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Ano XI • Fevereiro de 2020 • Distribuição Gratuita
1

Teologia e hermetismo tratados


com irreverência e ironia
Um padre pouco convencional, um alquimista maluco, silfos e salamandras, episódios
tragicômicos, são os ingredientes deste curioso romance de Anatole France: A
Rotisseria da Rainha Pedauque
(Texto de Bira Câmara)

ão deixa de ser surpreendente que rências literárias e bi-

N Anatole France, o cético e ferrenho


inimigo da superstição tenha escri-
to um romance que tem como per-
bliófilas, escrito com
delicadeza e leveza,
descreve a “iniciação”
sonagens centrais um sábio e sim- do jovem Jacques
pático abade, e um alquimista que se gaba do Tournebroche por um
convívio com elfos e salamandras. Mas, na “mestre” alquimista,
verdade, tudo é pretexto para abordar com caçador de salaman-
humor e ironia – suas marcas registradas – dras e fabricante de
temas como a teologia cristã, o gnosticismo, o ouro. A Rotisseria da
hermetismo, a alquimia, a natureza huma- A obra é um bri- Rainha Pedauque
na. O ambiente é o do século XVIII, um mun- lhante pastiche, ao Anatole France
do hoje distante, desconhecido, quando era gosto dos romances do Brochura, ilustrada,
difícil separar as crenças sérias da supersti- século XVIII, picaresco 231 páginas, formato
ção, e surgiam os movimentos maçônicos, e repleto de episódios 13,5 X 20 cm.
rosacruzes, martinistas, e o ocultismo gera- tragicômicos ou bur-
va sua procissão de aberrações intelectuais, lescos. Contudo, respeitando as leis do gênero,
pseudo-espirituais e sectárias. vai mais adiante e nos coloca questões sobre o
Romance cheio de lições de vida e de refe- sentido da vida – as discussões filosóficas im-
põem seu valor de inquietude e de
apologia do desejo.
Jacques Castenet, da Academia
Francesa, põe em dúvida se esta obra
é verdadeiramente um romance,
descrevendo-a como “mais uma sé-
rie de cenas de cores intensas e de en-
genhosas digressões à volta de alguns
temas”. ( 1 ) Mesmo minimizando a
importância do texto no conjunto da
obra de France, reconhece no abade
Jerôme Coignard uma personagem
“inolvidável”: doutor em Teologia, li-
cenciado em Artes, sábio, eloquente,
um pouco devasso, boêmio, apaixo-
nado pelo baralho, e um pouco bêba-
do. Espécie de alter-ego de France,
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Coignard encanta pela erudição, Memórias de um Médico, de Dumas
humor, ironia e frescor de espírito pai. Ele vê em d’Astarac, Tourne-
e de alma. A este brilhante sofista, broche e Mosaide algo perceptível
... os personagens France contrapõe o amável caba- em comum com Balsamo, Gilbert
de France, entre lista d’Astarac, igualmente taga- e Althotas. Mas evidentemente não
atribuições e rela e orgulhoso de seu misticismo há termo de comparação entre os
grosseiro, sempre alardeando suas dois escritores, pois os personagens
combates,
relações com salamandras, silfos, de France, entre atribuições e
brincam duendes e gnomos. As discussões combates, brincam amorosamen-
amorosamente... travadas entre ambos, de certa for- te... com ideias. O enredo e a ação
com ideias. ma, resgatam o embate travado são secundários; essa “brinca-
nos primeiros séculos de nossa era deira”, essa série de divertimentos
entre o cristianismo nascente e o mentais caracteriza quase todas as
paganismo moribundo com seus obras de France. Assim, por exem-
devaneios gnósticos. Mas o ponto de plo, sobre o abade Coignard, o
tensão na trama aparece na figura importante não é sua carreira atri-
de Mosaide, um judeu cabalista en- bulada, por mais agitada que seja
carregado por d’Astarac de deci- em fugas, roubos intelectuais e
frar antigos textos alquímicos. violentos, brigas, bebedeiras, mas
No prefácio da tradução inglesa suas meditações religiosas, de onde
Anatole France, de 1921, James Branch Cabell faz emerge um coração alegre, terno e
por Paul Steinlein um paralelo entre o enredo e as bondoso.
Champagne personagens deste romance, com Anatole France é um um dos
maiores escritores da literatura
francesa. Poeta, crítico e historia-
dor de arte, foi como romancista
que ele deu a medida completa de
seu talento. Publicou apenas quin-
ze romances e entre eles La Rotis-
serie de la Reine Pédauque, pu-
blicado em 1893, onde ele se
diverte contando uma história
incrível, com uma sucessão de ce-
nas engraçadas e personagens colo-
ridos e malucos. Mas essa história
também é um pretexto para passar
as próprias ideias do autor nos
diálogos, e France é irônico e zomba
de tudo: em primeiro lugar das
instituições e dos costumes, mas
também de clérigos gananciosos e
glutões, dos alquimistas, dos estu-
diosos das ciências ocultas, de
eruditos tagarelas e filósofos caba-
listas. Tudo isso narrado num estilo
elegante, numa prosa que se des-
taca pela precisão, espontaneidade
e invenção, com um humor que é a
própria personificação do “belo
espírito francês” em sua forma mais
sutil.
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Título e gênese da obra
O título da obra, que para o
leitor desavisado poderia passar
por um livro de culinária, faz
referência ao nome da loja de
assados dos pais de Tourne-
broche, personagem que narra
a história. A tradução literal do
título para o português seria A
Churrascaria da Rainha Pé de
Pato, o que, convenhamos, não
cairia bem...
A rainha Pédauque, que ti-
nha o pé com membranas como
os patos, é uma alta figura da
Borgonha, onde é considerada
como protetora dos viticultores e cido, de autoria de René-Louis France é irônico
sua efígie pode ser vista em Dijon, Doyon (1885-1966), Vie, aventu- e zomba de
no portal da Abadia de Saint
res, mort tragique de l’abbé Mont- tudo: em pri-
Bénigne, portal bem conhecido por
faucon de Villars, sa légende, sa meiro lugar das
France, pois a visitou em diferentes
montée aux théâtres, sa descente instituições e dos
ocasiões. Segundo ocultistas, por
aux enfers et sa réincarnation en
trás da figura da rainha Pédauque
Jérôme Coignard. Dedicado ao
costumes, mas
se escondia, na verdade, a lendária também de
padre Montfaucon, e publicado em
rainha de Sabá, a esposa do rei clérigos
Agen em 1942, este panfleto faz
Salomão! Mas certo mesmo é que
uma comparação eloquente dos gananciosos e
essa curiosa personagem era a
respectivos textos de France e de glutões, dos
rainha Bertha, do pé grande, mãe
Villars. alquimistas, dos
de Carlos Magno.
Em outra de suas obras ( 2 ), estudiosos das
A Rôtisserie de la reine Pédauque
Doyon menciona um fato que pode ciências ocultas,
foi, também, durante bastante
surpreender a respeito de Anatole
tempo, um célebre restaurante em de eruditos
France: ocasionalmente ele assistiu
Paris, situado na Rua da Pépinière, tagarelas e
perto da estação Saint-Lazare. Em palestras do ocultista Papus, e
retirou dessa frequência a reve- filósofos caba-
cima da chaminé encontrava-se
dependurado o retrato de Anatole lação do conde de Gabalis, curiosa listas.
France feito por Auguste Leroux. obra do padre Montfaucon de
Villars, posteriormente trans-
O romance foi diretamente
formado no tragicômico Jérôme
inspirado pelo livro de Nicolas de
Coignard.
Montfaucon de Villars, O Conde de
Gabalis ou As Ciências Secretas Mas, segundo Canseliet, a ideia NOTAS:
(1670), onde o autor revela agra- deste romance foi inspirada a
Anatole pelo seu amigo o célebre (1) Jacques Chastenet,
davelmente os mistérios da Cabala Vida e Obra de
e da Sociedade Rosacruz. Já o Fulcanelli. ( 3 )
Anatole France, in O
personagem Tournebroche pode Parece que Fulcanelli e Eugène Crime de Sylvestre
ser identificado com Eugène Can- Canseliet se encontraram com o Bonnard, pg. 42
seliet, um alquimista moderno e escritor várias vezes, principal- (2) La Connaissance,
que conheceu o romancista. mente em 1920, na principesca 1946, ensaio sobre
O vínculo entre Villars e Fran- casa de France em Villa Saïd, nu- Péladan
ce foi dissecado num pequeno livro ma delas com a presença de Julien (3) Revue La Tourbe
acadêmico, muito bem argumen- Champagne (pintor e ilustrador des philosophes, N °
tado e, infelizmente, pouco conhe- das obras de Fulcanelli). 14,1981)
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Nota biográfica
France foi um O nome verdadeiro de France Além de escritor, France foi um
ativo militante era Jacques Anatole François Thi- ativo militante socialista, defen-
socialista, defen- bault (1844 — 1924), e adotou o sor dos direitos humanos, inimigo
pseudônimo de Anatole France do czarismo, anticlerical e anti-
sor dos direitos porque seu pai, um livreiro em militarista, defensor dos pobres e
humanos, inimigo Paris, tinha uma loja chamada humildes. Apoiou a Émile Zola no
do czarismo, “Librarie de France”. Desde crian- caso Dreyfus; ao dia seguinte da
anticlerical e ça foi um leitor insaciável. Duran- publicação do “J’accuse”, assinou
antimilitarista, te 20 anos France ocupou diversos a petição que pedia a revisão do
defensor dos cargos, mas sempre dedicando-se processo. Devolveu sua Legião de
pobres e humildes. aos seus escritos, especialmente Honra quando foi retirada a de
durante o período em que traba- Zola. Participou na fundação da
Apoiou a Émile lhou como bibliotecário no Sena- Liga dos Direitos do Homem.
Zola no caso do, de 1876 a 1890. Também foi France filiou-se ao Partido Co-
Dreyfus membro da Academia Francesa e munista no início dos anos 1920,
laureado com o Nobel de Literatu- mas apesar da militância esquer-
ra de 1921, pelo conjunto de sua dista, algumas de suas obras não
obra. No ano seguinte a Igreja ca- agradaram nem à direita nem à
tólica pôs sua obra no “Índex” esquerda. Um de seus melhores li-
por criticar a sociedade e a Igreja. vros, Os Deuses têm sede, desagra-
dou os esquerdistas devido a aver-
são de France ao furor e fanatis-
mo jacobino. Em 1922 o escritor
deixou de colaborar nos jornais de
extrema esquerda, depois de ser
considerado “suspeito”, devido ao
seu gosto pelo classicismo, pela
fantasia, o sonho e a evasão.
Seus livros, sempre de tom céti-
co e irônico, obtiveram grande su-
cesso. Seu primeiro grande êxito
foi O Crime de Silvestre Bonnard,
premiado pela Academia france-
sa. Entre suas obras destacam-se:
Thais, O Lírio Vermelho, O poço de
Santa Clara, A rebelião dos anjos,
Jornalivros Os Deuses têm sede. Sua obra lite-
rária é vasta, embora seja conhe-
Boletim informativo de cido principalmente como roman-
literatura e bibliofilia cista e contista.
Editor: Bira Câmara Esteve no Brasil (Recife e Rio de
Janeiro) em 1909, quando realizou
Contacto: uma tournée pela América do Sul,
jornalivros@gmail.com fazendo conferências sobre sua obra
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e sobre literatura francesa..
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