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CONTRA O NEGRO¹
George Breitman
Tantas pessoas pressupõem que a antipatia racial é uma reação natural ou instintiva que é
importante enfatizar o fato do preconceito racial como nós o conhecemos não existir antes da idade
moderna. Mais precisamente, havia antipatia a grupos que, aqueles que leem história
anacronicamente tomam por preconceito, mas, na realidade, esta antipatia pouco ou nada tem a
ver com cor ou outras diferenças físicas pelas quais as raças se distinguem. Por exemplo, os
antigos egípcios desdenhavam os negros que viviam ao sul. Eles escravizaram esses negros e se
referiam pejorativamente a eles. Muitos escritores, vendo nessa situação uma semelhança com
atitudes raciais posteriores, atribuíram este escárnio ao preconceito de cor. Mas os egípcios
desdenhavam também os asiáticos que vivam em terras arrasadas, ou trogloditas, como Heródoto
os chamou, e seus vizinhos, que tinham pele tão clara quanto os egípcios, ou até mais clara. Os
artistas egípcios caricaturavam os cativos obtidos em guerras, mas enfatizavam os narizes
encurvados dos hititas, o vestuário de lã dos hebreus, e as vestimentas peculiares dos libaneses
tanto quanto a cor ou os lábios grossos dos negros. O fato dos egípcios se misturarem livremente
com seus vizinhos ao sul, seja na escravidão ou não, se evidencia pelo fato de que alguns dos
faraós tinham certamente traços negros e que eventualmente o Egito tenha sido governado por
uma dinastia etíope. (Brown, 1942)7.
Não parece haver base para inferir antagonismo racial nos egípcios, babilônios ou persas.
(Cox)
Sobre os gregos:
...nós não encontramos preconceito racial até mesmo no grande império helenístico, que se
estendeu, mais do que qualquer outro império europeu até o final do século XV, a territórios de
povos de raças diferentes.
Os gregos do período helenístico possuíam um sentimento de pertencimento cultural, não racial, e
portanto, sua divisão básica dos povos do mundo se constituía entre gregos bárbaros – os
bárbaros tendo sido todos aqueles que não possuíam a cultura grega, especialmente sua língua...
as pessoas das cidades-estados gregas, que fundaram colônias entre os bárbaros nos litorais do
Mar Negro e do Mediterrâneo, receberam-nos na medida em que eram capazes de participar da
cultura grega, e frequentemente casavam-se livremente entre si. Os gregos sabiam que possuíam
uma cultura superior à dos bárbaros, mas incluíam europeus, africanos, e asiáticos no conceito de
Hellas, na medida em que esses povos adquiriram conhecimento prático da cultura grega.
Sobre os romanos:
Em Roma, assim como na Grécia, os escravos não diferiam de homens livres em relação à
aparência. R.H. Barrow, em seu estudo sobre os escravos romanos, afirma que “nem cor, nem
vestimenta revelavam sua condição”. Escravos de diferentes nacionalidades casavam-se entre si.
Não havia barreira de cor. Uma mulher poderia ser desprezada como esposa porque vinha de um
grupo desprezado ou porque praticava rituais bárbaros, mas não porque sua pele era mais escura.
Além do mais, como W.W. Buckland pontua, “qualquer cidadão poderia tornar-se escravo; quase
qualquer escravo poderia tornar-se um cidadão.” (Brown, 1949)
Nem no mundo antigo, nem tampouco no mundo que se estende até a parte final do século XVIII
havia qualquer noção correspondente [a racismo]... Um estudo de culturas e literaturas da
humanidade, tanto antigas quanto recentes, nos mostra que a noção de raças natural ou
biologicamente diferentes umas das outras, tanto mental quanto fisicamente, é uma ideia que não
surgiu até o final do século XVIII”, ou por volta da Revolução Francesa.
Cox afirma que, se tivesse que definir um ano que marcasse o surgimento de tais relações
raciais, escolheria 1493-1494 – quando o Papa garantiu aos Estados católicos da Espanha e
de Portugal jurisdição e o direito de explorar todos os povos hereges (predominantemente não-
brancos) e seus recursos. Ele enxerga “preconceito de raça nascente” com o início do co-
mércio de escravos: “Embora este modo peculiar de exploração estivesse ainda em sua
infância, já havia alcançado suas características fundamentais”. Entretanto, acredita que “o
antagonismo racial alcançou completa maturidade” somente na segunda metade do século
XIX.
Seja qual for o século escolhido, a questão é esta: o preconceito racial contra o negro surgiu
para justificar e preservar o sistema de trabalho escravista que operava de acordo com os
interesses do capitalismo em estágios pré-industriais, e manteve-se ligeiramente modificado
pelo capitalismo industrial após a escravidão tornar-se um obstáculo para o desenvolvimento
posterior do capitalismo e ser abolida. Poucas coisas no mundo estão mais marcadas com as
características do capitalismo.
As implicações deste fato são tão claras que não é surpresa receber tão pouca atenção nas
escolas e na imprensa de um país dominado por capitalistas e seus apologistas. O preconceito
contra o negro surgiu a partir das necessidades do capitalismo, é um produto do capitalismo,
pertence ao capitalismo e somente morrerá quando o capitalismo morrer.
Nós, os que vamos participar da substituição do capitalismo pelo socialismo, e que temos
boas razões para sermos curiosos a respeito dos primeiros passos do socialismo – porque
vamos viver nele – não precisamos temer a possibilidade de qualquer arrasto em relação ao
preconceito racial. Ao contrário do sistema capitalista que dominou este país depois da guerra
civil, a sociedade socialista será livre de qualquer característica exploradora; não haverá uso
concebível para o preconceito de raça, e irá conscientemente tratar de erradicá-lo junto com
outros adereços do antigo sistema. É por isso que o preconceito racial irá definhar com a morte
do capitalismo assim como a folha definha quando a árvore morre, e não muito tempo depois.
1 Publicado em Fourth International, Vol. 15 n 2, 1954, pp. 42-45. Disponível em ht-
tps://www.marxists.org/history/etol/newspape/fi/vol15/no02/v15n02-w127-Spring-1954-fourth-
int.pdf
2 Abraham Lincoln foi o 16º presidente dos Estados Unidos (março 1861 – abril 1865).
Advogado e membro do partido Republicano estiveram à frente da União durante a guerra civil
norte-americana. Em 1º de janeiro de 1863 assinou a Proclamação de Emancipação, medida
executiva que aboliu a escravidão em todo o território ocupado dos Estados Unidos, inclusive
nos estados Confederados. Com o da guerra civil, a escravidão foi abolida pela 13ª Emenda
Constitucional dos Estados Unidos, sujeita a ratificação pelos estados. Lincoln foi assassinado
em 15 de abril de 1865, poucos dias após a rendição do exército Confederado.
3 Refere-se à Guerra Civil norte-americana (1861-1865). A princípio sete estados da região sul
(número que chegaria a onze) declaram sua secessão dos Estados Unidos da América e
formaram os Estados Confederados da América. Os estados que permaneceram fiéis ao
governo ficaram conhecidos como União. Embora seja resultado da confluência de diversos
fatores em um país que assistia a um desenvolvimento estrondoso das forças produtivas –
alicerce fundamental para sua futura consolidação como país imperialista no capitalismo – a
raiz da divergência estava na defesa do uso de mão de obra escrava pelos estados
Confederados, que também tratavam de usá-la na expansão territorial em direção ao oeste.
5 Refere-se a trecho de Karl Marx, O Capital, Livro I, capítulo 26. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2013 p. 821. 15
6 Nenhum deles alegaria ter sido o primeiro a descobrir essa informação histórica, e pode
muito bem ter acontecido que outros estudiosos desconhecidos por nós os tenham precedido
em escrever sobre esse tema em anos recentes; tudo o que sabemos é que chamou a nossa
atenção primeiramente a partir de seus livros. Material histórico frequentemente é
negligenciado por longos períodos até que necessidades políticas e sociais atuais despertem
novamente o interesse por ele. Esses escritores sem dúvida foram estimulados a um interesse
novo e mais útil nesse assunto nos últimos 15 a 20 anos a partir do crescimento da militância
negra americana e as lutas coloniais por independência. (Nota de Breitman).
7 O autor especifica os capítulos dos livros utilizados no corpo do texto. A tradução de todos os
trechos é nossa.
8 Escravidão não se restringiu aos negros no começo. Antes do escravo negro nas plantations,
existiu o índio escravo e o servo branco. Mas o trabalho escravo negro provou-se mais barato e
mais proveitoso, e eventualmente aqueles foram abandonados. O estudo mais satisfatório
sobre esta questão está no excelente livro de Eric Williams, Capitalismo e Escravidão, 1944.
Segundo Williams: “Eis aí, portanto, a origem da escravidão negra. A razão foi econômica, não
racial; não teve nada a ver com a cor da pele do trabalhador, e sim com o baixo custo da mão
de obra. Comparada ao trabalho indígena e branco, a escravidão negra era muito superior. (...)
Suas feições, o cabelo, a cor e a dentição, suas características ‘sub-humanas’ tão amplamente
invocadas, não passaram de racionalização posterior para justificar um fato econômico
simples: as colônias precisavam de mão de obra e recorreram ao trabalho negro porque era o
melhor e mais barato. Não era uma teoria; era uma conclusão prática extraída da experiência
pessoal do fazendeiro. Ele iria até a Lua, se precisasse, para conseguir mão de obra. A África
ficava mais perto do que a Lua, mais perto também do que as terras mais populosas da Índia e
da China. Mas estas também teriam sua vez.” Eric Williams, Capitalismo e Escravidão.
Companhia das Letras, 2012, p.50,51.(Nota de Breitman)