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A ciência e a fragilidade

O sentimento da fragilidade do mundo é reforçado pela ciência contemporânea. Na ciência


clássica, que nasceu com Descartes e Galileu e se manteve até Einstein, o real parecia ser
estruturado por um determinismo estrito. Não podia ser diferente daquilo que era e a
necessidade da sua existência conferia-lhe uma certa solidez. Contudo, a ciência
contemporânea pôs de parte o modelo do determinismo absoluto. As noções de acaso,
acontecimento, incerteza, ruído, caos, desordem, catástrofe, infiltraram-se na representação
do mundo. Daqui em diante, o indeterminismo e a contingência estão presentes em todo o
lado. O acidental, considerado outrora uma heresia ou rejeitado por não ser digno de
interesse, é reabilitado. Assim sendo, a impressão de robustez dada pelo real dissipa-se.

Em física quântica, o investigador lida cada vez menos com elementos estáveis,
localizáveis, comparáveis com tijolos destinados a serem utilizados numa construção. Para
dizer a verdade, o objecto do seu estudo já não são as coisas. Ao nível subatómico, as coisas
volatilizam-se, os objectos deixam de ter coordenadas espaciais precisas e dão a sensação
de não existirem: restam apenas campos de energia, fenómenos instáveis, acontecimentos.
Tudo decorre como se, à medida que progredia o conhecimento subatómico, a imagem da
matéria se «desmaterializasse».

Em biologia, reina igualmente a contingência. A genética ensina-nos que a cadeia da


reprodução é constantemente parasitada por mutações, de tal forma que a existência dos
seres vivos, a estabilidade do seu genótipo e as suas hipóteses de sobrevivência são
constantemente postas em causa. A cosmologia é também ela afligida pela contingência: as
galáxias têm vidas atormentadas e o Universo, longe de ser imutável, é o resultado de um
acontecimento, o big bang, que talvez pudesse não ter sucedido.
A ciência actual é uma obra em constantes convulsões, trabalhada por novos conceitos que
contrastam de um modo surpreendente com a ordem e a simplicidade, características da
ciência clássica. Estes singulares utensílios conceptuais são testemunhos de que a incerteza
não corresponde, como se pensava antigamente, a um estádio primitivo do conhecimento, a
um défice do saber, sendo pois constitutiva da própria essência do real, um real com
estruturas cada vez mais evanescentes e instáveis.

A noção de complexidade contribui para este quadro da fragilidade generalizada. A ciência


clássica privilegiava a simplicidade, como é aliás realçado na segunda regra do método
cartesiano, «dividir a dificuldade no número de partes possíveis». Tinha tendência para
reprimir a complexidade; no entanto, adquiriu doravante o estatuto de conceito operatório, o
qual tem uma importância crescente na sociologia, na física quântica, na economia, nas
ciências da Terra, na climatologia, na biologia… Não existe praticamente nenhum domínio
onde o investigador não seja confrontado com estudos caracterizados ao mesmo tempo por
numerosos elementos e pela multiplicidade das interdependências que os ligam. Ora, nestes
sistemas, quanto mais crescer a complexidade mais cresce a fragilidade (basta pensar na
fragilidade dos ecossistemas). Nos veículos da ideia de complexidade, a ideia de
vulnerabilidade é portanto introduzida no seio da visão científica do mundo.

O teorema sobre a sensibilidade às condições iniciais vai no mesmo sentido. Em 1961, um


investigador em meteorologia, Edward Lorenz, fez uma descoberta única. Estava a simular
sistemas meteorológicos em computador quando cometeu um pequeno erro numérico na
atribuição do valor de um parâmetro. Ao fim de um certo tempo, este erro, por não ter sido
neutralizado como se poderia pensar, levou à desestabilização total do sistema (ver J.
Gleick, Caos – A construção de uma nova ciência). Uma ligeira variação nas condições
iniciais poderia então provocar uma gigantesca convulsão. Lorenz tornou pública esta
descoberta fortuita e para isso recorreu a uma metáfora que se tornou célebre: o bater de
asas de uma borboleta, produzido num determinado lugar do globo, poderia desencadear um
tornado a algumas dezenas de milhar de quilómetros de distância.
Sob o nome poético de «efeito borboleta», o fenómeno caótico assim desvendado nada
tinha de tranquilizante. O determinismo clássico assentava no princípio de uma
proporcionalidade entre o efeito e a causa, o que atribuía um carácter tranquilizador à
imagem do mundo. Mas a revelação evidenciada pela teoria do caos era fortemente
perturbadora: contra qualquer expectativa, certas causas insignificantes eram susceptíveis
de provocar consequências desmedidas. Longe de ser amortecida pelo grande turbilhão do
real, a mais pequena variação podia aumentar de forma descontrolada. Então, perante o real,
que tranquilidade poderemos ter? Como permanecer sereno tendo em conta a ameaça desta
desproporção irracional? Se determinarmos todas as consequências do efeito borboleta,
teremos de aceitar a instabilidade dos sistemas que nos rodeiam. O que é que à nossa volta
poderá ser considerado sólido, dado que a acção de um génio maligno pode a qualquer
momento desencadear as forças do caos?

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