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através de várias denúncias sobre o comportamento desse amigo para com ela, a
moça quer saber onde se encontra seu namorado, “aquel que mentiu do que pôs
comigo?” ou que lhe prometeu muitas coisas e nenhuma cumpriu.
Esse sentimento de “abandono” é aplacado, ou ao menos, reconfortado nas
quatro últimas estrofes, como a resposta das flores e dos ramos da árvore, então
personificadas, para darem continuidade ao diálogo. A resposta é de que este amado
está bem e vivo, e “serrá vosc’ ant’ o prazo saído”, certamente o rapaz estará com ela
assim que sair do leito do rio, ou desembarcar da nau. Muito provavelmente a aflição
da dama se faz por pensar que seu namorado a deixou sem se quer dar sinal de vida,
notícias que a natureza pode trazer a ela de que ele não tenha mentido ou
descumprido seus juramentos, e que tão logo que possível estaria com ela.
D. Dinis foi capaz de condensar em suas cantigas as mais diversas estruturas
estróficas, rítmicas e métricas, reunindo no seu repertório, tanto as possuem
características provençais como galego-portuguesa, bem como as que o aparentam
com a lírica culta transpirenaica como as que lembram a tradição popular. Isto mostra
que o rei-trovador era um exímio poeta que não só escrevia as suas cantigas como
também as musicava.
Dando continuidade às demonstrações do lirismo galego-português, através
das cantigas de D. Dinis, as cantigas de amor, também seguem um motivo parecido
com as cantigas de amigo:

Cantiga de Amor, número 35, página 53

Ay senhor fremosa, por Deus


e por quam boa vos El fez
doede-vos alguã vez
de min e d’este olhos meus,
que vo viron por mal de ssy,
quando vos viron, e por mi.

E, porque vos fez Deus melhor


de quantas fez e mays valer,
querede-vos de min doer
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e d’este meus olhos, senhor,


que vos viron, e por mim.

E, porque o al non é ren,


senon o bem que vos Deus deu,
queredes-vos doer do meu
mal e dos meus olhos, meu ben,
que vos viron por mal de ssy,
quando vos viron, e por mi.

Na cantiga de amor quem fala é ele, que também foi alcançado pelo mal do
olhar. Foi por ver a “senhora formosa que Deus fez melhor que as demais”, mais bela
que as outras mulheres é que ele pede com veemência que essa se compadeça dele
e de seus olhos que a viram, pois pelo simples fato de vê-la sofre. Na terceira estrofe
ele ressalta que nada mais tem valor “senão o bem que Deus deu a essa dama”, o
elemento da beleza dessa amada não passa de mera citação, a lírica trovadoresca
galego-portuguesa possui essa característica de não descrever a dama, e é nesse
molde que compõe D. Dinis, a figura feminina não possui nenhuma característica
física descrita, ela simplesmente é bela, formosa, mais bonita que as outras, porém
não se sabe nada sobre ela, se é loira, ruiva ou morena. Introduz-se assim outra
característica notória, o código da corte, de manter em sigilo a identidade da dama
cortejada. Era suficiente para o eu lírico saber quem era tal dama, porém o segredo, a
preservação da figura dessa donzela era essencial continuar a cortejá-la e para que a
trova funcionasse dentro das normas da “arte de trovar”.
D. Dinis se destaca entre os trovadores por saber lidar muito com essas
características tão peculiares ao trovadorismo, a sua formação, um tanto afrancesada,
deu-lhe forte base para que se mantivesse fiel à algumas características da lírica
provençal, contudo soube introduzir a coita galego-portuguesa de maneira que essas
cantigas não se perdessem das definições do que eram as cantigas trovadorescas e
possuíssem as características nacionais galego-portuguesa.
As cantigas de escárnio e maldizer do Rei, por sua vez, são mais brandas se
comparada com as cantigas de outros trovadores pertencentes ao mesmo período.
Ele prefere adotar palavras menos pejorativas e faz apontamentos para
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acontecimentos do dia-a-dia da corte, como pode se notar na cantiga de maldizer que


será apontada em seguida:

Cantiga de escárnio, número 5, página 129

U noutro dia seve Don Foan,


A mim começou gran noj’a crecer
De muitas cousas que lh’oí dizer.
Diss’el: - Ir-m’ei, ca já se deitar an.
E dix’eu: - Boa ventura ajades,
Por que vos ides e me leixades.

E muit’enfadado de seu parlar,


Sêvi gran peça, se mi valha Deus,
E tosquiavan estes olhos meus.
E quand’ele disse : - Ir-me quer’eu deitar,
e dix’eu: - Boa ventura ajades,
por que vos ides e me leixades.

El seve muit’e disse e parfiou,


E a min creceu gran nojo poren,
E non soub’el se era mal, se bem.
E quand’el disse: - Já m’eu deitar vou,
Dixi-lh’eu: - Boa ventura ajades,
Por que vos ides e me leixades.

Na cantiga de maldizer escolhida podemos analisar a crítica do poeta a um


homem da corte chamado Don Foan que acaba se tornando uma visita indesejável, a
partir do momento que esse começa dizer coisas demais que aborrecem o anfitrião.
Por várias vezes esse visitante diz que vai embora, no entanto continua a
prolongar a conversa e a voz poética reclama da atitude de D. Foan: “E muit’
enfadado de seu palar”, “e tosquiavan estes olhos meus”, ou seja, tosquiavan é uma
forma arcaica de tosquenejar, cerrar os olhos em piscadas mais cumpridas de sono.
Contudo, “El seve muit’ e diss’ e parfiou”, o anfitrião fica irritado a ponto de responder
“ao ilustre” visitante quando esse diz: “Ir-me quer’ eu deitar” e não vai, “Boa ventura
ajades / porque vos ides e me leixades”.

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