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O ENEM E AS RAZÕES PRÁTICAS DO SISTEMA ESCOLAR:

UMA ANÁLISE À LUZ DE BOURDIEU

AS FUNÇÕES DO ENEM NA ESTRUTURA SOCIAL E HIERÁRQUICA


DO SISTEMA ESCOLAR BRASILEIRO

Juvenilto Soares Nascimento1

Compreende-se que para desempenhar-se completamente dessa


função de conservação social o sistema escolar deva apresentar a
“hora da verdade” do exame como sua verdade: a eliminação
submissa apenas às normas da equidade escolar, portanto
formalmente irrepreensível, que o exame opera e assume, dissimula a
realização da função do sistema escolar, obnubilando pela oposição
entre os aceitos e os recusados a relação entre os candidatos e todos
os que o sistema excluiu de fato do número dos candidatos, e
dissimulando assim os laços entre o sistema escolar e a estrutura das
relações de classe.

Bourdieu e Passeron

RESUMO

Este artigo trata da relação entre o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) o sistema
escolar, em um contexto de reprodução das estruturas sociais e hierárquicas vigentes no
Brasil. O objetivo é apresentar, à luz da teoria bourdieusiana, as funções intrínsecas de seleção
e eliminação do ENEM, condição própria dos exames de seleção. Trata-se de uma pesquisa de
revisão e documental. Empregaram-se os aportes teóricos de Bourdieu (XXXX); Bourdieu e
Passeron (XXXX); além da contribuição de autores como: Klitze (XXXX), Valle (XXXX).
Destacam-se, pois, os conceitos e as análises empregados por esse sociólogo francês, dentre
os quais: poder simbólico, habitus cultural e capital cultural. E A METODOLOGIA
EMPREGADA? Ao longo do texto, responderam-se às questões quanto à eventual melhoria
na qualidade do ensino médio ou na democratização do acesso ao ensino superior,
intencionalidades apresentadas para o Exame, ao longo de suas reformulações. Identifica-se
que o sistema brasileiro emprega os seus mecanismos com orientações ideológicas, tão
características da reprodução e da legitimação das desigualdades. Dentre esses mecanismos,
destaca-se o ENEM, cuja função não excede seu papel próprio de exame, operando a seleção

1
Doutorando em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: 100nilton@gmail.com
2

e a classificação. Logo, para extirpar a lógica da reprodução das desigualdades, é importante


desvelar os mecanismos de reprodução, de modo que se possa combater as estruturas sociais e
hierárquicas, mantenedoras e legitimadoras das desigualdades, tão arraigadas no sistema
escolar brasileiro.

Palavras-chave: Bourdieu. Mecanismos de reprodução. Desigualdade. Avaliação.

1 INTRODUÇÃO

FALAR DAS ESTRATÉGIAS QUE NÃO SÃO CONSCIENTES, MAS QUE PODEM
SER APROPRIADAS E APLICADAS CONSCIENTEMENTE

É possível que nenhum outro excerto sintetize tão bem os exames de seleção do que o
da epígrafe que abre este artigo. Os exames não apenas compõem como legitimam a seleção
social nos sistemas de ensino, que historicamente reproduzem a cultura dominante, a estrutura
de classes e as desigualdades da sociedade em que estão inseridos.
No Brasil os exames ganharam destaque nas 3 (três) últimas décadas, no fervor das
discussões acerca da universalização e da qualidade da educação básica, cujo contexto é
marcado pela hegemonia global do neoliberalismo e ingerência dos organismos multilaterais
em nações emergentes. Nesse contexto, brotaram os exames em larga escala, dentre os quais o
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), criado sob a intencionalidade precípua de
subsidiar a melhoria do ensino médio brasileiro e, posteriormente, propalado como um exame
democratizador do acesso ao ensino superior. Assim, sob os fundamentos da sociologia de
Bourdieu e com base nos dados da pesquisa, buscou-se neste artigo responder às questões: O
ENEM melhorou a qualidade do ensino médio e/ou democratizou o acesso ao ensino
superior?
Para melhor compreensão da função desempenhada pelo ENEM desde sua criação –
até mesmo para esclarecer se o Exame de fato cumpriu, ou cumpre, alguma das proposições
indicadas no parágrafo anterior – convém que se desvelem como se reproduzem as
desigualdades no âmbito das estruturas sociais e hierárquicas do Estado em face do processo
de aquisição cultural. Não apenas isso, é igualmente mister apresentar as intencionalidades
desse Exame, frente ao seu desempenho na prática.
Para tal, contribuem para a fundamentação teórica Pierre Bourdieu e Jean-Claude
Passeron, pela pertinência e pela contundência dos conceitos por eles apresentados, coroadas
3

por sua bem-sucedida perspectiva teórico-metodológica. É bem verdade que a realidade


histórica brasileira não seja exatamente a mesma que esses sociólogos franceses analisaram a
partir da década de 1960. Entretanto, sua teoria é uma sólida contribuição porque os
mecanismos por eles estudados são os mesmos identificados no sistema educacional
brasileiro. E, não com muito esforço, é possível identificar lógica e mecanismos similares de
reprodução no sistema escolar brasileiro.
Contribuem, ainda, autores como: Klitze (2014); Valle (2013)...
E A METODOLOGIA EMPREGADA?
Com o intuito de responder às questões apresentadas, o artigo se estrutura em 3
tópicos, assim distribuídos: no tópico 1, discute-se acerca das razões práticas que orientam o
sistema escolar e seus respectivos exames de seleção e/ou de classificação; no tópico 2,
apresenta-se o processo de criação e reelaboração do ENEM, assim como as principais
intencionalidades que se lhe atribuíram ao longo dos anos; no tópico 3, subdividido em dois
tópicos, respondem-se as questões supracitadas, esclarecendo-se as razões práticas.

1 As razões práticas do sistema escolar e de seus exames de seleção e classificação

PARA QUE SE EXPLICITEM AS VERDADEIRAS FUNÇÕES DOS EXAMES


(inclusive do ENEM), É IMPRESCINDÍVEL QUE SE DESVELEM AS RAZÕES
PRÁTICAS DO SISTEMA ESCOLAR EM QUE AQUELES ESTÃO INSERIDOS. A
educação e os processos de poder e dominação – com maior ou menor formalidade e em
maior ou menor grau – estão historicamente presentes nas mais diversas sociedades
declaradas civilizadas. Conforme Bourdieu e Passeron (2012), as classes dominantes
desenvolveram ao longo do tempo uma sistemática própria de dominação, na qual se utiliza
também da educação para a reprodução das estruturas sociais e hierárquicas, por conseguinte,
das desigualdades. Trata-se de uma estratégia abalizada pelo Estado, por meio da qual
também se legitima. Assim, o Estado a adota em todo o modelo escolar: desde a definição do
investimento público em educação, passando pelo trabalho didático-pedagógico das unidades
escolares, e alcançando os exames.
Sim, semelhante ao sistema francês de educação então analisado por Bourdieu, o
sistema educacional brasileiro imprime uma forte desigualdade social, acentuada nos níveis
mais elevados. Seu acesso carrega as mesmas marcas que Bourdieu denunciou no sistema
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francês da época. A classe alta, a média e a baixa têm o acesso e as condições de permanência
e êxito desiguais.
O Estado se faz essencial nesse sistema de legitimação das desigualdades porque
carrega consigo o poder simbólico, que impõe significações sobre as práticas, como estas
fossem legítimas. Assim, não apenas dissimula as relações de força, como soma força aos
grupos privilegiados, favorecendo-os (BOURDIEU, 2012).
Tanto a existência quanto a manutenção das desigualdades não ocorrem por acaso. Há
razões para isso, pois os agentes sociais não agem de forma aleatória ou fortuita.
Muitos são os mecanismos empregados para a reprodução das desigualdades e para
legitimá-las. O discurso da meritocracia é um deles, empregado inclusive pelo sistema
escolar. Aliás, ainda que os estudantes com melhores desempenhos sejam aqueles
privilegiados sobretudo dos capitais econômico, social e cultural – como aponta Nascimento
(2018) –, o discurso em defesa da meritocracia persiste como se de fato representasse a
realidade.
Os estudantes que representam a exceção são apresentados como se correspondessem
à regra. Desse modo, estudantes desprivilegiados dos capitais econômico, social e cultural,
que apresentam bom desempenham, são justificados porque em tese seriam dotados de “dom
natural” ou fariam jus ao esforço que empreenderam para conquistar a posição. Por outro
lado, a maioria dos desprovidos desses capitais não alcançariam bom desempenho porque não
têm “dom natural” ou não se esforçam.
Tanto a ideologia do dom quanto a do esforço ignoram as desigualdades de acesso ao
conhecimento, dissimulando que estas são expressão das distinções sociais, de modo a negar
no processo de aquisição do conhecimento a eliminação social que se opera. Velam e
legitimam, dessa forma, como de fato ocorre o processo de transmissão cultural e os
elementos que desde cedo cooperam a seu favor:

[...] Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que
diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e
profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre coisas, as atitudes face
ao capital cultural e à instituição escolar. (BOURDIEU, 2014, p. 46).

Compõem o “sistema de valores implícitos” os valores pelos quais a família se


estrutura e se orienta, de modo que exerce grande influência sobre cada um dos novos
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membros. Dentre esses valores se encontra o atribuído à educação, à aquisição cultural.


Portanto, vontades e interesses escolares estão intimamente relacionados à cultura familiar, e,
logo mais, à do meio social no qual o agente social vive e com o qual se relaciona.
Naturalmente que as experiências subjetivas de cada um com a cultura familiar possibilitam
que a prática de um ou outro seja distinta da dos demais membros, mais representando
exceção do que regra. Portanto, quanto mais um agente social é cedo envolvido em tais
valores e disciplina culturais, em contato com os mais variados tipos de capital – em especial
o econômico, o social e o cultural –, maior sua probabilidade de êxito escolar.
Esses fatores convergem para a formação de estudantes com excelente desempenho.
No entanto, os agentes sociais desprivilegiados de tais valores e tipos de capital, em sua
família e em seu meio social, não conseguem concorrer em igualdade com os afortunados.
Nesse sentido, o discurso meritocrático só se sustenta ideologicamente, uma vez que atribui
mérito àqueles que têm as melhores condições desses valores implícitos e melhor acesso aos
capitais econômico, social e cultural. O processo é tão complexo que essa dissimulação da
realidade social não objetiva outra coisa que não legitimar as desigualdades de acesso, bem
como a eliminação dos já prejudicados e a seleção dos já privilegiados.
Bourdieu (2014) desvelou esses mecanismos de aquisição cultural e de reprodução das
desigualdades ao compreender a desigualdade de desempenho escolar de alunos oriundos de
grupos sociais diferentes e, inclusive, entre os oriundos de mesmo grupo social. Embora
identificasse grande diferença de desempenho escolar entre estudantes de distintas classes
sociais, notou também significativa diferença entre o rendimento de jovens de mesmo grupo
social.
Para Bourdieu (2014) o capital é de importância chave nos sistemas em que a
educação atende aos interesses dos grupos dominantes. Para ele, o capital econômico é
importante, mas não atua sozinho. Por isso o autor aponta para os conceitos de capital social e
de capital cultural. Para ele todos os elementos relacionados a esses três tipos de capitais são
decisivos enquanto seleção:

Ignorar, como se faz frequentemente, que as categorias recortadas numa população de


estudantes por critérios como a origem social, o sexo ou tal característica do passado
escolar foram inegavelmente selecionadas no curso da escolaridade anterior, seria
impedir-se de ter uma total consciência de todas as variações que fazem aparecer esses
critérios [...]. (BOURDIEU, 2014, p. 95)

Para chegar à essa conclusão, primeiramente Bourdieu (2012) percebeu que


arbitrariamente os sistemas, que atuam na lógica de classes sociais, elegem como “cultura
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superior” o que as classes “superiores” carregam na sua bagagem cultural. Esse arbitrário
cultural era decisivo, uma vez que correspondia em parte ao que os pais já transmitiam aos
filhos nas suas relações.
Grosso modo essa bagagem de conhecimento e habilidades, que é transmitida pela
família, é o que Bourdieu (2012; 2014) chama de capital cultural. Vai desde a aquisição da
linguagem até as práticas e aspirações dos membros da família.
Bourdieu (2014) considera três estados de capital cultural, dentre os quais se destacam
dois: capital cultural no seu estado incorporado e capital cultural no seu estado objetivado. O
primeiro diz respeito ao background familiar que é um dos elementos dos mais decisivos na
definição do sucesso escolar do aluno, uma vez que o domínio da língua culta adquirido no
contexto familiar, as referências culturais, os conhecimentos considerados apropriados e
legítimos (uma espécie de herança cultural) facilitam o aprendizado dos conteúdos e dos
códigos escolares. O segundo diz respeito ao que o capital econômico pode comprar a fim de
melhorar a “bagagem cultural”. Este se evidencia, por exemplo, na compra de livros ou
mesmo na aquisição de serviços de apoio educacional ao estudante, concomitantes às
atividades da escola (cursinhos, aulas particulares, curso de línguas, por exemplo).
Para confirmar sua teoria acerca da influência do capital econômico e do capital
cultural, Bourdieu (2014, p. 46) recorreu um exemplo bastante convincente:

A influência do capital cultural se deixa apreender sob a forma da relação, muitas


vezes constatada, entre o nível cultural global da família e o êxito escolar da criança.
A parcela de “bons alunos” em uma amostra da quinta série cresce em função da renda
de suas famílias. Paul Clerc mostrou que, com diploma igual, a renda não exerce
nenhuma influência própria sobre o êxito escolar e que, ao contrário, com renda igual,
a proporção de bons alunos varia de maneira significativa segundo o pai não seja
diplomado ou seja bachelier, o que permite concluir que a ação do meio familiar sobre
o êxito escolar é quase exclusivamente cultural. Mais que os diplomas obtidos pelo
pai, mais mesmo do que o tipo de escolaridade que ele seguiu, é o nível cultural global
do grupo familiar que mantém a relação mais estreita com o êxito escolar da criança.
Ainda que o êxito escolar pareça ligado igualmente ao nível cultural do pai ou da mãe,
percebem-se ainda variações significativas no êxito da criança quando os pais são de
nível desigual.

No entanto, alguns questionamentos acerca da sociedade brasileira podem nos dar


pistas de que essas mesmas influências se mantêm no nosso sistema escolar.
FALAR DAS DIVERSAS FORMAS DE ELIMINAÇÃO SEM EXAME E DAS
QUE SÃO “NECESSÁRIAS” POR EXAME, INTRODUZINDO O ENEM.
Recentemente Klitzke e Valle (2015) demonstraram que o acesso ao ensino superior,
por exemplo, foi expandido nos últimos anos e que o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) até tem recebido uma adesão cada vez mais significativa pelas classes mais
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populares. No entanto, as autoras revelam como o acesso ampliado não se traduziu por
democratização do acesso ao ensino superior. Esse é um indicador de que a reprodução das
desigualdades persiste nos níveis mais elevados do ensino brasileiro.
Para justificar esse tipo de desigualdade, o discurso ideológico da meritocracia é
recorrente. É um discurso de falsa igualdade, onde o aluno “fracassado” é identificado como
aquele que não quis. O resultado dessa influência nos níveis mais elevados de ensino é ainda
mais intenso. No ensino superior, por exemplo, o acesso - assim como a permanência e o
êxito - é ainda mais desigual do que no ensino fundamental, por exemplo.
Em um estudo acerca da longevidade escolar, foi observado que o êxito de indivíduos
oriundos de famílias populares era a exceção. A pesquisadora definiu bem as dificuldades na
trajetória desses indivíduos que resistiram até os níveis mais elevados do ensino: “A imagem
de uma embarcação navegando ‘ao léu’ parece-nos extremamente pertinente para ilustrar a
dimensão de imprevisibilidade e aleatoriedade que detectamos nas biografias investigadas”
(VIANA, 2007, p. 233).
A pouca probabilidade de estudantes originários de classes sociais desprivilegiadas
lograrem êxito no ensino superior, sobretudo em cursos com prestígio social, está atrelada às
condições sociais e culturais da família. Mesmo esses estudantes só o conseguem em
condições de extremo risco de fracasso, conforme apresenta Viana (2007, p. 234-235): “[...]
as condições que permitiram esses sucessos escolares – práticas, sentidos e disposições – só
adquiriram existência no próprio processo de escolarização”.
Para que indivíduos das classes populares alcancem esse capital cultural o percurso é
longo, pois é um conhecimento que originariamente não apresenta relação com seu
conhecimento de mundo. Por isso, estudantes oriundos das classes populares e bem-sucedidos
na escola, ao discutirem sobre sua trajetória escolar, recorrem a termos como ‘batalha’,
‘desafio’, ‘transformação’, ‘sacrifício, ‘conquista’, ‘solidão’, ‘desamparo’ e ‘incompreensão’.
Compreende-se, pois, que enfrentar o arbitrário cultural é lidar com uma nova cultura.
É o que os jovens oriundos de classes sociais desprivilegiadas fazem cotidianamente no
sistema escolar brasileiro. Para esses alunos, a dificuldade de aquisição da norma culta, por
exemplo, faz parecer que a língua portuguesa não é sua língua materna.
Ademais, quando jovens de classe baixa alcançam êxito nos estudos, vivenciam um
distanciamento cultural progressivo em relação aos seus familiares mais próximos. Esse
distanciamento gera uma série de sofrimentos tanto para os filhos que alcançaram a
longevidade escolar quanto para seus familiares. Esse é mais um indicador da distância entre
o capital cultural das frações mais pobres e das mais ricas.
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Nesses termos, convém salientar a importância da proximidade entre a cultura


cotidiana do estudante privilegiado e o seu objeto de estudo na escola. Essa proximidade
cultural lhe é favorável para o êxito em um sistema escolar “burguês”, ao mesmo tempo
seletivo e excludente:

Nesse sentido, a cultura legítima, referendada pelos exames e diplomas, vem a ser
aquela pertencente às classes privilegiadas. O ensino pressupõe implicitamente “um
corpo de saberes, de saber-fazer e, principalmente, de saber-dizer, que constitui o
patrimônio das classes cultivadas”. Assim, o que se estabelece como dom natural
constitui-se geralmente em manifestação de afinidades ligadas a valores sociais bem
determinados e às exigências do sistema escolar. No limite, o privilégio social e as
habilidades adquiridas na família burguesa travestem-se em méritos individuais,
“dons naturais” que o indivíduo possui. Logo, “para os filhos e camponeses, de
operários, de empregados ou de pequenos comerciantes, a cultura escolar é
aculturação. (CATANI, 2002, p. 65, grifo do autor).

Gonçalves e Gonçalves (2010) salientam a importância de a comunidade escolar


conhecer como funciona a estrutura desse campo e seus elementos de reprodução, para a
partir da crítica dessa realidade construir as mudanças que se fazem necessárias ou, quando
muito, as possíveis para aquele momento histórico.
Aliás, Werle (2012), ao ponderar o poder da influência econômica, social e cultural, a
autora não se apega ao fatalismo e insta a escola a ir além da reprodução:

O desempenho dos alunos é influenciado tanto pelas suas características pessoais


quanto pelas características das escolas que frequentam. Embora os fatores
extraescolares, como a origem socioeconômica, expliquem uma porcentagem muito
maior da variação observada no desempenho dos alunos do que os fatores escolares,
estes últimos têm a capacidade de alterar o desempenho e a trajetória escolar dos
estudantes. (WERLE, 2012, p. 75).

Portanto, conhecedores dos mecanismos de reprodução e, ao mesmo tempo


conscientes de sua responsabilidade social, as instituições escolares e seus s respectivos
agentes precisam elaborar uma nova orientação no seu fazer educação. A educação que esses
constroem deve romper com os mecanismos mantenedores das desigualdades, sobretudo de
capitais econômico, social e cultural.
Para Catani (2002), quando a instituição educacional ignora as desigualdades culturais
entre os estudantes oriundos de classes sociais diferentes, privilegia aqueles que já contam
com condições familiares favoráveis. Concomitantemente, desfavorece aqueles que têm
condições adversas.
Boggino (2009) lembra que a concepção de educação em cada sociedade varia
conforme as circunstâncias históricas próprias, a depender das orientações epistemológicas,
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ideológicas, psicológicas e, por conseguinte, pedagógicas adotadas. De igual modo, Perrenoud


(1999) esclarece que essas mudanças têm em vista atender aos objetivos sociais de cada
momento, utilizando-se para isso os dispositivos entendidos como necessários, que é o caso
da seleção, da exclusão. Para confirmar seu ponto de vista, o autor recorre a um exemplo
claro:

Vivemos um período de transição. Por muito tempo, as sociedades europeias


acreditaram não necessitar de muitas pessoas instruídas e se serviram da seleção,
portanto da avaliação, para excluir a maior parte dos indivíduos dos estudos
aprofundados. No início do século, 4% dos adolescentes franceses frequentavam as
escolas e podiam pretender chegar ao final dos estudos secundários. Agora, a França
pretende formar 80% dos jovens no secundário sem diminuir o nível de formação.
Não é mais uma utopia, nem uma ideia de esquerda. (PERRENOUD, 1999, p. 17).

A própria Hoffmann (2009) esclarece que a política da não reprovação não pode ser
entendida como banimento da avaliação. Isso porque a função primordial da avaliação não é
aprovar nem reprovar. Na verdade, o que deve mudar é a natureza da avaliação empregada.
Luckesi (2000) é taxativo contra a função dispensada à avaliação atualmente. Aliás,
ele apresenta uma visão bem clara e um tanto contundente acerca do assunto: “A avaliação da
aprendizagem não é e não pode continuar sendo a tirana da prática educativa, que ameaça e
submete a todos. Chega de confundir avaliação da aprendizagem com exames” (LUCKESI,
2000, p. 1).
O habitus pode nos dar pistas importantes acerca do processo educacional, pois os
interesses, aspirações e práticas de cada indivíduo são manifestação do habitus incorporado.
Na prática docente, o habitus permaneceu quase inalterado desde o início do sistema
educacional brasileiro. É, muitas vezes, o professor da atual geração apenas reproduzindo a
prática das gerações que o antecederam.
O outro motivo que também dificulta a mudança do conceitual para o prático é porque,
como também ilustra Bourdieu (2012), o sistema educacional é um dos mecanismos de
reprodução social e, portanto, tende a reproduzir práticas de manutenção da ordem. Daí não
podermos ignorar que a ordem que impera atualmente é a neoliberal, que legitima a
desigualdade por meio de sua orientação mercadológica.

2 Criação, empoderamento e legitimação do ENEM: poder simbólico em ação

Em geral os governos neoliberais, ao estenderem a lógica do capitalismo ao sistema


escolar, buscam instaurar um sistema de avaliação rígido e centralizado, sob a orientação da
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política educacional e do sistema de financiamento adotados. Apesar disso, as avaliações em


larga escala são lançadas sob o pretexto de avaliar o sistema escolar para subsidiar políticas e
ações no intuito de melhorar sua qualidade.
É bem verdade que os debates acerca do uso de informações avaliativas para subsidiar
na elaboração de políticas públicas são intensos desde meados do século XX. Nos Estados
Unidos, por exemplo, os exames em larga escala são empregados desde a década de 1960. Até
o início da década de 1990, o Brasil ainda não se utilizava da prerrogativa desse tipo de
exame.
Isso começou a mudar a partir da Conferência Mundial de Educação para Todos, no
ano de 1990, em Jomtien (Tailândia). A Conferência se estabeleceu como um marco para as
políticas que se seguiram na educação brasileira, uma vez que o Brasil foi um dos signatários
da Declaração de Jomtien. Assim, recomendações provenientes de Jomtien e de outros fóruns,
sob a promoção de organismos multilaterais, estabeleceram medidas que, de uma forma ou de
outra, apontavam para a redução dos investimentos dos países signatários em educação, para a
transição do Estado administrador e provedor para um novo modelo – o Estado avaliador – e a
gradativa privatização do sistema educacional.
A onda de exames em larga escala implantados desde então revela o impacto
avassalador da prática do Estado avaliador no Brasil: o Sistema da Avaliação da Educação
Básica (SAEB), criado em 1990 e aplicado regularmente a partir de 1995; o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), em 1998; o Exame Nacional para Certificação de Competências
de Jovens e Adultos (ENCCEJA), em 2003; o Exame Nacional de Desempenho (ENADE) em
2004; a Prova Brasil, em 2005; e a Provinha Brasil, em 2008.
Freitas et al (2014) advertem que a avaliação em larga escala é um instrumento de
avaliação de redes, sistemas. No entanto, os autores identificam que no Brasil as avaliações
em larga escala são utilizadas equivocadamente para avaliar escolas e professores. Ocorre,
portanto, a inobservância da função primordial desse nível de avaliação.
Ao mesmo tempo, o ENEM tem sido preponderante para o processo de privatização
do ensino superior, uma vez que as últimas duas décadas se caracterizaram pela expansão do
ensino superior privado. Em 2015, a rede privada alcançou o índice de 75,7% dos 8.027.297
de alunos matriculados no ensino superior, conforme dados do INEP (2016). Essa expansão é
promovida pelas políticas governamentais que dão subsídios financeiros e fiscais,
especialmente a de financiamento do Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), a de bolsa
de estudos do Programa Universidade para Todos (PROUNI) e a de cotas sociais e raciais.
Tanto a política de financiamento do FIES quanto a de bolsa de estudos do PROUNI
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representam incentivo às instituições de ensino superior privadas. Mesmo a política de cotas,


amparada pela Lei 12.711 de 29 de agosto de 2012, favorece indiretamente ao mercado
educacional porque cotistas passaram a preencher vagas outrora cativas a estudantes oriundos
de classes privilegiadas, levando muitos destes a recorrerem às instituições particulares. Logo,
enquanto essas políticas promovem a privatização, legitimam a ideia de que o ENEM
promove um maior acesso ao ensino superior.
Conforme Souza e Oliveira (2003), desde sua criação em 1998 o ENEM se apresentou
decidido a assumir a hegemonia dos processos seletivos de ingresso à universidade, além da
possibilidade de acesso a cursos profissionalizantes, e até mesmo ao mercado de trabalho.
Esses autores percebem ainda no Exame um potencial de ditar o currículo escolar maior do
que o do SAEB, por exemplo. Para ilustrar essa influência, eles apontam a existência, já em
2003, de cursinhos preparatórios para o ENEM.
O ENEM chama para si a responsabilidade de permitir a cada egresso uma avaliação
própria. Para Souza e Oliveira (2003) há um grave equívoco pelo fato de esse enfoque
individual vir carregado da responsabilização do egresso por seu resultado, ao mesmo tempo
da desresponsabilização do Estado ou mesmo do Ministério da Educação (MEC):

De modo explícito, fica evidenciada a visão individualizada com que é tratado o


processo educacional, sendo atribuída, ao aluno, individualmente, a responsabilidade
pelas eventuais competências ou incompetências que o exame vier a demonstrar. No
documento do INEP, [...] lê-se: “O ENEM poderá lhe mostrar, enfim, em que áreas
você precisa caprichar ainda mais para ter sucesso pessoal e profissional. Desse
modo, você terá uma avaliação do seu potencial e poderá tomar as decisões mais
adequadas aos seus desejos e às suas escolhas futuras”. Em nenhum momento se lê
algo como: o ENEM poderá mostrar, enfim, quais vêm sendo os resultados das
ações empreendidas pelos órgãos governamentais. Ou algo do tipo: MEC: seu futuro
passa por aqui! (SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p. 883-884).

VER A POSSIBILIDADE DE NÃO CITAR ESSE TEXTO NA ÍNTEGRA E CITAR


OS RESULTADOS DA PESQUISA DE NASCIMENTO (2017), QUE CONFIRMAM QUE
O DISCURSO PEGOU MESMO.
Assim, Souza e Oliveira (2003) não se limitam apenas à crítica da responsabilização
do aluno. Esses autores questionam igualmente a natureza tardia do ENEM. Isso porque o
Exame só anuncia ao aluno o seu estado de aprendizagem quando já se está no fim do
processo. É quando, a despeito do material divulgado pelo INEP, não há mais tempo para uma
autoavaliação do processo que permita ao estudante sanar suas deficiências e reorientar suas
ações. Essa intervenção tardia contradiz a natureza formativa atribuída ao Exame.
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Além disso, a disponibilização dos resultados nos moldes como ocorreram até o ano
de 2016 (notas referentes à edição de 2015) subsidiava a criação de rankings que
classificavam escolas que concentravam estudantes com os melhores índices sócio-
econômicos e desclassificavam aquelas de estudantes com índices sócio-econômicos baixos.
Assim, normalmente se distinguiam as escolas privadas e/ou que se valiam do subtefúrgio da
seleção para ingresso, ao passo que se rebaixavam as escolas públicas, acentuadamente as que
concentravam estudantes oriundos de grupos sociais mais desfavorecidos econômica, social e
culturalmente.

3 Descompasso entre as intencionalidades expressas e a real função do Exame

Sob o pretexto de subsidiar a melhoria da qualidade do ensino médio, sancionou-se a


Portaria MEC nº 438, de 28 de maio de 1998, que instituiu o ENEM, estabelecendo-lhe, na
sua primeira versão, 4 intencionalidades expressas. Propunha-se ao exame avaliar o
desempenho dos estudantes, conferindo-se uma natureza mais formativa, pois serviria de
“parâmetro para a autoavaliação”, de “referência nacional para os egressos” e para “fornecer
subsídios”.
O inciso IV até apresentava certa preocupação com a demanda de parcela significativa
dos estudantes da escola pública, que eram os cursos profissionalizantes, embora a previsão
de acesso expressa no documento só os contemplasse após a conclusão do ensino médio. No
entanto, como lembram Nogueira e Nogueira (2016), a teoria bourdiesiana revela que os
cursos com acesso precoce ao mercado de trabalho se tornam preferência dos estudantes mais
pobres das classes populares, pois estes necessitam contribuir para a subsistência da família,
por isso, muitas vezes acabam por desistir dos estudos em níveis mais avançados de ensino.
Em 2009 o ENEM foi reformulado, com o intuito de empoderá-lo legitimá-lo também
como processo de seleção (e, convém lembrar) de eliminação. Os objetivos aumentaram de 4
para 7 pela Portaria INEP nº 109, de 27 de maio de 2009, conferindo maior “poder” e alcance
ao Exame, que passou a “estruturar uma avaliação ao final da educação básica que sirva como
modalidade alternativa ou complementar aos exames de acesso aos cursos profissionalizantes,
pós-médios e à Educação Superior”. A mesma Portaria instituiu também o inciso VI, que se
propunha a “promover avaliação do desempenho acadêmico das escolas de ensino médio, de
forma que cada unidade escolar receba o resultado global”. Por meio dessas duas medidas, o
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Exame passou a selecionar (e eliminar) estudantes para a educação superior e a fomentar o


ranqueamento das escolas, ampliando-se a função de controle social do Exame.
Esses dois objetivos praticamente retiraram do ENEM a proposta formativa e
conferiram uma diretriz de seleção e classificação, por conseguinte, de eliminação e
desclassificação. Além disso, impuseram sobre a escola pública a lógica própria das escolas
particulares, onde o ensino médio é fundamentalmente etapa que precede o acesso ao ensino
superior. Para legitimar tal lógica no espaço público, fortaleceu-se a ilusão de que o acesso ao
ensino superior é possível a todos os estudantes desse espaço.
A própria proposta do MEC (BRASIL. MEC, 2009) à Associação Nacional dos
Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES) para que o ENEM
unificasse os processos seletivos de todas as Instituições Federais de Ensino Superior –
documento que contém outras controvérsias – apresenta já no primeiro parágrafo a verdadeira
intencionalidade do Exame:

Os exames de seleção para ingresso no ensino superior no Brasil (os vestibulares)


são um instrumento de estabelecimento de mérito, para definição daqueles que terão
direito a um recurso não disponível para todos (uma vaga específica em
determinado curso superior). O reconhecimento, por parte da sociedade, de que os
vestibulares são necessários, honestos, justos, imparciais e que diferenciam
estudantes que apresentam conhecimentos, saberes, competências e habilidades
consideradas importantes é a fonte de sua legitimidade. (BRASIL. MEC, 2009, grifo
nosso).

Pela proposta, o ENEM substituiria esses exames vestibulares, que serviam para
“seleção”, enquanto “estabelecimento de mérito”, porque o acesso ao ensino superior é um
“recurso não disponível para todos”. Enfim, nesse primeiro parágrafo está o reconhecimento
oficial, ainda que não “intencional” por parte do MEC, dos principais elementos que
caracterizam o ENEM e os demais exames de seleção, conforme desvela Bourdieu (CITAR
AQUI O ANO EM QUE BOURDIEU FALA DOS EXAMES)
Por sua vez, no ano de 2017, o MEC operou uma mudança significativa nos objetivos
do ENEM, ao publicar a Portaria MEC nº 468/2017, na qual já não aparece a “promoção” da
avaliação das escolas de ensino médio. Essa medida, que abdica de publicizar as notas das
escolas, é o reconhecimento de que, ao contrário do previsto pela Portaria INEP nº 109/2009,
a forma como as notas eram divulgadas favorecia a criação e divulgação de rankings, em
especial pela mídia e pelas escolas que concentram estudantes privilegiados em capitais
econômico, social e cultural.
Dessa forma a portaria retirou do ENEM sua função de classificação e desclassificação
das escolas, que se tornaria função apenas da Prova Brasil, até então sem publicização. Uma
14

vez que o Exame deixou também de certificar estudos, tornou-se um exame exclusivamente
de seleção e eliminação para a educação superior. Apesar de o nome conservar “ensino
médio”, esse exame se transformou em um mero, mas enorme, exame vestibular.

RECONHECIMENTO DE QUE AS CONDIÇÕES SOCIOECONÔMICAS ERAM OS


PRINCIPAIS FATORES DE INFLUÊNCIA NO DESEMPENHO. NESTE TÓPICO É SÓ
ANÁLISE DOCUMENTAL.

SE CONTRIBUIU, POR EXEMPLO, PARA ANCORAR POLÍTICAS PÚBLICAS


LEGITIMOU X ANOS (DE SUA CRIAÇÃO EM 1998 ATÉ 2016, QUANDO SE
RECONHECEU QUE NÃO CONTRIBUÍA. ALIÁS, HÁ MUITO SE ADVERTIA, E
AINDA SE ADVERTE, QUE EXAME EM LARGA ESCALA NÃO É PERTINENTE
PARA AVALIAR AS ESCOLAS, MAS TÃO SOMENTE AS REDES) EM QUE NÃO
SERVIU DE SUBSÍDIO PARA A MELHORIA DO ENSINO MÉDIO, PROVA DISSO
SÃO OS DADOS EM QUEDA DESDE 2005, QUANDO FOI REELABORADO.

NO ENSINO MÉDIO, NÃO FALHOU SOZINHO. FALHOU COM AS POLÍTICAS


ADOTADAS, INEXISTENTES/FRÁGEIS.

3.1 O ENEM melhorou a qualidade do ensino médio?

Sob o pretexto de avaliar o ensino médio para melhorá-lo, o ENEM se resignou até
2016 a classificar e desclassificar escolas a partir do desempenho dos estudantes. Entretanto,
tais classificações das escolas atestavam muito mais a concentração dos capitais econômico,
social e cultural de seus alunos do que o efetivo trabalho didático-pedagógico dessas
instituições, tal qual desvela Nascimento (2018). Além disso, esse Exame ignorava uma série
fatores cruciais para uma análise própria ao contexto escolar, ignorando-se aspectos
relevantes como: as condições objetivas de cada comunidade escolar, a gestão escolar e o
fazer educativo em sala de aula, dentre outros. (REELABORAR)
Desde o início da década de 1990 houve expressiva ampliação do acesso ao ensino
médio. Em 1991, por exemplo, o Brasil tinha 3.772.698 alunos matriculados no ensino médio;
em 1994 registrava 4.932.552; e em 2004 alcançou o ápice, com 9.169.357. Desde então o
total de matrículas cai ano após ano (à exceção dos anos de 2010, 2011 e 2016), registrando
15

8.133.044 de matrículas no ano de 2016, o contexto da atual reforma dessa etapa da educação
básica. Em 2019, o total de matriculados já havia baixado a patamares de apenas 7.465.891
estudantes (Inep, 2020), perfazendo-se 15 anos desse processo de desconstrução e retrocessos
no ensino médio. (REELABORAR)
REALÇAR QUE BOURDIEU MOSTRA QUE MELHORAR A QUALIDADE DA
EDUCAÇÃO NÃO É O OBJETIVO DOS EXAMES, NEM DE SELEÇÃO NEM DE
CLASSIFICAÇÃO. INCLUSIVE LEMBRAR NO INÍCIO DO TEXTO, E RETOMAR
AQUI, QUE O ENEM EXERCEU A FUNÇÃO DE SELEÇÃO/ELIMINAÇÃO E DE
CLASSIFICAÇÃO/DESCLASSIFICAÇÃO, DE MODO QUE NÃO OBJETIVAVA A
MELHORIA, ATÉ PORQUE SERIA IMPRÓPRIO PARA ESSA FUNÇÃO. AÍ JÁ TRAGO
O FREITAS (Registra-se que até o ano de 2019 os números de matrícula continuam em
queda, confirmando-se o que Freitas et al já alertavam, que os exames em larga escala são
impróprios para subsidiarem a melhoria da aprendizagem ou a identificação dos reais
problemas educacionais). Falar da inobservância da função desse nível de avaliação, ao passo
que se ignoraram os outros dois três níveis, muito mais próprios para subsidiarem a melhoria
da aprendizagem/qualidade, como ponderam a França (2018) et al.(REELABORAR)

3.2 O ENEM democratiza o acesso ao ensino superior?

Contudo, uma vez que se trata de um exame, também desempenha sua função de eliminação,
de modo a dissimular a relação entre o sistema escolar e as relações de classe, como lembram
Bourdieu e Passeron (2012; 2015). Na edição de 2017 – a primeira sob a regra prévia de não
divulgação dos resultados para ranqueamento de escolas e também sem a prerrogativa da
diplomação de estudos – registraram-se 6.731.186 inscritos, que concorreram a 239.601
vagas, em instituições de ensino superior (IES) públicas; e a 242.897 vagas, em IES privadas.
Para cada candidato selecionado, o Exame eliminou 12,95 candidatos, de modo que o Exame
tem se notabilizado pela ampla participação, mas também pela alta seletividade/eliminação.
(REELABORAR)

Destaca-se que, na esteira da “meritocracia” e envolvendo as injustiças sociais em


eufemismos, o próprio neoliberalismo busca legitimar a si e a toda sua estrutura com o
discurso de que a justiça é um conceito moral e que apenas os indivíduos e seus atos podem
ser chamados de justos ou injustos, como lembra Bianchetti (2001). Nessa perspectiva,
apregoa que tanto o êxito quanto o fracasso são o resultado das escolhas do indivíduo e não
16

influenciados pelo meio com o qual o indivíduo se relaciona. Sob essa lógica, o ENEM não
eliminaria os candidatos, pois os eliminados é que seriam os responsáveis por sua própria
eliminação, de tal forma que na edição de 2017, por exemplo, o Estado estaria escusado da
demanda reprimida de ensino superior. Trata-se, na verdade, de um artifício neoliberal de
desresponsabilização do Estado. (REELABORAR)

Ora, os exames seletivos de acesso ao ensino superior são necessários apenas nas sociedades
que não democratizaram o acesso a esse nível de ensino. Portanto, sua necessidade testifica o
caráter excludente do próprio sistema escolar, do qual os exames fazem parte. Logo, esse
reconhecimento equivocado por parcela da sociedade brasileira é o que confere legitimidade
aos exames seletivos, uma vez que ignora o caráter excludente desses mecanismos.
Entretanto, o que realmente se faz necessária é a democratização do acesso à educação
superior.
Da mesma forma, aqueles que defendem que os exames são justos se fundamentam
apenas na igualdade formal, a mesma apregoada pelo neoliberalismo. Buscam legitimar,
assim, as desigualdades objetivas no processo de aquisição cultural, no qual os capitais social,
econômico e cultural são deveras relevantes, conforme esclarecem Bourdieu e Passeron
(2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma cultura permeada por ideias legitimadoras da desigualdade, os alunos podem


não assumir seu “compromisso de aprender ou mesmo se negarem a aceitá-lo”. Tal atitude,
embora possa parecer que advém exclusivamente de escolha pessoal, reflete muito mais o
habitus e o capital cultural aos quais o estudante está exposto desde sua mais tenra idade,
principalmente herdados da família. Daí a abordagem dada a esses elementos para se
esclarecer o processo de reprodução de desigualdades que se concretiza também no campo
escolar.
Observa-se que reorientar o conceito de escola é uma medida que pode romper com a
lógica da reprodução. Para isso, será necessária mudança em toda a lógica do sistema
17

educacional. Assim, elementos como a avaliação não devem servir à orientação neoliberal.
Pelo contrário, deve promover a aprendizagem, ao invés de seleção e consequente exclusão.
Por isso a importância de rejeitarmos a postura ideológica mercantilista.
Conceitos como os que Bourdieu (2012; 2014) apresenta são fundamentais para
fundamentar a construção de uma educação com proposta “contrarreprodutora” e, portanto,
emancipatória. Nesse sentido, é importante compreender que o conhecimento sobre a
organização das estruturas sociais e sua reprodução no sistema educacional não implica
abraçar o determinismo mecanicista. É a postura ante o conhecimento que determina se essa
ordem das coisas se mantém ou se é superada. Por isso, enquanto agentes sociais, ações
dependem do partido que se toma diante da questão: conhecer para se justificar ou conhecer
para superar?
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REFERÊNCIAS

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