Você está na página 1de 11

Notícias Brasil Internacional Economia Saúde Ciência Tecnologia Vídeos

É possível apagar as lembranças traumáticas


do cérebro?
José A. Morales García
The Conversation*

21 janeiro 2023
Atualizado 23 janeiro 2023

07:59

É possível apagar as lembranças traumáticas do cérebro?

Há anos que não se tem notícias de Ulisses. Ele poderia ter morrido na Guerra de Troia. O filho
dele, Telêmaco, visita Menelau e a esposa, Helena, em busca de informações sobre o pai. Lá, ele
participa de um banquete no qual Menelau relembra as façanhas do rei de Ítaca.

Nesse momento, os convidados caem em uma profunda tristeza ao se lembrarem dele. Mas
Helena ordena que os criados sirvam nepenthes, a bebida do esquecimento.

5 avanços científicos esperados em 2023


Por que sonhamos com cair no vazio ou perder os dentes? O mistério dos sonhos
recorrentes
"Quem toma esta bebida acalmará todos os seus males e será incapaz de sentir tristeza, pois faz
esquecer as lembranças dolorosas."

Eis que a felicidade volta aos ali presentes.

É assim que Homero narra o episódio no canto IV de Odisseia. Mas é tão fácil esquecer uma
memória traumática? Existe alguma evidência científica que prove isso?

Matérias recomendadas

A síndrome de Alice no País das Maravilhas e outras 4 condições


psiquiátricas raras

As dicas de terapeutas de família para 'consertar' relações destruídas


pela briga política

Como se proteger de tristeza, raiva e medo após eleição

Quatro hábitos das pessoas felizes, segundo recomendação de psicóloga

Por que essa facilidade de lembrar do que é ruim?

Nossa memória guarda muitas das coisas que acontecem com a gente durante o dia, mas grande
parte acaba sendo esquecida.

No entanto, temos certa facilidade em guardar as recordações ruins, apesar de não ser um
processo gratuito: nosso sistema nervoso precisa modificar certos circuitos neurais, com a
consequente síntese de proteínas e gasto de energia celular.

É curioso: todo esse esforço para guardar uma memória que certamente nos deixará sequelas
psicológicas e, no pior dos casos, nos causará transtorno de estresse pós-traumático. Por quê?

Parte da explicação se baseia no fato de que estas experiências negativas estão fortemente
associadas a emoções. E nosso cérebro classifica e armazena memórias com base em sua
utilidade, considerando que aquelas vinculadas a emoções são úteis para nossa sobrevivência.
Se ficamos com muito medo ao atravessar uma área perigosa da cidade, o cérebro armazena isso
para que não o façamos novamente.

GETTY IMAGES

A neurociência parece ter encontrado algumas peças do quebra-cabeça para desvendar como é o
processo de salvar ou deletar uma memória

A situação se complica quando a experiência é realmente traumática. Neste caso, nosso órgão
pensante tende a esconder essas experiências, mas as armazena sem processar.

Como um mecanismo rápido de defesa, tudo bem. O problema surge quando, por qualquer
motivo, as lembranças ruins reaparecem. Aí o dano pode ser muito grande por se tratar de
experiências que foram arquivadas "cruas", sem serem devidamente tratadas.

Luz e som para eliminar experiências traumáticas


A neurociência parece ter encontrado algumas peças do quebra-cabeça que podem nos ajudar.
Até mesmo o menor fator poderia desempenhar um papel importante na hora de determinar se
guardamos ou excluímos uma memória.

Por exemplo, a luz, algo tão comum e que afeta a todos, inclusive as moscas (Droshopila
melanogaster), que são capazes de esquecer acontecimentos traumáticos quando mantidas no
escuro. E tudo graças a uma proteína que atua como moduladora da memória e que — esta parte
nos interessa — está evolutivamente bastante conservada.

Em outras palavras, a proteína está presente em todos os animais, inclusive em humanos. A


explicação pode ser relativamente simples: a luz atua como um modulador das funções cerebrais,
incluindo a manutenção da memória.
Sono, processador da memória

Os sons são outra peça importante, especialmente quando dormimos. O sono é essencial para o
processamento da memória.

Durante o dia nosso cérebro instala aplicativos (memórias), e à noite os atualiza. Desta forma, a
memória recém-adquirida seria transformada em memória de longo prazo durante o descanso
noturno.

Seguindo este raciocínio, também poderíamos fazer o contrário: usar estímulos, neste caso
auditivos, para desinstalar as experiências negativas, conforme asseguram pesquisadores da
Universidade de York, na Inglaterra, em um estudo recente.

Apesar de estudos deste tipo ainda estarem em fase experimental, poderiam ser muito úteis para
desenvolver futuras terapias que permitam enfraquecer memórias traumáticas baseadas em
estímulos auditivos durante o sono.

Drogas promissoras

Alguns de vocês podem estar se perguntando se no futuro serão vendidas pílulas de luz ou
pastilhas de som que nos ajudem a esquecer as lembranças ruins. Não temos a resposta, mas
temos evidências científicas de que alguns medicamentos já existentes poderiam contribuir para
apagar a memória traumática.

O propranolol, por exemplo, medicamento usado no tratamento da hipertensão arterial e que


permite a animais usados em experimentos de laboratório esquecer um trauma aprendido.

O segredo poderia estar em uma proteína nos neurônios que determina se as memórias devem
ser alteradas ou não. Se essa proteína for quebrada, as memórias se tornam modificáveis; ​e, se ela
estiver presente, são mantidas.

Apesar de serem trabalhos realizados em experimentos com animais em laboratório, são um


excelente modelo para o estudo do sistema nervoso. O cérebro humano, embora semelhante, é
mais complexo. Vamos a ele então.

Um anti-inflamatório como escudo contra memórias intrusivas


ISTOCK

Há estudos que determinam que a hidrocortisona, um anti-inflamatório, pode favorecer o processo de


esquecimento de memórias intrusivas

As experiências traumáticas são muito difíceis de


esquecer e afetam seriamente as pessoas que
passaram por elas. Podcast

Foi o que pensaram os pesquisadores da University


College London (UCL), no Reino Unido, que
acabaram de publicar um estudo descrevendo
como a hidrocortisona — uma droga anti-
inflamatória comumente usada para o tratamento
da artrite — poderia favorecer o processo de
esquecimento de memórias intrusivas se
administrada após um evento traumático.

Curiosamente, o efeito foi diferente para mulheres


e homens, dependendo do nível de hormônios
sexuais em seu organismo. Por exemplo, homens
com altos níveis de estrogênio apresentaram
menos recordações traumáticas.
Brasil Partido
Nas mulheres, aconteceu o contrário: níveis João Fellet tenta entender como brasileiros
elevados de estrogênio as tornavam mais chegaram ao grau atual de divisão.
suscetíveis a lembranças ruins após o tratamento
Episódios
com hidrocortisona. Isso mostra que a mesma
droga pode ter efeitos opostos em algumas
pessoas; daí a importância da pesquisa com
perspectiva de gênero.

Atualmente, a hidrocortisona só tem sido eficaz quando administrada nas horas imediatamente
após o trauma ou antes de dormir, quando a memória se consolida. No entanto, a ciência continua
avançando na esperança de acelerar o processo natural de esquecimento e limitar o sofrimento
psíquico de longo prazo.

É verdade que este tipo de estudo tem algumas limitações, já que estímulos traumáticos
provocados de forma experimental podem não refletir a gravidade de recordações de uma
experiência ruim na vida real.

Ainda assim, ele abre portas para o estudo de novos tratamentos para vítimas de estresse pós-
traumático. E talvez até a possibilidade de apagar as lembranças ruins que as impedem de levar
uma vida normal.

Não sabemos o que acontecerá no futuro, mas se você está se perguntando, recomendamos
assistir ao filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004). Talvez você encontre
alguma pista do que está por vir.

*José A. Morales García é professor e pesquisador científico em neurociências na Universidad


Complutense de Madrid, na Espanha.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e
republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em espanhol).

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64143909

Tópicos relacionados

Saúde mental Medicina Psicologia Ciência

Histórias relacionadas
Os desafios de pessoa com transtorno de personalidade
limítrofe para namorar: ‘Fico logo obcecada’
28 dezembro 2022

Os pequenos descansos que ajudam cérebro a aprender


coisas novas
26 maio 2022
'Tive transtorno pós-traumático após minha filha nascer', diz
britânico
18 junho 2021

Por que sonhamos com cair no vazio ou perder os dentes? O


mistério dos sonhos recorrentes
8 outubro 2022

Por que este texto pode mudar seu cérebro — as descobertas


da neurociência sobre a leitura
5 novembro 2021

5 avanços científicos esperados em 2023


26 dezembro 2022

O que é reserva cognitiva, que deve ser fortalecida para


proteger o cérebro de doenças
30 abril 2022

'Cérebro quântico', a ousada teoria que aponta caminhos


sobre o mistério da mente humana
27 dezembro 2022

Por que ter 'brancos' na mente pode ser bom para nós
4 dezembro 2022
Principais notícias
Centenas de imigrantes são resgatados: por que rota africana é considerada uma das mais
mortíferas do mundo
Há 2 horas

Presidente da empresa ignorou alertas de segurança sobre submarino do Titanic e chamou


de 'acusações infundadas'
Há 5 horas

Tragédia com submarino para ver o Titanic era 'claramente evitável', diz especialista
23 junho 2023

Leia mais

Giorgia Meloni: quem é a primeira-ministra italiana de direita radical com quem Lula se
encontrou
21 junho 2023
Por que julgamento de Bolsonaro no TSE não mobiliza bolsonaristas?
19 junho 2023

As acusações que podem impedir Bolsonaro de disputar eleições


14 junho 2023
A rede global de tortura sádica de macacos revelada pela BBC
20 junho 2023

As incríveis imagens vencedoras de concurso de fotos de insetos


19 junho 2023
Mais lidas

1 Presidente da empresa ignorou alertas de segurança sobre submarino do Titanic e


chamou de 'acusações infundadas'

2 Submarino do Titanic: o que acontece agora após confirmação de mortes

3 Submarino do Titanic: Marinha dos EUA detectou som de implosão logo após perda de
contato

4 Quem eram os 5 ocupantes do submarino em expedição ao Titanic

5 'Implosão catastrófica' matou todos a bordo de submarino em expedição ao Titanic

6 James Cameron, diretor de 'Titanic': 'Logo percebi o que tinha acontecido'

7 Tragédia com submarino para ver o Titanic era 'claramente evitável', diz especialista

8 Por que as águas ao redor do Titanic ainda são traiçoeiras

9 Elon Musk e Mark Zuckerberg aceitam se enfrentar em luta livre

10 Submarino perdido: relembre outros 2 casos de embarcações desaparecidas no oceano

Por que você pode confiar na BBC

Termos de Uso Cookies

Sobre a BBC Contate a BBC

Política de privacidade Do not share or sell my info

© 2023 BBC. A BBC não se responsabiliza pelo conteúdo de sites externos. Leia sobre nossa política em
relação a links externos.

Você também pode gostar