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DISSIMULAÇÃO DO

RACISMO NO BRASIL
UC Psicologia, Gênero, Raça e Sexualidade

Resumo
O racismo no Brasil é um mecanismo de preconceito, desigualdade, opressão, elemento
enraizado e invisível, com fatores imperceptíveis para a grande parte da sociedade Brasileira,
problematizando assim a eliminação do racismo estrutural no Brasil.
Professores Orientadores: Isilda Guimarães

Fábio Silvestre Cardoso

Aluno RA
Ana Paula de Nóbrega 12522128385
Deborah Freitas oliveira Flauzino 12522230304
Fernanda Meneses de Campos Araújo 12522193579
Mariana Andrade Vieira 12522117879
Michelle Clemente de Araújo 12522130024
Monick Camargo 12522213841
Neusa D. Viudes Faccin 12522127521
Pedro Lesjak Mammini 12522142327
Pedro Paulo Moreira de Andrade 12522194255
Sumário
1.Introdução .................................................................................................................................. 3
2.Conceitos .................................................................................................................................... 5
2.1 Marcadores Sociais e Interseccionalidade .......................................................................... 5
2.2.1 O que é raça e racismo? ................................................................................................... 7
2.2.2 O que é Preconceito? ....................................................................................................... 9
2.2.3 O que é Desigualdade Social? .......................................................................................... 9
2.2.4 O que é Discriminação Racial? ....................................................................................... 10
2.2.5 O que é Miscigenação? .................................................................................................. 10
2.2.6 O que é Viés Inconsciente? ............................................................................................ 10
3. Racismo Estrutural no Brasil.................................................................................................... 10
3.1 Marcos do Racismo no Brasil na linha do tempo .............................................................. 13
3.2 Mito da democracia racial e miscigenação como fator histórico no Brasil ...................... 13
3.3 O racismo dissimulado no Brasil. ...................................................................................... 20
3.4 Dados Estatísticos.................................................................................................................. 23
3.4.1 Atlas da Violência 2020 .................................................................................................. 23
3.4.2 Retrato das Desigualdades de Gênero e raça ................................................................ 24
3.4.2.1 Educação ................................................................................................................. 24
3.4.2.2 Previdência e Assistência Social .............................................................................. 24
3.4.2.3 Mercado de Trabalho .............................................................................................. 24
3.4.2.4 Trabalho doméstico remunerado ........................................................................... 25
3.4.2.5 Habitação e Saneamento ........................................................................................ 25
3.4.2.6 Pobreza, distribuição e desigualdade de renda ...................................................... 25
3.4.3 IBGE 2018 ....................................................................................................................... 25
3.4.3.1 Mercado de Trabalho – Cargos Gerenciais ............................................................. 25
3.4.3.2 Distribuição de Renda e condições de Moradia...................................................... 25
3.4.3.3 Violência .................................................................................................................. 26
3.4.3.4 Educação ................................................................................................................. 26
3.43.5 Representação Política ............................................................................................. 26
3.5 Breve análise dos dados .................................................................................................... 26
4. Considerações ......................................................................................................................... 28
5. Referências .............................................................................................................................. 28
1.Introdução
O Brasil é racista? Você é racista?
De acordo com pesquisa feita pelo ATLAS POLÍTICO (2020) 90% dos brasileiros admitem que há
racismo no Brasil, porém apenas 3,5% se declaram racistas. Num mundo cada vez mais complexo
o racismo vai tomando formas cada vez mais sutis.
O que podemos fazer para mudar isso?
Desde 1988, o racismo é crime perante a constituição Brasileira que no texto de seu artigo 50 diz:
“Art 50 Todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade[...]”.

Na declaração dos direitos humanos, no 2º artigo, temos o seguinte texto: "Todo ser humano
tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem
distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra
natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição."

Estes textos são fundamentais e norteiam direitos e deveres dos cidadãos brasileiros e foi um
marco de grande importância para o Brasil, no entanto, pessoas negras ainda são
constantemente vítimas de ações racistas, pela simples razão da cor da pele e de traços
fenotípicos, assim como pelo racismo estrutural e o racismo institucional, constituídos por
mecanismos estatais que criam uma estrutura social e econômica desigual para a população
negra no Brasil.

Existem uma série de fatores históricos da formação do Brasil, que se enraizaram e estruturaram
o racismo em todos os níveis culturais, políticos e econômicos da sociedade brasileira. Estes
elementos e suas consequências na vivência contemporânea foram amplamente estudados por
historiadores, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais, porém, o Estado e suas instituições
assim como a mídia e a cultura brasileira ainda carregam inúmeras formas de perseguição,
violência e preconceito contra a população negra. Métodos de opressão, exclusão e ódio que
permanecem pouco vistos, entendidos e credibilizados pela maioria das pessoas e figuras
políticas brasileiras, devido principalmente à formação histórica e política do país e suas
instituições, os complexos e sutis mecanismos de preconceito que acompanham o racismo, e a
formação midiática e cultural do Brasil que criou o imaginário da sociedade brasileira
contemporânea.
Portanto, o objetivo desta pesquisa é fazer uma breve análise sobre o racismo no Brasil não
apenas como um mecanismo de preconceito, desigualdade e opressão, mas também como
elemento enraizado e pouco entendido, com fatores ignorados ou não percebidos pela maior
parte da sociedade Brasileira, assim problematizando a eliminação do racismo estrutural no
Brasil.
2.Conceitos
Apresentamos aqui alguns conceitos e termos que utilizamos nesta pesquisa, importantes para o
entendimento do texto.

2.1 Marcadores Sociais e Interseccionalidade

Grosso modo, marcadores de Raça e Etnia definem privilégios ou desvantagens para os


diferentes grupos raciais, como por exemplo: brancos, negros, indígenas e amarelos.

Para que possamos compreender estes conceitos buscamos elementos no texto de Luis
Felipe Kojima Hirano (UFG) - Marcadores Sociais da diferença, fluxos, trânsitos e
intersecções onde o autor compartilha o resultado de sua pesquisa bibliográfica sobre o
termo marcadores sociais da diferença, paradigma da interseccionalidade e da
associação de categorias, onde buscou compreender perspectivas e terminologias na
obra de diversos autores que são referências nos estudos de gênero, sexualidade e
raça/cor, motivado pela disseminação abordagem interseccional no Brasil. O uso do
termo marcadores sociais de diferença começa a ser mais utilizado a partir dos anos
2000, isso ocorre provavelmente por efeito de criação de linhas de pesquisa e mais
grupos de estudo sobre o tema.

Marcador/marcadores para alguns autores é uma noção descritiva, que auxilia nas
análises que buscam entrecruzamento entre categorias, em outras palavras, os
Marcadores Sociais são definidos por características diversas que compõem cada
indivíduo, como: gênero, região, religião, cor de pele, etnia, entre muitas outras, diversos
autores utilizam o termo como um conceito e perspectiva de análise para responder
problemas teóricos e empíricos.

Já á Interseccionalidade de acordo com é um campo de estudo situado nas questões


relativas ao poder e à dominação, como estratégia analítica prove novos ângulos sobre
fenômenos sociais e de forma crítica informa projetos de justiça social (Collins, 2015).

Os dois conceitos são muitas vezes articulados em conjunto, pois marcadores sociais
muitas vezes justificam processos de dominação e opressão, a interseccionalidade dessa
forma se constitui como uma alternativa teórica e metodológica que interroga dinâmica
e a complexidade das interações nos níveis individual e estrutural (Dhamoon, 2011).

Desde o final da década dos anos 1970 e início dos anos 1980, várias formas de opressão
como racismo, sexismo, heterossexismo, classe social, dentre outras, começam a ser
analisadas com variadas relações, intercruzamentos, chamados de categorias ou
interseccionalidade por intelectuais negras, brancas e gays.

Alguns eventos e marcos históricos citados pelo autor inclui o 1977 – Manifesto
Combahee River Collective (1977) onde feministas negras e lésbicas na cidade de Boston,
Estados Unidos, se contrapunham a diversas formas de opressão que deveriam ser
discutidas de forma interligada, como o sexismo, o racismo, heterossexismo, exploração
capitalista imperialista e classe social.

Angela Davis em seu livro Women, Race and Class, cita que no início do século 20 eram 2
milhões de mulheres negras num universo de 8 milhões de mulheres nos Estados Unidos,
no entanto, o movimento das sufragistas nunca abriu as portas para as mulheres negras.
Neste momento os termos gênero e interseccionalidade não eram disseminados nos
meios acadêmicos e movimentos sociais, mas já argumentava sobre não hierarquizar
formas de opressão.

Lélia Gonzalez em 1980, no artigo racismo e sexismo na cultura brasileira, discutiu que a
articulação do racismo e sexismo produz efeitos violentos particularmente sobre a
mulher negra, o setor mais oprimido da sociedade Brasileira pois sofre da tríplice
discriminação (social, racial e sexual), porém entre 1930 e 1940 vários outros autores
anteriores a Lélia já estudavam a articulação entre raça e gênero no Brasil anteriormente
a disseminação do conceito de interseccionalidade.

Todos esses autores ressaltam a necessidade de articular posições sociais de raça, classe
e gênero, de maneira que fica possível identificar como aspectos de raça produzem
gêneros subalternizados, seja para homens negros ou mulheres negras (Pereira, 2020),
como já se refere Davis (2016) é possível compreender que classe informa a raça assim
como raça informa classe.
Nesse sentido, é essencial o empenho constante nas análises e reflexões a respeito das
intersecções entre raça, classe e gênero e outros marcadores sociais, afim de tornar
evidente como tais intercruzamentos impactam as experiências produzindo exclusão e
hierarquizações sociais.

2.2.1 O que é raça e racismo?

Racismo [De raça + -ismo] S.m. 1. Tendência do pensamento, ou modo de pensar em que
se dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas. 2. Qualquer
teoria que afirma ou se baseia na hipótese da validade científica do conceito de raça e da
pertinência deste para o estudo dos fenômenos humanos. [Cf. raça (1 e 2).] 3. Qualquer
teoria ou doutrina que considera que as características culturais humanas são
determinadas hereditariamente, pressupondo a existência de algum tipo de correlação
entre as características ditas ”raciais” (isto é, físicas e morfológicas) bom e aquelas
culturais (inclusive atributos mentais, morais, etc) de indivíduos, grupos sociais ou
populações. 4.P. ext. Qualquer doutrina que sustenta a superioridade biológica, cultural
e/ou moral de determinada raça, ou de determinada população, povo ou grupo social
considerado como raça. 5. Qualidade ou sentimento de indivíduo racista; esp., atitude
preconceituosa ou discriminatória em relação a indivíduo(s) considerado(s) de outra
raça.[Cf. segregacionismo].

Sobre o termo "raça", é possível discorrer, após uma análise apurada do tema,
que tal conceito deriva de uma construção social, precede o racismo, foi criado para
fundamentá-lo e contribuiu para um reforço desse ideário, ao passo que moldava o
pensamento e a estrutura de uma sociedade inteira, manipulando seus elementos de
modo a perpetuar um sistema excludente, favorecendo os interesses de uma elite
privilegiada. De fato, um dos principais produtos do conceito em questão é o racismo,
que teoriza a hierarquia das raças.
Apesar da controvérsia envolta na etimologia do termo, é de consenso que ele se
refere basicamente a classificações. Inicialmente, de espécies de plantas e animais, mas
posteriormente, estendida a seres humanos.
O conceito de “raça” foi fortemente influenciado pelo contexto histórico, que
favoreceu iniciativas de hierarquização a partir da categorização humana. Com a
expansão mercantilista se evidencia a diversidade de etnias e, nesse contexto, o termo
“raça” era fundamental para o suporte do modelo escravista, e possibilitava a
perpetuação da opressão e exploração de populações estrangeiras debaixo do
colonialismo europeu, dando origem, posteriormente, a teorias conhecidas como
“racialismo”, gerando o racismo científico, que emerge para justificar a exploração de
povos africanos e indígenas, buscando um embasamento científico para a escravidão.
Entretanto, tal embasamento não existe. Não se pode estabelecer correlação entre
caracteres físicos (como cor da pele e morfologia do crânio) e intelectuais.
Segundo Silvio Almeida, o iluminismo proporcionou instrumentos que
possibilitaram a classificação de pessoas com base em traços fenotípicos e culturais. No
entanto, ainda segundo o autor, a revolução haitiana esclarece que tal projeto liberal-
iluminista não trazia igualdade a todos nem fazia com que todos fossem reconhecidos
como seres humanos. A partir de tal argumento, fica evidente a inconsistência do termo
“raça”, visto que parâmetros atrelados ao meio são incapazes de definir fenômenos tão
abrangentes quanto a gigantesca multiplicidade humana a partir de um conceito estático.
Portanto, é possível entender que o conceito de raça existe a partir de duas
definições que se completam no seu exercício atual: a raça como característica biológica,
e a raça como característica étnico-cultural. Enquanto uma se baseia nas distinções
fenotípicas delimitadas ao longo do período Moderno, a outra a partir de diferenciações
e classificações baseadas em culturas, costumes, línguas, sotaques e outras formas de
expressão e tradição. Sendo raça, um elemento que ALMEIDA (2019) descreve como
essencialmente político, não remetendo a nenhuma diferença natural entre os grupos,
mas sendo apenas uma diferenciação arbitrária para justificar a exploração e opressão
de um grupo em prol do outro.
E, ao analisar justamente a história do conceito de raça, e como ele foi se
modificando com o tempo, passando por diferentes tentativas de concepção e
justificativa, é entendido como a ideia de raça e seus estereótipos, assim como a ideia de
“negritude” e “branquitude, e as inúmeras heranças históricas da escravidão, que foram
conceitualizadas no decorrer do colonialismo e imperialismo europeu, se tornaram
normalizadas e foram absorvidas no imaginário social e cultura até a
contemporaneidade. E são, portanto, chave para a perpetuação de dinâmicas estruturais
e institucionais que geram a desigualdade racial atual, mesmo não remetendo mais a
nenhuma evidente natureza material de divisão, revelando o caráter sistêmico da
discriminação racial atual.
Considerando a narrativa histórica, percebe-se que as mais hediondas atrocidades
apoiadas pelo racismo ocorreram debaixo das asas da lei, e por tal razão não se pode
limitar o olhar sobre o racismo a aspectos meramente comportamentais. As classificações
raciais foram essenciais na construção de uma hierarquia social que legitima uma relação
de dominação na qual o conceito de raça é um marcador determinante, por isso, é
possível estabelecer uma relação direta entre os conceitos “raça” e “racismo”. Apesar
das diversas tentativas de se embasar um histórico racista em comprovações científicas,
e em definir posições de superioridade e inferioridade a partir de traços meramente
físicos, a verdade é uma só, e pode ser refletida nas palavras da professora de
Antropologia Física, e doutoranda em biomedicina da Universidade de Granada, Lorenza
Coppola Bove: “Sejam os restos mortais de um rei poderoso dos tempos medievais, um
escravo egípcio, um migrante que morreu em nossas costas ou uma figura importante no
mundo do entretenimento, a verdade universal que os ossos gritam é que somos
humanos. Sob nossa pele, somos todos iguais.”

2.2.2 O que é Preconceito?


[De Pre-+conceito.] S.m. 1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior
ponderação ou conhecimento dos fatos; ideia preconcebida. 2.julgamento ou opinião formada
sem se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo. 3.P. ext. Superstição, crendice; prejuízo.
4. P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.:
O preconceito racial é indigno do ser humano. (Dicionário Aurélio da língua portuguesa p. 1695).

2.2.3 O que é Desigualdade Social?

[De desigual + - (i)dade.] S.f. 1. Qualidade ou estado do que é desigual. (Dicionário Aurélio da
língua portuguesa p. 1695).

O termo desigualdade social é um conceito sociológico e econômico que designa a diferença


existente entre as classes sociais. A desigualdade pode ser medida pelas faixas de renda
comparadas (há um método de comparação de médias das faixas de renda mais ricas com as
faixas de renda mais pobres).
2.2.4 O que é Discriminação Racial?

“Discriminação Racial”: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em mesmo plano (em igualdade de condição) de
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou
em qualquer outro campo da vida pública;

Podemos, aqui trazer a seguinte reflexão: AA discriminação é o preconceito colocado em prática.

2.2.5 O que é Miscigenação?

[De miscigenar, para trad. O ingl. Miscegenation.] S.f. Cruzamento de etnias; mestiçamento,
mestiçagem, caldeamento: “Também na Dinamarca tive a impressão de ser a população muito
loura e branca, enquanto na Inglaterra mais morena de pele e preta de cabelo. Devia ser isso,
necessariamente, uma consequência da posição geográfica desses dois países, estando a
Inglaterra, como a Espanha e Portugal, mais exposta à miscigenação com povos de cor, de
diferentes origens” (A. da Silva Melo, Estudos sobre o Negro, p.162). Dicionário Aurélio da língua
portuguesa p. 1402).

2.2.6 O que é Viés Inconsciente?

O viés inconsciente, também conhecido como viés implícito, é uma suposição, crença ou atitude
adquirida que existe no subconsciente. De modo geral, todo mundo adquire preconceitos ao
longo da vida e faz uso deles como atalhos mentais para processar informações mais
rapidamente. Contudo, os preconceitos implícitos se desenvolvem ao longo do tempo, à medida
que acumulamos experiências de vida. Ademais, somos expostos a diferentes estereótipos.
Quer percebamos ou não, nossos preconceitos inconscientes influenciam nossa vida profissional
e pessoal. São raciocínios e situações do nosso dia a dia em que esses preconceitos estão a
comandar nosso pensamento ou postura.

3. Racismo Estrutural no Brasil


A Secretaria de Desenvolvimento Social do governo do estado de São Paulo define o racismo
estrutural como sendo “um conjunto de práticas, hábitos, situações e falas presentes no dia a
dia da população que promove, mesmo que sem a intenção, o preconceito racial.”
Discorre-se, portanto, que o racismo estrutural é composto pela naturalização de
comportamentos preconceituosos. Isso pode dar-se até mesmo de forma inconsciente, em
pequenos detalhes do cotidiano. Entretanto, tal processo não se origina espontaneamente, mas
sim de uma estruturação histórica racista.

Abordando tal temática, o filósofo do direito Luiz Gama Silvio Almeida problematiza a
consciência do racismo como sendo exclusivamente uma atitude discriminatória direta, haja
vista que grande influência de tal preconceito é exercida de forma indireta. Silvio afirma que a
sociedade vê o racismo como uma anomalia, ou patologia social, no qual o discriminador é
considerado portador de alguma falha de caráter ou até mesmo intelectual. No entanto, a
realidade mostra que o racismo é “normal”, não no sentido de ser aceitável, mas no sentido de
constituir um padrão de raiz histórica remanescente estruturador das relações sociais, e surge
também nas atitudes racistas “invisíveis” que ocorrem corriqueiramente, não sendo tão
incomum quanto muitos pensam.

Tal racismo se estruturou firmemente no Brasil em meados do século XIX, e perdura até os dias
atuais, através de estigmas e problemas sociais.

Durante um regime de escravidão de 388 anos, a tortura, exclusão, e humilhação de negros era
justificada por teorias ditas científicas que afirmavam a superioridade branca, ao passo que
considerava os negros como intelectualmente inferiores por natureza. Criou-se então uma
comodidade na prática da escravidão, que era muito pertinente para o comércio das elites
brasileiras. Dessa forma, ideais racistas foram gradualmente se enraizando profundamente na
sociedade. Tais ideais incluem primordialmente o da inferioridade negra, em aspectos
intelectuais, sociais, entre outros.

Com o “fim” legal da prática escravista, posto em 1888 com a Lei Áurea, houve forte incômodo
por parte da elite cafeeira, e cria-se então um estigma de que o negro, antes chamado de
“trabalhador” agora era considerado “preguiçoso”. Surgem assim medidas para perpetuar a
marginalização da população negra. Tais medidas incluem leis penais que reprimiam e excluíam
os negros das atividades sociais, e contribuíram para a estruturação do racismo no sistema
brasileiro. Ou seja, mesmo com o dito fim da escravidão, carecia-se de medidas para a inserção
do anterior escravo na sociedade. Que rumo tomariam então os homens e mulheres negras após
tal abolição, visto que não possuíam terras, tampouco um trabalho digno? Permanecia,
portanto, um enorme abismo social entre brancos e negros no Brasil.

Quais são então as consequências de tal estruturação para a atual sociedade brasileira? Ocorre
a reprodução das condições de desigualdade de forma excludente e cíclica. Percebe-se através
das estatísticas e dos acontecimentos noticiados pela mídia, uma manutenção do padrão
estabelecido pelo processo ideológico de construção do racismo, refletido nas políticas de
encarceramento, no sistema tributário, bem como em outros setores da sociedade. Torna-se
mister, em conclusão, a quebra do ciclo do racismo estrutural e a desnaturalização de práticas
preconceituosas em nosso cotidiano, conforme será abordado a seguir.
3.1 Marcos do Racismo no Brasil na linha do tempo

Ano Lei
1837 lei de educação, a primeira do país: negros não podem ir à escola.
1850 lei das terras: negros não podem ser proprietários.
1871 lei do ventre livre: o ventre é livre, mas a dona do ventre não e seu filhos não podem frequentar
escolas e espaços públicos e têm de “pagar” o sustento, trabalhando.
1885 lei do sexagenário: se conseguir viver até os 60 anos, o negro escravizado torna-se “livre” – mas sem
direito a aposentadoria, recebimento dos “atrasados”, indenização…
1888 lei da abolição: duas linhas decretando o abandono e a criminalização do povo preto, após mais de
350 anos de escravização.
1890 primeiro código penal brasileiro – quem não tem trabalho, quem joga capoeira, quem pratica o
curandeirismo, quem vive em situação de rua está fora-da-lei.
1951 Lei Afonso Arinos, nº 1.390, proíbe a discriminação racial no Brasil.
1968 lei do boi: vaga nas escolas técnicas e nas universidades para brancos, filhos de donos de terras (vide
o ano de 1850).
1985 Lei Caó, nº 7.437 – uma referência ao seu autor, o advogado, jornalista e militante do movimento
negro, deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira -, dá nova redação à Lei Afonso Arinos e inclui, entre
as contravenções penais, a prática de preconceito de raça e cor.
1988 a chamada Constituição Cidadã, a atual, transforma racismo em crime, inafiançável e imprescritível.
1989 nova alteração da Lei Caó determina a pena de reclusão por discriminação ou preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou procedência.
2000 Lei 12.711, a Lei de Cotas para estudantes negros nas universidades.
2003 Lei 10.639 Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e
privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

3.2 Mito da democracia racial e miscigenação como fator histórico no Brasil


Para entender o que é o mito da democracia racial, é necessário antes entender
o que é uma democracia racial e, como ela foi conceitualizada no Brasil através de sua
trajetória histórica. Assim, para compreender sua natureza ideológica, que refletia
estruturas sociais e políticas da época em que foi teorizada, e como ela influenciou o
imaginário social brasileiro, e por fim, em que sentido se relaciona a específicos interesses
políticos e crenças racistas.

Democracia racial, em sua essência, é um sistema racial desprovido de barreiras


institucionais e grandes tendências discriminatórias que impeçam a igualdade racial em
uma sociedade. Sendo, portanto, uma estrutura social onde a raça de um indivíduo não
interfere em sua mobilidade social, qualidade de vida, ou acesso a recursos públicos e
privados de instituições como a saúde, educação, entretenimento etc. Ou seja, sendo
uma característica de uma nação que não é influenciada pela discriminação racial, seja
direta ou indireta, com oportunidade igual de vivência e crescimento financeiro, com
direito e acesso igual à bens e instituições, independente da raça de um indivíduo; por
consequência, delimitando uma dinâmica social em que a raça não se torna um fator
influente ou decisivo nos papeis sociais, participação política e econômica, e nas relações
de trabalho, refletindo uma democracia entre as raças.

A democracia racial como crença, se origina no século XIX entre as elites


brasileiras, incialmente como uma concepção de que no Brasil existiria uma escravidão
branda, proveniente de uma harmonia entre senhores e escravos. Muitas vezes o Estados
Unidos era usado como exemplo de um tratamento árduo para escravos, para reforçar a
imagem de que no Brasil a situação racial era diferente.

Essa concepção errônea da escravidão no Brasil, produzida justamente pelas


instituições escravocratas da época, era sustentada por uma série de falácias sobre a
escravidão, romantismos acerca da história brasileira, e o interesse das elites brancas
tradicionais em absorver e apaziguar os conflitos raciais que poderiam surgir. Todas estas
concepções eram perpetuadas e penetravam o imaginário social brasileiro através de
vários fatores históricos, e posteriores produções literárias e intelectuais que reforçavam
essa visão. Como nos aponta DOMINGUES (2005):

“As ideologias são imagens invertidas do mundo real e as relações


sociais de dominação as produzem para ocultar os mecanismos de
opressão. Assim, o mito da democracia racial era uma distorção do padrão
das relações raciais no Brasil, construído ideologicamente por uma elite
considerada branca, intencional ou involuntariamente, para maquiar a
opressiva realidade de desigualdade entre negros e brancos.”

Portanto, é importante começar com os primeiros fatores, já presentes durante a


escravidão, mas que perpetuaram muito mais após, que, iriam ser usados absorver os
conflitos raciais provenientes de uma sociedade escravista, e possibilitar a continuação
de um privilégio branco. Os fatores mais importantes desta época eram:

a) A miscigenação proveniente de relações sexuais entre senhores e escravas;


b) A comparação com o segregacionismo estadunidense e suas tensões raciais;
c) A teoria de branqueamento da população;
d) O uso de táticas paternalistas e institucionais para manter as tensões raciais
apaziguadas, e assim mitigar a existência de um movimento negro antagonista
às elites.

A elite intelectual brasileira, que mantinha grande influência nos círculos


acadêmicos e literários da época, influenciada já por crenças racistas, gerava uma
perspectiva romântica e conciliadora da escravidão, usando a miscigenação e as
complexas consequências deste fator, para sustentar a concepção de que havia
cordialidade, simpatia e comunidade entre o senhor e escravo, e de que a presença de
mulatos na sociedade agia como um elemento diluidor das diferenças raciais no Brasil.
Em cima disso, DOMINGUES (2005) afirma “O mito da democracia racial, da mesma
maneira, era fundamentado pelo elevado grau de miscigenação na formação histórica do
país, que, por sinal, era defendida como sinalizadora da tolerância étnica.”.

Portanto, se entendia as relações sexuais entre negras e brancos, não como uma
consequência da exploração sexual de escravas, mas sim como resultado de uma
amistosidade presente nessa dinâmica, e a resultante raça mestiça brasileira como um
agente que tem a possibilidade de nivelar a posição do negro e do branco na sociedade.
Acerca do processo histórico de miscigenação no Brasil, SILVA (1995) afirma que “nunca
foi tratada e nunca existiu como um processo livre, espontâneo, e, portanto, natural, de
união entre dois povos.”. DOMINGUES (2005) acerca disso, conclui que:

“As incursões sexuais do português sobre a escrava eram reconhecidas


como prova da ausência de preconceito do branco. A mestiçagem era
representada como expressão do estreitamento nas relações raciais. Não
obstante, a tendência inata do português a uniões com negras era um
engodo. No transcorrer de toda escravidão, o abuso sexual da escrava era
norma na conduta do senhor. Daí a origem de todo processo de
miscigenação.”.

Comumente era usado os Estados Unidos como exemplo, seja a partir de suas
políticas segregacionistas, ou dos posteriores conflitos políticos e raciais acerca da
abolição, que segundo a interpretação da época, eram causadas por um antagonismo
alimentado pelo ódio acumulado entre as raças. Como DOMINGUES (2005) afirma “A
situação racial, no Brasil, seria de total união entre as raças, ao passo que nos EUA o negro
travava uma luta "sanguinária" contra o branco. O mito da democracia racial fundou-se,
também, na incessante comparação da situação brasileira de suposta inexistência de
discriminação legal, com o regime de Jim Crow do Sul dos Estados Unidos [...]”.

A partir disto, criava-se uma imagem de uma escravidão brasileira branda, que
foi reforçada pela literatura estrangeira que descrevia a instituição escravista do país de
maneira romântica, ao passo de que a produção intelectual e política da elite brasileira
procurava justamente maneiras de sedimentar isto no imaginário político. Concretizando
simultaneamente, a justificativa da posição do negro na sociedade; e, a dissociação da
responsabilidade da elite branca, em relação as heranças escravocratas violentas da
história da nação.

No período pós-abolição, estas concepções, já estabelecidas e justificadas na


crença popular, encontraram com o tempo, diversas maneiras adicionais de se
sedimentar, para continuar atendendo os interesses das instituições ligadas a elite
branca, que eram previamente escravocratas. Assim foi-se agregando concepções
adicionais de diferentes meios, como a ciência positivista presente no século XIX, que
futuramente iria se apropriar da mestiçagem presente, para fundamentar a teoria de
Branqueamento Racial. Sobre isso, ALMEIDA (2019) desenvolve que “A ciência tem o
poder de produzir um discurso de autoridade, que poucas pessoas têm a condição de
contestar [...] No caso do Brasil, o racismo contou com a inestimável participação das
faculdades de medicina, das escolas de direito e dos museus de história natural [...]”

A teoria de Branqueamento Racial, fundamentada em pressupostos racistas, os


quais tem como princípios o branco como superior, puro e limpo quando comparado ao
negro, ou seja, se entendia a miscigenação como um processo de elevação cultural e
genética da raça negra, e que adicionalmente, no futuro levaria ao desaparecimento
desta mesma raça, por consequência tornando a sociedade brasileira melhor. Essa
concepção atendia dois propósitos: tornar a já presente miscigenação em um elemento
progressivo, eram comumente usados exemplos de mulatos que conseguiram ascender
na sociedade devido a uma influência branca em seu sangue (era comum na época a
concepção de que o mestiço seria um negro com “alma branca”); e eliminar os problemas
raciais da época, que eram causalmente relacionados a crença da inferioridade da raça
negra, transformando o objetivo então em elevar a sociedade brasileira.

Essas concepções, assim como outras literaturas que concebiam a escravidão


como branda, eram tidas como verdades cientificas, e existiram uma série de incentivos,
por parte do estado e instituições, para uma miscigenação controlada, que visava a longo
termo, tornar o Brasil mais branco. Uma das evidências disto foi, o incentivo da imigração
das populações europeias, que formariam uma classe nova de trabalhadores que
compartilhariam os mesmos espaços que pretos e pardos. Paradoxalmente, pela
ausência de qualquer nivelação ou igualdade material entre as raças, no plano social, por
mais que a concepção comum sobre os imigrantes fosse de amistosidade com as
comunidades negras, na realidade o oposto seria verdade. Como documenta
DOMINGUES (2005) a “Apesar de os negros e brancos residirem no mesmo terreno e
"dividirem parede", a linha de cor era quase indelével: enquanto o negro morava no
porão, embaixo, o imigrante italiano morava na residência, em cima. Portanto a
integração racial não passava do plano das aparências, pois, na essência, as relações
entre negros e italianos eram hierarquizadas.”.

Simultaneamente, é perceptível na realidade material da sociedade, que nunca


existiu nenhum tipo de infraestrutura que visava elevar a posição do negro ou mulato na
sociedade, nem estabelecer uma igualdade social e política entre negros e brancos,
tornando, portanto, os poucos movimentos sociais que tornaram a posição do negro mais
desenvolvida socialmente, em realidade, nada menos que um mecanismo de absorção
do mestiço e eliminação do negro. A população negra, foi marginalizada em suas
condições de vida e posição social no período pós-abolicionista, e as condições acerca
desta marginalização eram veladas, sendo priorizado uma narrativa de igualdade, que até
mesmo no cenário pós-imigração, se mostrava falso.

Os mesmos mulatos que eram usados como exemplo de uma possível ascensão
do negro na sociedade, eram a exceção que a elite branca tornava a regra, gerando o
entendimento que o negro que não conseguiu se estabelecer apropriadamente na
sociedade após a abolição, tinha algum tipo de defeito, seja ele cultural ou genético, que
justificava sua posição inferior à do branco. Ou seja, havia uma racionalização acerca do
processo de marginalização e inferiorização social desta população, que visava a partir de
vários artifícios, sejam elas científicos ou culturais, posicionar o negro como autor de sua
própria miséria.

Esta revelação nos mostra duas coisas importantes, a primeira é que todas as
concepções entre o período escravocrata e a sociedade pós-abolicionista, não visavam
compensar pelas deficiências e carências que o negro passava com sua posição na
sociedade, portanto, esta mesma hegemonia branca que buscava manufaturar uma
concepção social de que não havia impedimentos para o negro na sociedade, não
produziu nenhum incentivo social ou econômico que pudesse nivelar ou compensar as
desigualdades estruturais desta mesma população, portanto, apenas absorvendo as
questões raciais da época para manter um eixo de dominação que privilegiava o branco.
E, em um segundo ponto, estes movimentos culturais e sociais, que apenas atendiam aos
interesses da classe alta branca, simultaneamente iriam, livrar o homem branco de
qualquer responsabilidade social em relação a escravidão, e colocar esta mesma
responsabilidade sobre o próprio negro, que agora seria visto como preguiçoso e
mentalmente incapaz, e consequentemente, o único responsável pela própria
precariedade. DOMINGUES (2005) mostra que:

“Neste novo contexto, os negros continuaram em desvantagem frente aos


brancos e não podiam concorrer em condições paritárias; a cor não deixou
de ser um fator restritivo ao sucesso individual e/ou do grupo. [...] Pelo
discurso da elite, contudo, o fracasso na vida do negro devia ser
interpretado como consequência das suas próprias deficiências, pois o
sistema oferecia igualdade de oportunidades a todos, negros e brancos,
indistintamente.”.

Nas décadas seguintes, estas concepções e crenças acerca da escravidão, da


negritude e branquitude como formadores de caráter, e das possibilidades concedidas ao
negro na sociedade, contudo, não aproveitadas pelo mesmo, geraram o que é o mito da
democracia racial. Isto é, a ideologia de que, o negro e o branco têm oferecidos a eles, as
mesmas oportunidades na sociedade, e, portanto, o que define o fracasso de um em
relação ao outro, são as inferioridades de caráter e cultura do negro. Ou seja, a partir dos
eventos históricos da miscigenação e, do romantismo e intelectualismo acerca da
escravidão, foram concretizadas duas coisas: a garantia da hegemonia branca na
sociedade, sendo evidenciada pela ausência de movimentos de resistência negra até
meados dos anos 60 no século XX; e, principalmente, a justificativa acerca da posição
inferior do negro, que consequentemente, dissimulou e escondeu a dominação e
discriminação de uma raça, usando como artificio uma ideologia vendida como fato.

Um dos maiores exemplos da concretização deste projeto ideológico, foi a partir


da obra Casa-Grande & Senzala, publicada em 1933, por um dos maiores sociólogos
brasileiros, Gilberto Freyre, que fez grandes trabalhos não apenas na área de sociologia,
mas também em história e antropologia, se tornando na época, uma autoridade acerca
do entendimento multidisciplinar da formação do Brasil. Contudo, sua obra, mesmo não
referenciando diretamente uma democracia racial, é uma das maiores materializações
desta ideologia, e muito mais, este mesmo se tornou referência teórica nas décadas
seguintes acerca do tema. DOMINGUES (2005) afirma que “Portanto, Gilberto Freyre não
fundou o mito da democracia racial, mas o consolidou, elevando ao plano considerado
científico um imaginário das relações raciais, fortemente arraigado no pensamento
nacional”.

Nesta obra, Gilberto Freyre passa pelo período escravocrata brasileiro, e, por um
lente sociológica e antropológica, cria um entendimento acerca destes eventos
históricos, para traçar uma linha de raciocínio que explique os eventos que levaram a
realidade da sociedade brasileira em seu tempo. Porém, ao produzir essa trajetória, ele
se fundou nas mesmas concepções e interpretações da história que foram justamente
produzidas pela elite intelectual relacionada com instituições escravocratas e brancas,
que principalmente, já tinham sido introjetadas na cultura popular e no imaginário social.

Estas mesmas, concebiam a escravidão brasileira como branda, amistosa e cordial


com o negro, e, o mestiço como a diluição das questões raciais no Brasil. Portanto, todos
os artifícios que o autor usa durante sua obra, seja a concepção acerca da miscigenação,
ou dos relatos de senhores brancos sobre a dinâmica de relação com escravos, ou da
ideia comum de que o mulato mitigou as diferenças raciais no brasil, pintavam a mesma
imagem idealista sobre as questões raciais na sociedade, que mesmo não tendo sido
admitidas ou resolvidas, cultivavam uma crença de que existia uma igualdade racial, ou
muito mais, que raça já não era um conceito determinante no plano social da realidade.
Para MOURA (1988), "Gilberto Freyre caracterizou a escravidão no Brasil como composta
de senhores bons e escravos submissos".

Ou seja, Gilberto Freyre é um fenômeno que sedimenta intelectualmente, uma


ideia que já vinha sido reforçada desde o período escravocrata, para justamente pintar o
Brasil como o país onde negros e brancos eram iguais. E muito mais, torna esta
concepção, uma verdade científica, difícil de ser desconstruída conforme o avanço do
tempo nos mostrou. Na visão de DOMINGUES (2005):

“Ao racionalizar teoricamente o que a posteriori foi chamado de “democracia


racial”, Gilberto Freyre, na obra Casa-Grande & Senzala, de 1933, catalisou os
fundamentos de um mito construído historicamente pela classe dominante,
contudo aceito, no geral, por camadas das demais classes sociais e, em particular,
por um setor da população negra. O lançamento de Casa-Grande & Senzala teve
menos importância pela originalidade das proposições colocadas e mais pela
capacidade de canalizar a representação popularizada das relações entre negros
e brancos do país e transformá-la na ideologia racial oficial.”

3.3 O racismo dissimulado no Brasil.


Agora que é entendido, a definição de uma democracia racial, sua trajetória
histórica como crença comum e teoria científica, se torna claro não apenas seu caráter
ideológico, mas adicionalmente abre a possibilidade de duas coisas: a desconstrução do
mito, com a intenção de revelar o caráter miscigenado e racista da sociedade brasileira;
mas também o entendimento de seu impacto político em relação a luta pela igualdade
racial no Brasil, questão que ainda não foi resolvida, e ainda causa controvérsia no cenário
político atual. ALMEIDA (2019) afirma que “[...] o discurso socioantropológico da
democracia racial brasileira seria parte relevante desse quadro, em que cultura popular
e ciência fundem-se num sistema de ideias que fornece um sentido amplo para práticas
racistas já presentes na vida cotidiana.”.
Portanto, ao entendermos a democracia racial como um mito cultuado na
sociedade brasileira, que carrega consigo concepções racistas, falácias acerca da
escravidão e da cultura negra, a criação de uma “mitologia” acerca da miscigenação, e
principalmente, uma dissimulação da violência e opressão que foi infligida sobre o negro,
pode-se, a partir disto, visualizar as últimas consequências da presença dessa ideologia
no imaginário social e na cultura brasileira. Estas consequências, como já visto
anteriormente, se referem principalmente a dois elementos da atualidade:
a) A ignorância comum acerca da perpetuação de instituições e estruturas
econômicas racistas; elementos que contém a tendência de posicionar o negro
em situações mais precárias ou desvantajosas no plano social e financeiro;
b) A perpetuação de crenças racistas; mais especificamente, de cunho
meritocrático, acerca da posição do negro na sociedade, que por
consequência, dificulta as ações políticas e sociais que justamente procuram
eliminar os dispositivos que mantém o racismo estrutural presente em nosso
período.
Ao remontarmos as pesquisas desenvolvidas desde a segunda metade do século
XX, que denunciam não só a discriminação racial, mas também desenvolvem e evidenciam
teorias que descrevem a desigualdade racial brasileira, que embora sendo miscigenada,
mantém padrões estruturais e institucionais que produzem, ou perpetuam, desigualdades
sociais fundadas em raça, fator evidente desde a escravidão, mas que
contraditoriamente, foi velado pelo mito da democracia racial.
Isto é, mesmo entendendo-se, através de pesquisas quantitativas assim como
qualitativas, a desigualdade racial ainda presente na sociedade, causada pelo racismo
estrutural presente em nossas instituições e economia, que são em essência, as
observações e evidências que mostram a sociedade brasileira muito distante de uma
democracia racial, paradoxalmente, no plano social e político, ainda se nega a
necessidade de ações sociais e políticas em relação a evidente desigualdade. Acerca disso,
ALMEIDA (2019) desenvolve que “[...] o racismo, enquanto processo político e histórico, é
também um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consequência
e afetos estão de algum modo conectados com as práticas sociais.”.
Então, é aqui que se revela a essência contraditória da história racial do país, e a
importância do entendimento acerca do mito da democracia racial e sua história; pois é
justamente essa ideologia, que foi perpetuada através da cultura, mídia, literatura,
ciência, e a ausência de mudanças políticas, que nos mostra o único proposito que esta
concepção carrega consigo. Esse propósito sendo, velar e dissimular a desigualdade racial
presente no Brasil, desde o período da escravidão, para manter uma dinâmica de
opressão que sempre privilegiou a elite branca, grupo que mantinha influência sobre
todas as instituições que condicionam a sociedade e conhecimento. É perceptível que o
mito da democracia racial, é apenas uma manifestação de uma sociedade racista, que
procura racionalizar e justificar a discriminação e desigualdade racial, para justamente
mantê-la; e esse fenômeno é, justamente indicativo de nossa necessidade de desconstrui-
lo da crença popular.
Entende-se, finalmente, que o que sempre dificultou, e ainda dificulta, uma visão comum
e correta acerca do que é racismo, e como ele é responsável pelas desigualdades raciais
atuais, é justamente o mito da democracia racial. Uma ideia que penetrou tão
profundamente o imaginário social, que perpetuou fortemente na cultura e história, que
se introjetou tão eficientemente na população, e por consequência, quando se revela uma
história alternativa do Brasil, quando se relata uma desigualdade pendente na realidade
social e racial, quando se denuncia o caráter racista em nossa organização social e
econômica, o fato se torna controvérsia, e a ação social se enfraquece e perde seu
potencial político, que seria justamente a mudança de realidade para a população negra
brasileira. Aqui se revela não apenas o racismo à brasileira, mas o maior perpetuador
dele, a dissimulação dele mesmo através de nossa história e cultura. Em cima disso
CARMICHAEL (1967) e HAMILTON (1967) afirmam que “O racismo ocorre tanto às claras
quanto de maneira dissimulada.”.
3.4 Dados Estatísticos

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, sem políticas de reparação dos
danos causados por quase quatro séculos. Hoje a nossa população de aproximadamente
é 215 milhões de pessoas, 56% são negros e pardos e vários dados estatísticos apontam
diversas camadas onde ocorrem desigualdades sociais, onde os grupos mais afetados são
negros e negras.

3.4.1 Atlas da Violência 2020

No Atlas da violência publicado em 2020 pelo Fórum Brasileiro de Segurança pública


temos os seguintes levantamentos:

Dentre as 628.595 pessoas que foram assassinadas entre os anos de 2008 e 2018 na análise que
considera o risco de ser vítima por raça/cor, temos 74% do risco maior para homens negros e
64,4% do risco maior para mulheres negras.

Com relação à violência praticada contra as mulheres, temos que das 4509 pessoas que foram
assassinadas em 2018, 68% das vítimas eram negras.

O percentual de homicídios em mulheres negras aumentou, 12,4% e com relação às mulheres


não negras diminuiu, 11,7% no mesmo período.
Já considerando a análise pela perspectiva de desigualdade social, 75,7% das vítimas de homicídio
eram negras, ou seja para cada não negro assassinado 2,7 negros são vítimas.

3.4.2 Retrato das Desigualdades de Gênero e raça

Segundo a publicação da 4ª edição da revista Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça do


Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, juntamente com ONU Mulheres, Secretaria de
Políticas para as Mulheres – SPM e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial –
SEPPIR, temos os dados a seguir:

3.4.2.1 Educação

A média de anos de estudo da população ocupada com 16 anos ou mais de idade, segundo sexo
e cor/raça nos anos de 1999 e 2009:

Grupo 1999 2009


Mulheres Brancas 8 anos 9,7 anos
Mulheres Negras 5,6 anos 7,8 anos
Homens Brancos 7,1 anos 8,8 anos
Homens Negros 4,7 anos 6,8 anos

3.4.2.2 Previdência e Assistência Social

A distribuição dos recursos de previdência e assistência social nos domicílios que recebem
bolsa família segundo cor/raça do/da chefe:

 70% dos domicílios que recebem o bolsa família são chefiados por negros/as.
 30% do domicílios que recebem o bolsa família são chefiados por brancos/as.

3.4.2.3 Mercado de Trabalho

A Taxa de desemprego da população de 16 anos ou mais de idade segundo sexo e cor/raça em


2009:

Grupo Taxa de desemprego


Brancos 5,3%
Negros 6,6%
Brancas 9,2%
Negras 12,5%
3.4.2.4 Trabalho doméstico remunerado

Proporção de trabalhadoras domésticas com carteira de trabalho assinada, segundo cor/raça


nos anos de 1999 e 2009.

Grupo 1999 2009


Negras 21,2% 24,6%
Brancas 26,9% 29,3%

3.4.2.5 Habitação e Saneamento

Distribuição de domicílios urbanos em favelas, segundo sexo e cor/raça do/da chefe. Brasil,
2009.

Domícilio % Representação
Domicílios chefiados por homens negros 39,4%
Domicílios chefiados por mulheres negras 26,8%
Domicílios chefiados por homens brancos 21%
Domicílios chefiados por mulheres brancas 12,8%

3.4.2.6 Pobreza, distribuição e desigualdade de renda

Renda média da população, segundo sexo e cor/raça, Brasil 2009:

Grupo Renda Média em Reais


Homem Branco R$ 1491,00
Mulher Branca R$ 957,00
Homem Negro R$ 833,50
Mulher Negra R$ 544,40

3.4.3 IBGE 2018

3.4.3.1 Mercado de Trabalho – Cargos Gerenciais

A ocupação de cargos gerenciais nas empresas em 2018, tem 68,6% dos cargos ocupados por
brancos e 29,9% ocupados por negros.

3.4.3.2 Distribuição de Renda e condições de Moradia

Das pessoas abaixo das linhas de pobreza, temos os seguintes dados:


Renda Brancos Preta ou Parda
Inferior a US$ 5,50/dia 15,4% 32,90%
Inferior a US$ 1,90/dia 3,6% 8,80%

3.4.3.3 Violência

Taxa de homicídios, por 100 mil jovens de 15 a 29 anos de idade (2017).

Grupos Total Homens Mulheres


Branca 34,0 63,5 5,2
Preta ou parda 98,5 185 10,1

3.4.3.4 Educação

A Taxa de analfabetismo considerando pessoas de 15 anos ou mais de idade.

Grupo Total Urbano Rural


Branca 3,9% 3,1% 11%
Preta ou parda 9,1% 6,8% 20,7%

3.43.5 Representação Política

Quantidade de Deputados Federais eleitos em 2018:

Grupos %
Preta ou parda 24,4%
Branca e outras 75,6%

3.5 Breve análise dos dados

O Brasil é um dos 10 países mais desiguais do mundo, onde 20% dos mais ricos detém
63,2% da renda nacional e os 20% mais pobres apenas 2,4% (UNDP 2005, p. 271).

De acordo com o último censo demográfico, 55,8% da população brasileira é negra (9,3%
pretos e 46,5% pardos), mas os negros, apesar de maioria absoluta, são a minoria em
ocupações de comando ou liderança, tanto na iniciativa privada como no âmbito público
(IBGE, 2019). Esse dado revela o quão estrutural é o racismo brasileiro, que coloca a
população minoritária, branca, notadamente os homens, no topo da pirâmide
socioeconômica. Segundo Schucman (2010, p. 44), “qualquer fenômeno que justifique as
diferenças, preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e
simbólicas entre seres humanos, baseado na ideia de raça”, caracteriza-se como racismo.

Segundo o IPEA: 'negros nascem com peso inferior a brancos, têm maior probabilidade
de morrer antes de completar um ano de idade, têm menor probabilidade de frequentar
uma creche e sofrem de taxas de repetência mais altas na escola, o que leva a abandonar
os estudos com níveis educacionais inferiores aos dos brancos. Jovens negros morrem de
forma violenta em maior número que jovens brancos e têm probabilidades menores de
encontrar um emprego. Se encontrarem um emprego, recebem menos da metade do
salário recebido pelos brancos, o que leva a que se aposentem mais tarde e com valores
inferiores, quando o fazem. Ao longo de toda a vida, sofrem com o pior atendimento no
sistema de saúde e terminam por viver menos e em maior pobreza que brancos'. (IPEA
2007, p. 281).

A pobreza, a insegurança alimentar, impossibilidade de mobilidade social, a violência


potencial em grupos vulneráveis, são sem dúvida, efeitos gerados pela desigualdade
no Brasil. Com base em dados de pesquisas como estas citadas acima temos um bom
material para uma breve análise. Acredito que possamos começar com as perguntas:
Quem são estas pessoas que passam fome no Brasil? Quais são os brasileiros pobres?
Quais são as características destes grupos?
Com esta pequena análise já nos deparamos com um cenário racista no Brasil, fruto
de um processo histórico que vem de mais de três séculos de escravidão e que
somados a medidas ineficientes de reparos pós abolicionismo resultam ainda hoje
em impactos importantes fazendo com que marcadores Sociais de raça/cor, gênero
e classe sejam uma fotografia para a questão da fome e pobreza no país.
Negros recebem salários menores que brancos, negras recebem os menores salários
e tem maior percentual em desemprego. Lares chefiados por mulheres tem maior
insegurança alimentar.

Os números mostram que os negros/as são grupos que sofrem maior discriminação
e as mulheres negras e pobres são potencialmente mais oprimidas, estes grupos
sofrem mais com a fome, com a violência, são mais pobres e tem uma possibilidade
muito remota de mobilidade social.
4. Considerações
Num mundo cada vez mais complexo o racismo vai tomando diferentes formas.
Ações antirracistas são necessárias assim como estudar o tema, ouvir outras
perspectivas históricas e compreendê-lo com maior profundidade.
O racismo existe mesmo sem a consciência de quem o pratica, ele está nos impactos
cruéis que produz aos grupos afetados. As atitudes racistas são cada vez mais sutis e
dissimuladas pela maior parte da população e não dizem mais respeito apenas às
ofensas, mas principalmente à vulnerabilidade que estes grupos estão expostos. Os
marcadores sociais agravam a desigualdade social e fazem com que os grupos
oprimidos vivam em situação precária, com preocupações básicas de sobrevivência.

A autora Djamila Ribeiro em seu livro Pequeno Manual Antirracista nos convida à ação:

Informe-se sobre o racismo; estude; crie uma consciência discursiva sobre o assunto;
enxergue a negritude; reconheça os privilégios da branquitude; perceba o racismo
internalizado em você; apoie políticas educacionais afirmativas, debata o racismo na
escola; transforme seu ambiente de trabalho; leia autores negros; questione a cultura
que você consome; conheça seus desejos e afetos; combata a violência racial e seja
antirracista.

5. Referências
CASA-GRANDE & SENZALA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL disponível em: f file (anpocs.com).

CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. E-book.
Disponível: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publicacao/36950
CARVALHO, A. P. C. [et al.]. Desigualdades de gênero, raça e etnia. Curitiba: Intersaberes, 2012.
E-book. Disponível: https://plataforma.bvirtual.com.br/Acervo/Publicacao/3241
DIANGELO, ROBIN J. Não Basta não ser racista, sejamos antirracistas/ Robin Diangelo; tradução
de Marcos Marcionilo – São Paulo: Faro Editorial,2018.
RIBEIRO , D. Pequeno Manual Antirracista.
As leis e o racismo disponível em : As leis e o racismo • Primeiros Negros.Diversidade , disponível
em: Diversidade - Bing video.
TED - O perigo de uma história única - Chimamanda Adichie, disponível em TED - O perigo de uma
história única - Chimamanda Adichie - Dublado em português - Bing video.
RIBEIRO, Darcy . O Povo Brasileiro, a formação e o sentido do Brasil./ Darcy Ribeiro. – 3. Ed. – São
Paulo: Global, 2015.
Vídeo Direitos Humanos, aula 11 - Disponível em: Apresentação do PowerPoint (ulife.com.br).
Vídeo Racismo estrutural, disponível em: UAM - Vila Olímpia - 740 (ulife.com.br).
Atlas da Violência 2020 - Fórum Brasileiro de Segurança Pública (forumseguranca.org.br).

CASA-GRANDE & SENZALA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL disponível em: f file (anpocs.com).

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4097530/mod_resource/content/1/AULA2_2017.pdf
Racismo estrutural, Silvio Almeida-Raça e racismo
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53325050- Racismo: como a ciência desmantelou a
teoria de que existem diferentes raças humanas

FANON, Frantz. Em defesa da revolução africana – Racismo Cultural

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