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21 janeiro 2023
Atualizado 23 janeiro 2023
07:59
Há anos que não se tem notícias de Ulisses. Ele poderia ter morrido na Guerra de Troia. O filho
dele, Telêmaco, visita Menelau e a esposa, Helena, em busca de informações sobre o pai. Lá, ele
participa de um banquete no qual Menelau relembra as façanhas do rei de Ítaca.
Nesse momento, os convidados caem em uma profunda tristeza ao se lembrarem dele. Mas
Helena ordena que os criados sirvam nepenthes, a bebida do esquecimento.
É assim que Homero narra o episódio no canto IV de Odisseia. Mas é tão fácil esquecer uma
memória traumática? Existe alguma evidência científica que prove isso?
Matérias recomendadas
Nossa memória guarda muitas das coisas que acontecem com a gente durante o dia, mas grande
parte acaba sendo esquecida.
No entanto, temos certa facilidade em guardar as recordações ruins, apesar de não ser um
processo gratuito: nosso sistema nervoso precisa modificar certos circuitos neurais, com a
consequente síntese de proteínas e gasto de energia celular.
É curioso: todo esse esforço para guardar uma memória que certamente nos deixará sequelas
psicológicas e, no pior dos casos, nos causará transtorno de estresse pós-traumático. Por quê?
Parte da explicação se baseia no fato de que estas experiências negativas estão fortemente
associadas a emoções. E nosso cérebro classifica e armazena memórias com base em sua
utilidade, considerando que aquelas vinculadas a emoções são úteis para nossa sobrevivência.
Se ficamos com muito medo ao atravessar uma área perigosa da cidade, o cérebro armazena isso
para que não o façamos novamente.
GETTY IMAGES
A neurociência parece ter encontrado algumas peças do quebra-cabeça para desvendar como é o
processo de salvar ou deletar uma memória
A situação se complica quando a experiência é realmente traumática. Neste caso, nosso órgão
pensante tende a esconder essas experiências, mas as armazena sem processar.
Como um mecanismo rápido de defesa, tudo bem. O problema surge quando, por qualquer
motivo, as lembranças ruins reaparecem. Aí o dano pode ser muito grande por se tratar de
experiências que foram arquivadas "cruas", sem serem devidamente tratadas.
Por exemplo, a luz, algo tão comum e que afeta a todos, inclusive as moscas (Droshopila
melanogaster), que são capazes de esquecer acontecimentos traumáticos quando mantidas no
escuro. E tudo graças a uma proteína que atua como moduladora da memória e que — esta parte
nos interessa — está evolutivamente bastante conservada.
Os sons são outra peça importante, especialmente quando dormimos. O sono é essencial para o
processamento da memória.
Durante o dia nosso cérebro instala aplicativos (memórias), e à noite os atualiza. Desta forma, a
memória recém-adquirida seria transformada em memória de longo prazo durante o descanso
noturno.
Seguindo este raciocínio, também poderíamos fazer o contrário: usar estímulos, neste caso
auditivos, para desinstalar as experiências negativas, conforme asseguram pesquisadores da
Universidade de York, na Inglaterra, em um estudo recente.
Apesar de estudos deste tipo ainda estarem em fase experimental, poderiam ser muito úteis para
desenvolver futuras terapias que permitam enfraquecer memórias traumáticas baseadas em
estímulos auditivos durante o sono.
Drogas promissoras
Alguns de vocês podem estar se perguntando se no futuro serão vendidas pílulas de luz ou
pastilhas de som que nos ajudem a esquecer as lembranças ruins. Não temos a resposta, mas
temos evidências científicas de que alguns medicamentos já existentes poderiam contribuir para
apagar a memória traumática.
O segredo poderia estar em uma proteína nos neurônios que determina se as memórias devem
ser alteradas ou não. Se essa proteína for quebrada, as memórias se tornam modificáveis; e, se ela
estiver presente, são mantidas.
Atualmente, a hidrocortisona só tem sido eficaz quando administrada nas horas imediatamente
após o trauma ou antes de dormir, quando a memória se consolida. No entanto, a ciência continua
avançando na esperança de acelerar o processo natural de esquecimento e limitar o sofrimento
psíquico de longo prazo.
É verdade que este tipo de estudo tem algumas limitações, já que estímulos traumáticos
provocados de forma experimental podem não refletir a gravidade de recordações de uma
experiência ruim na vida real.
Ainda assim, ele abre portas para o estudo de novos tratamentos para vítimas de estresse pós-
traumático. E talvez até a possibilidade de apagar as lembranças ruins que as impedem de levar
uma vida normal.
Não sabemos o que acontecerá no futuro, mas se você está se perguntando, recomendamos
assistir ao filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004). Talvez você encontre
alguma pista do que está por vir.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e
republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em espanhol).
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