir


pelo globo uma cornucópia de produtos selvagens e cultivados, especialmente
plantas, sem as quais o mundo moderno tal como o conhecemos não seria
concebível. Pode-se argumentar que isso não tem nada a ver com cultura. Mas
o que cultivamos e comemos, sobretudo quando há um novo tipo de víveres
desconhecido em nosso cotidiano, ou mesmo uma forma completamente nova
de consumo, deve influenciar, pode até transformar, não só o nosso consumo,
mas o modo como vivenciamos outros assuntos. Considerem-se apenas os
víveres básicos. Quatro dos sete produtos agrícolas mais importantes no mundo de
hoje são de origem americana: a batata, o milho, a mandioca e a batata doce. (Os
outros três são o trigo, a cevada e o arroz).13

Mais adiante, nesse mesmo artigo, o autor se pergunta:

Mas, e os produtos do Novo Mundo que não foram meros substitutos de


coisas já consumidas no Velho Mundo, mas abriram novas dimensões,
novos estilos sociais? Chocolate, tabaco, cocaína? Ou que se tornaram
ingredientes básicos de novidades como o chiclete, a Coca-Cola (mesmo que
tenha tirado a cocaína de sua composição original) e a tônica do gim-tônica? E
as significativas contribuições à farmacopéia médica do mundo, como o
quinino, durante muito tempo a única droga capaz de controlar a malária? E
os girassóis que Rembrandt e Van Gogh pintaram, os amendoins sem os quais

13
Hobsbawm 1998: 411; itálico nosso. Essa nota foi extraída do capítulo 26: O Velho Mundo e o Novo:
Quinhentos anos de Colombo escrito, segundo seu autor , “para um seminário sobre o quinto centenário,
ocorrido em Sevilha em 1992, e versa sobretudo acerca do impacto do Novo Mundo sobre o Velho,
demonstrando que ele foi criado não pelos conquistadores, mas pelos conquistados, não pelos dirigentes,
mas pelos povos” (Ibid.: 405). Acima Hobsbawm mencionou trigo, cevada e arroz. E é oportuno informar
aqui que nenhum desses valiosos produtos é originário da Europa.
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a sociabilidade ocidental moderna seria incompleta,- para não mencionar seu


uso mais prático como fonte importante de óleos vegetais?. 14

Posteriormente esse historiador britânico reflexiona assim:

Em suma: estamos falando de produtos do Novo Mundo que eram


desconhecidos e impossíveis de se conhecer antes da conquista das Américas,
mas que transformaram o Velho Mundo de maneira imprevisível e profunda,
que continua ainda hoje. A esse respeito posso acrescentar que o Velho Mundo deve
mais ao Novo do que as Américas devem à Europa. 15

A partir dessa informação, ele afirma o seguinte:

... o que quero enfatizar é que esses produtos não foram simplesmente
“descobertos” pelos europeus, e menos ainda procurados deliberadamente, da
maneira como os conquistadores procuravam ouro e prata. Eram produtos
conhecidos, colecionados, sistematicamente cultivados e processados pelas
sociedades indígenas. Os conquistadores e os colonos aprenderam a prepará-
los e usá-los nessas sociedades locais. Na verdade, teria sido difícil ou talvez
impossível sobreviver, caso os colonos não tivessem aprendido com os nativos. Até
hoje a grande festa simbólica [dos Estados Unidos], o dia de Ação de Graças,
registra a dívida dos primeiros colonos para com os índios, que a civilização branca
subsequente, em troca, se encarregou de expulsar. O Dia de Ação de Graças é
comemorado com uma refeição preparada basicamente com alimentos do Novo
Mundo, que os colonos aprenderam a manusear com os índios, culminando, como
sabemos, no peru.16

A partir dessas informações é possível deduzir que as sociedades da América


Indígena , comparadas com as européias naquele período, eram autênticas potências
agrícolas. Por isso foram capazes de dar à Europa e ao mundo essa verdadeira
cornucópia de produtos agrícolas. Entre eles, os mais importantes mencionados por
Hobsbawm como a batata, milho, mandioca e batata doce, eram conhecidos, colecionados
e sistematicamente cultivados e processados pelas sociedades indígenas. Isto era
consequência de um conhecimento sistemático. Dado que os nativos americanos
sabiam das propriedades e potencialidades desses produtos, podiam otimizar seu uso,
sabendo como cultivá-los, conservá-los, processá-los, cozinhá-los e comê-los. Ao se
apropriarem desses produtos, os europeus tomaram também todo seu processo.

14
Hobsbawm 1998: 412. Esse historiador lembra a razão pela qual o quinino entrou na história mundial.
Mas é bom lembrar que os médicos andinos desde tempos pré-colombianos faziam uso dele. Mas para
controlar a malária depois dos anos 1850 entrou na história do capitalismo pois foi essencial para o
desenvolvimento dos comprimidos no nível de produção de massa. Ou seja que foi um elemento
importante para o estabelecimento da indústria farmacêutica moderna.
15
Ibid: 413; a itálica é nossa.
16
Ibid: 413; a itálica é nossa.
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Portanto, seu modo de incorporação à dieta européia foi essencialmente aprendido na


América, foi o modo indígena. Numa atividade social e cultural tão importante como
comer, os europeus copiaram os indígenas americanos, em relação a produtos
essenciais de sua dieta. O ato de comer vai além das necessidades de produção e
reprodução da vida humana, como se sabe, mas é parte também de um complexo
processo cultural. E por isso Hobsbawm conclui seu trabalho dizendo que:

... outras consequências diretas da conquista e da colonização das Américas


ainda estão conosco ... transformaram o tecido da vida européia para sempre. E
também a de outros continentes. Quando a história econômica, social e cultural do
mundo moderno for escrita em termos realistas, a conquista do Sul da Europa feita
pelo milho, do Norte e Leste da Europa pela batata, e das duas regiões pelo
tabaco, e mais recentemente pela Coca-Cola, parecerá mais proeminente do
que o ouro e a prata em nome dos quais as Américas foram subjugadas17

III. PORQUE FOI POSSÍVEL A CONQUISTA?


A palavra conquista deve ser entendida como o processo histórico de destruição, pela
Europa, da América Indígena com suas muitas civilizações e culturas milenares até
então desenvolvidas de maneira autônoma e independente. Em poucas palavras, foi
apagar todo um mundo da face da terra. Essa destruição foi possível devido ao domínio,
pelos europeus, de uma tecnologia capaz de atingir essa meta, uma tecnologia
desenvolvida com esse objetivo. Em outras palavras a conquista foi consequência do
triunfo da tecnologia destrutiva. Constata-se isto a partir dos resultados que
mostram, por exemplo, que mais ou menos um século depois da chegada dos europeus, a
população da América Indígena encolheu de mais de cem milhões de habitantes para
menos de oito milhões. 18 Tais resultados são o indicador, sem sombra de dúvidas, da
ampla superioridade dessa tecnologia já que o Velho Mundo do período ganhou sempre,
todas as vezes em que atacou a população do Novo. Essa superioridade baseava-se no
domínio da tecnologia do aço,19 fato indiscutível. Acontece que a Europa da conquista,
como se viu no perfil de saúde do espanhol, era pobre em recursos e território fértil para

17
Ibid: 414; itálica nossa.
18
Dobyns: 415
19
Apesar dos sofisticados conhecimentos metalúrgicos de muitas das civilizações indígenas americanas ,
nenhuma delas conhecia o aço. Ao mesmo tempo importa informar da possibilidade que que o aço seja um
invento originário da África, o que é bom tema para um outro trabalho.
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doenças endêmicas. Isso talvez ajude a explicar o estado de quase guerra permanente
nesse continente, já que ele possibilitava a pilhagem dos recursos do vencido. Para os
fins deste trabalho, basta apenas isso como explicação, pois este não é o lugar para
aprofundar o estudo sobre porque a história européia foi extremamente violenta. Mas
essa história é a base para explicar porque a Europa do período da conquista já tinha
incentivado e desenvolvido quase exclusivamente a vertente destrutiva da tecnologia
do aço. É inegável que nessa vertente está a origem de uma gama impressionante de
instrumentos para a guerra.

No entanto, reconhecer que Europa, em relação à América Indígena, tinha


vantagens na tecnologia do aço não significa admitir sua superioridade em todos os
terrenos tecnológicos. Os casos já narrados mostram que a América pré-colombiana
tinha vantagens em relação à Europa, por exemplo em tecnologia agrícola, empregada
não para matar e destruir, mas ao contrário, para dar vida, uma tecnologia para a
construção. Por isso seus produtos agrícolas, incorporados plenamente na dieta
européia, foram essenciais para eliminar definitivamente a fome na Europa e
incrementar a população em lugares fundamentais desse continente (Alemanha, Rússia,
Escandinávia, Irlanda etc). Sem esses produtos não seria possível explicar a explosão
demográfica européia dos séculos XVII e XVIII que finalmente tornou realidade a
observação seguinte: “nunca houve na história [como o século XIX] um século
mais europeu, nem tornará a haver” 20

Pode-se concluir que os produtos da tecnologia indígena dominante americana,


incorporados à história da Europa, favoreceram o aumento de sua população, levando
esse continente ao topo de seu esplendor. E ao contrário, os produtos da tecnologia
dominante na Europa da conquista, aplicados na América, são em grande parte os
responsáveis diretos por dizimar a população indígena e, em consequência, destruir a
América Indígena.
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IV. PERSONALIDADES EUROCÊNTRICAS

Informação como a que damos acima interessa pouco ou nada aos espíritos
eurocêntricos.

IV.1. MARIO VARGAS LLOSA

Nesse artigo21 dedicado à Guerra no Kosovo, opina o seguinte:

... o conceito de guerra justa é algo escabroso, naturalmente, mas também uma
realidade. Não quer dizer que todas as guerras sejam justas, longe disso. O que
é certo é que muitas delas, como a apocalíptica sangria enfrentada pelo Iraque
e pelo Irã - com um saldo de 1 milhão de mortos -, são absurdas e poderiam ter
sido evitadas. Assim foi a guerrinha entre o Peru e o Equador, há alguns anos,
à qual me opus ...

Ali guerra é usada para descrever uma carnificina de um milhão de mortos, tema
evidentemente tão importante que merece usar-se essa palavra. O escritor, claro, lamenta
esse fato qualificando-o de apocalíptico e absurdo mas, ao mesmo tempo o reconhece
como um assunto sério e por isto o denomina guerra. Ou seja, para ele isso não foi uma
piada como sim foi o choque violento entre peruanos e equatorianos. Em outras palavras
a confrontação entre esses sul-americanos em fevereiro de 1995 foi um assunto pouco
sério e por isto o denomina guerrinha. Então, pareceria estar dizendo que esses andinos
são gente tão pouco séria que não tem capacidade nem para fazer uma guerra em sério e
assim acabam fazendo a piada que é uma guerrinha. Por razões diferentes ás do escritor
parece-me que o diminutivo está certo, pois indicaria que peruanos e equatorianos não
mostraram ter vocação para se matar mutuamente. Os números mostram que os mortos
da guerrinha de Mario Vargas Llosa não foram mais do que 300, quantidade que fica
longe demais de sua guerra de 1 milhão de mortos. Será essa incapacidade dos peruanos
e equatorianos o resultado de seu passado fortemente indígena? Antes de tentar uma
resposta, informemos que, no mesmo artigo, o conhecido romancista expressa o seguinte:

20
Hobsbawm 1988: 36.
21
V. bibliografia: Vargas Llosa.
A América Indígena 16
PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

Mas, em circunstâncias excepcionais, como quando a Europa democrática e os


Estados Unidos enfrentaram Hitler, ou quando os mísseis da OTAN
impediram que a tirania stalinista da URSS devorasse o Velho Continente, o
recurso às armas é um mal menor.

Nessa citação, para qualquer um que tenha a paciência de acompanhar os escritos


desse romancista, aparecem alguns temas que são uma constante em sua produção. Em
primeiro lugar, os rasgados elogios, a admiração quase ilimitada apela Europa e os
Estados Unidos. Com relação a este último país, isto não é surpreendente pois afinal se
trata da “super-Europa”, conforme a denominação de Jean-Paul Sartre. Em segundo
lugar, essa citação evidencia o método usado pelo escritor em seus trabalhos fora da
área da ficção. Por essa citação fica claro que a derrota de Hitler foi obra exclusiva da
Europa democrática e dos Estados Unidos. E a URSS, como fica?. Apenas como algo
talvez ainda mais perverso que o governo de Hitler e que por isso se poderia justificar
até a possibilidade do recurso das armas contra ela. Mas qualquer pessoa séria e
medianamente informada sabe que a Europa, os Estados Unidos e a URSS foram
aliados contra Hitler e que a derrota dos nazistas teria sido impossível sem o Exército
Vermelho. 22
Agora: por que Mario Vargas Llosa escreve assim? Será que ele não possui
informação? Claro que a tem, mas a esconde. Por que? Porque usa sistematicamente seu
método baseado, como no exemplo acima, em meias verdades. Esse é o método que
produz a pior das mentiras, pois interpõe grandes dificuldades para restabelecer a
verdade histórica, já que leva sempre embutida a meia verdade.
As citações acima evidenciam que esse escritor, enquanto mostra sua admiração
pela Europa e super-Europa, ridiculariza a países da América Latina. Cabe então
perguntar a Mario Vargas Llosa se a incapacidade que peruanos e equatorianos
manifestaram na sua guerrinha é consequência de seu passado fortemente indígena? A
resposta teria que ser sim, já que em sua obra ele mostra coerência com suas próprias
idéias. A incapacidade dos latino-americanos, sobretudo do Peru, país dos Incas e onde
Vargas Llosa nasceu, é um tema permanente em sua obra, quase uma obsessão, pois
surge até mesmo quando ele trata de assuntos muito distantes, como no seu artigo que
estamos comentando. Parece ainda que ele acha essa incapacidade contagiosa. Tal vez

22
V. Hobsbawm 1995: 17 e 43.
A América Indígena 17
PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

essa seja a explicação de sua decisão, poucos dias depois de ter perdido as eleições de
1990 para Presidente da República do Peru, de fixar residência no país dos
conquistadores e de se tornar cidadão espanhol.

IV.2. UMBERTO ECO.

O linguista e romancista italiano escreve:

Acreditamos que as invenções e descobertas que mudaram nossas vidas


dependeram de equipamentos complexos. A verdade é que ainda estamos aqui
- nós europeus e também os descendentes dos pioneiros do Mayflower e dos
conquistadores espanhóis - por causa do feijão. Sem feijões, a população
européia não teria dobrado em poucos séculos, não seríamos hoje centenas de
milhões de pessoas no continente e alguns de nós ... não existiriam... E os não
europeus? Não conheço bem a história dos feijões em outros continentes, mas
certamente sem os feijões europeus a história desses continentes seria
diferente... parece-me que essa história de feijões, lentilhas e ervilhas é
importante ... 23

O artigo de Eco surpreende porque em nenhum trecho fica estabelecido que se


trata de um conto; não é ficção e portanto tem que ser tratado como se fosse um ensaio.
William McNeill, coincidindo com as opiniões expressas por Hobsbawm, informa que o
mais importante que aconteceu depois de 1492 foi:

A difusão na Europa, Ásia e África dos produtos comestivéis da América...


milho, batata, batata doce, tomate, amendoim, mandioca, cacao e vários tipos
de pimentas, feijões e aboboras. Todos totalmente desconhecidos fora da América
antes de Colombo. É inimaginável italianos sem tomates, chineses sem batata
doce, africanos sem milho e irlandeses, alemães e russos sem batatas para
comer. Tudo isto torna evidente a enorme importância das culturas
comestíveis americanas para o mundo. 24

No livro Seeds of Change dois pesquisadores estabelecem que: “evidências


arqueológicas de várias partes do México central mostram que no ano 2 000 AC a dieta
ali era formada por milho, feijões, abóbora, pimenta, amaranto e abacates”. 25
Vemos, nas
páginas 26 e 27, que os feijões e outros produtos agrícolas já eram utilizados
sistematicamente pelos habitantes do território que hoje forma parte do Peru, talvez
mesmo antes de 2 000 AC.

23
V.bibliografia: Eco.
24
McNeill: 43; itálico nosso.
A América Indígena 18
PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

Num outro livro, resultado de pesquisa séria, fica estabelecido que pelo menos
três tipos de feijão são dos Andes Centrais (território que vai do Sul do Equador ao
Norte da Bolívia). Estes são, de acordo com o nome científico: Phaseolus Vulgaris,
Phaseolus Lunatus e Canavalia SPP (duas espécies). 26
E aqui temos que admitir que
infelizmente não temos à mão um livro sobre a história da agricultura na Mesoamérica.
27 Num livro destes sem dúvida apareceriam os nomes dos outros feijões típicos dessa
parte da América Indígena que são visíveis pois estão em exposição permanente no
Mercado Azteca, reconstruído dentro do Museu Nacional do México, D.F.

Estes dados tornam lícito duvidar das afirmações de Eco relativas à origem dos feijões
na agricultura européia. Na verdade é provável que esse grande romancista tenha
confundido feijões com ervilhas e lentilhas. Mas nos perguntamos, será possível que
ele desconheça a história desses produtos ao ponto de fazer essa confusão?. 28 Por outro
lado, é também possível duvidar de que as ervilhas e lentilhas tenham origem na muito
modesta agricultura européia, embora este não seja lugar para aprofundar esse tema. É
mais provável, no entanto, que tenham sido introduzidas na Europa pelos Árabes. Esta
opinião deriva de um dado proporcionado pelo próprio Eco. Ele afirma que após o ano
1000 DC. é que esses produtos mostraram sua importância na Europa. Ou seja, alguns
séculos depois de os Árabes estarem influenciando a Europa, com sua presença na
Península Ibérica desde o Século VIII, para tirá-la de sua Idade das Trevas (chamada
assim pelo próprio Eco). 29

25
MacLaren e Suguira: 23; itálico nosso.
26
Amanecer en los Andes: 19. É tão obvio o reconhecimento da origem desses produtos que, por exemplo,
o Phaseolus Lunatus (em quechua, idioma dos Incas, palhar), nos Estados Unidos é conhecido
popularmente como Lima Beans (Feijão de Lima). O ruim é que o Lima Beans é um anão, comparado com
seu original andino que, com frequência, tem grãos que fácilmente superam, cada um, a dois centimetros de
comprimento e um de largura.
27
Mesoamérica é o território que vai desde o México até a Costa Rica. Essa é uma das duas partes da
América onde, historicamente, aconteceu a Revolução Agrícola. A outra, os Andes Centrais.
28
Claro, cabe a possibilidade de que a tradução seja a causa dessa confusão. Acontece que o artigo do
jornal O Estado de SP foi traduzido do New York Times Magazine, que por sua vez talvez o tenha
traduzido do italiano, língua nativa de Eco.
29
Admira que nesse artigo, que trata da Europa mais ou menos de 900 a 1400 DC, Eco nunca mencione os
árabes. Igualmente, só uma vez menciona dois países não-europeus, apesar de estes terem sido muito
importantes no período. São a China, mencionada apenas pela seda (e não pela pólvora, apesar de que Eco
faz referência a ela), e a Índia, por suas especiarias.
A América Indígena 19
PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

Os árabes desse período, como se sabe, já habitavam os territórios onde talvez


tenha havido a Revolução Agrícola mais antiga da história, isto é, entre os rios Eufrates
e Tigris. E também tinham acesso à África, Índia e China, territórios onde também
ocorrera essa grande revolução, essencial para a conformação da civilização humana.
Então, é grande a possibilidade que árabes tivessem sido os introdutores das lentilhas e
ervilhas na Europa.
Sendo assim, só o eurocentrismo poderia explicar a frase arrogante de Eco: “E os
não-europeus? Não conheço bem a história dos feijões em outros continentes, mas
certamente sem os feijões europeus a história desses continentes seria
diferente...”

Tudo indica que, em relação aos feijões, o grande romancista e linguista italiano
usou o mesmo método do conquistador espanhol com relação ao Huayra, ou seja,
apropriou-se dos feijões, atribuindo aos europeus a criação dos mesmos, e negando ao
mesmo tempo os que verdadeiramente os criaram.

V. CONCLUSÃO.

A complexa história da contribuição da América Indígena ao processo de


construção da civilização humana precisa ser melhor conhecida. Só a ignorância ou a má
fé fazem admitir que a conquista foi uma decorrência natural da superioridade européia.
O eurocentrismo deve ser combatido porque justifica formas inaceitáveis de arrog-
nância.

VI. BIBLIOGRAFIA

--------------------------- Amanecer en los Andes. Comisión de Medio Ambiente y


Desarrollo de América Latina y El Caribe. Comisión Andina de Fomento (CAF), Banco
Interamericano de Desarrollo (BID), Programa de las Naciones Unidas para el
Desarrollo (PNUD). Washington D.C. 1997?.
A América Indígena 20
PAIAGUÁS vol. 01, n°2 – jul-dez-2015 – ISSN: 2446-9556.

--------------------------- Amazonía sin Mitos. Comisión Amazónica de Desarrollo y


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1988.

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Hobsbawn, E.J. Pessoas Extraordinárias. Resistência, Rebelião e Jazz. Editora Paz e


Terra, Rio de Janeiro, 1998

Lockhart, J. e Schwartz, S.B. Early Latin America. A History of Colonial Spanish


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Mac Laren W, J. e Suguiura, Y. “The Demise of the Fith Sun” In Seeds of Change...
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Since Columbus. Smithsonian Institution, Washington and London, 1991.

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