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O ENSINO POLITECNICO COMO ALTERNATIVA AO SISTEMA

EDUCACIONAL BRASILEIRO.
Rachel Aguiar Estevam do Carmo.
Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense.1

1- O que é Politecnia?

O termo Politecnia surge mais para suprir uma carência de nomenclatura do que
fundar uma concepção. Essa questão da terminologia está refletida nos próprios escritos
marxianos2. Em Instruções aos Delegados, texto específico para o Primeiro Congresso da
Associação Internacional dos Trabalhadores, escrito em 1866, Karl Marx define a
“educação tecnológica” como a união entre trabalho intelectual e trabalho produtivo. Em O
Capital vemos a palavra “tecnológico” se referir na união entre educação e trabalho.
Apenas nas Instruções ao Delegados menciona-se, uma única vez, o termo “politécnico”.
A distinção entre os termos tecnológico e politécnico é atual3, pois reflete nos
desdobramentos em que o primeiro se configurou a favor da concepção dominante, voltada
para suprir as necessidades do mercado. Saviani (2003, p. 143) resgata, no artigo transcrito
no Seminário Choque Teórico, em 1987, e organizado pela Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, o debate iniciado por Manacorda, sobre a importância de distinguir
termos, que antes tinham caráter socialista e que agora estão apropriados pela própria
burguesia. Segundo Saviani (2003, p. 47):

1
Trabalho aprofundado na monografia, orientado pelo Professor Dr. José Rodrigues.
2
Manacorda (1991, p. IX) utiliza a diferenciação à linha Marxiana, isto é, inerente ao pensamento de Marx e
Marxista fruto de estudos de pensadores nos países socialistas.
3
Na ilustre Revista Brasileira de Educação, no ano de 2007, foram publicados os artigos do Paolo Nosella e
do Demeval Saviani debatendo exatamente sobre a relação entre a etimologia das palavras politécnico e
ensino tecnológico e do conteúdo que subjaz as mesmas nos escritos marxianos. Paolo Nosella critica
discordando do termo politecnia por ser insuficiente para explicar os “riquíssimos germes do futuro da
proposta educacional marxiana” (Nosella, 2007, p.150) alertando que há diferenças conceptuais entre
politecnia e ensino tecnológico, considerações estas que o Saviani admite ter a mesma semântica. Outro
polêmico dado questionado por Nosella é a defesa do Saviani do termo politecnia como tradição socialista.
No último parágrafo, Saviani (2007, p. 165) dá a sua resposta: “Enfim, creio poder afirmar que as análises
formuladas por Nosella e aquelas por mim desenvolvidas não se chocam, mas ao contrário, complementam-se
mutuamente. Não será o uso ou não de determinado termo que as colocará em confronto. Se assim for, posso
proclamar sem hesitação: abrirei mão do termo politecnia, sem prejuízo algum para a concepção pedagógica
que venho procurando elaborar.”.
Sem desconsiderar a validade das distinções efetuadas por
Manacorda, penso que, grosso modo, pode-se entender que, em
Marx, as expressões ‘ensino tecnológico’ e ‘ensino politécnico’
podem ser consideradas sinônimos. Se, na época de Marx, o termo
‘tecnologia’ ainda era pouco utilizado nos discursos econômicos e o
era menos ainda nos discursos pedagógicos da burguesia, de lá para
cá essa situação se modificou significativamente... E ao meu ver a
‘Educação Tecnológica’ nos remete imediatamente à concepção
burguesa[...] O inverso, contudo, não deixa de ter procedência: a
defesa de educação politécnica tende, imediatamente, a ser
identificada com uma posição socialista.

A concepção de politecnia, incluindo o seu termo, preserva a tradição socialista no


que tange a visão da educação estar ligada às diversas manifestações dos potenciais
humanos em criar e transformar as bases materiais que constituem o trabalho, seu processo
de produção e de acumulação provenientes das forças que atuam na construção do produto
final ou mercadoria.
A iniciativa por uma nova concepção de educação parte do pressuposto da iminente
e permanente superação da concepção burguesa sobre educação. Até porque, as
contradições internas que sustentam o capitalismo favorecem as elaborações de outras
práticas históricas diferentes das hegemônicas.
O estudo da politecnia deve estar em consonância com as práticas históricas
pautadas nos ideais socialistas na construção de outras formas de relação com a produção,
trabalho e educação.
A tentativa de superar a ordem capitalista nos coloca em reflexão da própria
existência do homem. Marx já afirmava que o trabalho caracteriza a realidade humana na
medida em que produz continuamente sua própria existência. A noção de politecnia deriva
exatamente dessa dialética do trabalho, este sendo visto como um princípio educativo
fundante na ligação indissociável entre trabalho intelectual e trabalho manual.
A seguir, analisaremos as diversas contribuições de autores que planejaram o ensino
voltado para a formação plena dos alunos, começando por quem desencadeou todos os
debates acerca do tema politecnia.

 Para Marx:
O primeiro autor que iniciou estudos numa perspectiva socialista relacionados ao
mundo do trabalho e à educação foi o Karl Marx.
Nascido em 5 de maio de 1818 na Prússia, Karl Marx começou cedo nos
movimentos políticos e construiu ainda jovem os princípios do materialismo-dialético visto
nas Teses de Feuerbach. Mais tarde escreveu junto a Frederick Engels, A Sagrada Família,
em 1845, e A Ideologia Alemã, publicado em 1932, além do famoso Manifesto do Partido
Comunista escrito em 1848. Marx escreveu, em 1867, e tendo o Engels finalizado devido a
sua morte, a obra considerada um clássico na Economia Política: O Capital, volumes I e II.
Nele, o autor faz uma profunda análise dos mecanismos de produção, da exploração do
trabalhador e da acumulação do capitalista fruto da mais valia relativa e absoluta.
A pedagogia marxiana ganha um caráter explicativo, para aprofundar os princípios
metodológicos (e estratégicos) de ruptura do Modo de Produção Capitalista, além de propor
relações produtivas, trabalhistas e educacionais distintas da impositiva e hegemônica lógica
do capital.
Em Instruções aos Delegados elaborado para a construção da I Internacional, Marx
apresenta a mais completa definição do conteúdo pedagógico do ensino socialista:

Por ensino entendemos três coisas: primeira: ensino intelectual,


segunda educação física, dada nas escolas e através de exercícios
militares e terceira o adestramento tecnológico, que transmita os
fundamentos científicos gerais de todos os processos de produção e
que, ao mesmo tempo, introduza a criança e o adolescente no uso
prático e na capacidade de manejar os instrumentos elementares de
todos os ofícios. Com a divisão das crianças e dos adolescentes dos
9 aos 17 anos em três classes deveria estar vinculado um programa
gradual e progressivo de ensino intelectual, físico e tecnológico. A
união do trabalho produtivo remunerado, ensino intelectual,
exercício físico e adestramento politécnico4 elevará a classe
operária acima das classes superiores e médias. (Marx apud
Manacorda, 1991, p.26).

As idéias acima expostas na conjuntura do conteúdo materialista histórico-dialético


nos revelam a conexão entre ensino tecnológico e ensino intelectual numa forma inovadora.
O ensino tecnológico não é visto como prático ou vinculado ao trabalho manual, apenas. Na

4
Grifo nosso.
realidade, dentro dos escritos marxianos, esse ensino está imbuído de elementos intelectuais
capazes de produzir conhecimentos e vivificar através da experiência prática todos os
processos de trabalho, compreendendo a relevância das inovações tecnológica e a sua
aplicabilidade nos meios de produção da mercadoria. Nesse sentido, o lucro teria outra
conotação, pois não se restringiria ao proprietário, dono da fábrica e sim a todos que
produzem e participam das forças produtivas que fundamentam as bases materiais no Modo
de Produção Socialista.
O desenvolvimento da capacidade criativa dos alunos, de acordo com a proposta do
ensino socialista, forma o sujeito onilateral.
A manifestação de todas as potencialidades favorece o engrandecimento do homem
tornando homem total, pleno dominador de si e das etapas dos processos consciente e
criativo do trabalho.
Essas idéias nos revelam a tentativa do homem em alcançar a satisfação e o prazer
manifestado pela criação, estudo e pela sua vontade em emancipar-se.
A relação entre trabalho e ciência atravessa os estudos marxistas com o objetivo de
“desmonopolizar” os saberes produzidos em universidades e trazer estes para todos os
níveis educacionais. Geralmente, a Universidade não executa o seu princípio fundante, que
é a socialização dos conhecimentos científicos a serviço da sociedade na qual vivemos.
Um grande fator que não só impede a socialização do conhecimento, mas também a
interlocução entre ciência e trabalho nas escolas é divisão do trabalho, característica que
determina a sociedade em classes.
Marx afirma que se o trabalho não aparecer enquanto atividade humana ou
manifestação de todas as potencialidades apresentar-se-á dividida, dominada, unilateral e
incompleta. “Essa divisão se torna real quando se apresenta a divisão entre trabalho manual
e trabalho mental5 [...]”, pois os postos de trabalho são determinados pelo nível de
aprendizado articulado com todos os sabres científicos, já que vemos cada classe social
ocupar as tarefas produtivas de acordo com o que foi aprendido nas instituições formativas.
A escola, sendo o aparelho ideológico do Estado burguês, limita a divulgação dos
saberes científicos, visto ainda que o capital traz a tendência em separar trabalho manual de

5
Manacorda, 1987, p.46
intelectual. A divisão do trabalho é a materialização dessa dicotomia entre trabalho
intelectual e trabalho manual, pelo fato da necessidade iminente de o capital ter apenas
forças produtivas manuais.
Essas configurações organizam a sociedade brasileira da forma como vemos as
desiguais oportunidades de ascenso social influenciando as reais condições objetivas de
sobrevivência do trabalhador. O incentivo por parte do Estado em favorecer articulação
entre ciência e trabalho é pequeno frente às reais mudanças, que o Marx propora das bases
materiais da sociedade capitalista estar a favor da classe trabalhadora.

 Para Gramsci:

Antonio Gramsci nasceu na ilha da Sardenha em 1891. Teve uma infância pobre e
por isso sentia as limitações que a classe dominante impunha a sua sobrevivência.
Em sua juventude, no ano de 1914, Gramsci escreveu artigos sobre a conjuntura
nacional além das opiniões de socialistas sobre a guerra no jornal do Partido Socialista
Italiano (P.S.I.).
O referido pensador preocupou-se em elaborar como que se desencadearam os
processos educativos de dominação burguesa além de preparar a formação política dos
quadros dirigentes que haveriam de governar o tão sonhado Estado Proletário. O ponto
central para entender os estudos elaborados, tanto pela visão da escola aparada pela
hegemonia como pela projeção de um outro tipo de ensino, unitário e voltado para as
relações estabelecidas a partir das transformações industriais, é a antinonimia
desinteressado/interessado.
Gramsci vê o termo desinteressado como algo que é válido para muitos, isto é, a
toda coletividade, histórica e objetiva. Significa ter uma visão “a longo prazo” acerca dos
conhecimentos ligados aos processos de trabalho e à análise política de como a sociedade
dominante mantém-se no poder, colocando a sociedade socialista como fim de todo o
processo de conscientização.
Não obstante, o termo “interessado” reflete numa intenção pedagógica da classe
dominante em preparar a classe expropriada com a finalidade em atender uma necessidade
básica e emergencial na perpetuação das relações de produção. O trabalho alimenta o
investimento do capitalista em obter a mais-valia, um dos principais objetivos para
subsumir o trabalhador a condições alienantes e limitadoras, impedindo o avanço crítico e
transformador da realidade objetiva. A escola “interessada” favorece o ensino descolado
das reais bases materiais nas quais a classe dominada vive e perpetua-se. São ensinadas,
segundo Gramsci, as dicotomias oriundas do Modo de Produção Capitalista:
capital/trabalho; rico/pobre; branco/negro, sem aprofundar e utilizar o seu lado produtivo,
ou seja, investigar junto com os estudantes, as reais condições de superação dessas
dicotomias. Para lógica do capital, isso não é relevante.
O grande eixo dos escritos gramsciano, na luta por romper com paradigmas
hegemônicos, é propor tanto nas escolas unitárias, quanto nos espaços onde se preparam
dirigentes políticos e nos sindicatos a formação “desinteressada”. A relação pedagógico-
didática “desinteressada” atravessa todo um corpo teórico fundado na superação do Modo
de Produção Capitalista.
A criação da revista “Ordine Nuovo”, em 1920, é um exemplo de tentativa em
implantar um método inovador de pensar e executar política num viés pedagógico. Criada
especialmente para a preparação consubstanciada de análises teóricas densas e formativas a
respeito da sociedade, a revista tinha como objetivo formar intelectuais do futuro Estado
Socialista. “Ordine Nuovo” virou uma escola de cultura, com raízes nas práticas industriais
e baseada na concepção do historicismo vivo. O primeiro curso foi o de cultura e
propaganda socialista.
Durante o tempo em que durou o curso, pois fora fechado devido à perseguição
política da época, Gramsci contrapôs todo discurso socialista fundado em categorias
deturpadas e incoerentes. Exigiu muito dos estudantes leituras dos principais referenciais
teóricos da Itália e dos socialistas clássicos orientando uma disciplina de estudo dentro e
fora do curso.
Gramsci acreditava que o princípio fundante do ensino “desinteressado” seria
composto por uma importante base material moderna: as novas constituições das relações
industriais, estas propulsora das múltiplas técnicas a serem utilizadas por inovadoras
configurações do trabalho. O princípio o qual deve reger o processo educativo em todos os
espaços, e principalmente na escola, seria o trabalho industrial moderno para desvendar
tudo o que a escola “interessada” propaga.
Nesse sentido, nasce a escola unitária de Gramsci.
Uma categoria chave no pensamento gramsciano é o termo unitário. Segundo ele,
não houve por parte dos marxistas em reinventar um outro tipo de sociedade na qual a
unitariedade seja o elo de superação das dicotomias oriundas no Modo de Produção
Capitalista.
Essa superação das dicotomias existentes na lógica do capital, vai de encontro com
a filosofia da práxis marxiana, a única que dentro do Modo de Produção Capitalista
explicita com toda a sua estética particular as contradições fundamentais e necessárias para
a permanência do capital. A contraposição entre os ricos que podiam estudar e os pobres
que não podiam; entre o campo atrasado e estagnado e a cidade moderna e em
desenvolvimento; entre trabalho intelectual e trabalho manual; dirigente e dirigido; entre
cultura interessada e cultura desinteressada, consubstancia a necessidade em construir uma
filosofia que superasse o princípio da contradição, já que no Estado Socialista todas as
formas de relações sociais e a visão de trabalho, política e de estado modificar-se-ia em
função de uma nova maneira de agir e intervir na realidade objetiva. Nesse sentido,
segundo Gramsci, a filosofia a qual romperia com a atual discussão acerca das relações
dialéticas estabelecidas pela lógica do capital, enfim que uniria o reino da necessidade com
o reino da liberdade seria o idealismo imanentista. Este significa a tentativa em recompor a
unitariedade dos elementos produzidos, quer por idéias, pensamentos sobre a constituição
das bases materiais quer pela própria ação e atuação do homem na configuração da prática
dessas bases.
A escola unitária, diante de todas as exposições, entra como uma parte que completa
o corpo da visão de sociedade em Gramsci. A crise da escola tradicional potencializa os
avanços e superações necessárias para romper com conteúdos fragmentados e superficiais.
Há de convir que o modelo de escola nova estava surgindo nos anos 20 na Itália e a
sua expansão foi grande. O ponto em comum de Gramsci à pedagogia nova é exatamente a
crítica à escola tradicional que segundo ele era correta. Não obstante, a divergência está na
finalidade da escola e mais especificamente na maneira de como vê a execução da
disciplina, já que esta fundamenta os métodos pedagógicos da escola unitária.
Gramsci critica a visão da pedagogia nova sobre a disciplina “imposta de fora” na
educação das crianças (de zero à puberdade), pois nesse sentido, o ensino é livre às
manifestações corporais. A ordem, segundo a pedagogia nova, é não limitar os impulsos e
atitudes externadas pelas crianças. O professor exerce um ensino não-diretivo com os
alunos.
A crítica está exatamente na falta de disciplina diretiva e impositiva. O pensador da
escola unitária acredita na “disciplina-amorosa” para a educação infantil, pois a “coação
externa” serve para ensinar o controle necessário às atitudes das crianças sendo que mais
tarde estarão com o pleno desenvolvimento da autonomia e da autodisciplina. A base para
tornar-se o intelectual livre é a aprendizagem disciplinada do estudo e o professor tem o
papel mister em promover a formação autônoma dos estudantes6.
Já se começa a desenhar a escola unitária com três relevantes princípios: o unitário,
a disciplina e o trabalho como princípio educativo. Este último é o carro-chefe de toda uma
perspectiva revolucionária de ensino. Gramsci estabelece o trabalho industrial moderno
como linha geral de toda educação familiar e escolar com base nas transformações
históricas das relações de produção. A disciplina também é histórica e se configura de
acordo com a predominância hegemônica das bases materiais que direciona os processos de
produção. Em outras palavras a disciplina moderna industrial difere-se da pré-industrial.
Comprova-se essa relação entre disciplina e trabalho industrial nos moldes da escola
unitária quando Gramsci enaltece a importância da disciplina impositiva e amorosa para a
educação infantil (a partir dos 6 anos) e para o ensino fundamental (3º e 4º ciclos ou de 5ª à
8ª série), que equivale à disciplina Fordista na fábrica. Já na fase pós-puberdade ou o ensino
médio prevalece à autodisciplina, a educação à autonomia e à liberdade da fase juvenil, que
equivale ao processo de autogestão operária da fábrica7. Em todas essas fases, são
estabelecidos cerca de 5 a 8 horas de estudos aos estudantes (sentados à mesa). Nesse

6
Já dizia Gramsci: “Uma nação que deixa de ensinar, com carinho e disciplina, às suas crianças os hábitos
elementares do estudo, sofrerá um enorme prejuízo histórico, pois está desperdiçando boa parte de sua
competência potencial”. (Nosella, Paolo. 2004. p. 134)
7
Para maiores estudos sobre a disciplina em Gramsci, ver Nosella, Paolo (2004, p.126).
sentido desconstroi-se a idéia de que o trabalho intelectual utiliza apenas forças mentais,
porque ele é também um esforço “muscular e nervoso”.
Podemos inferir que a estrutura organizacional da escola unitária segue os seguintes
pilares: disciplina, perspectiva desinteressada e o trabalho moderno como o referencial
pedagógico nas práticas (socialistas) de ensino.
Primeiramente, a escola formará a nova geração a partir da educação infantil só que
a matriz filosófica está em consonância com o ensino fundamental, pois, neste momento, a
ênfase é no ensino desinteressado, com o objetivo em preparar o estudante aos conteúdos
mais gerais acerca da estrutura política hegemônica e da organização da sociedade, ponto
fundamental para introduzir as concepções de trabalho, inserindo-lhe mesmo remotamente
ao mundo do trabalho e também para superar o mundo mítico da fantasia que nada
contribui, segundo Gramsci, aos processos substanciais na potencialização da capacidade
criativa, linha central no desenvolvimento da onilateralidade. O viés diretivo-impositivo ou
a disciplina-amorosa deve ser abandonado aos poucos à medida que o jovem amadurece e
adquire o status de homem livre e autônomo. Os chamados Liceus, (equivale ao nosso
Ensino Médio) são como se fossem o “divisor de águas”. Dos 16 anos até os 18 anos, a
cultura “desinteressada” integra o princípio educativo das escolas profissionais na medida
em que o estudante praticará a formação especializada e produtiva para a sua inserção no
trabalho industrial moderno. Por fim, o jovem ingressará nas escolas profissionalizantes
denominadas universidade (ensina-se as profissões intelectuais que são as Ciências
Humanas ou básicas) ou academia (lugar onde se ensinam as profissões ligadas diretamente
à produção prática especificamente Engenharia aplicada).
A proposta de escola unitária deve estar vinculada organicamente ao projeto de
Estado Socialista ou de Estado Unitário este, no caso, seria o coordenador do ensino
unitário. Para Gramsci a sua visão aposta na

[...] chegada da escola unitária (significar) o começo de novas


relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas
na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário refletir-
se-á portanto em todos os organismos de cultura, transformando-os
e imprimindo-lhes um novo conteúdo (...).Numa nova situação de
relações entre a vida e cultura, entre o trabalho intelectual e trabalho
industrial, as academias deveriam se tornar a organização cultural
(de sistematização, expansão e criação intelectual) daqueles
elementos que, após a escola unitária, se encaminharão para o
trabalho profissional em como (deverão se tornar) um espaço de
encontro entre estes e os universitários.(C.1975, 1.538 apud Nosella
Paolo).

A escola unitária insere-se na proposta politécnica na medida em que incrementa a


formação de trabalhadores de forma mais avançada e inovadora. De certa maneira, Gramsci
aprofundou os conhecimentos pedagógicos iniciados por Marx sem fugir da temática de
ruptura do Modo de Produção Capitalista. Toda a perspectiva de ensino, para Gramsci,
concentra-se na relação educação e trabalho; onilateralidade e Estado Socialista, categorias
com as quais Marx introduziu o debate, num tom até provocativo de como seria o ensino
socialista. Gramsci apreende e cria uma lógica conceitual no que se refere à articulação das
novas relações modernas industriais e a formação de intelectuais. Todos os sujeitos são
intelectuais, afirma, e a potencialização das capacidades intelectuais e manuais está no
ambiente cultural em que acontecem os saberes sistematizados; a escola. Lá, o estudante
produz conhecimento “desinteressado”, conhece os mecanismos coercitivos necessários
para permanecia hegemônica do capital, e pratica todas as suas ações onilaterais nas
configurações do trabalho industrial moderno.
O ensino politécnico relaciona-se com parte integrante da escola unitária, uma vez
que as categorias defendidas por Marx são aprofundadas nos escritos gramscianos.

 Outros autores:

A discussão sobre o conceito de politecnia remonta desde os anos 50. Pachoal


Lemme numa viagem à União Soviética observou e estudou o sistema educacional
soviético, publicando suas experiências no ano de 1955. Em seu livro “A educação na
U.R.S.S.”, o autor destaca um capítulo à educação politécnica, explicando a bem sucedida
articulação entre trabalho intelectual e trabalho manual e o rompimento do paradigma de
adestramento implementado pela ótica burguesa à educação dos trabalhadores.
Mario Manacorda, em sua obra “Marx e a Pedagogia Moderna”, delineia toda a
trajetória marxiana na busca pela consolidação teórica do Modo de Produção Socialista,
tendo em vista a crítica feita pelo Marx em relação ao capitalismo apresentar contradições
nefastas para a vida dos trabalhadores.
No Brasil, a discussão da educação politécnica começou tardiamente. Foi Dermeval
Saviani, nos anos 80, quem desencadeou o debate em torno da politecnia. Segundo ele, a
educação politécnica está fortemente ligada ao ensino médio, este considerado pelo autor, o
grande nó do ensino brasileiro. A sua preocupação está em construir um sistema nacional
de educação, a partir dos três níveis de ensino: fundamental, médio e superior, tendo o
ensino médio, o papel de mediador entre os dois níveis de ensino citados anteriormente,
sem cair no chamado “ecletismo”, isto é, em fundir características do primeiro e do terceiro
graus. De acordo com Saviani:

(...) no segundo grau, trata-se de explicitar o modo como o trabalho


se desenvolve e está organizado na sociedade moderna.

O ensino politécnico seria uma característica do segundo grau, e “como tal,


dominante nesse nível educacional”. (Rodrigues, 1998, p.46.).
Lucília Machado em seu livro “Politecnia, escola unitária e trabalho” analisa o
caráter unitário com o qual o sistema de ensino brasileiro deveria construir-se. Segundo ela,
o capitalismo fragmentou a tal ponto o processo de trabalho que seria mister reunificá-lo.
Em âmbito escolar, está reunificação se dá em duas análises paradoxais: uma é a burguesa,
de acordo com a autora, representado pelo sociólogo Émile Durkeim e a outra é a
proletária, tendo como representante Karl Marx. Numa abordagem tendendo para o campo
histórico, Machado relata a formação dos sistemas unificados e afirma a falta de iniciativa
por parte do Estado em consolidar a união entre os três níveis de ensino. A discussão acerca
da politecnia é inserida como:

[...] a maneira mais adequada de operacionalizar o princípio


educativo mais geral de desenvolvimento multilateral do indivíduo.
(Rodrigues, 1998, p.48).
Nesse sentido, a concepção politécnica caracteriza a concepção de escola única do
trabalho do qual a autora baseia-se na proposta socialista de unificação escolar8, e nos
aportes teóricos gramscianos fundamentais para situar a idéia de “unitariedade”.
Gaudêncio Frigotto, um grande escritor da educação, parte de uma análise em
relação à politecnia diferente das anteriores. Ele acredita que a concepção politécnica
abrange não só um nível de ensino, mas sim todo o fenômeno educativo. Portanto afirma-se
que o ensino politécnico não está restrito somente no ensino médio.
Importantes autores tentam apontar soluções para as problemáticas do sistema de
ensino brasileiro e superar o grande nó da educação escolar: o ensino médio. As várias
interpretações a respeito da construção de caminhos que contemplem a formação onilateral
e unitária partem dos pressupostos marxianos e gramscianos. Nestes, os autores brasileiros
analisam as configurações históricas do fenômeno da educação escolar e tentam contribuir
para a superação da dicotomia entre o trabalho intelectual e manual, visto especialmente no
ensino médio. É nele que a educação profissional e tecnológica ganha caráter técnico, isto
é, voltado para o desenvolvimento da forças produtivas. Por isso é necessário fazer um
aporte histórico do nascimento dos primeiros ensinos profissionais no Brasil e a articulação
destes com o ensino médio.

2- O atual ensino médio no Brasil e a materialização da dualidade estrutural na


esfera educacional: um desafio à politecnia.

Educação e trabalho nunca foi tema principal no campo da pesquisa em educação.


Segundo Kuenzer (1988), o debate surge no Brasil, a todo vigor, no final dos anos 60, no
intuito de construir, junto com a classe trabalhadora e seus intelectuais, um novo projeto
que disputasse com o hegemônico. Só que, diferentemente dos estudos existentes no campo
da sociologia industrial, as pesquisas em educação e trabalho visavam:

[...] investigar as formas através da quais o trabalhador


contraditoriamente, se educa/deseduca, no interior das relações de
produção, com ou sem a mediação da escola. (Kuenzer, 1988, p.39).
8
Lucília Machado traz uma importante contribuição quando historiciza a concepção politécnica na obra
intitulada “A politecnia nos debates pedagógicos soviéticos das décadas de 20 e 30.” (Machado, 1991).
Os primeiros cursos profissionais no Brasil, como responsabilidade do Estado,
datam no ano de 1909. Foram dezenove escolas de aprendizes de artífices, subordinadas ao
Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, que inauguraram a articulação entre
educação e trabalho. Não obstante, a dualidade estrutural, princípio fundante da sociedade
brasileira, marca desde o início a constituição do ensino profissional. O seu objetivo
diferenciava-se do ensino regular na medida em que se configuravam as características em
preparar as classes populares para atuarem no sistema produtivo em funções técnicas,
localizadas nos níveis baixo e médio da hierarquia social.
O sistema de ensino brasileiro enalteceu o seu caráter de classe, posto que a
distribuição dos alunos se deu pelos diferentes ramos e modalidades de formação, a partir
de sua origem de classe.
Após 1964, com a instalação da ditadura militar, intensificou-se uma proposta de
racionalização em todos os setores da vida social, política e econômica, transformando a
estrutura do ensino regular e da formação profissional. O discurso, o qual fundamentou a
mudança, é o da Teoria do Capital Humano, podendo ser analisado com a homologação da
segunda Lei da Educação, n° 5.692 de 1971.
A Teoria do Capital Humano surge, no Brasil, na década de 50. Porém somente a
partir de 60 é que a sua formulação ideológica assume como hegemônica, visto que as
relações “intercapitalistas” promoveram esse tipo de formulação teórica.
O conceito de capital humano, segundo Frigotto (1989), vai encontrar campo
próprio para “seu desenvolvimento no bojo das discussões sobre os fatores explicativos do
crescimento econômico” (Frigotto, 1989, p.39). Como analisa Shultz (1962 apud Frigotto,
1989) um dos defensores da teoria, o capital humano constitui-se num desdobramento e/ou
num complemento da teoria neoclássica de desenvolvimento econômico. Segundo essa
visão neoclássica:

[...] para um país sair do estágio tradicional ou pré-capitalista,


necessita de crescentes taxas de acumulação conseguidas, a médio
prazo, pelo aumento necessário da desigualdade [...]. A longo prazo,
com o fortalecimento da economia, haveria naturalmente uma
redistribuição. O crescimento atingido determinaria níveis mínimos
de desemprego, a produtividade aumentaria e haveria uma crescente
transferência dos níveis de baixa renda do setor tradicional para
setores modernos, produzindo salários mais elevados. (Frigotto,
1989, p.40)

A educação seria, portanto, potencializadora do conjunto das capacidades


intelectuais e no desenvolvimento de atitudes, essenciais para atuar no mercado de trabalho,
conseqüentemente de produção. Segundo Frigotto:

A educação passa, então, a constituir-se num dos fatores


fundamentais para explicar economicamente as diferenças de
capacidade de trabalho e as diferenças de produtividade e renda.
(Frigotto, 1989, p.41).

No Brasil, a crítica dos defensores da teoria do capital humano apontava que os


péssimos índices sociais eram gerados em função da baixa produtividade e da inadequação
da proposta educacional no momento histórico no qual o país interia-se, principalmente no
que diz respeito às necessidades do mercado de trabalho.
A segunda lei da educação n° 5.692 de 1971 implementou exatamente as
necessidades da época: tornou obrigatória a habilitação profissional para todos que
cursassem o ensino de 2° grau. Se antes, a lei n° 4.024/61, legitimou a equivalência entre o
2° grau (de caráter propedêutico) e o ensino profissional, agora o ensino de 2° grau exerce
um caráter de terminalidade9. A lei de 71 pretendeu romper com a dualidade existente entre
o ensino de tendência propedêutica e o de tendência profissionalizante por um sistema
único, “onde todos passariam independente de sua origem de classe” (Kuenzer, 1988). A
finalidade da mudança na relação entre educação e trabalho seria a “qualificação para o
trabalho através da habilitação profissional conferida pela escola”. (Kuenzer, 1988).

[...] não é por coincidência que a classe que detém o poder material
em uma dada sociedade é a que tem a posse dos meios de produção
intelectual. (Marx e Engels apud Kuenzer, 1988, p.20.).

A afirmação dos defensores da formação profissional no 2° grau em que o milagre


econômico (1968/1972) aumentaria a oferta de emprego relativo a técnicos de nível médio

9
Grifo nosso.
cai por terra, à medida que a configuração da realidade objetiva direciona o percurso
histórico de acordo com as reis bases materiais da época descritas no parágrafo anterior.
Nesse sentido, a tentativa de articular educação e trabalho nos moldes da teoria do
capital humano expressa na proposta do ensino de 2° grau profissionalizante fracassa
devido ao desenvolvimento do processo produtivo dual e das precárias condições das
escolas, principalmente e em sua maioria, as de caráter público. O desastre reconhecido
pelo MEC estabelece uma nova orientação na tentativa de acabar com o impasse da
habilitação profissional de nível técnico no 2° grau. Através do Parecer 76/75 do Conselho
Federal de Educação, fica estabelecido o caráter complementar da educação geral com a
educação profissional, uma vez que a cultura geral deveria ser o alicerce para a formação
profissional (Kuenzer, 1988). Altera-se o cenário conceptual: se antes o ensino
profissionalizante é obrigação do ensino de 2º grau, naquele momento a educação
profissional atua como objetivo do ensino secundário, este perde a função de preparação
específica para ocupações definidas. O objetivo central do Parecer era oferecer uma
formação mais ampla da realidade objetiva e uma adaptabilidade mais rápida às
transformações ocorridas no mundo do trabalho, devido ao domínio das bases cientificas
apreendidas para o exercício qualitativo da profissão. Há, portanto, dois tipos de
habilitação:

[...] as plenas e parciais, voltadas para a formação de técnicos e


auxiliares, segundo o espírito da Lei n° 5.691/71, expresso pelo
Parecer 45/72 e as básicas, de caráter mais geral, propostas pelo
Parecer 76/75. (Kuenzer, 1988, p.19).

De fato, essa alteração não promove mudanças substancias na organização e do


ensino regular articulado com o profissional. As escolas, de um modo geral, mantiveram as
suas práticas pedagógicas, com a exceção das que ministravam os cursos de formação de
magistério e de contabilidade em nível de 2º grau, devido à descaracterização curricular
pela obrigatoriedade de um núcleo comum tornando-as precipuamente propedêuticas.
Nota-se que a dualidade entre educação e trabalho mantém-se e a partir da
homologação do Parecer, a indefinição do caráter da escola média passou a ser mais visível.
A perda de significado social legitima-se com a lei 7.044/82, pois extingue ao nível formal
a escola de profissionalização obrigatória no 2° grau, embora nunca tenha existido na
prática. Em outras palavras, o Parecer suprime o caráter de terminalidade conferido através
da lei 5.691/71 para as escolas médias.
Para a classe dominante, o ensino propedêutico é fundamental para o ingresso nos
cursos superiores. Já para a classe dominada, na maioria das vezes, a escola é a única
alternativa de apropriação do saber sobre o trabalho. Apesar de a escola limitar o
conhecimento teórico do trabalhador, não é por causa dela que se origina a contradição
estrutural e sim pelo capital que determina as necessidades especificas de cada processo
produtivo.
O currículo materializa essa dinâmica dividindo-se em duas partes: uma a do saber
pensar, que se refere à educação geral, com o objetivo de apropriação dos princípios
teórico-metodológicos, de desenvolvimento da capacidade criativa e de apreensão da
cultura. A outra se remete ao saber fazer, isto é, ao ensino profissionalizante segundo o qual
é privilegiado o aprendizado de formas operacionais, de conteúdos técnicos e descolado da
realidade objetiva.
Vemos um grande impasse para o avanço da articulação entre o pensar e o fazer.
Isso afasta, no plano institucional, os princípios da politecnia e agrava, no plano prático, o
problema da dicotomia entre trabalho intelectual de trabalho manual aumentando o
sentimento de impossibilidade do trabalhador em aperfeiçoar-se nos espaços formativos,
precipuamente nos do sistema de ensino brasileiro.
Mas, o processo de trabalho novamente passa por uma substancial mudança, a partir
da década de 90, devido às transformações das bases materiais do capital. Segundo Schaff
(1990), as mudanças aconteceram graças à introdução de novas tecnologias como energia
nuclear, biotecnologia e microeletrônica. Nesse sentido, as alterações no campo dos
serviços, dos meios e instrumentos de produção, bem como na base técnica do trabalho
produzido pelo trabalhador, fomentaram uma outra relação das forças produtivas que
movimentam o capital. Essas alterações configuraram políticas públicas, promovidas por
sucessivos governos, distintas dos períodos anteriores.
O profissional frente às novas tecnologias deve ser flexível, preparado para a
mobilidade nas diferentes ocupações e nos vários empregos. Essa forma de acumular
capital é delineada por um novo padrão denominado flexível, segundo o qual vem ajudar
para os necessários ajustes da oferta da força de trabalho, promovendo uma
desregulamentação das relações trabalhistas. A conseqüência dessa desregulamentação está
numa visível precarização baseada em contratos temporários, de tempo parcial e na
subcontratação. Essa lógica é vista de forma benéfica, para os que defendem, pois coloca o
trabalhador em situação de vulnerabilidade quanto à conquista e à manutenção do emprego.
Dessa forma diante das incertezas e pela chance de ter que enfrentar sempre o inusitado,
exige-se que o trabalhador estimule a capacidade de dominar a ansiedade frente ao novo,
com a confiança em si. Segundo Marise Ramos (2006), o novo profissional consistiria em
realizar de forma polivalente, as qualidades e as competências necessárias para a conquista
e a permanência do emprego. As competências assumir-se-ia com categoria de
representação que permitiria adequar os requisitos dos empregos às exigências do capital
em termos de profissionalização, sempre com vistas à adaptabilidade do trabalhador. Para
isso o profissional exigido tem que ter uma responsabilidade responsável, comprometida e
autônoma, ao lado de posturas flexíveis frente as favoráveis incertezas. (Ramos, 2006).
Essa lógica de competências ou como Ramos (2006) denomina “gestão de
competências” intensifica a precarização das relações de trabalho na medida em que abre
margem da empresa ou organização adotar de forma flexível a disponibilidade salarial.
Segundo Tanguy, (1997 apud Ramos, 2006) o processo destinado à individualização
preconizado pelo modelo de competências e que tem como objetivo tornar socialmente
aceitável as diferenças salariais, faz com que o trabalhador concorde com essas diferenças
que são provenientes de ações e esforços individuais.
O desafio pedagógico está na construção das várias maneiras de formação que
permitam a construção desse tipo de profissional, implicando o desenvolvimento de todas
as competências, especificamente dos “esquemas cognitivos e socioafetivos”, para que o
profissional enfrente diversas situações de trabalho e de não-trabalho.
O desenvolvimento das competências, portanto, não faz apelos apenas as formações
cognitivas e individualizadas para o trabalho, mas sim ataca as competências subjetivas do
trabalhador, pelo fato de impor a ele que busque alternativas de integração social, exigindo
dele um domínio e um autoconhecimento para mobilizar-se frente a sua sobrevivência.
Essa nova conjuntura (re)modelou a educação profissional, transformando-se numa
“aposta incerta” de desenvolvimento de atributos individuais, como precípua condição de
se obter um emprego. A educação profissional volta-se para o aprimoramento de
competências individuais, visando possibilitar atualizações e reorientações profissionais
como alternativas de permanência ou reinserção no mercado de trabalho. Pelo visto, o
sistema de ensino brasileiro continua a influenciar a dualidade estrutural entre o ensino de
segundo grau e o ensino profissional.
A lei do ensino profissional estava “antiga” no que tange as novas relações de
produção promovidas pelas novas tecnologias. Precisava-se de uma reformulação
institucional.
O primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso 1995/1998, no
campo da educação profissional, caracteriza-se pelas principais homologações da 3ª Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)10 n° 9.394 de 1996, pelo projeto de lei
n° 1.603/96 e pelo fatítigo decreto n° 2.208/97. Nesse período de Governo Cardoso, as
implementações das políticas públicas voltadas para a educação profissional, na análise de
Rodrigues (2005), recriam uma explícita dualidade estrutural entre ensino médio11 e o
referido ensino. Segundo ele,

[...] reproduzia, (o decreto 2.208/97) de certo modo, a Reforma


Gustavo Capanema, de 1942, [...] posto que estabelecera de forma
inequívoca a dualidade estrutural do ensino brasileiro. (Rodrigues,
2005, p.261).

O decreto 2.208/97, denominado Reforma da Educação Profissional, não agradou


educadores e intelectuais da educação. O referido documento regulamenta o § 2° do artigo
36 e os artigos 39 a 42 da LDBEN e estabelece que a Educação Profissional compreenderá
em três níveis: básico, técnico e tecnológico.

10
Há um importante dado em se tratando da formação em nível técnico na LDBEN que é a constituição da
educação profissional numa modalidade de ensino. Isso desencadeia a desvinculação do ensino médio,
abrindo acesso tanto para alunos matriculados no ensino fundamental, médio e superior, bem como o
trabalhador em geral, jovem ou adulto. Portanto a educação profissional tem um efeito ‘agregador’ no que
tange a junção de diferentes alunos, nas mais variados níveis de escolarização.
11
A LDBEN transformou o ensino de 2° grau em nível médio, considerada uma das modalidades de ensino.
Por causa disso, detenho as minhas análises, a partir do momento da implantação da LDBEN, a nomeclarura
ensino médio, por fazer coerência ao período histórico que venho relatando.
O Decreto permite, também, a organização do ensino profissional independente do
ensino médio, ainda que permitida a complementaridade até o limite de 25% do total da
carga horária mínima desse nível de ensino12. Reforça-se a tese do Rodrigues ao dizer que
esse “dispositivo antidemocrático” acentua a dualidade estrutural do ensino brasileiro.
Os pontos críticos desse Decreto seriam a independência entre ensino médio e
educação profissional e a divisão em três níveis levantando uma enorme polêmica na
articulação dos três níveis associado às reais necessidades do trabalhador em formar-se com
todas as exigências de uma boa formação, para a sua inserção no mercado de trabalho.
Setores sociais voltados para a pesquisa na educação, professores em todos os níveis de
ensino e sindicatos e intelectuais, rebelaram-se contra a continuidade do Decreto 2.208/97.
Conforme Rodrigues (2005), esse Decreto atrasou o processo a educação brasileira em 55
anos, uma vez que a Reforma Gustavo Capanema em 1942 também reforçava a dualidade
estrutural do ensino, da mesma forma que o então legítimo Decreto de 1997 fizera.
O segundo mandato do Presidente Cardoso manteve a vigência do Decreto. Não
obstante, a revogação estava com os dias, ou melhor, com os anos contados.
Só com a expectativa do ganho de Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2002
é que a construção de um novo projeto de educação profissional, voltada para uma
perspectiva politécnica, poderia ser debatido e construído. Uma de suas bandeiras de
campanha era a revogação imediata do Decreto 2.208/97, se caso o Lula assumisse a
presidência. Ele ganha as eleições, revoga o Decreto e, no entanto, ao invés de suscitar a
discussão acerca dos rumos do ensino profissional brasileiro com a sociedade civil, ele
implementa, da mesma maneira que o seu sucedente, um Decreto, agora o 5.154/2004. Este
fez com que houvesse dois grupos a respeito do posicionamento a ser tomado. (Rodrigues,
2005). Uns defenderam o Decreto como a única maneira para superar a dualidade entre
ensino médio e ensino profissional. Outros acreditaram que o documento nada mais fez do
que ‘naturalizar a dualidade’, (Rodrigues, 2005) embora os dois grupos concordem com a
concepção politécnica, repudiando a dualidade da educação brasileira.

12
Dados extraídos do texto “Trabalho sobre Educação Profissionalizante” da Professora Simone Valdete dos
Santos e do próprio Decreto 2.208/97.
Esse Decreto, além de legitimar a dualidade, favorece as mais variadas formas de
articulação com o ensino médio. Conforme Rodrigues, (2005) com a homologação da
5.154/04, nós demos um salto ‘temporal’ saindo do período Capanema, em 1942,
representado pelo n° 2.208/97, para o ano de 1982 com a homologação da lei n° 7.044/82,
representado pelo Decreto em vigor. Este último, portanto, promove mais uma acomodação
de conflitos, como aconteceu na lei 7.044/82 do que a tentativa em superar a dualidade
educacional13.
Vemos uma grande semelhança, principalmente no que tange o inciso I do
homologado documento. Muito se parece com o implantado no governo do Fernando
Henrique Cardoso, no intitulado nível médio, que diz respeito à inserção de estudantes na
educação profissional independente de escolaridade prévia. Não fica clara a
intencionalidade dessa formação inicial e continuada, porém podemos relacioná-la ao
Projeto Escola de Fábrica através do qual favorece a expansão da qualificação profissional,
de jovens entre 15 e 18 anos, pertencentes à classe dominada no intuito de incluí-la, por
meio do exercício de uma profissão. O apoio vem de empresas e unidades produtivas com o
objetivo em preparar o profissional. Parece muito com a proposta do SENAI criado em
1942, mas com uma nova roupagem. Nesse sentido, o Projeto Escola na Fábrica relaciona
educação de jovens e adultos com a educação profissional.
Outro fator relevante no Decreto é a modularização, que por sinal, é extraída no
documento anterior. Esse fator é visto no § 1°, reformulada pela idéia de itinerário
formativo, segundo este forma um:

conjunto de etapas que compõem a organização da educação


profissional em uma determinada área, possibilitando o
aproveitamento contínuo e articulado dos estudos. (Brasil, 2004. In
Rodrigues, 2005).

Segundo o discurso do capital, a modularização permite a flexibilização do


trabalhador, já que este precisa superar o desemprego, empregando-se, isto é, a de possuir
uma ocupação, mesmo que seja momentânea.

13
É importante frisar e o Professor José Rodrigues (2005a) alude que a dualidade educacional, segundo
Manacorda (1989), é milenar e sendo assim, seria inviável superá-la numa sociedade constituída por classes
sociais.
O atual documento abre caminhos também para que o ensino profissional tenha ou
não um caráter terminal. De acordo com o artigo 6, os cursos ou programas de educação
profissional que fizerem, em sentido terminal, fornecerão ‘certificados de qualificação’
como ‘saídas intermediárias’, após a conclusão com aproveitamento14.
Já os que fizerem técnica de nível médio e os cursos de educação profissional
tecnológica de graduação, conforme o artigo 7, obterão o diploma após a conclusão com
aproveitamento.15
Essa diferenciação só agrava a qualidade na formação educacional do trabalhador.
Se por um lado temos os alunos-certificados, de outro temos os alunos-diplomados. Já
afirmamos que as ‘leis do capital’ configuram as demandas dos processos produtivos e
delineia de que forma encaminhar-se-á a educação profissional. Nesse sentido, o
trabalhador fica a mercê das rápidas transformações do Modo de Produção Capitalista. Na
conjuntura atual, a competição não só está em ter e manter um emprego, como conseguir
uma garantia de que a sua formação efetivamente deu o rendimento necessário a sua
qualidade profissional.
Quanto à questão curricular, o inciso I do artigo 4 naturaliza as Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Profissional (DCN’s), criando novamente um caráter
homogeinizador e avesso às particularidades regionais. Somente no inciso III que a alusão
ao projeto político pedagógico é feita, porém sendo subsumido às normas do sistema de
ensino, inciso II e às DCN’s da Educação Profissional, inciso I.
Dessa forma, a perspectiva por uma formação onilateral, no campo da educação
escolar, pautada na concepção politécnica está cada vez mais distante de ser
institucionalizada. Vemos que este último Decreto, implantado no Governo Lula, supera
um outro implantado pelo Governo Fernando Cardoso16. A tentativa do Governo Lula em
acomodar todos os setores da sociedade que deparam os seus estudos a respeito da

14
Grifo nosso.
15
Idem.
16
Notem como é corrente, nos últimos anos, as implantações de políticas públicas, voltadas para a área de
educação, serem configuradas por meio de Decretos. Alertamos, tal como o Rodrigues (2005), para a
necessidade de analisarmos até que ponto os Governos usam de poderes antidemocráticos para legitimarem
políticas também antidemocráticas. Concordar com os textos expostos nos Decretos é antes de tudo aceitar os
poderes arbitrários sobres os quais os sucessivos Presidentes do Brasil tanto fazem uso.
educação profissional e ainda atentar para as análises dos grandes empresários e dos
organismos internacionais, estes que delineiam as políticas educacionais de acordo com as
‘leis do capital’, transformou o ensino profissional num grande agregador do ensino médio,
podendo se feito em várias formas como já foi salientado. Essa flexibilização, fruto das
mudanças nas ‘leis do capital’, adequa a Educação Profissional no atual padrão de
acumulação chamado flexível, colocando o trabalhador apto, competente17 às substancias e
rápidas mudanças do mercado de trabalho. Essa adaptabilidade coloca o trabalhador
vulnerável e a mercê de empregos precarizados e possivelmente sem o cumprimento de
seus direitos trabalhistas.
Não obstante, mesmo tendo a realidade objetiva contra os nossos ideais socialistas,
temos escolas que tentam mudar os métodos e os princípios pedagógicos em prol da
realização plena do trabalhador com o objetivo em apreender conhecimentos que lhes farão
não só capazes em atuar nesse mercado flexível de trabalho, mas também apreender,
criticamente, que as relações de produção não estão a serviço da classe trabalhadora, mas
sim da classe dominante18.
Conhecer, interpretar e internalizar os direitos do trabalhador faz parte dos
conteúdos da perspectiva politécnica de ensino, fortificando a reorganização da classe
trabalhadora através de reflexões críticas.

3-O currículo como instrumento transformador da sociedade:

De fato, são poucas as iniciativas que propõem um currículo autônomo, crítico e


principalmente, voltado para a transformação social.
Citamos algumas dificuldades para a implementação curricular da concepção
politécnica, aludindo como referência teórica os subsistemas ou âmbitos exteriores à
organização escolar desenvolvidos por Gimeno Sacristán (2000)19.

17
Grifo nosso.
18
É o caso da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio. Por mais que haja a tentativa, a instituição
depara-se na imposição de adequar-se perante a lei. Dessa, forma fica pelo caminho a concepção politécnica.
19
São 8 subsistemas: político-administartivo; participação e controle; ordenação do sistema educativo;
produção de meios; criação cultural, científico, etc.; técnico-pedagógico; inovação e; prático-pegagógico.
(Gimeno Sacristán, 2000)
O âmbito, político-administrativo, é o que mais interfere na autonomia curricular.
Com reformulações curriculares muitas das vezes antagônicas as pensadas nas escolas, a
maquinaria burocrática do governo determina diretrizes, com o objetivo de tornar o
currículo homogêneo, já que as necessidades impostas pelo Ministério da Educação são de
necessidades da própria permanência do discurso hegemônico do capital.
Outro grande fator estaria focado no subsistema técnico-pedagógico. Com
formações de professores aligeiradas e os saberes científicos cada vez mais presos na
academia, os profissionais da educação são impedidos de refletir e pensar em diversas
maneiras de produzir o trabalho pedagógico. O conhecimento cerceado prejudica a
formação autônoma e crítica dos que estudam educação.
Por conseguinte, o último subsistema pelos qual impede as inovações curriculares
da escola é o de produção de meios. É como se fosse um prolongamento da discussão
anterior. Se os estudantes não são preparados em currículos que despertem as suas
múltiplas determinações, como então trabalhar e produzir livros-didáticos que despertem a
atividade criativa dos seus futuros discentes? O profissional que foi impedido de optar sua
posição, frente às inúmeras teorias coadunadas na permanência do Modo de Produção
Capitalista ou na ruptura do mesmo dificilmente estimulará nos seus discentes a escolhas de
opções. Por isso, as instituições20 formadores de profissionais devem pautar seus currículos
enquanto práxis, abordando a construção curricular como ato político, fomentando a
autonomia dos que participa do processo.
Portanto, a tentativa por qualificar a organicidade e implantar uma filosofia
politecnica para o sistema educacional parte também de entendermos o currículo enquanto
teoria metodológica; uma práxis intencional e transformadora, desmistificando os
equívocos causados pela falta de sistematização teórica que atualmente os pesquisadores
tentam reverter esse quadro.
O currículo da escola politécnica deve focar todas as formas de produção do
conhecimento. Os conteúdos são meios importantes, porém não são os únicos instrumentos

20
Não só as instituições formadoras, mas todo o sistema de ensino. Como a análise pauta-se no subsistema
voltado à formação profissional, detenho meu foco na mesma.
de potencialização do saber. Construir a metodologia de ensino com o corpo escolar é o
primeiro passo para a interação entre o conhecimento, o estudante e o professor.
4- Considerações finais:

O estudo a politecnia como alternativa ao ensino brasileiro deve ser ampliado com
urgência. Vemos grandes retrocessos (históricos) na maneira de como a escola é concebida
pelo setor hegemônico. Isso deforma o papel da escola, distanciando a grande possibilidade
ser um movimento de luta crítica, reflexiva e transformadora.
O currículo certamente tem a sua função transformadora, muitas das vezes
escamoteada pela falta de compreensão unitária do mesmo. Ater as nossas análises na
elaboração curricular conjunta modifica toda a organização no interior da escola. Com isso,
o compromisso político em implementar o projeto curricular também estará em
consonância com as concepções que o corpo dos profissionais da educação defende.
O debate em torno dos ideais socialistas alude Marx e principalmente Gramsci,
como os grandes idealizadores do projeto escolar revolucionário. Cada um, em seu tempo,
tentou criar uma escola que condiz com a formação da plena do estudante.
Ampliar esse ideal deve ser tarefa de todos aqueles que acreditam na transformação
das bases matérias que fundamentam a sociedade na qual vivemos.

5- Bibliografia:

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Paulo: Cortez: Autores Associados, 1989.
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Tradução: Ernani F. da Fonseca Rosa. Porto Alegre. Artmed Editora, 2000.
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