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CAMINHADAS POÉTICAS E CONCEPÇÕES DO ABISMO HORIZONTAL:


a marca de Rio Grande na contemporaneidade da arte/educação

Rita Patta Rache1


Fabiane Pianowski 2
Cleusa Helena Guaita Peralta Castell3

Resumo
O Rio Grande do Sul esteve e está na vanguarda do movimento de arte/educação do Brasil,
através da Associação Gaúcha de Arte-Educação (AGA), de professoras(es) e
pesquisadoras(es). Nesse contexto, na cidade de Rio Grande/RS, constitui-se um grupo
expressivo de arte/educadoras(es) que construíram práxis educativas inter e transdisciplinares
entre arte, ciência, ambiente e tecnologia, na perspectiva de uma educação estética e do
cotidiano (RICHTER, 2003). Peralta-Castell identifica tal fenômeno como a “marca de Rio
Grande”. Em diálogo com práxis apresentadas nos CONFAEBs, abordaremos as caminhadas
poéticas e concepções dessa marca, assim como seus desdobramentos para uma arte/educação
contemporânea, os quais dialogam com o abismo horizontal que compõe a paisagem do
pampa litoral e com outras querências.

Palavras-Chave: arte/educação contemporânea; educação estética; arte educação ambiental;


inter/transdisciplinaridade; Rio Grande/RS.

Nos encontramos no Ponto de Cultura ArtEstação, no início da Avenida Rio Grande, no


balneário Cassino (Rio Grande/RS). A arte/educadora Célia Pereira 4 nos esperava sentada na
grama, cercada de revistas e cartões postais das fotografias que faz junto ao Coletivo
ArtEstação [PHOTO]dErivA. Sentamos em círculo e a roda de conversa começou: arte,
cultura, patrimônio, ambiente, história, militância, educação, estética. Dali, saímos
caminhando pela Avenida, enquanto Célia contava a história do Cassino através do
patrimônio edificado, das relações de trabalho e da interação com o ambiente costeiro
inóspito, onde o vento frio sopra a areia fina sobre as casas e empurra o mar pelas ruas, razão

1
Universidade Federal do Rio Grande - FURG; Mestrado em Educação Ambiental (FURG); Doutorado em
Educação (Universidade de Brasília). Artista visual. ritarache@gmail.com.
2
Universidade Federal do Rio Grande - FURG; Mestrado em Educação Ambiental (FURG); Doutorado em
História da Arte (Universidad de Barcelona). Artista visual. fabiane.pianowski@gmail.com.
3
Universidade Federal do Rio Grande - FURG (professora aposentada); Mestrado em Educação Ambiental
(FURG); Doutorado em Educação (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Artista visual.
cleperaltacastell@gmail.com.
4
Célia Maria Pereira é artista visual, graduada em Artes Visuais e Arqueologia, pela FURG, e especialista em
Patrimônio Cultural: Conservação de Artefatos, pela Universidade Federal de Pelotas. Foi professora de Arte na
rede pública de educação básica por 30 anos e coordenadora do Ponto de Cultura ArtEstação.
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pela qual a principal avenida do balneário é perpendicular à praia. Nos despedimos dela
imersos naquele ambiente e seguimos a caminhada pela Avenida Atlântica, por alguns
quilômetros, até a Escola Municipal de Ensino Fundamental Peixoto Primo, no bairro
Querência. A professora de Arte e as crianças nos esperavam para seguirmos nossa
caminhada juntos até a praia. Fazia sol, mas estava frio, um dia de outono no sul.
Nosso percurso da escola à praia foi brincando, fotografando, conversando e sentindo o
vento frio no rosto, o sol quente nas costas, o cheiro da maresia e o som das aves, até
chegarmos no mar e avistarmos o abismo horizontal da maior praia arenosa em extensão do
mundo. São 220 km até a fronteira com o Uruguai. Uma planície que se estende a perder de
vista, na beira do Oceano Atlântico. Mar aberto, selvagem, vento, dunas, aves marinhas,
milhares de conchas na areia, comunidades pesqueiras. Encerramos o dia tomando café numa
padaria local, estesiados, corpos carregados de confetos – conceitos com afetos, como diz
Michèle Sato (SATO et. al., 2004).
Essa foi uma das tantas caminhadas estéticas e educativas que realizamos com
estudantes do Curso de Artes Visuais - Licenciatura da Universidade Federal do Rio Grande -
FURG. Uma práxis oriunda do que Peralta Castell identifica como a marca de Rio Grande,
uma práxis de Arte Educação Ambiental (AEA)5.
Entendemos a AEA como um espaço híbrido que vem há tempos surgindo, não apenas
como experiências pedagógicas do Ensino Fundamental à Pós-Graduação, mas também em
um grande universo de pesquisas científicas, teorizando e/ou relatando estudos de casos,
experiências de artistas, educadoras(es) e professoras(es) em todo país, além de
extrafronteiras.
A AEA pode ser definida como "uma ação educativa que articula as artes, as ciências,
a educação, o campo ambiental e outros saberes" (RACHE, 2016, p. 140); "um construto
transdisciplinar que associa arte/educação e educação ambiental" (RACHE, 2016, p. 139).
A arte/educação contemporânea tem nos levado por caminhos que rompem limites da
própria área, dos espaços artísticos e educativos convencionais, de epistemologias e métodos,
5
Recentemente, adotamos a expressão Arte Educação Ambiental (AEA), sem hífen ou barra, buscando atribuir
a mesma importância aos três campos do conhecimento que se articulam nessa práxis transdisciplinar. No
entanto, ao longo deste texto, aparecerão grafias diferentes (Arte-Educação-Ambiental, Arte-Educação
Ambiental e Arte/Educação Ambiental), que evidenciam períodos distintos do uso da expressão, especialmente,
por conta da adoção pela FAEB dos termos arte-educação, inicialmente, e arte/educação, mais recentemente.
Acompanhando as concepções da FAEB, ao nos referirmos às pessoas que atuam na EAE, particularmente às
graduadas em Arte, usamos o termo arte/educador(a) ambiental.
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resultado de ações gestadas e realizadas há algumas décadas por inumeráveis


artes/educadoras(es).
Ivone Richter, em 1994, no VII Congresso Nacional da Federação de Arte-Educadores
do Brasil (CONFAEB) e III Encontro Latino-Americano de Arte-Educadores, apontava
possibilidades de interação entre a arte/educação e a educação ambiental, pela via da
educação estética, e provocava reflexões sobre a necessidade de práxis interdisciplinares
associadas ao ensino-aprendizagem da arte, afirmando que

A atividade humana deve ser pensada como no equilíbrio entre a integração


estética e a diferenciação racional, sendo a primeira na esfera das artes e a segunda
na das ciências. Se a ciência e a tecnologia são fatores constitutivos para o
desenvolvimento da atividade humana, a estética deve formar um pólo de
equilíbrio à ciência, quantitativamente igual, de maneira que a integração estética e
a diferenciação racional possam estar contidas simultaneamente em uma esfera
teórica e serem consideradas como fatores fundamentais da atividade científica.
(...) Quando pensamos a educação por este prisma sentimos a necessidade de
induzir na escola uma relação mais estreita entre o ensino da ciência e o ensino da
arte. A educação ambiental deve acontecer com uma consequência desse enfoque,
em que a natureza é vista simultaneamente de forma racional e de forma estética
(RICHTER, 1995, p. 79).

Laís Aderne, "artista, educadora, mobilizadora de gente, arqueóloga de fazeres culturais


fadados ao esquecimento, cuidadora de ofícios e saberes" (CATALÃO, 2018, p. 73), em 1997
cria o Ecomuseu do Cerrado,

como um processo de resistência à descaracterização cultural e violenta


degradação ambiental que atingiu os municípios do entorno do Distrito Federal,
com a construção de Brasília. Sete municípios do Entorno do DF integraram o
Ecomuseu do Cerrado: Abadiânia, Águas Lindas, Alexânia, Corumbá de Goiás,
Cocalzinho, Pirenópolis, Santo Antônio do Descoberto numa área de cerca de
8.000 quilômetros quadrados. Mais que um museu ao ar livre, a proposta era
desenvolver linhas de ação cultural, ambiental e educativa em espaços rurais e
urbanos no bioma Cerrado, com objetivo de construir e apoiar projetos para o uso
sustentável dos recursos naturais e revitalização do patrimônio cultural das
comunidades (CATALÃO, 2018, p. 82-83).

Marly Meira (2001), cuja intelectualidade e amorosidade sempre nos motivaram,


propõe uma retomada da relação filosofia e arte, tanto no campo da educação como da
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cultura, sob pena de não se ter mais argumentos que sustentem o sentido do humano,
esvaziado pela cientificidade desviada para o consumo e os poderes de dominação.
Cleusa Peralta Castell, a partir de inúmeras experiências interdisciplinares envolvendo
arte, ciência e tecnologia, propôs um caminho “trans estético” para um currículo integrado,
que
integrando artes e ciências do ambiente, produz um conhecimento integrado, a
partir do qual os educandos passam a perceber a estreita relação entre ambiente e
cultura. Essa relação não é evidenciada no currículo por disciplinas, precisa, sim,
ser construída metodologicamente (PERALTA-CASTELL, 2012A, p. 108-109).

Diante disso, reafirmamos Ana Mae Barbosa (2005, p.14), quando diz que “temos
pensamento próprio (...) hibridizamos falando nossa própria linguagem de necessidades, e
somos hoje um dos países que, junto com Cuba e Chile, estão na liderança do ensino de Arte
na América Latina, com um sistema bem desenvolvido de Arte/Educação.”

A marca de Rio Grande

A cidade de Rio Grande, a mais antiga do estado, localizada no extremo sul do Rio
Grande do Sul, às margens da Laguna dos Patos e do Oceano Atlântico, tem uma população
estimada de 211.965 mil habitantes (IBGE, 2020).
A Universidade Federal do Rio Grande – FURG foi fundada em 1969, oriunda de
faculdades criadas na década de 1950. Em 1977, deu-se a primeira oferta do Curso de
Educação Artística – Licenciatura Curta, que, em 1986, passou à licenciatura plena,
habilitação em artes plásticas. Atualmente, há na FURG os Cursos de Artes Visuais –
Licenciatura e Bacharelado. Nessas quatro décadas, contabilizamos aproximadamente 600
licenciados em Artes Visuais pela FURG.
Com a criação do curso de educação artística, artistas chegaram a Rio Grande, vindos
de outras cidades do RS, de outras regiões do Brasil e também do exterior, para atuarem
como professoras e professores. A gaúcha Cleusa Peralta Castell chega à FURG em 1986,
dez anos depois de sua licenciatura em Desenho e Plástica na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS); e, nos seus quase trinta anos de contribuição para a universidade e
militância na Associação Gaúcha de Arte/Educação (AGA) e Federação de Arte/Educadores
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do Brasil (FAEB), torna-se uma referência nas áreas de educação, ensino de arte, educação
ambiental, inter e transdisciplinaridade.
Tendo como vocação institucional os ecossistemas costeiros e oceânicos, a FURG está
comprometida com a criação e a difusão de conhecimentos voltados para a compreensão da
complexidade das manifestações naturais, sociais, culturais e históricas do ecossistema em
que está inserida.
Nesse contexto, surgem iniciativas inter e transdisciplinares 6 entre as artes e as ciências
do ambiente, dentro e fora da universidade, envolvendo as autoras deste texto, assim como
outras artes/educadoras(es), oceanólogas(os), biólogas(os), geógrafas(os), mestres e
doutoras(es) em educação ambiental, que estudaram na FURG. É dessa convergência de
campos e práxis que se constitui a AEA como uma marca de Rio Grande.

O construto Arte Educação Ambiental

Como a imensidão da planície costeira, que apaga a fronteira entre areia, mar e céu, a
trajetória da Arte Educação Ambiental se confunde com nossas próprias trajetórias de vida,
formação acadêmica e profissional, assim como a trajetória da arte/educação e da educação
ambiental no Brasil.
A AEA é o resultado da vivência, da práxis educativa de muitas pessoas, como artistas,
cientistas, educadoras e educadores engajados, há 40 anos, no movimento socioambiental e
de arte/educação, na criação de processos educativos críticos ao projeto civilizatório moderno
e ao modelo de sociedade capitalista. Movimentos esses reivindicatórios de novos modos de
interação entre sociedades, culturas e o mundo natural.
Contar essa história é manter viva a memória da arte/educação e seus desdobramentos.
Nomear as pessoas que a construíram, e ainda constroem, é evidenciar que sujeitos se
mobilizam, se envolvem, pensam e atuam no mundo. Isso evidencia uma concretude e abre a
possibilidade de que outras pessoas também possam fazê-lo. Num país como o Brasil, onde o
Estado busca apagar as memórias e invisibilizar pessoas e grupos sociais; num momento

6
Para citar algumas: Projeto Nascente, Projeto Água e Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da
FURG; ONG Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental (NEMA); Laboratório de Educação Ambiental
(LEA) da Escola do Mar, Ciência e Tecnologia (EMCT), da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
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como o que estamos vivendo, da pandemia da COVID-19, no qual pessoas viram números, é
importante registar acontecimentos e nomes.
Em meados da década de 1980, no balneário Cassino, um grupo de estudantes do curso
de Oceanologia da FURG cria o NEMA – Núcleo de Educação e Monitoramento Ambiental.
Entre os anos de 1986 e 1987, bem no início das suas atividades, aprovam junto à Secretaria
de Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (SECIRM) o projeto Mentalidade
Marítima: educação ambiental para comunidades costeiras, cuja experiência piloto se daria
em escolas públicas localizadas nas proximidades da praia.
Esses estudantes, cientistas em formação, sentiram falta de um trabalho que fosse mais
integrador, que os auxiliasse a compreender o que estavam fazendo. Sua principal motivação
era: "o que nós não aprendemos na escola que gostaríamos de aprender?". De forma que as
ações do projeto eram palestras, saídas de campo, saídas de praia, oficinas com crianças,
professoras e professores das escolas da beira-mar; nada de provas ou trabalhos que valiam
nota.
Como a arte no projeto estava presente através da produção de desenhos e de
performances teatrais, professores da área de Arte da FURG, Cleusa Peralta Castell, José
Flores e Marcos Vilella, foram convidados a participar, nascendo desse encontro o
atravessamento entre Arte e Ciência, no qual os conteúdos de ambas as áreas dialogam como
possibilidade de construção de conhecimento sobre o ambiente, sobre si e a vida, marcando a
trajetória acadêmica e profissional de muitas arte/educadoras(es) e educadoras(es)
ambientais.
Integrando artes, ciências do ambiente e corpo, o projeto Mentalidade Marítima,
denominado atualmente de Ondas que te quero mar 7 (CRIVELLARO; MARTINEZ;
RACHE, 2001), acabou firmando-se como uma metodologia de referência para a arte-
educação ambiental. De modo que essa experiência, somada a outras geradas desse
atravessamento entre arte e ciência, como os projetos Nascente Água8 e Utopias

7
Envolveram-se no Projeto as arte/educadoras ambientais Cláudia Campestrini, Rita Patta Rache, Luciane
Goldberg, Fabiane Pianowski, Lilian Pieczarka, Caroline Ávila e Paola Kirsch; as geógrafas Maria Helena
Reinhardt, Carla Crivellaro e Jaqueline Duarte; o educador físico Ramiro Martinez; a ocea nóloga Ana Carolina
de Moura e o oceanólogo Rodrigo Moreira da Silva; a bióloga Alice Monteiro; a filósofa Jacqueline Carrilho
Einchenberger; a pedagoga Carmen Vera Soares, entre outras pessoas.
8
Realizado na FURG, junto ao Curso de Artes Visuais e ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Ambiental, envolvendo professoras e professores como Dr. Wilhelm Walgenbach, Dra. Cleusa Peralta Castell,
Dr. José Vieira Flores e Dr. Michael Chapman.
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concretizáveis interculturais9, resultaram no que Peralta Castell chama de “a marca de Rio


Grande”; marca de uma arte/educação que na busca de um paradigma trans estético, dialoga
com o ambiente, com o lugar onde essa educação está acontecendo, onde a arte está sendo
produzida, onde os movimentos sociais e culturais estão se forjando.
É significativo falar o quanto essa "marca de Rio Grande" tem um papel fundamental
no que hoje chamamos de Arte Educação Ambiental, sendo seu marco acadêmico e teórico a
dissertação de mestrado "O conceito utopias concretizáveis: elemento gerador de um
programa de educação ambiental centrado na Interdisciplinaridade", de Cleusa Peralta Castell
(1997), na qual a autora nos apresenta o campo de abrangência das esferas de
desenvolvimento cognitivo em Arte no trabalho interdisciplinar, em que as formas de pensar
e fazer arte inserem-se nos diversos campos do conhecimento.
No entanto, o termo arte-educação-ambiental será cunhado por Luciane Goldberg
(2004), alguns anos depois, em sua dissertação de mestrado "Arte-Educação-Ambiental: o
despertar da consciência estética e a formação de um imaginário ambiental na perspectiva de
uma ONG", na qual descreve o processo da arte-educação-ambiental a partir de um estudo
dos desenhos produzidos pelas crianças que participaram do projeto Mentalidade
Marítima/Ondas que te quero mar.
Mais recentemente, a partir da perspectiva epistemológica da transdisciplinaridade,
fundamenta-se o construto arte-educação ambiental, através da tese de doutorado "Arte-
educação ambiental, um constructo transdisciplinar" de Rita Patta Rache (2016), apresentada
no XXIV CONFAEB (RACHE e PATO, 2014). Para a autora e o coletivo pesquisador
envolvendo 8 arte/educadoras ambientais, a AEA é uma práxis transdisciplinar, que não se
configura como uma subárea ou especialidade emergente do conhecimento, mas sim como
uma ação educativa que articula as artes, as ciências, a educação, o campo ambiental e outros
saberes. Sua tese é de que a AEA é um campo propício para desconstruir as dicotomias do
pensamento moderno, rompendo com a hegemonia do pensamento científico nos processos
educativos, uma vez que ela opera com a racionalidade sensível, possibilitando-nos o
autoconhecimento e o conhecimento do outro, de maneira que venhamos a estabelecer modos
9
Projeto de pesquisa coordenado pela Dra. Cleusa Peralta Castell, em parceria com as arte/educadoras
ambientais Nara Marone e Luciane Goldberg, a bióloga Mônica Brick Peres, os oceanólogos Washington
Ferreira e Pieter do Amaral e as professoras de Arte Magali Olione, Maria Helena Castro e Maria Tereza Ruivo,
da Escola Municipal de Ensino Fundamental Maria Angélica Leal Campello, localizada na região do Taim (Rio
Grande/RS).
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de interação confluentes entre mundos (KRENAK, 2019; 2020), voltados à formação de


valores ecológicos, cuja centralidade é a vida, e de condutas sustentáveis, comunitárias e
solidárias, que abarquem diferenças e divergências.
Importante salientar que apesar de projetos que relacionam ensino de arte e educação
ambiental estarem presentes em muitas publicações, dissertações e teses, o termo arte-
educação ambiental ainda não é recorrente. Em uma pesquisa nos anais dos CONFAEBs de
1994 a 2019, disponíveis para consulta, o termo arte-educação ambiental apareceu em apenas
três publicações: no resumo "Arte-educação e meio ambiente: apontamentos conceituais"
(RIZZI e ANJOS, 2009) e nos artigos "Arte-educação-profissional: potencial de
inventividade" (KWECKO e GRACIA-TORCHELSEN, 2012)10 e “Arte/Educação
Ambiental: um construto transdisciplinar a partir da práxis de arte/educadores” (RACHE e
PATO, 2014).

Desdobramentos contemporâneos

A "marca de Rio Grande" se espraiou e hoje se faz presente em diferentes práxis. Um


exemplo, entre tantos, são as caminhadas estéticas e educativas realizadas por professoras e
estudantes do curso de licenciatura em Artes Visuais, da Universidade Federal do Rio Grande
– FURG, relatadas no início deste texto. As caminhadas têm o objetivo de despertar nos
educandos um olhar investigativo e sensível em relação à produção de conhecimento em arte,
a partir de um recorte socioambiental, étnico, ético-estético, de gênero, cidadania e do
campesinato, buscando uma consciência artística acerca da pluralidade e da alteridade na
educação em artes visuais.
A metodologia utilizada proporciona a vivência de caminhadas, a criação artística e
de material educativo para o ensino-aprendizagem das artes visuais contemporâneo.
Organizados em grupos, os educandos propõem caminhadas com a intenção de suscitar
reflexões e produção de conhecimento sobre educação estética, estética do cotidiano,
educação ambiental e patrimonial, questões etnicorraciais – branquitude e história, cultura e

10
A primeira autora deste artigo, Viviani Rios Kwecko, é arte/educadora, riograndina, licenciada pela FURG, e
que também carrega a marca de Rio Grande em sua práxis. Atualmente é professora dos Cursos de Artes
Visuais da FURG.
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povos africanos, da diáspora, originários e asiáticos –, arte educação ambiental, gêneros e


sexualidades, educação inclusiva e pessoas com deficiência e educação do campo. Ao final,
as caminhadas são registradas poeticamente em uma proposta estética coletiva.
No XXVIII CONFAEB, que aconteceu em 2018 em Brasília-DF, conhecemos o
Projeto Re(vi)vendo Êxodos, coordenado pelo professor Luís Guilherme Baptista, no qual
são realizadas caminhadas de até 300 km com estudantes da rede pública de ensino e busca-
se uma formação intelectual e emocional, a partir da experiência compartilhada dos
indivíduos (SANT’ANNA, 2015). Esse projeto foi o elemento desencadeador das caminhadas
estéticas e educativas e indica a importância da participação nos congressos da FAEB na
troca e atualização dos conhecimentos.
Associamos, então, a concepção das caminhadas às experiências de saídas de campo
para estudo do meio e investigação de contextos – na cidade, praia, em escolas, comunidades,
museus, mostras de arte, coletivos, unidades de conservação, parques, no campo, etc. –
realizadas na AEA.
A proposta das caminhadas como prática educativa baseia-se na educação estética
proposta por Duarte Jr. (2003), entendida como o processo de dar atenção à nossa
sensibilidade e aos fenômenos estésicos do cotidiano, associada a uma perspectiva
intercultural (RICHTER, 2003) e decolonial (OLIVEIRA & CANDAU, 2010; QUIJANO,
2005).
Também se baseia na educação libertadora e problematizadora de Paulo Freire, a qual
propõe que educadores e educandos aprendam juntos, e de modo coletivo e colaborativo
construam sua trajetória pedagógica, a partir de suas experiências de vida, de seus problemas
e de questões do cotidiano. Como afirma o educador: “ninguém caminha sem aprender a
caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e retocando o sonho pelo
qual se pôs a caminhar” (FREIRE, 1997, p.155).
É no próprio caminhar como processo educativo, com seus obstáculos e dificuldades,
mas também com seus prazeres e descobertas, que estudantes e professoras entendem e
vivenciam o aprender coletivo e colaborativo.
Como prática estética, as caminhas têm como referência as propostas históricas
compiladas por Francesco Careri em Walkscapes: o caminhar como prática estética
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(CARERI, 2013), no qual o autor traz o caminhar como forma de ver e (re)criar paisagens
desde o nomadismo primitivo às vanguardas artísticas no início do século XX.
As caminhadas são vivenciadas como experiências estéticas e visam romper com a
hegemonia epistemológica da modernidade, com uma estética eurocentrada e a estrutura de
pensamento imposto e assimilado na mentalidade, nas subjetividades e nos corpos
subalternizados latino-americanes.
Dessas caminhadas poéticas e concepções do abismo horizontal, a arte educação
ambiental como a marca de Rio Grande se desdobra na contemporaneidade da arte/educação.

Referências

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