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O ANTOLÓGICO LALAU

STANISLAW PONTE PRETA

Thiago: Lá vinha eu ladeira abaixo, comendo minhas Thiago: Abaixo, o questionário para os estudantes:
goiabinhas, quando cruzei com a figurinha entusiástica “COISA apresenta significado ‘preciso’, ‘pejorativo’ ou
de Bonifácio Ponte Preta (o Patriota). Mesmo subindo a ‘irônico’?”.
ladeira ele conseguia marchar, enquanto assoviava
baixinho o Hino dos Dragões da Independência. Edmar: E segue o texto:

Enzo: — Olá! — Edmar: exclamei eu, com as goiabinhas Thiago: Depois de 1512, rapazes lusitanos que estavam
na mão. esquiando fora da barra, descobriram uma baía muito
bonita e, distraídos que estavam, não perceberam que
Thiago: Ele parou, reconheceu-me e, após uma era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse
reverência, um tanto ou quanto germânica, lascou: janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis
portanto, que o Rio já começou errado.
Otávio: — Como vai o caro patrício?
Edmar: Procuro o questionário: “‘Esquiando fora da
Edmar: Respondi que ia mais ou menos, enganando barra’ é um anacronismo. Por quê? Que quer dizer
pela meia cancha, me defendendo como podia e anacronismo? E sincronismo?”.
atacando quando oportuno. Enfim, nem lá nem cá.
Vivendo sem maiores sucessos. Thiago: Nessa altura começou a minha aflição. Enzo:
Que qui é mesmo anacronismo? Thiago: Se eu cometi
Otávio: — O caro patrício engana-se — Thiago: um anacronismo, tinha obrigação de saber na ponta da
interrompeu-me ele. Otávio: — Saiba que está de língua que diabo é anacronismo. Será o ponto de
parabéns. É um orgulho para a nossa família ter escritor semelhança entre coisas diferentes? Não, não… isto é
antológico em seu seio Thiago: — abraçou-me em analogia. Ah… deixa pra lá. Sobre o parágrafo transcrito
postura militar e, vendo as goiabinhas na minha mão, há outra pergunta: “‘Como fosse janeiro’ é uma
regozijou-se: Otávio: — Oh… goiabas! Fruta brasileira. construção sintática de uso clássico. Qual seria a forma
Adoro-as Thiago: — apanhou um punhado delas e mais corrente na atualidade?”.
seguiu ladeira acima, comendo tudo, o miserável.
Edmar: E assim segue o texto, acompanhado do
Edmar: Voltei para casa intrigado. Enzo: Que história era questionário. Num certo trecho eu explico que os
essa de antológico? Será que o Bonifácio estava me portugueses, de saída, não deram muita bola para o Rio
gozando? Edmar: A resposta obtive logo depois, quando de Janeiro e logo o questionário cobra a multa,
a fogosa mucama veio trazer a correspondência do dia. querendo saber: “‘Não deram muita bola’. A expressão
Entre os avisos de banco e outras cobranças metafórica provém do jogo de futebol e significa não
envelopadas, um volume se destacava. Rasguei o papel dar atenção. Explique como se compreende a translação
e dei com um livro: Rio de toda gente: Antologia para o do sentido”.
ensino médio de português — Helena Godói Britto, M.
Cavalcanti Proença, Maria da Glória Sousa Pinto. Abro o Enzo: Coitados dos menininhos que estiverem
volume e lá está a dedicatória do ilustre polígrafo: “Ao estudando meu texto. Eu, que escrevi, estou aqui meio
Stanislaw, que honra esta coletânea nas págs. 23 e 100, sobre o embasbacado com essa tal de translação do
muito cordialmente o seu admirador — Cavalcanti sentido, imaginem as crianças do ensino médio!
Proença”.
Thiago: De repente, a minha aflição aumenta
Enzo: Puxa! Então era isto? Thiago: Aqui o filho de d. assustadoramente. Lembro-me que, no tempo de
Dulce tinha se tornado antológico num livro estudante, eu e toda a minha turma odiávamos Camões
pedagógico? O que é a natureza, hem? Enzo: por causa das análises dos Lusíadas a que nos obrigava
Sinceramente, eu não merecia tantas lantejoulas. o professor de português. Puxa vida… com a minha
promoção a antológico, breve vai ter garoto aí me
Edmar: Começo a folhear a obra e dou com escritos achando o maior chato do ano letivo.
meus: uma “História do Rio de Janeiro” que escrevi há
algum tempo. Lá está o primeiro parágrafo: “A coisa Edmar: Preciso abrir os olhos. Camões não o fez porque
começou no século XVI, pouco depois que Pedro Álvares só tinha um olho, mas eu estou com os dois em dia. É
Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou necessário abri-los.
a confusão, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia
Rio de Janeiro”.

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