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Resumo
O Rio Grande do Sul esteve e está na vanguarda do movimento de arte/educação do Brasil,
através da Associação Gaúcha de Arte-Educação (AGA), de professoras(es) e
pesquisadoras(es). Nesse contexto, na cidade de Rio Grande/RS, constitui-se um grupo
expressivo de arte/educadoras(es) que construíram práxis educativas inter e transdisciplinares
entre arte, ciência, ambiente e tecnologia, na perspectiva de uma educação estética e do
cotidiano (RICHTER, 2003). Peralta-Castell identifica tal fenômeno como a “marca de Rio
Grande”. Em diálogo com práxis apresentadas nos CONFAEBs, abordaremos as caminhadas
poéticas e concepções dessa marca, assim como seus desdobramentos para uma arte/educação
contemporânea, os quais dialogam com o abismo horizontal que compõe a paisagem do
pampa litoral e com outras querências.
1
Universidade Federal do Rio Grande - FURG; Mestrado em Educação Ambiental (FURG); Doutorado em
Educação (Universidade de Brasília). Artista visual. ritarache@gmail.com.
2
Universidade Federal do Rio Grande - FURG; Mestrado em Educação Ambiental (FURG); Doutorado em
História da Arte (Universidad de Barcelona). Artista visual. fabiane.pianowski@gmail.com.
3
Universidade Federal do Rio Grande - FURG (professora aposentada); Mestrado em Educação Ambiental
(FURG); Doutorado em Educação (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Artista visual.
cleperaltacastell@gmail.com.
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Célia Maria Pereira é artista visual, graduada em Artes Visuais e Arqueologia, pela FURG, e especialista em
Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos, pela Universidade Federal de Pelotas. Foi professora de Arte na
rede pública de educação básica por 30 anos e coordenadora do Ponto de Cultura ArtEstação.
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pela qual a principal avenida do balneário é perpendicular à praia. Nos despedimos dela
imersos naquele ambiente e seguimos a caminhada pela Avenida Atlântica, por alguns
quilômetros, até a Escola Municipal de Ensino Fundamental Peixoto Primo, no bairro
Querência. A professora de Arte e as crianças nos esperavam para seguirmos nossa
caminhada juntos até a praia. Fazia sol, mas estava frio, um dia de outono no sul.
Nosso percurso da escola à praia foi brincando, fotografando, conversando e sentindo o
vento frio no rosto, o sol quente nas costas, o cheiro da maresia e o som das aves, até
chegarmos no mar e avistarmos o abismo horizontal da maior praia arenosa em extensão do
mundo. São 220 km até a fronteira com o Uruguai. Uma planície que se estende a perder de
vista, na beira do Oceano Atlântico. Mar aberto, selvagem, vento, dunas, aves marinhas,
milhares de conchas na areia, comunidades pesqueiras. Encerramos o dia tomando café numa
padaria local, estesiados, corpos carregados de confetos – conceitos com afetos, como diz
Michèle Sato (SATO et. al., 2004).
Essa foi uma das tantas caminhadas estéticas e educativas que realizamos com
estudantes do Curso de Artes Visuais - Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande -
FURG. Uma práxis oriunda do que Peralta Castell identifica como a marca de Rio Grande,
uma práxis de Arte Educação Ambiental (AEA)5.
Entendemos a AEA como um espaço híbrido que vem há tempos surgindo, não apenas
como experiências pedagógicas do Ensino Fundamental à Pós-Graduação, mas também em
um grande universo de pesquisas científicas, teorizando e/ou relatando estudos de casos,
experiências de artistas, educadoras(es) e professoras(es) em todo país, além de
extrafronteiras.
A AEA pode ser definida como "uma ação educativa que articula as artes, as ciências,
a educação, o campo ambiental e outros saberes" (RACHE, 2016, p. 140); "um construto
transdisciplinar que associa arte/educação e educação ambiental" (RACHE, 2016, p. 139).
A arte/educação contemporânea tem nos levado por caminhos que rompem limites da
própria área, dos espaços artísticos e educativos convencionais, de epistemologias e métodos,
5
Recentemente, adotamos a expressão Arte Educação Ambiental (AEA), sem hífen ou barra, buscando atribuir
a mesma importância aos três campos do conhecimento que se articulam nessa práxis transdisciplinar. No
entanto, ao longo deste texto, aparecerão grafias diferentes (Arte-Educação-Ambiental, Arte-Educação
Ambiental e Arte/Educação Ambiental), que evidenciam períodos distintos do uso da expressão, especialmente,
por conta da adoção pela FAEB dos termos arte-educação, inicialmente, e arte/educação, mais recentemente.
Acompanhando as concepções da FAEB, ao nos referirmos às pessoas que atuam na EAE, particularmente às
graduadas em Arte, usamos o termo arte/educador(a) ambiental.
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cultura, sob pena de não se ter mais argumentos que sustentem o sentido do humano,
esvaziado pela cientificidade desviada para o consumo e os poderes de dominação.
Cleusa Peralta Castell, a partir de inúmeras experiências interdisciplinares envolvendo
arte, ciência e tecnologia, propôs um caminho “trans estético” para um currículo integrado,
que
integrando artes e ciências do ambiente, produz um conhecimento integrado, a
partir do qual os educandos passam a perceber a estreita relação entre ambiente e
cultura. Essa relação não é evidenciada no currículo por disciplinas, precisa, sim,
ser construída metodologicamente (PERALTA-CASTELL, 2012A, p. 108-109).
Diante disso, reafirmamos Ana Mae Barbosa (2005, p.14), quando diz que “temos
pensamento próprio (...) hibridizamos falando nossa própria linguagem de necessidades, e
somos hoje um dos países que, junto com Cuba e Chile, estão na liderança do ensino de Arte
na América Latina, com um sistema bem desenvolvido de Arte/Educação.”
A cidade de Rio Grande, a mais antiga do estado, localizada no extremo sul do Rio
Grande do Sul, às margens da Laguna dos Patos e do Oceano Atlântico, tem uma população
estimada de 211.965 mil habitantes (IBGE, 2020).
A Universidade Federal do Rio Grande – FURG foi fundada em 1969, oriunda de
faculdades criadas na década de 1950. Em 1977, deu-se a primeira oferta do Curso de
Educação Artística – Licenciatura Curta, que, em 1986, passou à licenciatura plena,
habilitação em artes plásticas. Atualmente, há na FURG os Cursos de Artes Visuais –
Licenciatura e Bacharelado. Nessas quatro décadas, contabilizamos aproximadamente 600
licenciados em Artes Visuais pela FURG.
Com a criação do curso de educação artística, artistas chegaram a Rio Grande, vindos
de outras cidades do RS, de outras regiões do Brasil e também do exterior, para atuarem
como professoras e professores. A gaúcha Cleusa Peralta Castell chega à FURG em 1986,
dez anos depois de sua licenciatura em Desenho e Plástica na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS); e, nos seus quase trinta anos de contribuição para a universidade e
militância na Associação Gaúcha de Arte/Educação (AGA) e Federação de Arte/Educadores
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do Brasil (FAEB), torna-se uma referência nas áreas de educação, ensino de arte, educação
ambiental, inter e transdisciplinaridade.
Tendo como vocação institucional os ecossistemas costeiros e oceânicos, a FURG está
comprometida com a criação e a difusão de conhecimentos voltados para a compreensão da
complexidade das manifestações naturais, sociais, culturais e históricas do ecossistema em
que está inserida.
Nesse contexto, surgem iniciativas inter e transdisciplinares 6 entre as artes e as ciências
do ambiente, dentro e fora da universidade, envolvendo as autoras deste texto, assim como
outras artes/educadoras(es), oceanólogas(os), biólogas(os), geógrafas(os), mestres e
doutoras(es) em educação ambiental, que estudaram na FURG. É dessa convergência de
campos e práxis que se constitui a AEA como uma marca de Rio Grande.
Como a imensidão da planície costeira, que apaga a fronteira entre areia, mar e céu, a
trajetória da Arte Educação Ambiental se confunde com nossas próprias trajetórias de vida,
formação acadêmica e profissional, assim como a trajetória da arte/educação e da educação
ambiental no Brasil.
A AEA é o resultado da vivência, da práxis educativa de muitas pessoas, como artistas,
cientistas, educadoras e educadores engajados, há 40 anos, no movimento socioambiental e
de arte/educação, na criação de processos educativos críticos ao projeto civilizatório moderno
e ao modelo de sociedade capitalista. Movimentos esses reivindicatórios de novos modos de
interação entre sociedades, culturas e o mundo natural.
Contar essa história é manter viva a memória da arte/educação e seus desdobramentos.
Nomear as pessoas que a construíram, e ainda constroem, é evidenciar que sujeitos se
mobilizam, se envolvem, pensam e atuam no mundo. Isso evidencia uma concretude e abre a
possibilidade de que outras pessoas também possam fazê-lo. Num país como o Brasil, onde o
Estado busca apagar as memórias e invisibilizar pessoas e grupos sociais; num momento
6
Para citar algumas: Projeto Nascente, Projeto Água e Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
FURG; ONG Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental (NEMA); Laboratório de Educação Ambiental
(LEA) da Escola do Mar, Ciência e Tecnologia (EMCT), da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
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como o que estamos vivendo, da pandemia da COVID-19, no qual pessoas viram números, é
importante registar acontecimentos e nomes.
Em meados da década de 1980, no balneário Cassino, um grupo de estudantes do curso
de Oceanologia da FURG cria o NEMA – Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental.
Entre os anos de 1986 e 1987, bem no início das suas atividades, aprovam junto à Secretaria
de Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM) o projeto Mentalidade
Marítima: educação ambiental para comunidades costeiras, cuja experiência piloto se daria
em escolas públicas localizadas nas proximidades da praia.
Esses estudantes, cientistas em formação, sentiram falta de um trabalho que fosse mais
integrador, que os auxiliasse a compreender o que estavam fazendo. Sua principal motivação
era: "o que nós não aprendemos na escola que gostaríamos de aprender?". De forma que as
ações do projeto eram palestras, saídas de campo, saídas de praia, oficinas com crianças,
professoras e professores das escolas da beira-mar; nada de provas ou trabalhos que valiam
nota.
Como a arte no projeto estava presente através da produção de desenhos e de
performances teatrais, professores da área de Arte da FURG, Cleusa Peralta Castell, José
Flores e Marcos Vilella, foram convidados a participar, nascendo desse encontro o
atravessamento entre Arte e Ciência, no qual os conteúdos de ambas as áreas dialogam como
possibilidade de construção de conhecimento sobre o ambiente, sobre si e a vida, marcando a
trajetória acadêmica e profissional de muitas arte/educadoras(es) e educadoras(es)
ambientais.
Integrando artes, ciências do ambiente e corpo, o projeto Mentalidade Marítima,
denominado atualmente de Ondas que te quero mar 7 (CRIVELLARO; MARTINEZ;
RACHE, 2001), acabou firmando-se como uma metodologia de referência para a arte-
educação ambiental. De modo que essa experiência, somada a outras geradas desse
atravessamento entre arte e ciência, como os projetos Nascente Água8 e Utopias
7
Envolveram-se no Projeto as arte/educadoras ambientais Cláudia Campestrini, Rita Patta Rache, Luciane
Goldberg, Fabiane Pianowski, Lilian Pieczarka, Caroline Ávila e Paola Kirsch; as geógrafas Maria Helena
Reinhardt, Carla Crivellaro e Jaqueline Duarte; o educador físico Ramiro Martinez; a ocea nóloga Ana Carolina
de Moura e o oceanólogo Rodrigo Moreira da Silva; a bióloga Alice Monteiro; a filósofa Jacqueline Carrilho
Einchenberger; a pedagoga Carmen Vera Soares, entre outras pessoas.
8
Realizado na FURG, junto ao Curso de Artes Visuais e ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental, envolvendo professoras e professores como Dr. Wilhelm Walgenbach, Dra. Cleusa Peralta Castell,
Dr. José Vieira Flores e Dr. Michael Chapman.
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Desdobramentos contemporâneos
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A primeira autora deste artigo, Viviani Rios Kwecko, é arte/educadora, riograndina, licenciada pela FURG, e
que também carrega a marca de Rio Grande em sua práxis. Atualmente é professora dos Cursos de Artes
Visuais da FURG.
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(CARERI, 2013), no qual o autor traz o caminhar como forma de ver e (re)criar paisagens
desde o nomadismo primitivo às vanguardas artísticas no início do século XX.
As caminhadas são vivenciadas como experiências estéticas e visam romper com a
hegemonia epistemológica da modernidade, com uma estética eurocentrada e a estrutura de
pensamento imposto e assimilado na mentalidade, nas subjetividades e nos corpos
subalternizados latino-americanes.
Dessas caminhadas poéticas e concepções do abismo horizontal, a arte educação
ambiental como a marca de Rio Grande se desdobra na contemporaneidade da arte/educação.
Referências
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