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A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE

Episódio #101

“Estresse de Trabalho & Carregador Comunitário”

CRIADO E ESCRITO POR:


RAMON SILVA

© copyright by Ramon Silva. Todos os Direitos Reservados.


A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 1.

ABRIR FRIO

TELA PRETA
Ouvimos a VOZ de uma MULHER, que nos diz:

SONÓLIA (V.O.)
Ôh vida! Na moral, por que a gente tem
que sofrer tanto, hein?! É com você
mesmo que eu tô falando. Você que é
pobre neste país. Você que luta pra
fechar o mês ao menos com uma “mistura
na geladeira”. A gente se mata tanto,
mas nunca é o suficiente pra viver uma
vida digna. Triste! Triste realidade!
(dramática) Óh céus! Por que a vida tem
que ser assim? (p) E detalhe: nem entrei
numa questão que nos afeta mais ainda...
O trabalho!

1 INT. BRASTORÉ – RECEPÇÃO – DIA 1


IMAGEM VAI CLAREANDO AOS POUCOS, ATÉ QUE... Vemos
SONÓLIA (22) sentada a atender o telefone.

SONÓLIA
(ao tel.)
BrasToré entregas, bom dia. Sou Sonólia,
com quem eu falo? (p) Como posso ajudar
senhor Antônio? (p) O senhor acessou o
site para verificar o código de rastreio
do seu pacote (p) O senhor não sabe o
que é pacote? Quem fez essa compra
online então? (p, estressada) Ué, senhor
Antônio, se o senhor não sabe o que é
pacote e, muito menos, o que é código de
rastreio, como pode o senhor mesmo ter
feito essa compra? (p) Sim, eu sou paga
para questionar essas questões. (p,
grita) Não! Quase nunca clientes
inconvenientes como o senhor tem razão
de alguma coisa! (p) Pode! Pode
denunciar para quem o senhor quiser.
Quer o número o papa? Acho que ele
interverteria no seu caso. (p,
debochada) Então nos vemos nos
tribunais, ok. Tenha um bom dia!

E BATE O TELEFONE COM FORÇA. Sonólia bufa de raiva.

GEVÉ (20) chega da rua, voltando de uma entrega.

GEVÉ
Que cara é essa, Sonólia?

(CONTINUED)
A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 2.
1 CONTINUED: 1

SONÓLIA
Se você soubesse o quanto eu adoro
trabalhar com atendimento ao cliente. Só
dá inconveniente nessa linha.
GEVÉ
Difícil. Mas e aí, tem alguma entrega?

SONÓLIA
Tem sim.

GEVÉ
Ótimo! Assim eu fecho o dia com chave de
ouro. Saio agora (olha no relógio) e só
volto as cinco da tarde.
SONÓLIA
Essa entrega vai ser difícil. Eu
preciso, necessito que você traga a
minha sanidade mental de volta. Os
inconvenientes estão me destruindo
psicologicamente.

GEVÉ
Ah, pelo amor! E eu crente que era algo
importante.

SONÓLIA
E minha sanidade mental não é importante
pra você? Uau! Que bela amizade nós
temos então, viu!
DANILO (23) sai da sala do pai e se aproxima.

DANILO
Sonólia, meu pai quer falar com você.
Nós ouvimos a forma como você atendeu ao
telefone. (p, se declara) Olha, eu gosto
de você, muito mesmo. Você não tem noção
do quanto. Por isso mesmo vou te dar um
conselho: pega leve. Ele quer te ver na
sala dele

Danilo sai.

GEVÉ
É impressão minha ou ele disse que te
ama?

SONÓLIA
(revira os olhos)
Ninguém merece! Deixa eu ver o que esse
véio quer agora também.

GEVÉ
Boa sorte!

(CONTINUED)
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1 CONTINUED: (2) 1

SONÓLIA
Quem precisa de sorte é ele! Eu tô puta,
furiosa com esses clientes dele!

E vai para a sala dele.

FIM DO ABRIR FRIO


A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 4.

ATO 1

2 INT. BRASTORÉ – SALA DE DALVINO – CONTINUAÇÃO 2

DALVINO (55), sério. Sonólia entra e se senta frente a ele.


Ambos ficam se encarando, sem que um se dirija ao outro.

DALVINO
Então quer dizer que além de tratar os
clientes mal, ainda entra na minha sala
sem bater.

SONÓLIA
(tom alto)
Você já não tava esperando que eu viesse
aqui? A gente bate na porta quando a
pessoa não espera que a outra pessoa
entre na sala dela! Tá esboçando alguma
“surpresa” por quê?

DALVINO
Você anda bem alterada ultimamente, não?
Será isso falta de alguma coisa?

SONÓLIA
(sorrir, não acredita)
Eu não acredito que você tá insinuando
isso. Só vou te avisar de uma coisa:
pense bem no que você vai falar, porque
falta isso aqui, coisa mínima pra eu
descer o nível com você. Eu acho que
você não vai querer ver isso.

DALVINO
Enfim, te chamei aqui porque eu não
gostei do seu tom ao telefone. Você
precisa ser mais amigável com os
clientes. Saiba que este tipo de conduta
cabe até demissão.

SONÓLIA
Ah, é? Você quer mesmo falar de
demissão, é? Eu trabalho nessa empresa
mequetrefe há três anos. Até hoje nunca
tirei férias, você faz o depósito de
FGTS quando quer depositar. (debochada)
Saiba que este tipo de conduta com o
trabalhador tem 100 % de chance de
ganhar um processo trabalhista em cima
dele.

DALVINO
Pera lá. Também não é pra tanto.
(amigável) Só tô pedindo pra você tentar
mudar com os clientes.
Sonólia o encara com um sorrisinho de deboche.

(CONTINUED)
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2 CONTINUED: 2

SONÓLIA (V.O.)
Notem, ele disse: “tentar mudar com os
clientes”. Parece que o jogo virou.

3 EXT. PONTO DE ÔNIBUS – NOITE 3

Sonólia e Gevé ali a espera do ônibus. Ponto lotado de


trabalhadores.
GEVÉ
Sonólia, eu não acredito que você falou
assim mesmo com o Dalvino. O cara é
casca grossa. Ele já foi tenente coronel
do exército?

SONÓLIA
E daí? Não é porque ele foi militar.
Detalhe: foi, ou seja, no passado. Que
eu vou abaixar a cabeça, não. Se ele
quer uma funcionária exemplar, que pague
pelos meus direitos!

GEVÉ
(sorrir)
Você é doida!

SONÓLIA
Ué, querido, ele disse que a minha
conduta caberia demissão. Eu apenas
retribuir a ameaça. Tudo na mesma moeda.
Cada um joga com as fichas que tem. E
segue o baile.

Um ônibus lotado se aproxima e ambos entram.

GEVÉ
Aff! Como é difícil ser pobre!

FIM DO ATO 1
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ATO 2

4 INT. CASA DE ERALDA – SALA – HORAS DEPOIS 4

Sonólia vem do quarto, apressada, procurando por algo.

SONÓLIA
Cadê o carregador, hein? (grita) Mãe, a
senhora viu o carregador?

ERALDA (45) vem da cozinha.


ERALDA
Que que foi, menina? Pra que essa
gritaria?

SONÓLIA
Cadê o carregador?

ERALDA
Tava até pra falar com você sobre isso.
Esse seu celular viciado tá fazendo a
conta de luz vir cada vez mais cara. Só
esse mês mesmo veio 0,25 centavos mais
caros. Você trata de comprar outro
celular, hein!

SONÓLIA
Só me dá o carregador, mãe! Pelo amor de
Deus!

ERALDA
(mente)
Eu nem sei onde tá o carregador.

Sonólia volta para o quarto enquanto arremata:

SONÓLIA
Aff! Meu celular vai morrer! Inferno!

Eralda olha, para certificar-se que Sonólia não está a vê-la e


olha debaixo do sofá. O celular de Eralda está carreando. Ela
sorrir.

5 INT. SHOPPING – NOITE 5

RENAILDA (42), metida, caminha pelo shopping como uma lady. O


CELULAR TOCA. Ela atende. É Vitor, seu marido. Apenas o
ouvimos:

RENAILDA
(ao tel.)
Oi, vida.
VITOR (V.O.)
Onde você tá, mulher?

(CONTINUED)
A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 7.
5 CONTINUED: 5

RENAILDA
Estou dando uma voltinha no shopping,
querido. Estava precisando espairecer.

VITOR (V.O.)
Pelo amor de Deus, Rê! Não gasta com
mais nada. Esse mês já estamos no cheque
especial.

RENAILDA
Ai, amor, se preocupa não! E para com
esse papo de pobre. (debochada) Cheque
Especial...

VITOR (V.O.)
Papo de pobre que é a nossa realidade!

RENAILDA
Tá bom, querido. Depois a gente
conversa. Já tô indo pra casa. Beijo.
Tchau!

Ela desliga o celular.

RENAILDA (CONT'D)
Eu, hein! Papo mais deprê de pobre!

Renailda para frente a vitrine de uma loja e vê um cordão de


ouro.

RENAILDA (CONT'D)
Esse cordão vai ser meu de qualquer
jeito! (exibida) Uma dama, uma lady, da
alta sociedade como eu, merece o melhor.

6 INT. CASA DE RENAILDA E VITOR – SALA – NOITE 6

VITOR (50), pai de Gevé está assistindo vídeos e carregando o


celular ao mesmo.

Gevé vem do quarto procurando pelo carregador.

GEVÉ
Pai, cadê o carregador?

VITOR
Você se refere a este carregador?

GEVÉ
Me dá, pai. Eu preciso carregar o meu
celular.

VITOR
E eu preciso carregar o meu!

GEVÉ
Pai, eu tô no meio de um negócio.

(CONTINUED)
A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 8.
6 CONTINUED: 6

VITOR
Eu também!

GEVÉ
Que saco nessa casa só ter um
carregador!

Gevé, furioso, bate os pés e volta para o quarto.

Vitor continua a assistir seus vídeos e sorrir. Ele dá de


ombros para a situação com o filho.

FIM DO ATO 2
A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 9.

ATO 3

7 INT. CASA DE ERALDA – QUARTO SONÓLIA / CASA– NOITE 7

LETREIRO: “VIDA DE POBRE, A DIFÍCIL ARTE...”

Sonólia, invocada, liga para Gevé em chamada de Vídeo no


computador. Gevé também está invocado.

SONÓLIA
Nossa, que cara é essa?

INTERCALAR COM:

8 INT. CASA DE RENAILDA E VITOR – QUARTO GEVÉ – AO MESMO TEMPO


8

Gevé em chamada de vídeo com Sonólia.

GEVÉ
Meu pai. Por causa dele usando o
carregador, eu deixei de ganhar 2 mil
numa aposta de futebol.

SONÓLIA
Impressionante, né. Passei pela mesma
situação agora há pouco. Há vários
objetos que na casa do pobre é de todos.
E o carregador é um deles. Talvez até o
mais disputado entre a pobrada da casa.

GEVÉ
Sabe de nada, Sonólia. Carregador
individual na casa do pobre é artigo de
luxo. Motivo até da dona Maria do 61,
não gostar da dona Lourdes do 62. Porque
na casa de dona Lourdes cada um tem seu
carregador e ela sai se exibindo na rua
com isso.

SONÓLIA
É nesse momento, que a gente percebe a
alma do pobre em ser pobre. No camelô
você compra um carregador vindo da
China, claro, por dez 'real', mas o
pobre não, o pobre tem que dividir um
item tão disputado... Ah, e sabe qual é
a desculpa? (voz fina) É, tem que
comprar 'outo' carregador. Ou então
dizem: porque aqui em casa tem empatia e
senso de coletividade, temos espírito de
equipe.

GEVÉ
Senso de coletividade é cada um ter o
seu e ninguém brigar e se estapear por
algo tão barato.

(CONTINUED)
A DIFÍCIL ARTE DE SER POBRE Episódio #101 10.
8 CONTINUED: 8

SONÓLIA
Então, gente, fica aqui o meu apelo
final... Famílias, comprem mais
carregadores. Hoje você divide o seu e
tá tudo bem com isso, mas amanhã você
pode perder a paciência e dar na cara de
alguém por um item que é dez 'real' no
camelô. Coloque isso na sua balança de
prioridades e veja qual dos lados pesa
mais. Pense nisso. É uma questão de
sobrevivência.
Vai enchendo a tela, o LETREIRO: “TOMA-TE VERGONHA, POBRE!
COMPRE UM CARREGADOR!”
FADE OUT.

FIM DO EPISÓDIO

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