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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PAULA MOREIRA CASTELLUCCI

Desigualdade no Instituto de Psicologia da Universidade


de São Paulo: narrativas e análises de estudantes das
classes menos favorecidas

São Paulo

2017
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Sumário

1 Introdução: a desigualdade da Universidade ........................................................................................ 3


2 Objetivo e método ................................................................................................................................ 5
2.1 Método .......................................................................................................................................... 6
3 As narrativas......................................................................................................................................... 7
3.1 As narrativas como escrita-ato ...................................................................................................... 7
3.2 Entrevista 1.................................................................................................................................. 10
3.3 Entrevista 2.................................................................................................................................. 22
3.4 Entrevista 3.................................................................................................................................. 35
3.5 Entrevista 4.................................................................................................................................. 50
4 Considerações finais........................................................................................................................... 63
Referências ............................................................................................................................................ 69
Anexo A - Termo de consentimento livre e esclarecido ....................................................................... 71
Anexo B - Roteiro de perguntas ........................................................................................................... 72
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1 Introdução: a desigualdade da Universidade

A Universidade de São Paulo (USP), enquanto instituição, é efeito do jogo de forças


que nela se opera: no embate das pressões de origens diversas, se constitui sua estrutura. O
posicionamento dos atores e a força das diferentes direções políticas relacionadas à educação
superior são determinantes dos rumos que a instituição toma (Foucault, 1988/1999).
A USP, assim como outros aparelhos de educação superior públicos, desde a sua
criação constitui-se voltada para as classes mais privilegiadas da sociedade, tendo os
interesses dos grupos dominantes definido seus objetivos e prioridades. A disparidade de
acesso à Universidade, entre os grupos sociais, reflete um ensino superior que se estabelece
como privilégio, que subverte o sentido do público, na medida em que não se propõe a
atender ao bem comum (Patto, 2009; Gonçalves Filho, 1998). Assim, a organização da
instituição, desde o ingresso através do vestibular até seu projeto político-pedagógico, leva em
conta os interesses, possibilidades e referenciais culturais das classes socioeconômicas mais
altas na hierarquia social.
Costumeiramente se justifica um corpo discente altamente elitizado a partir da
alegação de que a formação que recebem as classes menos privilegiadas, na escola pública, é
muito precária, não sendo suficiente para sustentar a educação superior. Ocorre que, na
verdade, uma das razões para um ensino gratuito de baixa qualidade, com tantas escolas com
falta de recursos materiais, escassez de funcionários, altas taxas de repetência e
semianalfabetismo, é o interesse dos grupos dominantes.
A educação, então, quando as classes hegemônicas sequestram o Estado e pautam seus
projetos, é posta à serviço da reprodução da estrutura social, contribuindo com a perpetuação
da dominação econômica, cultural e política sobre os grupos menos privilegiados. Impedindo
aos mais pobres o acesso à educação superior, os mais ricos garantem uma formação que lhes
permitirá desempenhar as funções de maior prestígio social e remuneração, restando aos
demais os cargos menos valorizados. O ciclo se completa quando a educação básica é incluída
no raciocínio; as instituições públicas de ensino básico, costumeiramente precárias e
sucateadas, que não conseguem prover uma formação adequada, contrastam com as escolas
particulares que proporcionam um ensino mais potente, fortalecendo o sistema educacional
dual no país. Este mecanismo, portanto, é uma forma das camadas mais beneficiadas
manterem seus privilégios e assegurarem a existência de mão de obra pouco qualificada,
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necessária para os trabalhos menos valorizados e em que ocorre maior exploração. A


ineficiência do Estado em prover uma educação básica e gratuita de qualidade e um ensino
superior suficiente, que dê conta de suprir as necessidades sociais, não são, assim, frutos de
falhas administrativas ou falta de recursos, como se costuma alegar, mas resultado de uma
estratégia governamental de manutenção do status quo (Patto, 1990/1993; Bourdieu &
Champagne, 1993/2008; Araújo, 2012; Moysés & Collares, 1997).
No contexto descrito, a educação se materializa como produtora e reprodutora da
estratificação e dominação social, e a estrutura de poder da USP, assim como as relações que
nela se estabelecem, transparecem quem são os/as destinatários/as do ensino superior
brasileiro. A Universidade, pautada pela compreensão sobre o papel da educação apresentada,
é projetada para um tipo de estudante, muito diferente do aluno/da aluna de baixa renda; a
saber, proveniente das classes mais privilegiadas, com certa bagagem cultural, determinadas
possibilidades econômicas e formas de viver. As práticas desenvolvidas na instituição
revelam as disparidades em relação aos/às estudantes que fogem ao padrão hegemônico,
produzindo sofrimento, humilhação, despertencimento e sensação de inadequação. O
desfavorecimento econômico também se atrela, em decorrência de como os cursos são
planejados, à prejuízos no exercício da função aluno, impondo entraves ao aprendizado.
Entendemos que no projeto político-pedagógico descrito há intencionalidade de
manter a estrutura social vigente, à despeito da promoção de uma educação gratuita, universal
e de qualidade, e, também, que as instâncias de decisão das universidades públicas, muitas
vezes, atuam com este mesmo objetivo, sendo possível identificar, nas práticas da
Universidade, mecanismos que reproduzem as desigualdades sociais. Alguns atores do campo
universitário, porém, aderem a esta lógica sem perceber os efeitos de suas ações (Bourdieu &
Champagne, 1993/2008); geralmente pertencentes às classes mais favorecidas, docentes e
estudantes, não podendo enxergar os privilégios de seus grupos e, portanto, naturalizando os
efeitos das desigualdades de classe, deslegitimam as histórias dos que não se enquadram no
perfil do aluno USP. Nesse sentido, esta pesquisa de Iniciação Científica se configura como
um desafio, na medida em que faz necessário o reconhecimento do próprio lugar da
pesquisadora como (re)produtora das desigualdades sociais, exigindo cuidado com a escrita e
com os posicionamentos durante a coleta dos depoimentos.
Partindo da concepção de que é possível operar no jogo de forças que se estabelece, a
presente pesquisa pretende disputar o sentido que se atribui à educação e ao que é público.
Entendendo como ilegítima a apropriação do que é estatal pelas classes dominantes, pretende-
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se fortalecer a concepção de que a Universidade de São Paulo, em sendo uma instituição


pública, deveria cumprir sua função social como tal (Moysés & Collares, 1997). Também,
considerando que a educação pode se desenvolver no sentido de rever o funcionamento social
e rachar com o instituído, espera-se produzir um material que seja potente neste sentido.
Ademais, o fazer científico, dada a apropriação do universo acadêmico pelas classes mais
privilegiadas, encontra-se dominado pelos referenciais destes grupos, tornando especialmente
importante que trabalhos sobre as temáticas das populações menos favorecidas possam
circular neste meio, tanto porque espera-se que a Academia possa estabelecer mais pontes
com estas outras histórias, quanto para legitimar a existência de outros padrões neste contexto.
As discussões acerca do ensino como ferramenta de reprodução social tornam-se ainda
mais relevantes quando se leva em conta a recente aprovação pelo Conselho Universitário 1,
em junho de 2017, da adesão da USP ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), tornando o
ENEM2 uma forma de ingresso a seus cursos de graduação. Esperando-se que a Universidade
receba um maior contingente de alunos e alunas provenientes das escolas públicas, muitos
deles/delas de baixa renda, faz-se necessário pensar a inclusão (ou exclusão) que sofrerão.
Sem garantir a permanência destes estudantes, a medida, cuja finalidade é tornar a
Universidade mais permeável aos desfavorecidos política, econômica e socialmente, será mais
um enganoso aparente avanço da educação brasileira, que depositará nos corpos desses
estudantes o peso da desvalorização do ensino. Vale ressaltar que a possibilidade de
pertencimento à universidade depende de medidas econômicas, não supridas pelo atual
programa de apoio à permanência e formação estudantil da USP, e também requer uma
estrutura institucional não violenta, que contemple as diversas formas de viver, pensar e agir.

2 Objetivo e método

Interessados em analisar práticas no IP que repetem, no campo da educação, a


estratificação e dominação social, a presente pesquisa objetivou a construção de narrativas a
partir de conversas com cinco estudantes universitários do Instituto de Psicologia da USP que
compartilharam suas reflexões sobre um cotidiano em que se produz e reproduz as

1
O Conselho Universitário (CO) é o órgão legislador de maior poder da Universidade, composto pelo reitor, pró-
reitores, diretores das unidades e diversos outros representantes da comunidade USP
2
Exame Nacional do Ensino Médio
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desigualdades sociais no IPUSP e sobre as estratégias de enfrentamento desenvolvidas. Nesse


sentido, a construção das narrativas tornou-se o objetivo dessa pesquisa pois, como
apresentaremos na discussão metodológica, seu processo de construção exigiu colocar em
análise as práticas cotidianas em que estamos (pesquisador e pesquisado) inseridos.

2.1 Método

Como estratégia para compreender as questões acerca da reprodução das


desigualdades sociais e os enfrentamentos para transformar as relações produtoras de marcas
de inadequação e despertencimento, acessamos histórias de alunos e alunas dos grupos menos
privilegiados, que permitiram delinear com mais precisão as situações onde as questões de
classe se tornam mais evidentes sob a ótica deles/as.
Inicialmente foram realizadas leituras a respeito de temas concernetes à pesquisa,
desde questões metolodológicas, até aspectos da educação superior das classes menos
abastadas. Planejou-se, então, o roteiro que guiaria as conversas com os alunos e as alunas do
IPUSP, atentando para os efeitos de nossas perguntas (Moraes, 2010; Passos & Barros, 2009).
Essas conversas-entrevistas foram, portanto, disparadas por questões formuladas
anteriormente, cabendo nomeá-las como entrevistas semi estruturadas. A partir de indicações
de membros do Coletivo de Classe IPUSP3, selecionou-se quatro estudantes pertencentes ao
grupo, prezando-se pela diversidade de gênero e período da graduação.
As conversas-entrevistas, realizadas em locais estabelecidos conjuntamente pela
entrevistadora e o/a depoente foram gravadas e posteriormente transcritas. Buscou-se produzir
uma escrita com a direção ética de defender o pertencimento dos/das estudantes mais pobres
na instituição, isto é, a pesquisa visou construir narrativas que nos ajudem na compreensão e
no enfrentamento das situações de produção e reprodução de desigualdade. As conversas
foram transcritas e discutidas com a orientadora, com o objetivo de eleger temáticas que
originassem eixos de análise. Por exemplo, um tema recorrente foi o despertencimento que
ocorre tanto no contato com colegas do IPUSP, como na relação com familiares e antigos
colegas, que não vivem a USP como algo possível. Os temas iam e vinham durante as
conversas. Com base nesses temas, foram redigidas as narrativas.

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Coletivo auto-organizado de estudantes de baixa renda do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, que visa o acolhimento e combate de opressões de classe social no Instituto.
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As narrativas foram, então, entregues aos/às entrevistados/as para que pudessem agir
sobre a forma como suas histórias seriam retratadas e, também, para que suas reflexões acerca
dos textos produzidos pudessem ser incorporadas à pesquisa. A partir deste processo de
escrita das narrativas e discussão das mesmas com os alunos e as alunas, foram elencadas
questões que se destacaram para compor as considerações finais.
Foram coletadas as assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no
momento da entrevista e também depois do compartilhamento das narrativas com os/as
depoentes. Optou-se por retirar o nome dos entrevistados e das entrevistadas do texto, afim de
preservar seu anonimato.

3 As narrativas

3.1 As narrativas como escrita-ato

A questão que conduziu o desenvolvimento de uma pesquisa relacionada à


(re)produção da desigualdade social nas relações do Instituto de Psicologia da USP foi gerada
a partir de um incômodo, por parte da pesquisadora, ao se perceber como elemento do
funcionamento produtor de estratificação e dominação social da instituição. Durante uma
atividade proposta por estudantes, em uma disciplina obrigatória, em que toda a turma estava
presente, as tensões provocadas pelas desigualdades de classe vieram à tona. A dinâmica
realizada permitia ver concretamente as diferenças socioeconômicas presentes no grupo e
criava espaço para que se conversasse sobre a temática. Foram compartilhadas muitas
situações onde alunos e alunas mostraram-se incomodados, deslegitimados e excluídos no
cotidiano do Instituto, na interação com professores/as ou colegas, e também fora da
instituição.
A partir desta experiência, a pesquisadora pode se sensibilizar para a repercussão que
suas ações tinham sobre estudantes pertencentes às classes menos favorecidas
economicamente: as desigualdades sociais, a humilhação, o constrangimento, a sensação de
despertencimento se produzem de forma não intencional. Questionando-se sobre como seus
posicionamentos poderiam ter, até então, agido nesta direção, surgiu o desejo de compreender
as práticas desenvolvidas no Instituto que (re)produziam as assimetrias de classe.
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A preocupação com os efeitos de nossas práticas perpassou todo o trabalho, desde a


elaboração das perguntas que guiariam as entrevistas, até a produção do texto final da
pesquisa. Entendendo que a pesquisadora, como integrante da instituição e membro das
classes mais privilegiadas, também era influenciada pelos discursos correntes no IP, os
primeiros encontros, sobretudo, foram tensionados pelo receio de reproduzir aquilo com o
qual se lutava contra no contato com os/as depoentes. Partindo da clareza de que o
posicionamento dos atores é decisivo no que se produz nas relações, manteve-se durante todo
o percurso do trabalho a necessidade de refletir e, portanto, cuidar do que produzimos como
efeito em nossas pesquisas (Bourdieu, 1993/2008). O processo de elaboração das questões
utilizadas nas entrevistas mostrou necessária uma contínua preocupação em acessar a
dimensão política da construção das formas de viver com as quais nos deparávamos,
buscando sair do funcionamento culpabilizador que costuma cercar as questões de classe para
compreender o que estava em jogo em casa situação. As primeiras versões das perguntas, por
exemplo, por vezes tinham uma formulação que individualizava as questões e não acessava os
elementos múltiplos que consolidam certas maneiras de pensar. No percurso das entrevistas,
o que acontecia em um encontro era utilizado como fonte de modificações para as conversas
seguintes; por exemplo, algumas questões criadas em cena pareceram, a posteriori,
interessantes para reformular nossas colocações.
A construção das narrativas, compreendidas como o objetivo desse trabalho, exige o
desenvolvimento de uma escrita-ato, que considera a contínua produção de verdades; o que é
escrito não apenas analisa a realidade, mas também produz realidade. Portanto, a construção
de um percurso de análise e de escrita que permitisse acessar a produção de desigualdades no
Instituto de Psicologia e, ao identificar as forças em jogo, disputasse as concepções existentes,
foi a meta de nosso trabalho, não seu meio (Alaion, 2017; Santos & Barone, 2007). A
construção das várias versões das narrativas foi realizada a partir do que as falas dos
entrevistados e das entrevistadas nos permitiam pensar, isto é, seus relatos possibilitaram a
compreensão do campo em que se produz a desigualdade. Assim, os depoimentos não
geraram análises sobre os alunos e as alunas com quem conversamos, mas sobre esse campo.
Compreendendo que a transcrição e a construção do texto tratam-se de traduções,
interprestações do que nos foi dito, este trabalho não deve ser entendido como um conjunto de
depoimentos de alunos universitários das classes menos favorecidas, mas como a construção
de narrativas reflexivas, por parte da pesquisadora, a partir dos depoimentos. A reorganização
do material coletado, as falas suprimidas e a forma de expor e analisar o que ouvimos,
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possibilitou que o que nos foi dito servisse como disparador de reflexões sobre a realidade
(Bourdieu, 1993/2008, Capozzolo et. al, 2014). As falas, gravadas e transcritas, das quais
retiramos temas e questões relevantes para a compreensão do assunto tratado, permitiram uma
reorganização dos conteúdos trazidos pelos/pelas depoentes e a criação de um percurso
narrativo. Nas narrativas, procuramos cuidar da forma dominante em nós de interpretar a fala
dos entrevistados e das entrevistadas. (Bourdieu, 1993/2008; Santos & Barone, 2007;
Machado, 2010). Cuidou-se para creditar aos alunos e às alunas suas próprias considerações,
diferenciando-as das reflexões da pesquisadora e mostrando que ambas (reflexões dos
entrevistados e da entrevistadora) foram tecidas a partir da entrevista como experiência.
Proteger os/as depoentes implicou considerar que o que nos diziam não poderia ser reduzido a
interpretações pontuais e descontextualizadas, isto é, buscamos ler suas falas como produzidas
em relações de poder e de saber que nelas se exprimem. Este cuidado foi estendido aos alunos
e professores de quem se falava, procurando colocar em cena elementos da construção
política das situações relatadas (Bourdieu, 1993/2008). Por exemplo, havíamos escrito que,
segundo um dos entrevistados, a fala de uma docente transparecia que os/as estudantes menos
privilegiados/as não eram bem-vindos no IPUSP, no sentido de que eles/elas próprios teriam
que se haver com suas necessidades; percebendo que nossa escrita culpabilizava a professora,
colocando-a como a origem do problema, reescrevemos a passagem, deixando claro que ela
era porta-voz de uma forma de pensar vigente na Universidade. Ao longo das diversas versões
de cada texto, fazíamos o exercício de avaliar a escolha de nossas palavras, a composição das
ideias e os efeitos produzidos, sempre levando em conta que, ao escrever sobre sujeitos,
construímos formas de viver (Alaion, 2017). Outro exemplo, em uma das versões das
narrativas, escrevemos sobre uma situação narrada em que estudantes migravam de uma
escola recém estatizada para a rede particular, procurando um ensino adequado. A maneira
com que escrevemos ficava indicado que o ensino público era inadequado em sua totalidade.
Na reescrita, pontuamos que a mudança de instituição carregava também o preconceito em
relação ao ensino público e os problemas ocorridos naquela escola.
Finalizada a primeira parte da escrita das narrativas, foram feitas as chamadas
devolutivas com os/as depoentes. Mais do que devolutiva, podemos considerar esse momento
como uma etapa da pesquisa, muito importante, que abre a possibilidade de que os alunos e as
alunas interviessem na forma como suas histórias eram retratadas e pudessem nos apontar
partes da escrita que tivessem aderido à lógica reprodutora de desigualdades ou cuja forma
carecesse de reformulação por outro motivo. Este momento socializa o conhecimento
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construído, colocando-o em debate. Como exemplo de intervenção dos entrevistados,


ressaltamos o uso de expressões faladas que, quando escritas, mudavam o sentido que o
depoente queria ressaltar. Por exemplo, em uma das entrevistas tratamos a possibilidade de
ingresso na Universidade, pelas classes mais e menos privilegiadas, sob o viés do
merecimento e foi na conversa devolutiva que essa escrita foi apontada como equivocada; não
se trata de merecer ou não estar ali, mas de quem são os destinatários do ensino superior
brasileiro, para quem ele se volta.
Portanto, as etapas do trabalho foram:
1. entrevistas gravadas (duração de 1h a 1h30 cada entrevista)
2. transcrição das entrevistas
3. levantamento de temas e questões relevantes no texto transcrito
4. escrita das narrativas a partir dos temas levantados
5. reescrita das narrativas (3 à 4 versões para cada entrevista)
6. entrega das narrativas para os/as depoentes
7. encontro com os/as entrevistados/as para discutir o texto produzido (duração de
1h a 1h30) cada encontro
8. elaboração da versão final das narrativas, considerando os ajustes discutidos na
devolutiva

3.2 Entrevista 1

A primeira entrevista desta pesquisa foi realizada com uma aluna do quarto ano da
graduação. Nos encontramos na estação de metrô Vila Madalena em uma manhã durante as
férias de verão e caminhamos algumas quadras até uma praça. Sentamos em uma mesa e
iniciamos a conversa falando sobre sua vida escolar. Os estudos da depoente se iniciaram em
casa, tendo a mãe como professora até a pré-escola. A primeira instituição de ensino que
frequentou ficava em Osasco, perto de sua casa, e era paga. A escola, da qual gostava muito,
oferecia uma ótima estrutura; turmas com apenas 15 alunos, atividades extracurriculares como
balé e teatro, além de um ensino que lhe parecia adequado. Com o passar dos anos, o preço da
mensalidade aumentou, o que fez com que a estudante tivesse que mudar de escola. A
segunda instituição, cujo custo era em torno de um quarto do valor da anterior, oferecia
também uma boa educação, mas a queda no custo trouxe uma restrição nas possibilidades do
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ensino. Anos depois, já na sétima série, o valor da mensalidade também aumentou muito e,
novamente, a família da entrevistada não pôde arcar com seu custo. Porém, devido a
cobranças irregulares, a instituição sofreu um processo judicial e se tornou pública, o que
permitiu que a aluna permanecesse nela. Nesta mudança, a escola sofreu várias alterações.
Quanto aos seus integrantes, as famílias mais abastadas migraram para escolas particulares
renomadas, seja por preconceito em relação ao público ou pelos efeitos sentidos da
estatização, e também alguns professores/as se retiraram, devido à precarização dos salários.
Além disso, estabeleceu-se uma prova de ingresso, uma vez que a escola era boa, como a
aluna pondera, em relação aos padrões da escola pública brasileira, e portanto tornou-se
concorrida.
O relato da vida escolar da entrevistada permite pensar os entraves e as condições de
acesso à educação no cenário do país. A primeira escola frequentada, que dispunha de
melhores condições educacionais, era privada e seu preço subiu ao longo dos anos, levando à
exclusão dos alunos e das alunas de classe social mais baixa. A segunda instituição, de menor
preço, já não era tão potente e a falta de dinheiro só não colocou a qualidade da educação
recebida em risco, novamente, devido a questões judiciais. No setor público, também, existem
mecanismos de exclusão de certos estudantes; quando a escola mencionada se torna pública e,
portanto, supostamente acessível a todos/as, a qualidade somada à gratuidade tornaram o
ingresso na instituição concorrido, o que levou à instauração de um prova de seleção
meritocrata, cujo objetivo era triar os estudantes com melhor desempenho acadêmico,
impedindo o ingresso de alunos/as menos preparados/as, restando-lhes escolas de qualidade
inferior. Percebe-se que primeiramente há uma barreira econômica que impede aos mais
pobres o acesso a um bom ensino, já que na educação básica brasileira o setor privado
costuma poder mais do que o público e, quando superada, surge outro impedimento, as provas
de ingresso (Patto, 1990/1993).
A lógica da reprodução das desigualdades sociais aí se instaura e a continuação é
trazida pela depoente. Ao tentar ingressar na USP, ela se dá conta, na comparação com os
outros candidatos, de que o preparo acadêmico que recebeu não condizia com as exigências
do vestibular da FUVEST4, uma vez que a situação se inverte no nível superior, sendo as
instituições públicas as mais concorridas e de maior reconhecimento. Mediante uma formação
que não ofereceu os conhecimentos necessários para acessar uma universidade pública, a
estudante recorreu a cursos pré-vestibulares, que podia frequentar graças ao seu bom

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Fundação Universitária para o Vestibular
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desempenho nos testes, que garantia descontos na mensalidade; mais uma vez, o critério
acadêmico imperou e foi condição para o acesso à educação. A aluna acrescenta que a escola
pública que frequentou não teve falhas apenas nos conteúdos ensinados, mas na formação
como um todo, no aprendizado, no estímulo ao estudo e ao engajamento no fazer científico e
também no preparo para as seleções dos vestibulares.
O percurso deixa ver que o impacto do ensino básico na continuidade da educação
formal é atravessado por um recorte de classe. Para os alunos e as alunas mais pobres, um
desempenho aquém do ideal pode ser condição impeditiva para a entrada nas escolas mais
concorridas, o que pode acarretar num baixo resultado nas provas de bolsa dos cursos pré-
vestibulares e nos exames vestibulares, reduzindo significativamente as chances de acesso à
educação superior. No caso das/dos estudantes mais privilegiadas/dos, há a possibilidade de
pagar bons cursos preparatórios, o que independe de resultados em provas, além de ingressar
em instituições superiores privadas, cuja aprovação costuma ser menos exigente. Além disso,
como a história da depoente mostra, nem mesmo um ótimo desempenho na rede pública é
suficiente; os/as melhores alunos/as das escolas públicas são menos bem preparados para a
vida universitária do que os/as estudantes das particulares.
Em relação à época do cursinho, a aluna conta como as dificuldades financeiras
também interferiam em seus estudos. Apesar da bolsa, o cursinho voltado para as classes mais
ricas ainda era caro, não sendo o desconto suficiente para equiparar as oportunidades dos/das
estudantes, de forma que ela precisou trabalhar para bancar seus estudos. Diferente de muitos
colegas de situação socioeconômica mais favorável, que podiam estudar depois das aulas, ela
precisava se ocupar com atividades remuneradas durante as tardes e noites. Assim, a depoente
começou a duvidar de que a USP seria um lugar para ela, pois a prova da FUVEST é muito
demandante e exige possibilidade de grande dedicação. Apesar de não conseguir ingressar na
Universidade naquele ano, através do ENEM e das bolsas do Prouni5, começou a frequentar
uma instituição particular de preço acessível. Como é frequente no sistema educacional
brasileiro, o ensino superior privado, quando tem preços reduzidos, não oferece uma boa
formação; insatisfeita com o curso, retorna ao cursinho, desta vez sem trabalhar, e presta
FUVEST novamente. Tenta a USP mais uma vez pois esta é sua única opção; as demais
instituições públicas eram muito distantes de sua casa e suas condições financeiras não
permitiriam bancar a vida em outra cidade ou os grandes deslocamentos necessários.
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Programa Universidade para Todos - o Programa concede bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de
graduação e de formação específica, em instituições de ensino superior privadas, a estudantes oriundos do ensino
médio da rede pública ou bolsistas integrais da rede particular, com renda familiar per capita de até três salários
mínimos
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Ao final do percurso descrito, a entrevistada ingressa na USP carregando consigo a


marca de se perceber como alguém que não possuía conhecimentos suficientes, pois sabia que
a bagagem acadêmica da qual dispunha era menor do que a de vários colegas. Apesar da boa
colocação no vestibular, sente que em seu desempenho pesam mais os anos de treino para um
tipo específico de prova e os bônus para quem vem da rede pública do que uma real
apropriação dos conteúdos do ensino básico e médio.
Devido ao seu histórico em instituições particulares, a entrada no Instituto de
Psicologia não gerou grandes estranhamentos no que se refere às questões de classe. Desde a
primeira escola que frequentou, conviveu com pessoas de grupos socioeconômicos mais
privilegiados, tendo este cenário permanecido muito semelhante ao longo de sua vida escolar.
As vivências em instituições onde a maioria dos/das integrantes possuíam melhores condições
materiais e de acesso a bens culturais se estendeu até o cursinho, de forma que não foi
espantoso para ela conviver com uma maioria de alunos/as ricos/as, nem o pequeníssimo
número de estudantes negros lhe era estranho, ou o modo de fazer científico, a linguagem e a
forma de ensinar dos professores e das professoras, assim como a presença marcada de
referenciais que não eram os seus. A depoente pontua, porém, a excepcionalidade de sua
história em relação a outros estudantes de baixa renda oriundos das escolas públicas. Sente-se
privilegiada frente a colegas mais privados de direitos do que ela; menciona que pôde estudar
espanhol, fez aula de teatro, sabia um pouco de inglês quando ingressou na universidade,
frequentou boas escolas e teve os estudos acompanhados de perto pela mãe, que era
professora na rede pública. Também fala de sua história de convívio com as classes mais
abastadas como um importante diferencial, da qual resulta um costume, uma familiaridade
com este contexto social. Desde a infância, tanto na escola quanto na relação com os patrões
do pai, conviveu com pessoas mais ricas, assimilando seu modo de falar, vestir, portar, seus
conhecimentos e formas de ensinar, de maneira que aprendeu a habitar esses espaços,
adaptando-se a uma outra realidade social.
Os fatores mencionados influenciaram sua chegada e permanência no Instituto,
ajudando-a a conviver em um meio aonde não se sentia parecida com ninguém, como ela
descreve, uma sensação contínua de não se sentir em casa. Entende que, pelo costume em se
sentir desta forma, viveu menos o impacto da contradição entre a coexistência de classes
desiguais e a consideração dos padrões de uma só delas. O habitual convívio com os mais
privilegiados, apesar de pressioná-la para se adequar a seus padrões e possibilitar que ela
desenvolvesse estratégias para conviver com as violências originárias destas relações, não foi
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capaz de eliminar seu sofrimento; há uma contínua sensação de despertencimento e


inadequação, de ter que modular o próprio jeito, de precisar se comportar.
As diferenças socioeconômicas presentes entre os/as estudantes atravessam
intensamente o cotidiano do Instituto de Psicologia e se materializam, por exemplo, em
roupas diferentes das suas, gastos com mensalidades escolares que equivaliam ao custo de
vida mensal de sua família, alunas e alunos que falam francês ou alemão, sem ter nenhuma
descendência dessas culturas, e viagens para o exterior. Majoritariamente, estes referenciais, e
não os dela, são utilizados no IPUSP, de uma maneira que produz desvalorização e
desconsideração das realidades não hegemônicas. Exemplos marcantes de como isso se dava
entre alunos são o preço alto do moletom da turma - e a não existência de opções mais
acessíveis - e também o valor das viagens de confraternização realizadas. Estas situações
ilustram como a desconsideração das vivências e possibilidades de outros grupos reproduz as
assimetrias econômicas existentes, uma vez que a falta de dinheiro impede a participação
dos/das estudantes mais pobres, quando os referencias de caro e barato são pautados por
contextos mais privilegiados. À depoente, fica a impressão de que não se considera a
existência de quem não pode arcar com certos custos, ou que a exclusão que disso decorre não
é compreendida como uma questão do coletivo, mas sim um problema pessoal.
No contato com os/as docentes, a situação não era diferente; as realidades
predominantes, tão diferentes da dela que muitas vezes eram incompreensíveis e
inimagináveis, pareciam habituais e esperadas para os professores e as professoras. Conteúdos
que exigem conhecimentos que só alguns receberam, propostas que requerem habilidades que
o ensino médio público não supre e falas que não consideram a diversidade de experiências
presente, como o pressuposto de que todos/as tiveram certas vivências e não outras, ou de que
estão acostumados a falar de determinada maneira; diversas eram as marcas que indicavam
que o funcionamento da Universidade não se baseava na forma de viver da aluna. Uma
situação recorrente trazida pela depoente como problemática é a leitura de textos em inglês,
que era difícil para alunos/as como ela, que não vieram das melhores escolas da cidade, mas
frequentemente exigida em disciplinas. Em suma, posicionamentos que pressupõe aspectos
nos quais ela não se encaixa, que marcam seu não pertencimento ao grupo, sua inadequação
(Backes, 2006).
Como decorrência da citada homogeneização do corpo discente por parte das/dos
docentes, a entrevistada ressalta também a produção de afastamento em relação à vida
universitária. A desconsideração da multiplicidade existente no grupo produz a sensação de
15

que não se fala para alguns dos que ali estão, o que leva os alunos e as alunas que não se
enquadram nos parâmetros esperados a se afastarem; gradualmente vão deixando de
frequentar as aulas e/ou de participar delas, não sentido que o que nelas ocorre lhes diz
respeito, lhes pertence. Também contribui para o cenário de distanciamento criado a forma de
falar rebuscada adotada por alguns/algumas docentes, que impede a transmissão de
conhecimento para os que não compartilham seus referenciais linguísticos. A entrevistada
afirma a existência de professoras e professores que parecem ter maior abertura,
demonstrando preocuparem-se com que o conteúdo ensinado tenha relação com as
possibilidades dos/das estudantes. Ela pontua que esta questão não é particular do Instituto ou
da USP, mas algo que perpassa a Academia como um todo, que se relaciona com o já
comentado domínio das produções teóricas pelos grupos mais privilegiados; os trabalhos
acadêmicos, que via de regra utilizam-se de termos específicos de uma área, com construções
gramaticais e textuais complexas, demonstram serem produzidos para uma comunidade muito
restrita, não se propondo a dialogar com a população em geral. Esta é também uma forma de
seleção e, portanto, exclusão; fala-se apenas para aqueles que partilham dos mesmos
vocabulários, saberes, conceitos, etc., cujo aprendizado requer um tipo de socialização e
educação muito restrito (Nogueira & Nogueira, 2005). Este afastamento de que a aluna fala
pode ser compreendido também como uma das formas de inclusão excludente que se opera na
Instituição, em relação aos/às estudantes de perfil não hegemônico; apesar de inseridos/as nela
fisicamente e aparentemente fazerem parte das atividades desenvolvidas, muitas vezes não
existem condições efetivas de participação (Bourdieu & Champagne, 1993/2008; Patto,
2009). Ressaltamos aqui, que a entrevistada fala das condições que devem ser consideradas,
mas não podem ser tomadas como determinantes da capacidade de aprender dos alunos e das
alunas.
Outra questão apontada pela depoente é a sensação de que determinados/as docentes
têm vivências limitadas sobre os assuntos de que tratam em sala, no que se refere às
realidades que não lhes são próprias. Apesar de as conhecerem de perto, não fazem parte
daqueles contextos; assim como acontece com as alunas e os alunos, a expressiva maioria dos
professores do Instituto e das universidades são brancos e pertencem às classes mais
privilegiadas. Docentes privilegiados, que falam para alunos e alunas privilegiados/as, por
vezes causam nos/nas estudantes que vivem outras realidades a impressão de que se está em
um zoológico, percepção que deixa claro a diferença entre conhecer e viver uma realidade;
como a entrevistada diz, é como conhecer profundamente o organismo de determinado
16

animal, mas não fazer parte de sua espécie. É possível pensar que mesmo os professores e as
professoras que se aproximam de temas relacionados às desigualdades sociais em suas
pesquisas e atividades de extensão, nem sempre estão sensíveis a estas questões durante as
aulas, tratando os alunos e as alunas com base em seus próprios referenciais, talvez por não
reconhecerem neles alguém que possa fazer parte das comunidades pobres estudadas, dos
grupos minoritários.
Ainda sobre a produção de diferenças na função aluno em decorrência de questões de
ordem econômica, a entrevistada reconhece que para alguns colegas de situação semelhante à
sua, dentro do contexto estrutural do IP, a falta de dinheiro implica prejuízo no desempenho
acadêmico. Sem apoio institucional, estudantes de baixa renda enfrentam dificuldades para
custear seus estudos, faltando dinheiro para se alimentar durante o período de aulas, se
locomover até a faculdade e pagar os materiais necessários, como cópias dos textos indicados.
Há também a questão do tempo de dedicação extra-classe; a aluna explica que precisa fazer
grandes esforços para ter um bom desempenho acadêmico, tendo que se desdobrar para
compensar a falta de tempo atrelada à sua condição social. Pela impossibilidade de morar
perto da universidade ou de possuir um carro, ela e muitos outros gastam diariamente horas se
locomovendo pela cidade, tempo que em outras condições poderia ser destinado aos estudos.
Por conta disso, faz leituras durante as viagens de trem, quando isso é possível, ou abdica de
horas de sono em prol de elaborar um bom trabalho. Conta também que, em não tendo
condições de pagar alguém para auxiliar nas tarefas domésticas, tem que limpar a casa, fazer
compras no mercado, cozinhar, etc., atividades que também demandam tempo; enquanto
alguns colegas chegam em casa e logo começam a estudar, ela demora em torno de três horas
entre sair da USP e iniciar alguma atividade. A depoente explica que as dificuldades
socioeconômicas se somam às questões acadêmicas comuns a todos os estudantes.
Apesar das questões apresentadas, a entrevistada pontua que, novamente como
exceção, os atravessamentos das questões relativas às diferenças de classe lhe afetam mais no
que se refere ao (não) pertencimento ao grupo hegemônico de alunos do que em prejuízos ao
desempenho acadêmico. Mediante a muito esforço e auxílio da família, as horas de sono
perdidas, as leituras no trem e a dedicação em sala de aula, em seu caso, conseguem
compensar as desigualdades sociais, possibilitando que ela tenha um bom desempenho no
curso.
É possível estabelecer um paralelo entre a situação descrita e a época em que estudava
no cursinho, onde também percebia que por ter menos dinheiro podia dedicar menos tempo
17

aos estudos. Ao longo de toda sua vida escolar, tanto na educação básica, quanto no cursinho
e na universidade, a aluna conseguiu compensar as desigualdades socioeconômicas em
relação aos colegas, sempre tendo um desempenho acadêmico de destaque, mas pontua que
esta não é a trajetória da maioria dos alunos e das alunas da rede pública de ensino. Frisa que
além do esforço pessoal teve muita ajuda de sua família, cuja condição possibilitou que ela
tivesse muitas possibilidades e oportunidades das quais nem todos desfrutam.
O relato da entrevistada mostra como as desigualdades entre as classes não são apenas
monetárias, não dizem exclusivamente dos bens que se pode ou não obter, do conforto e das
facilidades adquiridos ou não, mas também têm um viés social, causam implicações nas
funções sociais dos sujeitos, nas relações que habitam. Um aluno ou aluna das classes menos
privilegiadas tem aspectos de sua vida estudantil prejudicados ou impossibilitados, como
aparece ao longo da entrevista, seja na participação de atividades de lazer e integração, por
exemplo viagens e festas, como nos aspectos acadêmicos, no que se refere aos estudos e
atividades extracurriculares. É importante ressaltar que, como mostra a história da depoente, a
condição econômica não é fator determinante do desempenho acadêmico, nem da trajetória
que percorre, afinal, a estudante sempre esteve entre os melhores da turma e conseguiu entrar
na USP. Porém, fica claro que os atravessamentos das condições materiais produzem marcas
nas histórias escolares e impõe restrições.
Frente às realidades de privilégios que encontrou na USP, as dificuldades financeiras
da aluna e os impedimentos que delas decorrem, que por si só já incomodam, parecem
maiores; a depoente reconhece que todos sofrem, enfrentam problemas, mas sabe muito bem
caracterizar quais os obstáculos e desafios de quem não tem dinheiro, de quem vive a
impossibilidade de adquirir um alimento ou um artigo qualquer, dos que trabalham uma longa
jornada para suprir as necessidades básicas, de quem quase não tem direito ao ócio e ao lazer;
são questões de ordem diferente, como ela diz. A estudante relata que o choque das
disparidades econômicas produziu, ao longo de sua história, diversos efeitos, como raiva,
inveja, sentimento de exclusão e de injustiça. No decorrer da conversa, relata diversas falas e
atitudes que traziam a ela contextos muito diferentes do seu, que geravam uma sensação de
nunca estar à vontade, presente desde a primeira escola em que estudou. Quanto à USP, cita
as frequentes conversas em que alunos/as dizem achar barato algo que ela não pode ter,
deslegitimando sua falta de dinheiro através da insistência de que ela poderia arcar com tais
custos. Hoje, reconhece que as diferenças socioeconômicas são construídas historicamente,
não sendo culpa deste ou daquele indivíduo, mas aponta uma falta de consideração por parte
18

de alguns quanto à realidade alheia. Há uma falta de noção, como ela diz, na relação com o
outro, que desconsidera a diferença e subjulga estas outras formas de existência. Sua
colocação remete à dificuldade de perceber o que se (re)produz na relação com o outro e,
portanto, à necessidade de sensibilização; a depoente recorda diversos momentos onde algo
era dito ou feito de forma não intencional, mas que produzia exclusão, despertencimento e
humilhação.
O relato da aluna deixa claro a potência da implicação dos membros do IP no
funcionamento da instituição: a percepção sobre o efeito das atitudes e sobre a multiplicidade
de realidades presente são fatores essenciais para mudar o cenário descrito. Em uma
sociedade desigual e segregacionista como a brasileira, o contato entre classes sociais diversas
costuma ser escasso ou se dar de forma hierarquizada, o que produz e naturaliza concepções
acerca da superioridade de um grupo sobre o outro, assim como de seus referentes culturais
(Barbosa, 2004). Como a estudante diz, é no convívio com o diferente que se percebe que sua
história não é natural, que suas vivências não são universais, que seu modo de pensar não é
óbvio. A relativização que disto advém é condição necessária para que as formas de viver não
hegemônicas passem a ser consideradas e respeitadas no funcionamento do Instituto, e que se
possa disputar as concepções até então estabelecidas. Como estratégia de enfrentamento à
falta de percepção que a depoente localiza em entre os alunos e professores, ela defende
atividades que tratem sobre as questões de classe e suas manifestações. Pontua, porém, que a
sensibilização se conquista não sem riscos; a exposição da condição de pobreza, de assimetria
e de privação, especialmente em meio aos que não vivenciam estas questões, costuma vir
atrelada aos sentimentos de vergonha e humilhação.
A fala da entrevistada deixa ver dificuldades no enfrentamento da questão. Em um
contexto social onde se valoriza a riqueza e associa-se o seu revés a uma série de
características pessoais negativas, cria-se um alto preço para a exposição da pobreza; levantar
a mão e dizer que não pode pagar algo, que não conhece determinado assunto, não diz
respeito apenas da falta de dinheiro ou de informação, remete à incompetência, falta de
esforço, ignorância, uma formação deficitária, enfim, abre brecha para interpretações de um
menor valor pessoal (Patto, 2009). Enfrentar situações de desigualdade se atrela ao risco,
também, de mais uma vez não ser ouvido/a, de que sua experiência continue não sendo
considerada, de que suas questões não sejam importantes; desanima, envergonha, causa
estranhamento. Dá-se a ver, nesses casos, a necessidade de coletivo, de pertencimento a um
grupo em que se possa escapar do sentimento de exclusão e inferioridade, e também encontrar
19

a clareza de que essas situações de desigualdade são produzidas por uma engrenagem em que
todos estamos envolvidos.
Estas dificuldades de oposição a atitudes violentas se relacionam com o silenciamento
que a entrevistada vivencia e identifica nas/nos colegas. Faz uma analogia entre falar sobre
classe social dentro do Instituto de Psicologia e se posicionar, como mulher, em um grupo de
homens. Como ela aponta, nestas situações, a construção histórica da posição social das
mulheres e das populações pobres opera uma diminuição na propensão de se posicionar, em
decorrência dos lugares de desprivilégio e inferiorização em que estes são constantemente
colocados. Contribui para o silenciamento, também, a rejeição de certas formas de expressão;
a depoente percebe que sua fala é diferente da de alguns colegas e que não é ouvida da mesma
forma que eles. Como exemplo, cita situações em que alunos e alunas, tratando de assuntos
sensíveis, se utilizam de vocabulários e atitudes agressivos, que são recusados pelos e pelas
docentes, por serem entendidos como desrespeitosos. A desconsideração destas falas se dá,
como ela explica, pela não compreensão do contexto onde surgem, do fato de serem fruto de
uma história de opressões e silenciamento, de vivências de violência e humilhação, inclusive
dentro da Universidade. Estes apontamentos chamam atenção para como a forma da fala, e
não seu conteúdo, define a escuta, havendo mais espaço para os que dizem de maneira polida
e gramaticalmente correta (Backes, 2006). Por último, menciona a individualização de
problemas coletivos como fator que cala e dificulta o enfrentamento das questões. Cita o
exemplo de estudantes que, em não podendo arcar com os custos de determinada atividade ou
objeto, reclamam seu direito de participação e obtém como resposta posicionamentos que
colocam a questão como um problema individual, responsabilizando quem sofre da exclusão e
desimplicando o coletivo da segregação que se opera.
A depoente relata como estudar na USP com uma história como a dela produz
despertencimento não só nas relações dentro da universidade, mas também fora dela; por
vezes não se sente integrada nos relacionamentos com familiares e antigos amigos. Para
muitos e muitas dos que estão ao seu redor, estudar na USP é, além de uma grande conquista
e motivo de muito orgulho, uma realidade distante, inalcançável, muitas vezes nem mesmo
sonhada. As entusiasmadas parabenizações e elogios com os quais está acostumada também
lhe dizem, em alguma medida, que o lugar que ocupa não era esperado para si, que é uma
exceção entre os seus próximos. A posição de despertencimento é, então, dupla, não se
enquadrando no perfil de estudante uspiana, nem no de ex-aluna de escola pública, moradora
de um bairro afastado do centro (Barbosa, 2004).
20

Em meio a tantas práticas reprodutoras de desigualdade encontradas na Universidade,


a aluna é capaz de localizar pontos onde há rompimento da lógica descrita. O preço do
bandejão, a existência do CRUSP6 e as medidas de permanência, mesmo que insuficientes,
são fatores que contribuem para a presença de estudantes pobres na USP e possibilitam a
garantia de alguns direitos. Como aspecto mais relevante, porém, ela traz a questão das cotas,
considerando que a igualdade de acesso é um passo fundamental para que se tenha igualdade
de pertencimento na universidade. A depoente pondera que a democratização do acesso ao
nível superior requer também cotas raciais, pois reconhece que as cotas sociais são menos
abrangentes, selecionam os alunos e as alunas academicamente mais bem preparados/as das
escolas públicas mais privilegiadas. Este mecanismo é uma forma de falsa inclusão adotada
pelo governo, de maneira a alterar a estrutura social o mínimo possível, mas fazendo crer que
se caminha na direção de mudanças (Patto, 2009; Moysés & Collares, 1997). A entrevistada
entende que não ocupa verdadeiramente o lugar de uma aluna de escola pública, mas que
pode ser colocada nas estatísticas. A seleção meritocrática aparenta incluir estudantes da rede
pública no ensino superior, mas faz com que sejam selecionados os mais semelhantes ao
padrão para o qual a USP foi projetada, o que fica claro nas frequentes afirmações dela sobre
a excepcionalidade de sua história.
A aluna ressalta que o ingresso é só o início de um processo e, caso não haja mudanças
na estrutura da Universidade e na postura de estudantes e docentes que ocupam um lugar
privilegiado, aumentar o número de ingressantes pobres na USP apenas faria crescer a
quantidade de indivíduos sentindo-se mal, cuja participação na vida acadêmica se faz parcial,
fortemente atravessada pelos desafios impostos pela falta de dinheiro. Defende que, enquanto
a maior parte dos alunos fizer parte das classes mais privilegiadas, a instituição continuará a
se desenvolver voltada para estes grupos, levando em conta suas questões, dificuldades,
conhecimentos, expectativas, interesses e modos de viver. Assim, seria apenas mediante à
ocupação significativa do espaço por parte de estudantes com outras histórias que se poderia
fortalecer a compreensão de que o modelo de aluno até então naturalizado não é o único e
nem o ideal. Suas ideias sugerem, assim, que o aumento do número de alunos e alunas menos
privilegiados/as poderia tencionar mais intensamente o jogo de forças da Universidade,
exercendo maior pressão para uma certa direção de mudanças. A entrevistada aponta que é
preciso, por exemplo, adaptar as regras, considerando as necessidades de quem não tem carro,
dos que moram longe, de quem não tem dinheiro para certas atividades, etc. Um exemplo que

6
Conjunto Residencial da USP, que atende alunos e alunas vindos de outras cidades e/ou de baixa renda
21

lhe parece importante é a flexibilidade com faltas e atrasos, além da criação de um curso
noturno de Psicologia, que permita o exercício de atividades remuneradas regulares. Estas
considerações atestam que a inclusão e a permanência não se dão apenas a nível
material/econômico, com bolsas e auxílios, mas ocorrem através da consideração das formas
de ser e viver dos sujeitos.
A conversa com a depoente dá relevo, assim, a alguns importantes aspectos
relacionados à reprodução das desigualdades sociais dentro do Instituto de Psicologia. Seu
trajeto escolar representa muito bem os mecanismos das políticas educacionais que conduzem
à exclusão da população de baixa renda do acesso à educação formal. O sistema púbico de
ensino brasileiro, no que se refere à Educação Básica, tem um longo histórico de aparentes
fracassos; desde sua expansão a toda à população, ouve-se de uma educação de baixíssima
qualidade, que forma alunos e alunas que não adquirem habilidades mínimas esperadas para o
seu grau de formação, em contraste com a educação particular, como a estudante verifica
(Patto, 2009). Na Educação Superior, onde o direito de estudar é bem menos disseminado, o
critério meritocrático dificulta que as populações menos privilegiadas acessem as instituições
públicas, e as desigualdades econômicas as impedem de ingressar nas boas universidades
privadas, exatamente como a trajetória da estudante mostra.
A entrevistada define em seus relatos, também com frequência, sua entrada na USP
como excepcional. A complicada trajetória percorrida até o ingresso na universidade
demonstra que sua história não é regra entre os que são de sua classe socioeconômica, que
alcançar uma boa formação acadêmica é algo conquistado a duras penas, envolvendo grande
esforço pessoal e suporte familiar. A excepcionalidade de seu percurso é, também, dupla;
diferente do que acontece com a maioria dos/das estudantes da rede pública e, ao mesmo
tempo, diferente da maioria dos alunos e alunas da USP e do IP. Esta sensação de um tanto
sem lugar, que faz com ela não sinta que de fato ocupe a posição de estudante oriunda do
ensino público, se relaciona com a sua adaptação aos modos de viver dos grupos mais
favorecidos, que diversas vezes permeia a conversa. Por ter convivido com as classes mais
privilegiadas desde a infância, foi ajustando sua forma de se comportar, falar, vestir,
compreender e agir, o que a aproximou destes outros grupos e, ao mesmo tempo, fez parecer
menos estranhas as assimetrias de classe. Porém, apesar disso, o costume não a torna
insensível às situações de reprodução da estratificação social; o contato com estudantes e
docentes não sensibilizados para a multiplicidade de histórias existentes no Instituto
produzem nela sensação de afastamento, humilhação, exclusão e inadequação. Isto culmina
22

em um importante assunto trazido pela depoente em momentos variados de sua fala; o preço e
o risco para o enfrentamento da questão. Ao mesmo tempo que reconhece a exposição das
assimetrias como condição necessária à mudança, aponta que vir a público em um meio que,
devido a condições históricas, faz sua voz valer menos do que a de outros, não se faz
facilmente.

3.3 Entrevista 2

O segundo encontro foi realizado com um aluno que havia acabado de se graduar no
Instituto de Psicologia. A conversa ocorreu em uma manhã do período de férias, na própria
instituição, em uma das salas da biblioteca. Iniciou-se a entrevista conversando sobre sua vida
escolar. Frequentou escolas particulares na educação básica, em sua maioria ganhando bolsa
de estudo e, depois de concluído o Ensino Médio, começou a cursar História na FFLCH-
USP7. Descontente com o curso, decide fazer um curso pré-vestibular novamente, também
tendo desconto, e entra na Psicologia. O percurso em escolas particulares faz pensar na
estreita relação que a USP estabelece com a educação privada; o exercício do direito de
participação da vida universitária costuma estar atrelado à possibilidade de um grande
investimento monetário, que no caso dos alunos e das alunas menos privilegiados/as depende
da concessão de isenções/descontos. O recorte de classe que se vê na instituição, habitada
majoritariamente por estudantes ricos/as, se relaciona com a seleção meritocrática que
perpassa toda a vida escolar do depoente; desde o nível básico de escolarização até os cursos
pré-vestibular, o critério para as bolsas de estudo é o resultado em provas conteudistas, o que
faz das defasagens características da educação básica pública do país um fator que dificulta o
acesso ao ensino. Para quem iniciou a formação em escolas gratuitas precárias, as chances de
aprovação nas provas de ingresso das boas instituições públicas ou nas seleções para bolsa nas
particulares são baixas, tanto no nível da educação básica, quanto no nível superior. A entrada
do aluno na universidade segue a lógica descrita; a seleção do vestibular da FUVEST se dá
nos mesmos moldes meritocráticos mencionados e é baseada em formas de saber muito
específicas (Nogueira & Nogueira, 2005). Este critério de seleção, confluindo com o contexto
educacional brasileiro, faz com que a trajetória dos/das estudantes seja fortemente afetada
pelo tipo de instituição de ensino frequentada; enquanto a expressiva maioria dos estudantes

7
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
23

do país frequentam a rede pública durante a educação básica, o vestibular da USP aprovou,
em 2016, apenas 34,6% destes alunos, segundo dados apresentados pela Pró-Reitoria de
Graduação da USP (Sala de imprensa USP, 2016).
Por frequentar a rede privada desde a Educação Básica, o entrevistado teve contato
próximo, ao longo de toda sua formação, com colegas de outras classes sociais e com as
questões por ele suscitadas. O contraste com as alunas e os alunos que pagavam as escolas
integralmente trazia consigo situações de exclusão e marginalização; as viagens
internacionais, os caros celulares e diversos outros bens que ele não acessava, lhe mostravam
cotidianamente as faltas, impossibilidades e a não participação que a distribuição desigual de
renda, em um certo contexto social, implica. Por não ter grana, como ele diz, sentia-se
deslocado, à margem.
A chegada ao Instituto de Psicologia, assim, não foi vivida como uma grande ruptura
no que se refere ao convívio social. Também nesta instituição encontrou muitos alunos ricos,
cujas realidades distavam da sua. Diferencia-se, neste aspecto, de outros/as estudantes de
classe socioeconômica semelhante, ressaltando que já vivia um cotidiano que deixa
transparecer as profundas desigualdades do contexto brasileiro, estando mais habituado a lidar
com os embates que disto surgem. Explica que para alguns alunos e alunas das classes mais
baixas, em contra partida, o impacto do contato próximo com realidades tão injustamente
discrepantes se intensifica na graduação, mobilizando questões até então não vivenciadas;
enquanto alguns, relegados pela USP e pelas políticas públicas de permanência estudantil, têm
dificuldades de custear seus estudos, outros vivem cercados por conforto. O entrevistado traz
o exemplo marcante de uma aluna que às vezes não tinha dinheiro para se alimentar e que
ouvia colegas conversando sobre grandes gastos absolutamente supérfluos, com manicure e
lipoaspiração.
Sobre o acostumar-se ao convívio com as desigualdades mencionado, o depoente o
entende como um processo de amadurecimento, que em sua história se iniciou pela raiva
direcionada ao que possui dinheiro e os privilégios dele decorrentes, e gradualmente se
transformou na compreensão de que as pessoas que detém tais regalias não deveriam ser
culpabilizadas individualmente. A questão seria, então, não a posse de privilégios em si, mas
práticas e ações que se concretizam nas relações sociais desiguais, às quais se pode atribuir
responsabilidade. É possível pensar que este aprendizado, nomeado por ele de costume, diz
respeito não apenas à compreensão histórica da problemática, mas também ao
desenvolvimento de formas de lidar com os sentimentos de humilhação, raiva, injustiça e com
24

as violências que decorrem do encontro entre classes desiguais; como relata ao longo da
conversa, sua lida com as questões socioeconômicas modifica-se ao longo do percurso no
Instituto.
Apesar de familiarizado com o tipo de ambiente que encontrara no Instituto, o
depoente se retrata como muito retraído socialmente e associa o pouco contato que manteve
com os/as estudantes, no início da graduação, à esta característica pessoal e ao fato de não ter
podido participar da Semana de Recepção dos Calouros, pois estava procurando um emprego.
Sua integração à turma se dá, depois de algum tempo, pela via acadêmica, quando começa a
fazer resumos das matérias aprendidas e os compartilha com colegas. Assim, o aluno pode
criar pontos de aproximação em meio à diversidade de histórias presente no Instituto, partindo
de assuntos relacionados à sala de aula, provavelmente o que há de mais semelhante a todos
os membros do corpo discente. É possível pensar a timidez descrita e a pouca abertura aos
colegas não como decorrências de traços pessoais, primordialmente, mas como características
construídas ao longo da sua história escolar, na qual conviveu com alunos e alunas cujas
realidades não lhe diziam respeito e com os/as quais o contato era atravessado pelas
assimetrias socioeconômicas. Analisando seu relato sobre os anos da Educação Básica, onde
sentia-se colocado à margem, não surpreende o fato de encontrar dificuldades no contato com
os membros do IP. Ressalta, porém, que alguns alunos mais ricos tinham vivências
diversificadas e transitavam sobre vários assuntos, facilitando a aproximação e produção de
comum. Revela-se, assim, a potência de criação de interações não excludentes, humilhantes
ou opressoras, que pode existir quando se vive a não homogeneidade da realidade e a
desnaturalização das experiências pessoais.
A sensação de estar em um ambiente violento, onde suas vivências são desvalorizadas,
e de não fazer parte do que nele se desenvolve, tendo dificuldade de compreender a realidade
de que se trata, são impressões que de alguma forma estavam presentes desde a escola e
permanecem após a entrada na USP. Uma cena interessante trazida pelo aluno diz respeito ao
cigarro; por vezes, estudantes que lhe pediam cigarro rejeitavam logo em seguida o lhes
oferecia, alegando que aquela marca era muito forte. O depoente explica que a diferença entre
os produtos nada tinha a ver com a composição; os seus eram mais baratos, paraguaios, ao
passo que os demais tinham alguma grife, apesar de serem igualmente "fortes". Situações
como esta fazem-no sentir que o que tem a oferecer é pouco, que suas possibilidades são
insuficientes, marcando uma posição de inferioridade em relação aos demais, que vai além do
aspecto financeiro. As relações de classe se apoiam em simbolismos culturais, como mostra o
25

exemplo; os produtos, apesar de quimicamente muito parecidos, possuem uma diferença


simbólica, são destinados a públicos diferentes, embricando-se status social e bens materiais
(Backes, 2006). Existem marcas para pobres e marcas para ricos, e o baixo custo de produtos
associa-se no ideário cultural à baixa qualidade, má produção, ao que é feio, pouco durável,
etc., que implicam na "má qualidade" de quem os possui; em uma sociedade materialista,
consumista e meritocrática, o poder de compra diz muito mais do que da quantidade de
dinheiro que se tem, é associado a sucesso, competência, interesse e esforço (Patto, 2009),
como será tratado adiante.
O entrevistado traz alguns exemplos que mostram como a condição de pobreza traz
consigo implicações sobre as características pessoais de quem a vive. Uma situação em que
deixa-se de ver uma ação dentro do seu contexto de possibilidades, levando a uma leitura
negativa do agente, é a pergunta de por que ele não usa um tablet para ler textos e poupa o
meio ambiente, questão que coloca o uso desta tecnologia como algo natural e seu não uso,
portanto, como uma escolha de alguém desimplicado em relação à preservação da natureza. O
aluno contesta a interpretação sugerida, afirmando que gostaria de ter um tablet e diminuir os
impactos ambientais, mas nunca teve dinheiro para isto. Outra situação semelhante ocorria
quando seus amigos o convidavam para sair e respondiam à sua recusa, justificada por falta de
dinheiro, como se a entendessem como desinteresse ou preguiça, retificando a ele que "São só
X reais". Baseando-se nos próprios valores de caro e barato, entendem como facultativa a
participação no programa proposto, quando para o entrevistado havia impedimentos materiais
às saídas. Por vezes, a partir da sua reação, que apontava as desigualdades desconsideradas e
suas implicações nas diferentes possibilidades individuais, reconhece nestas ocasiões um
duplo incômodo; de sua parte, por sentir que suas dificuldades são menosprezadas,
desconsideradas, e por parte de quem lhe confronta, então ciente da sua posição de
privilegiado. O desmerecimento de dificuldades econômicas não se dá apenas no IP, no
contato com sujeitos mais abastados; o depoente relata cenas ocorridas com a comunidade
externa à universidade que permitem pensar o ideário que se cria sobre a pobreza. A falta de
dinheiro é explicada, na sociedade capitalista, pela preguiça, burrice, incompetência e falta de
vontade, já que se parte do mito de que todos e todas têm as mesmas oportunidades, sendo o
caminho que se trilha decorrência direta do empenho individual. Quando um motorista de
ônibus humilha alguém que não pode pagar pela passagem, chamando-o de vagabundo, idiota
e inútil, está reproduzindo a associação da falta de dinheiro à falta de qualidades individuais;
26

ser pobre, evidentemente, não diz apenas do quanto dinheiro se tem, mas do valor individual
de cada um (Patto, 2009).
O desconhecer e desconsiderar dos modos de viver não hegemônicos vivenciados no
Instituto está imbricado ao não reconhecimento dos próprios privilégios por parte dos alunos e
das alunas das classes mais favorecidas, que pode ser identificado nas cenas relatas, por
exemplo, no caso dos colegas que entendem que todos/as podem despender de certas quantias
de dinheiro. A noção de que o que se tem não é natural e universal, mas sim uma condição de
vantagem em relação aos/às demais, é algo que nem sempre é claro e que, portanto, necessita
ser disputado, explicitado, reafirmado e discutido. Frente a situações onde se apresenta esta
insensibilidade, o depoente entende que a culpabilização dos grupos sociais menos
favorecidos invisibiliza a dimensão do desprivilégio; se a condição econômica é fruto de
esforço, então o problema da pobreza são os que não se empenham, os incompetentes, e não
uma estrutura social que produz desigualdade (Bourdieu & Champagne, 1993/2008; Araújo,
2012). O entrevistado conta que por muito tempo ficava calado frente a encontros que lhe
produziam incômodo, não sabendo como reagir a estas situações difíceis e violentas, onde as
questões eram apresentadas de forma individualizada. Também sentia falta de respaldo do
grupo de amigos, que eram mais ricos e dificilmente entenderiam suas vivências, sentindo-se
sem suporte para agir. A necessidade de coletivo, dos espaços de troca, acolhimento e criação
de estratégias de enfrentamento se faz presente, sendo parte potente desta inversão de lógica,
que vai do individualismo à dimensão social da questão.
A conversa com o aluno evidencia que os privilégios dos mais ricos vão muito além da
dimensão monetária, de mais fácil percepção. A possibilidade estar em um meio onde suas
formas de ser-viver são consideradas e aceitas não é igual para os/as estudantes mais e menos
abastados (Backes, 2006). Como os exemplos que o depoente traz mostrarão, diversas são as
ocasiões em que sua realidade não encontra espaço no cotidiano do Instituto, havendo que se
batalhar por ele. Uma das situações que marcaram sua passagem pela universidade, por conta
da grande violência, ocorreu quando promoveu um evento de Rap no IP, previamente
autorizado pela diretoria, e que foi reprimido pela Guarda Universitária, a pedido de um/a
docente anônimo/a. O aluno entende que, ao tentar trazer a estética da periferia para a USP,
foi barrado através de uma interferência truculenta e legitimada pela Universidade; silencia-
se, à força, a voz das populações marginalizadas. O/a professor/a responsável pelo ato,
protegido/a pela figura de poder de um terceiro, infligiu uma prática agressiva e humilhante,
sem sequer criar possibilidade de diálogo; como o depoente descreve, a corda estoura para o
27

lado mais fraco, o do aluno ou da aluna pobre. Esta cena remete às técnicas de segregação que
USP e a elite utilizam, em diversos contextos. Ações violentas que são performadas em vários
espaços da cidade e visam reprimir e apartar as classes mais pobres. Reproduz-se, na
Universidade, a ordem social, sendo o poder, o direito a participação e os lugares de fala
reduzidos para os menos privilegiados.
De forma mais sutil, por ser simbólica e não física, mas não menos violenta, a cena
relatada se reproduz entre as alunas e os alunos da instituição. Dentro do espaço de
convivência estudantil do Centro Acadêmico Iara Iavelberg, o entrevistado e colegas de classe
socioeconômica semelhante já tiveram suas músicas vetadas; quando se dão conta, já não é
mais seu celular que está tocando e outro estilo musical ocupa o ambiente. Sem nenhum
diálogo, aviso ou brecha para contestação, suas referências culturais são eliminadas do local,
substituídas pelo que ditam os padrões de outros grupos. Essas experiências indicam que as
formas de expressão de alguns não são bem-vindas, impressão que se repetirá em diversas
situações trazidas ao longo da conversa. Há uma norma de ocupação do espaço do Instituto,
uma forma dominante de ser, que é explicitada nas situações descritas; há maneiras certas e
erradas, aceitas e recusadas de falar, vestir, habitar, ouvir música, etc. (Barbosa, 2004;
Backes, 2006). A violência produzida nestas ações tornam alguns espaços do IP aversivos,
produzem humilhação e despertencimento; o depoente conta que, segundo sua experiência,
poucos alunos da periferia se sentem bem neste local que deveria ser de convivência.
Outro campo de disputa que produz conflitos no encontro das classes é a linguagem,
que se constitui como uma importante marca identitária dos grupos sociais. A norma culta é,
via de regra, a forma de se expressar na academia, utilizada tanto nas discussões em sala de
aula, quanto nos trabalhos que as embasam, nos espaços de trocas entre as categorias que
compõem o corpo da Universidade, nas produções dos alunos e das alunas etc. Os desvios dos
seus padrões, o uso de gírias e construções gramaticais alternativas são associados à imagem
de erro, desconhecimento e inferioridade. A linguagem, assim, se constitui como barreira,
entrave e humilhação, é motivo para que lhes atribuam características negativas, para que
sofram chacota e tenham seu valor de fala diminuído. O entrevistado diz de um consequente
esforço para se expressar de maneira "adequada"; falar uma segunda língua requer
concentração e vigilância. Como mencionado em outras situações, o modelo da elite, mais
uma vez, é naturalizado e elevado ao patamar de regra, entendendo-se o desviante como um
padrão inferior. Para que seja respeitado, ouvido, compreendido, é preciso adequar-se à norma
hegemônica (Houston, 1997; Nogueira & Nogueira, 2005).
28

Ainda sobre questões que envolvem diferenças linguísticas, o aluno menciona a


análise de gírias feita por professores e professoras que as enxergam sob as lentes do exótico,
anormal e estranho; para ele é como se estudassem o canto de uma ave. A analogia que
estabelece convida a pensar sobre o olhar das classes mais privilegiadas sobre as expressões
culturais das demais; a sensação de que se estuda outra espécie poderia se dar porque os
padrões elitistas são hegemônicos e naturalizados, sendo o resto tomado como inferior,
atrasado e equivocado, o que naturalmente produz distanciamento e desconsideração. A
estranha necessidade de ter que explicar as palavras que usa, nas relações com colegas, é
também um grande incômodo, sendo a impossibilidade de se expressar livremente uma marca
de que aquele lugar não é compatível com suas formas viver, de que é preciso adaptar-se para
lá estar. A fala não é espontânea, deve ser traduzida, enquadrada em um outro formato. Esta
adaptação é também requerida nos contextos de sala de aula, onde as falas emocionadas,
carregadas de expressões características e/ou agressivas são recusadas. Os palavrões são um
ponto de embate; perde-se de vista a necessidade de demonstração de emoções e os processos
históricos, pessoal e coletivo, que atravessam as falas, o que as levam a serem interpretadas
como ataques pessoais aos/às docentes e colegas envolvidos/as.
A linguagem também pode se constituir como um entrave quando as/os docentes se
expressam de uma forma que não é capaz de transmitir o que se propõem a ensinar. O aluno
fala de professores e professoras acostumados/as com um certo público, que usam palavras
que não estão no repertório de todos e todas, e lecionam sobre conceitos cujo entendimento é
naturalizado, apesar ambos não terem estado no cotidiano de quem veio da escola pública
(Bourdieu & Champagne, 1993/2008; Nogueira & Nogueira, 2005). O depoente entende que é
parte do papel de docente tornar o conteúdo ensinado acessível ao público para o qual leciona,
transmitindo os conceitos de acordo com a bagagem cultural dos/das estudantes, trazendo à
cena a responsabilidade de se fazer entender. Acrescenta que nem mesmo o que proveem as
instituições privadas de ensino básico é suficiente, os alunos e as alunas da rede particular
também têm dificuldade em acompanhar algumas disciplinas, pois os assuntos abordados são
de grande complexidade, sem que haja aporte dos conhecimentos básicos necessários à sua
compreensão. Vale ressaltar que esta incompreensão, mesmo que presente na maioria dos/das
estudantes, é atravessada por questões de classe. Para quem vem da escola pública e muitas
vezes já chega ao Instituto na posição de não saber, de inferioridade de conhecimentos, não
ser capaz de compreender o que é transmitido pode reforçar a sensação de incapacidade, de
falha individual, tornando as situações de sala de aula humilhantes. O entrevistado sugere, em
29

contra partida, que a dificuldade de transmissão de conhecimentos, quando generalizada, diz


mais sobre a forma de ensinar do que da competência dos alunos. Por fim, ele aponta, como
efeito desta inflexível comunicação, o afastamento dos/das estudantes em decorrência da
impossibilidade de compreender o que (não) é transmitido, repelidos/as pela falta de sentido
que as disciplinas adquirem. O esvaziamento das aulas, porém, com frequência não parece ser
compreendido pelos/pelas docentes como produto de suas práticas, pelo menos, esta
compreensão não costuma transmitida aos alunos. Novamente, particulariza-se as questões,
entendendo que os/as estudantes que se retiram são desinteressados/as, desvalorizam
conhecimentos dos quais não gostam, não se esforçam para se engajar nas atividades
propostas, etc.
Não só as diferenças linguísticas foram muito importantes na fala do depoente, mas a
questão da estética também é vivida como um ponto de conflito entre as classes sociais. Uma
experiência marcante para o aluno aconteceu no território da Faculdade de Medicina,
sabidamente uma das unidades mais elitistas do conjunto USP. Ao habitar os espaços da
instituição, sentia-se olhado, como se sua presença fosse algo estranho. Estranho não só por
ser diferente, mas também indesejável; os olhares não eram de mera curiosidade, mas de
reprovação. Seu camisetão, a corrente e o boné só passavam despercebidos pelos funcionários
e pelas funcionárias que, como ele supõe, possivelmente vinham das camadas mais pobres da
população, acostumados aos padrões estéticos da periferia. No IP, não percebe que as marcas
visuais tencionem o cotidiano, mas se tornam motivo de opressão nas situações de
atendimento a clientes; como se houvesse roupas certas para a prática clínica, o aluno conta já
ter sido questionado quanto ao seu vestuário. Assim como no caso dos palavrões e gírias, os
símbolos, sejam palavras, gestos ou objetos, assumem diferentes conotações para os grupos
sociais; o boné, por exemplo, que para ele é uma importante marca identitária, é interpretado
pelos mais ricos como uma forma de desleixo, desrespeito, algo que poderia agredir o/a
cliente. Apesar das críticas recebidas poderem ser entendidas como tentativas de cuidado dos
supervisores e supervisoras, estes/as o fazem com base em seu próprio referencial, que via de
regra rejeita as marcas das populações mais pobres. É interessante, também, como na vida
cotidiana do Instituto há o que parece ser uma falsa aceitação dos padrões periféricos, que cai
por terra frente a uma situação séria e importante como o atendimento à comunidade externa,
o que faz pensar nos preconceitos velados.
Quanto às formas não explícitas de preconceito, o depoente identifica no Instituto falas
que, embora tenham uma direção política que defende práticas democráticas, não
30

correspondem às ações desenvolvidas na instituição. Um aspecto importante que aparece em


suas colocações é a questão dos/das intercambistas. O entrevistado identificou no contato com
estrangeiros e estrangeiras que as falas que apoiam a integração com alunos de outros países,
que valorizam as trocas interculturais e se mostram solícitas em relação aos que não são do
Brasil, referem-se a um tipo específico de viajante: os europeus. O grande interesse e procura
pelos/as intercambistas da Europa, principalmente alemães, são contrastantes com a situação
de quem vem da América Latina, cuja presença é desvalorizada e, por vezes, ignorada no
IPUSP. Os convites, o tom de voz e o interesse pelo outro variam completamente a depender
de sua nacionalidade e, portanto, sua posição social no cenário mundial. As observações do
entrevistado indicam que o padrão de formas de ser também se estende aos que são de fora do
país; existem os "bons" intercambistas, europeus, brancos, falantes da língua inglesa,
enquanto os demais vivem como um grupo inferior, marginalizado. O referido padrão,
inclusive, não é muito diferente da elite brasileira, que historicamente se espelhou na cultura
europeia; os alunos e as alunas de cultura dominante também são brancos, ricos, falam línguas
diversas e conhecem partes do cenário internacional.
Outro exemplo em que identifica ações dissonantes em relação ao que é idealmente
pregado, se dá no contato com os funcionários e as funcionárias. Existe um discurso de defesa
dos empregados mais vulneráveis que não se concretiza em ações; o cuidado com os que são
mais pobres e ocupam cargos hierarquicamente inferiores não é, em muitos casos, embasado
em atitudes. O entrevistado fala sobre alunas e alunos que dizem defender as classes mais
pobres e nem ao menos sabem quem são os funcionários do Instituto, quais funções
desempenham, enfim, não estabelecem contato com eles e elas, inclusive, ignoram sua
presença cotidianamente. As pontuações do estudante permitem questionar as formas de
militância produzidas no IP, que volta-se mais para questões pontuais e externas à sua
comunidade, como defesas ocasionais do SINTUSP8, do que para as práticas desenvolvidas
internamente. Além disso, a dificuldade de tomar consciência das próprias ações, presente no
contexto descrito, é uma problemática que dialoga com uma mobilização de estudantes,
ocorrida no ano passado, que visou trazer à luz formas de desrespeito aos funcionários e às
funcionárias do IP, como deixar lixo espalhado pelas salas e banheiros.
As questões raciais também aparecem de forma implícita nos relacionamentos do
Instituto, apesar de o discurso vigente ser igualitário e anti-racista. A discriminação e os
preconceitos são identificados pelos depoente em algumas cenas, por exemplo, no caso de

8
Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo
31

uma aluna que disse a um colega que não tinha interesse em se envolver com ele, pois era
preto. O entrevistado descreve, então, relacionamentos falsamente cordiais; impera o discurso
de igualdade e respeito à diferença, mas nas práticas cotidianas valores opostos se expressam.
Estas relações, tidas por ele como hipócritas, dizem dos preconceitos profundamente
arraigados na cultura do país, assim como da naturalização das desigualdades sociais, que
concorrem na construção dos discursos circulantes. Apensar dos esforços de defesa das
práticas democráticas, estes antigos valores ainda circulam no ideário da instituição,
contribuindo para as incoerências e contradições observadas; participa-se de um ato em defesa
dos trabalhadores terceirizados, ao mesmo tempo que se deixa a sala desorganizada e suja, a
cargo da única funcionária responsável pela limpeza do bloco de salas de aula, também sob
um regime de contratação precário.
Frente às inúmeras situações violentas de discriminação e opressão e das vivências
fortemente atravessadas pela desigualdade das classes sociais, o aluno, ao longo da sua
passagem pelo Instituto, operou sobre as tensões existentes, buscando formas de resistência.
Ao se deparar com a pouca expressividade de pobres e negros na composição da comunidade
uspiana, a não ser como funcionários/as de posições hierarquicamente inferiores, ele
organizou eventos que buscavam trazer o protagonismo da periferia para dentro da instituição.
Os eventos organizados trazem a voz e a estética das populações marginalizadas, buscando a
ocupação dos espaços por alunas e alunos usualmente desconsiderados, rompendo a lógica
segregadora vigente, como ele explica. Suas festas, chamadas de "invasões", afirmam que o
Instituto é um espaço seu, que também ele tem o direito de estar na Universidade. O
estudante, trazendo o familiar para dentro da USP, procura aumentar o pertencimento e a
inclusão dos alunos das classes mais baixas, fazendo caber as formas de viver não
contempladas.
Fica claro, ao longo da entrevista, que o espaço dos/das estudantes de baixa renda no
IP e na USP precisa ser conquistado, não é algo dado, que advém da vaga garantida no
vestibular. Enquanto alunos e alunas mais ricos/as encontram nos territórios da Universidade
um ambiente mais familiar, onde se partilham seus referências e suas formas de ser/viver são
respeitadas, os que vêm de outras classes socioeconômicas precisam atuar no sentido de
marcar suas diferenças e pressionar o campo de forças para fazê-las caber no funcionamento
descrito. O habitar dos espaços é, como mostra a trajetória do entrevistado, uma construção,
envolve um esforço de disputa e autoafirmação. O aluno, porém, faz uma crítica às novas
gerações que estão entrando no Instituto, entendendo que elas se preocupam mais com a
32

aquisição de um diploma do que com a construção e participação destes movimentos. É


possível pensar que o não implicamento percebido se dê, justamente, em decorrência da
produção de despertencimento que permeia as discussões deste trabalho. Por não sentirem que
a USP é um lugar que podem e devem ocupar, que as questões que nela ocorrem lhe dizem
respeito, talvez estes/as estudantes estejam tolhidos em sua potência de intervenção, o que dá
a impressão de desinteresse.
Além de eventos dentro do campus, o estudantes também procura levar colegas da
universidade para conhecer a periferia sob outros ângulos, mostrando as facetas que escapam
às visitas propostas pelas disciplinas e aos conteúdos que elas abordam. Ele diz da
necessidade de construir pontes entre a Universidade e as comunidades pobres, levando
alunos/as para fora e trazendo moradores/as para dentro. Durante às tentativas de aproximação
que tentou realizar, percebeu que a ocupação dos territórios da USP por moradores/as da São
Remo, por exemplo, é quase que inviabilizada. A violência que se constitui no habitar dos
espaços da Universidade é tamanha que acaba os/as afastando de vivências que poderiam ser
de seu interesse. O depoente relata que ao veicular um evento de Rap que organizaria no IP,
percebeu que integrantes da comunidade, apesar de gostarem do estilo musical, desistiam de
participar ao saberem que teriam que entrar no campus. O espaço da USP, aberto e divulgado,
não é suficiente para que haja participação das populações periféricas, uma vez que a
instituição é vivida como segregadora, humilhante e violadora. As sistemáticas violências
sofridas pelos que moram em bairros periféricos se mostram muito eficazes em expulsá-los de
um espaço que poderia ser de convivência, lazer, aprendizado, etc; em alguns casos mais
explicitamente, como crianças que foram agredidas fisicamente por policias, em outros mais
silenciosamente, existem diversos mecanismos de afastamento dos grupos mais pobres da
Universidade, sendo o vestibular apenas mais um deles.
Ainda sobre as tensões geradas na construção de interlocuções entre a USP e as
populações dela excluídas, o aluno descreve como ele e diversos colegas de situação
socioeconômica semelhante sentem-se sem lugar, não estando plenamente integrados aos
grupos universitários, nem à comunidade externa. A dificuldade de habitar simultaneamente
os dois espaços aparece tanto no convívio com os colegas do IP, nas situações já
mencionadas, como no contato com pessoas da periferia. Conta que estudantes pobres muitas
vezes são vistos nos espaços extra-universidade como metidos e esnobes, ou então super-
heróis, seres super dotados com os quais não se pode nem conversar (Barbosa, 2004). O
distanciamento trazido é também linguístico; da mesma forma que as gírias não são
33

compreendidas na USP, o vocabulário que ele adquire no IP não é entendido no ambiente


extra-universitário, e do mesmo modo que a expressão periférica não é bem-vinda no
Instituto, a fala acadêmica é mal vista fora dele. As impressões que ouve dos/das colegas de
fora do Instituto permitem questionar o estereótipo do aluno uspiano, tido como alguém
excepcional, com um saber inatingível, lugar que produz raiva, vergonha e sensação de
inferioridade.
Há uma constante tensão no habitar das relações; esta sensação de sem lugar, de não
ser nem daqui nem dali, como ele descreve, diz das barreiras que a USP e Academia, de modo
geral, criam em relação às populações menos privilegiadas e fazem com que os ambientes
universitários e periféricos não sejam vividos como passíveis de justaposição; como ele diz,
ouve-se Racionais ou estuda-se Foucault. Não só alguns de seus antigos amigos sentem que
ele já não faz mais parte do grupo, mas a aproximação com as vivências uspianas de padrão
elitista produzem nele próprio uma sensação de desenraizamento, de estar se afastando do
lugar com o qual se identifica, das pessoas queridas, da cultura que conhece, etc. Elucida,
assim, que a articulação da vida na Universidade com as vivências periféricas não se dá sem
esforço pessoal; esforço de negociar o que se colocam como dois jeitos inconciliáveis de ser,
de valorizar aspectos dos dois âmbitos conflitantes e combiná-los. Na construção destas
interlocuções, aponta o trabalho com o Rap como uma potência, caminho que permite
produzir algo em comum entre as vivências que tem dentro e fora da universidade.
Ainda sobre formas de resistência, o depoente ressalta o Coletivo de Classe IPUSP
como um mecanismo de trocas, disputa e mobilização. Apesar da pouca articulação do
movimento de esquerda do Instituto e da carência de discussões a respeito das desigualdades
de classe que lá se (re)produzem, o grupo é capaz de se unir na defesa de seus interesses, por
exemplo, em situações onde docentes, a revelia dos alunos e das alunas, tomam decisões que
lhes afetam, como no caso em que se decidiu diminuir o valor das bolsas de monitoria e
aumentar o número de beneficiados. Quanto ao caso, o entrevistado faz uma divisão entre
os/as docentes; de um lado os/as que se propõem a dialogar e buscam decisões conjuntas, e de
outro, os/as que desejam auxiliar mas o fazem autoritariamente, guiados pelas próprias
convicções. O que ele relata faz parte das diversas situações onde o corpo docente toma para
si lugares de fala que não lhe pertencem, agindo em desacordo com as concepções dos/das
afetados/as pelas questões, criando necessidade de busca por protagonismo. No Instituto, o
aluno observa que brancos ricos falam no lugar de pobres e negros; durante as aulas veicula-
se informações sobre a periferia que não condizem com a sua experiência, o que ele entende
34

como consequência de o conhecimento dos/das docentes, em sua maioria privilegiados/as, ser


majoritariamente acadêmico e teórico, uma vez que a vivência periférica não diz respeito às
suas realidades. Mais uma vez, as atividades acadêmicas reproduzem o silenciamento e a
exclusão; as classes favorecidas produzem discursos sobre outros, falando deles e por eles,
silenciando-os. Quanto a estes casos, o entrevistado reconhece o desconhecido como fonte de
fantasias e estereotipias, sendo as comunidades marginalizadas encaradas como lugares
extremamente pacíficos, onde todos convivem em harmonia, ou então, territórios sem lei,
onde impera a violência, a preguiça, a malandragem, etc. (Barbosa, 2004).
Para o estudante, a formação dos psicólogos e das psicólogas também tem um grande
potencial de enfrentamento das problemáticas apontadas, desde de que abarque as questões
socioeconômicas de forma a permitir o entendimento das experiências dos sujeitos das classes
sociais menos privilegiadas, sem estereotipar suas vivências, nem subestimar seus potenciais.
Dentro desta formação, ressalta o entrevistado, deveria-se mostrar as múltiplas facetas das
populações mais pobres, principalmente o que elas desejam que seja visto. Esta pontuação
coloca em questão como os agentes do Instituto propõem as aproximações com as
comunidades, como desenham os estágios e propõem formas de conhecer outras realidades.
Via de regra, tem-se um enfoque sobre a pobreza, a falta, a precariedade, as dificuldades
enfrentadas, deixando de lado muitas potências, a cultura, a arte. Ao invés de levar os alunos e
as alunas a um baile Funk, show de Rap ou qualquer atividade cultural, como ele sugere,
costuma-se abordar as classes mais pobres através da precariedade de habitação ou das
condições de trabalho. O estudante fala também da necessidade de que a formação das/dos
profissionais mobilize a percepção da não universalidade das experiências, dos valores, das
formas de manifestação, combatendo uma dificuldade que identifica em alguns profissionais
de se desembutirem de seus pré-conceitos e preconceitos. A necessidade de que se perceba o
que se produz no contato com o outro, sobretudo, o que tem uma vivência diferente, é uma
questão importante em sua fala.
A conversa com o depoente chama atenção para dois importantes aspectos: as
expressões culturais como forma de dominação de classe e a potência dos alunos e alunas
uspianos/as menos privilegiados/as na integração da Universidade com as realidades que a ela
escapam. Ele deixa claro que aspectos culturais relevantes de alguns grupos, como o
vestuário, a música e a linguagem, são constantemente combatidos no Instituto, havendo uma
forte tensão no habitar dos seus espaços. As pressões para que se enquadrem nos padrões
hegemônicos são intensas e se dão sob várias maneiras, fazendo-se necessário um esforço de
35

disputar que as formas de ser e viver que diferem do estabelecido tenham espaço na USP e na
vida acadêmica. Os movimentos do entrevistado que surgem disto se dão através de duas
estratégias: trazer para dentro da Universidade o que sempre se colocou para fora dela e
transpor as vivências periféricas para a esfera acadêmica. Com o intuito de aproximar o que
historicamente se colocou distante, o aluno traz para o campus elementos culturais e pessoas
das regiões marginalizadas, ao mesmo tempo que em seus estudos sobre Rap procura fazer
uma leitura teórica da realidade que encontra fora dos muros da USP.

3.4 Entrevista 3

A terceira entrevista desta pesquisa foi realizada com uma aluna do quinto ano. No
começo de abril, nos encontramos no Centro Cultural São Paulo, local que ela costuma
frequentar em momentos de lazer, e nos sentamos em uma das mesas da área externa. A
conversa se iniciou com um breve resumo da história escolar da depoente, que foi aluna da
rede pública estadual da primeira série do Ensino Fundamental até o último ano do Ensino
Médio. A entrevistada passou por cinco escolas durante os onze anos da educação básica,
sendo que primeira mudança se deu porque a instituição só abrangia os quatro primeiros anos
do ciclo. Na nova escola, encontrou condições precárias de ensino e estrutura; faltas de
professores eram muito recorrentes, assim como aulas que não lhe pareciam bem ministradas,
o que se somava à precariedade de nível material, como uma sala no subsolo onde havia uma
goteira que vinha do banheiro. Havia também proximidade com o tráfico de drogas, que se
inseria no cotidiano escolar de forma natural e acrítica, como ela diz, de maneira que o
comércio e uso de substâncias ilícitas se misturava mais à vida da escola do que em outros
contextos. Frente a estas condições de ensino e questões de indisciplina da aluna, que
provavelmente estavam relacionadas entre si, a mãe da entrevistada procura outra instituição.
Nesta segunda mudança, a estudante se viu insatisfeita, detestou a escola e então buscou outra
opção nos arredores de sua casa. A quarta escola frequentada, de ensino técnico, era
considerada boa em comparação às outras possibilidades da região, e este primeiro ano do
Ensino Médio funcionou para ela como um organizador de sua vida acadêmica. O ingresso
através de um vestibulinho, assim como a produção de um trabalho de conclusão de curso
foram como que um preparo a educação superior. No segundo ano do Ensino Médio, mudou-
se de instituição pela última vez, e retomou o engajamento com os estudos.
36

Chama atenção no percurso da entrevistada a segmentação do processo educacional, o


que faz pensar sobre os possíveis efeitos disto em uma formação acadêmica. As constantes
mudanças de escola, se vividas como fragmentações no processo de aprendizagem, podem se
atrelar à dificuldade de formação de vínculos com os outros alunos, com a equipe de
educadores e com a própria instituição de ensino, além de deixar marcas na relação com o
conhecimento. Não só as interrupções devem ser levadas em conta, mas também as diferenças
dos perfis das escolas; pode haver significativas variações em seus projetos pedagógicos, que
dizem do método de ensino, estruturação do currículo, diretrizes educacionais, concepção
sobre o processo de ensino e aprendizagem, atividades pedagógicas desenvolvidas etc., o que
potencialmente gera lacunas na aprendizagem. Vale ressaltar que os prejuízos ao processo de
formação e aquisição de conhecimento dependem não só da quantidade de mudanças em si,
mas dos motivos que levam a elas e de como se dá a transição entre instituições. No processo
educativo da depoente, produziu-se desenraizamento em relação às escolas frequentadas, com
as quais ela perdeu contato assim que saiu, característica que contrapõe à experiência de
alunos e alunas que vieram de escolas particulares. Este percurso educacional e a sua
diferença em relação ao ensino privado, levam a pensar quais aspectos desta descontinuidade
podem estar relacionados ao ensino público. Primeiramente, problemas antigos do sistema
público de educação brasileiro, como falta de professores/as e aulas que pouco conseguem
transmitir, certamente se relacionam com a troca frequente de escola relatada (Patto, 2009).
Também, no que se refere à própria escolha das instituições, há uma diferença clara entre o
público e o privado, uma vez que está disponível às classes mais privilegiadas uma gama
maior de opções, havendo possibilidade de optar por certo modelo pedagógico, por exemplo,
ou por escolas de melhor infraestrutura, enquanto no contexto público as alternativas estão
mais atreladas a condições geográficas. Além disso, em relação ao ensino particular, o bom e
o ruim da educação pública será mais afetado pelo que é do domínio público; a composição
dos membros da instituição, a verba disponível, a possibilidade ou não de contratação de
professores/as, as técnicas de ensino utilizadas, por exemplo, são fatores de responsabilidade
dos órgãos centrais, cabendo a instâncias do governo tais decisões, diferente do que ocorre no
setor privado, onde a ingerência do público é menor, havendo mais liberdade de escolha.
Depois de se formar no Ensino Médio, a entrevistada ingressa no mercado de trabalho,
aos 18 anos, tendo seu processo educacional atravessado por questões materiais. Em um
primeiro momento, a impossibilidade de custear um curso pré-vestibular ou o ingresso no
ensino superior particular, fazem pressão para que a entrevistada se afaste provisoriamente da
37

educação formal e desempenhe atividades remuneradas. A possibilidade de dar


prosseguimento aos estudos e graduar-se no ensino superior aparece, assim, como um
privilégio, não pode ser prioridade enquanto as necessidades básicas familiares não estiverem
garantidas. Como a depoente ressalta, em um contexto em que o Estado não garante o direito
de estudar, existe uma pressão sobre os alunos e as alunas das classes mais baixas para que
comecem a trabalhar assim que possível, sendo necessário deixar os estudos em segundo
plano. Após três anos trabalhando, então, consegue dedicar-se exclusivamente ao curso pré-
vestibular, por dois anos, e entra na USP.
A chegada no Instituto de Psicologia apresentou vários desafios no que refere à vida
estudantil, algo que a aluna pôde antecipar, pois, apesar de considerar a USP uma
universidade de alto nível, uma das melhores da América Latina, imaginava que não seria
fácil, para alguém com a sua história, estar nela. Previa que o contato com uma comunidade
de condição socioeconômica bem mais privilegiada do que a sua traria conflitos, expectativa
que se relaciona às suas experiências de trabalho, onde a humilhação e a reificação produzidas
no encontro com as classes mais altas eram vivenciadas como fruto de um descuido
intencional (Gonçalves Filho, 1998). Desde o início da graduação, a convivência com os/as
estudantes e docentes mais ricos/as do Instituto foi vivida como produtora de sentimentos de
inadequação e estranhamento; parecia que a realidade da aluna não se encaixava no contexto
dos colegas e da instituição. O ambiente de ensino que encontrou era bastante diferente do
que havia experimentado na educação básica, onde as diferenças socioeconômicas entre os
alunos e as alunas eram sutis. Apesar de perceber que na escola as condições materiais
das/dos colegas não eram iguais, por exemplo entre os/as que migravam vindos de escolas
particulares e os/as que sempre integraram o ensino público, estas diferenças não causavam
estranhamento, porque de fato eram bem menores do que as que há no IP e talvez também
porque a escola pública brasileira, sendo planejada para quem não pode custear um ensino
privado, tenha um funcionamento que se adeque à realidade das classes menos privilegiadas.
No Instituto, apesar de haver vários/as estudantes em sua sala que tivessem uma
condição socioeconômica parecida com a sua, estar entre semelhantes não era suficiente para
que a entrevistada se sentisse adequada, pertencente ao grupo, uma vez que a estrutura da
Universidade e do IP dão a ver que são planejadas para alunas e alunos de outra origem
social. A quantidade de estudantes de baixa renda na instituição, então, não é o mais
importante determinante da inserção destes no contexto universitário; como a aluna apontará
ao longo da entrevista, existe uma série de práticas que produzem exclusão, despertencimento
38

e humilhação. Um dos primeiros estranhamentos dela em relação aos colegas foi o fato de
muitos deles terem estudado nas mesmas escolas, ou fazerem parte de um mesmo ciclo de
amizades, o que facilita a criação de comum entre eles. Os amigos dela, em contrapartida,
haviam seguido caminhos muito diversos do seu, sendo que para muitos/as a USP nem sequer
existia. O desconhecimento por parte de estudantes de baixa renda da escola pública sobre
uma universidade gratuita e de renome em sua cidade, dá pistas de como a vida universitária,
especialmente na rede pública, se constitui distanciada das vivências das classes menos
privilegiadas. Para os/as que vêm das camadas mais altas da hierarquia social, onde costuma
haver possibilidade de formação acadêmica, certamente a USP é, se não um horizonte, ao
menos conhecida. Para algumas pessoas do convívio da depoente, a Universidade só viria a
tomar corpo anos após sua conclusão do ensino médio, quando passarem a integrar a
educação superior privada. As colocações da entrevistada mostram, assim, que tanto o
ambiente da Universidade, quanto o meio fora dela, indicam que aquele não é um espaço
esperado para os membros de sua classe social, como será discutido ao longo da entrevista.
A diferença com que a educação formal e a noção de carreira se constituem no
cotidiano das classes mais altas e mais baixas da sociedade é um fator de grande influência na
questão do pertencimento dos menos privilegiados. No caso das famílias mais abastadas, onde
há maiores possibilidades de frequentar o ensino superior, as questões da vida acadêmica se
inserem no cotidiano dos/das estudantes com mais facilidade, de forma que chegam à
universidade com uma bagagem sobre diversos temas que concernem a ela (Nogueira &
Nogueira, 2005). Para a família da depoente, porém, o ensino superior é uma realidade
distante; em seu núcleo doméstico ninguém teve contato com as dinâmicas da educação
superior. A mãe e o tio estudaram até a oitava série do ensino fundamental, o pai até a quarta
e a avó não foi alfabetizada. Soma-se a isto a tradição elitista da Academia, cujas temáticas de
ensino, pesquisa e prática em psicologia dificilmente consideram realidades tão diferentes da
vida de privilégios nas quais geralmente são criadas. Deixa-se de fora, por exemplo, as
vivências onde os esforços se concentram em questões essenciais, como o trabalho, as contas
que precisam ser pagas, o suprimento de necessidades vitais, como a entrevistada diz, coisas
que gritam. Aos alunos e às alunas mais pobres, então, reflexões sobre o que é ciência, seus
objetivos e métodos, além dos assuntos comumente abordados pela psicologia, não são
habituais em seu universo cultural, havendo uma necessidade, não suprida, de que se trate
destes temas em níveis mais básicos durante a graduação; alguns estudantes dependem mais
das instituições de ensino para saber o que elas exigem, enquanto outros, oriundos dos grupos
39

dominantes, têm seus referenciais de classe acolhidos pela educação formal (Bourdieu &
Champagne, 1993/2008). Da dificuldade de tecer um comum com o que é experienciado fora
da vida acadêmica, resulta uma sensação de falta de sentido, de que as discussões do Instituto
não lhe dizem respeito; há pouca identificação e repercussão. O abandono do espaço é
identificado pela aluna como um desdobramento desta ausência de sentido, que perpassa as
aulas esvaziadas do IP e a pouca ocupação de seu espaço.
A falta de familiaridade que a aluna descreve em relação à cultura universitária se
relaciona com a divisão social do trabalho historicamente construída. As famílias mais ricas
geralmente podem se ocupar de cargos que dependem de formação acadêmica especializada,
que são socialmente valorizados e bem remunerados. Já às mais pobres, restam os trabalhos
tecnicistas, braçais e/ou que dispensam educação formal, cujos postos estão no nível mais
baixo da hierarquia trabalhista (Araújo, 2012). Assim, o ensino superior torna-se comum aos
mais privilegiados, que projetam suas carreiras, desde a educação básica, para se
especializarem e assumirem cargos valorizados. Em contra partida, para as classes mais
baixas a formalização dos conhecimentos não se faz tão possível, portanto, não tão necessária
e as urgências da vida cotidiana ocupam lugar de destaque na inserção no mundo do trabalho.
Desta forma, se constitui um ciclo: as classes dominantes ocupam o ensino superior, fazendo
com que este se constitua voltado para elas, o que garante sua inserção nas universidades, pois
estas adotam seus referenciais, acolhem suas necessidades e orientam-se por seus interesses. É
preciso pontuar que esta reprodução da estrutura social só se dá quando o Estado governa com
base nos interesses dos grupos mais privilegiados, o que permite que a educação básica
pública seja, desde a sua expansão, falha e insuficiente, e que as universidades públicas sejam
destinadas aos mais ricos (Patto, 1990/1993; Patto, 2009).
A partir do que a entrevistada descreve, forma-se uma espécie de limbo social, um
não-lugar (Barbosa, 2004). Quando em casa, não encontra correspondência com o que
aprende na universidade e, quando se dedica aos estudos, não encontra equivalência com sua
realidade de origem. Fica assim em uma posição mal colocada, ao mesmo tempo que não
pertence mais ao contexto familiar, também não se adéqua à vida da USP. A aluna conta
como estas desconexões a desorientaram, colocaram em xeque sua identidade; não está lá,
nem cá, não parece se encaixar em nenhum dos modelos. Enxerga em si, porém, a potência de
superação desta posição deslocada, através da árdua construção de pontes entre estas
realidades tão diversas.
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As falas da estudante descrevem um cotidiano educacional que se relaciona muito


fragilmente com seu contexto extra-universitário e sua busca por romper o ciclo descrito e
fazer caber suas experiências no cenário da Universidade tensiona não só suas relações dentro
da USP, como as expectativas do meio social. Como mencionado, o caminho esperado para a
depoente não era o da Academia, percurso que justamente não foi seguido pela maioria de
seus familiares e amigos, e as pressões para a entrada no mercado de trabalho disputam
espaço com a formação superior. Para a entrevistada, estudar na USP significa aumento e
diversificação das possibilidades, permite descolar-se de alguns aspectos de sua condição de
origem, por exemplo, da impossibilidade de se dedicar a uma só profissão. O significado que
atribui à graduação dá a ver o grande impacto que a educação formal tem na vida de um
sujeito, no contexto da estrutura social e econômica vigente. Ingressar ou não em uma
universidade não diz apenas de um diploma ou de um tipo de saber adquiridos, mas costuma
ser um fator definitivo das condições sociais e materiais, que afetam diversos âmbitos da vida,
como o acesso à saúde, lazer e conhecimento. Como ela pontua, estar na universidade
significa mais do que aprender Psicologia, implica a oportunidade de ter uma profissão
estável, maior possibilidade de escolha sobre o trabalho desempenhado, melhor remuneração,
uma vida que sofre menos impacto da não garantia de direitos por parte do governo, etc.
A ampliação de possibilidades que a depoente traz não se dá, porém, sem custos. Estar
na Universidade e tornar-se psicóloga significam também adaptar-se a um universo cultural
bastante novo, experiência muitas vezes violenta, que requer dela a assimilação de realidades
diferentes da que vivera até então, em detrimento das últimas. A construção de uma vida
acadêmica que se embasa nas experiências das classes mais privilegiadas podia ser facilmente
identificada pela entrevistada nas situações de sala de aula. O sujeito do qual se tratava era
desconhecido pela aluna, não tinha correspondência com o que ela via em sua realidade;
encontrava um só tipo de sujeito, bastante restrito em suas formas de ser, resultado da maneira
de conhecer e compreender de uma psicologia dominada por autores/as, professores/as e
alunos/as bastante privilegiados/as. Tal psicologia não costuma contemplar as temáticas de
outros grupos sociais, ou, quando o faz, as retratam com um olhar estrangeiro que, não
raramente, é preconceituoso e enviesado. Quando a aluna trata sobre este assunto, conta de
teorias com as quais se deparou que desconsideram dimensões mais emergenciais da
existência, que marcam profundamente a vida dos mais pobres, como a gravidez que ocorre
na adolescência e a necessidade do ingresso rápido no mercado de trabalho para garantir a
sobrevivência. Uma análise sobre a estrutura curricular do IPUSP evidencia que são poucas as
41

disciplinas que de alguma forma conseguem acessar certas dimensões básicas da vida de
sujeitos cujas vivências não se enquadram nos padrões de riqueza, branquitude e
heterossexualidade, deixando-se de fora fatores importantes que atravessam estas outras
formas de viver.
São várias as cenas da vida discente vivenciadas pela depoente que, desde o início da
graduação, deixam perceber que o espaço para um certo tipo de diversidade é bastante restrito
no Instituto, produzindo nela uma sensação de estar à parte. A aluna conta que as relações
estabelecidas no IP faziam-na se sentir inadequada, uma vez que, em havendo um tipo de
aluno adequado, os que estão fora do padrão esperado são colocados em posição de
deslegitimação e inferioridade, e diversos foram os momentos em que sinalizou-se que
pessoas como ela não deveriam estar na Universidade. A entrevistada fala de como a
legitimação de certas vivências e desvalorização de tantas outras, faziam-na sentir que
aspectos de sua vida, não contemplados nas vivências do Instituto, fossem inadequados,
errados; por um lado, não deveria ter tido algumas experiências que tivera e, por outro, algo
nela estava incompleto, deveria ter passado por coisas pelas quais não passara (Backes, 2006).
Ela pontua que a atribuição de valores diferentes às vivências dos grupos sociais é algo que
não se restringe ao IP, nem à USP, mas é uma característica da sociedade como um todo, que
se reproduz no âmbito da educação. Talvez não fosse possível estruturar uma universidade,
um curso ou uma forma de educar que contemplasse a diversidade da experiência humana,
mas certamente a existência de um modelo que domina os outros, produz um funcionamento
impeditivo e constrangedor de certas formas de viver.
Outra cena, trazida pela entrevistada, que elucida a presença deste padrão nas relações
da comunidade uspiana ocorreu durante uma aula em que se perguntava de que escolas
vinham os alunos e as alunas, a fim de se saber dos métodos de ensino de cada instituição. As
escolas públicas não foram mencionadas e ausência delas na discussão não pareceu ter sido
notada pelo grupo. A depoente se pergunta se não é importante discutir a educação pública;
chama-lhe a atenção o fato de isto acontecer justamente em uma instituição que faz parte
desta rede, aonde seria de se esperar que o resto dela fosse relevante. A aluna entende que isto
decorre de um descuido, e não da intencionalidade de excluir e violentar os/as estudantes que
não vieram do ensino privado. Considera, porém, que se trata de uma questão política,
mencionar ou não o público e como isto é feito, produz diferentes efeitos nas relações. Para
ela, esta desconsideração se deve a uma dificuldade de enxergar as outras realidades do corpo
discente, apontamento que deixa ver a potência da elucidação dos processos de reprodução da
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exclusão dos grupos minoritários, como condição que possibilita a legitimação e inclusão dos
"excluídos no interior" (Bourdieu & Champagne, 1993/1997).
A entrevistada se lembra também de situações nas quais as alunas e os alunos mais
pobres foram diretamente desrespeitadas/os e humilhadas/os, em decorrência da forma com
que se enxerga suas diferenças em relação ao padrão hegemônico. Relata um evento em que
docentes e estudantes de diversos anos estavam em um dos auditórios do IP e um aluno falava
ao grupo. Por conta de discordâncias com algumas regras gramaticais em sua fala, uma
professora indagou como poderia haver um aluno da USP que falasse daquele jeito,
questionando se ele não havia passado no vestibular. Como a depoente aponta, uma fala que
foge à norma culta é entendida como vinda de um estudante incapaz, que não sabe falar, cuja
educação é insuficiente para estar no ensino superior, tornando uma questão linguística
motivo suficiente para deslegitimar sua presença no Instituto. Ressalta também o
atravessamento de classe presente, uma vez que a flexibilidade linguística que se apresenta é
usual nas classes menos abastadas, cujo apego às formalidades expressivas é menor em
relação aos grupos dominantes (Houston, 1997). A aluna ressalta que esta fala reflete um
pensamento que circula na comunidade uspiana, de que os grupos menos privilegiados não
deveriam estar na universidade, sob o risco de prejuízo à Academia. Além disso, a
naturalidade como o comentário é feito, em voz alta, dá uma ideia de como o cotidiano no
IPUSP passa a mensagem de que quem difere do modelo dominante não é bem-vindo. A fala
que é verbalizada também permite pensar sobre o processo de ingresso via vestibular, cujo
objetivo se pretende a seleção de candidatos e candidatas com aporte conceitual necessário
para a educação superior mas, evidentemente, almeja a admissão de certo tipo de estudante,
com determinados valores culturais, e o consequente afastamento da grande maioria da
população (Araújo, 2012).
Na cena relatada e em diversas outras, percebe-se o silenciamento das alunas e dos
alunos como efeito da humilhação social que sofreram ao longo de sua história, dentro e fora
da Universidade. Frente a estas falas e posicionamentos violentos, é difícil encontrarem a
possibilidade de romper com o assujeitamento produzido, de modo que tais ideias muitas
vezes circulam no Instituto sem gerar estratégias de resistência. Como a depoente trará ao
longo da conversa, o processo de mudança e fortalecimento que a permitiu alterar seu
posicionamento diante de questões desta ordem foi gradual e dependeu da ação de vários
atores.
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A passagem descrita acima certamente estabelece relação com a concepção da aluna


sobre sua própria forma de falar. Ela conta que para habitar a Universidade teve que aprender
uma nova maneira de se expressar, fazendo com que sua fala, ao longo da graduação, se
distanciasse progressivamente da maneira de dizer oriunda de seu meio de origem, que lhe
parecia errada. Se recorda de outro exemplo, onde uma aluna se posiciona em sala de aula e
não segue a norma culta, o que provoca um riso de deboche na professora, que age como se
não fosse possível compreender uma fala tão errada. A entrevistada entende que nesta
situação, burlar regras gramaticais não afetou significativamente a compreensão do que era
dito, na verdade, não houve esforço da docente para entender o que se falava, talvez porque
ela endossasse as visões sobre o não hegemônico já mencionadas, considerando o erro
gramatical mais importante do que o conteúdo do que era dito. Os exemplos trazidos dão
pistas a respeito da pressão sobre alguns/algumas estudantes em apreender um novo código,
considerado correto para este contexto; a fala, e não só ela, deve se adequar a uma nova
norma. É claro que se espera que da entrada no ambiente universitário decorram mudanças
nas formas expressivas; conceitos serão aprendidos, o estilo de escrita acadêmica será
aprimorado, mas não é disso que se trata. Em alguma medida, todos os alunos modificam suas
formas de comunicar, porém, para alguns, isto se dará como uma deslegitimação de sua
história.
O deboche direcionado a características correntes nas populações menos privilegiadas
aparece novamente em uma cena vivida pela própria entrevistada. Enquanto uma professora
brincava de dizer corretamente o nome de todos os estudantes, ao falar o sobrenome da aluna,
ouviu-se o riso de um colega. A depoente entende, indignada, que seu sobrenome, bastante
comum na população brasileira, havia despertado riso no outro por não se tratar de um nome
estrangeiro, comum às classes mais ricas, "chique", como ela diz. Estabelece uma analogia
com a mídia, que debocha das classes mais baixas, do sotaque nordestino, que tira sarro de
situações de pobreza, da fala "errada", mostrando que a desvalorização de certas formas de
viver não se limita ao contexto da Universidade, nem da educação, na verdade, atravessa toda
a cultura hegemônica do país e se mostra nas representações que associam pobreza e
ignorância, preguiça, carência, má educação, falta de higiene, incompetência etc. (Patto,
2009).
Outra importante questão que surge no Instituto relacionada à linguagem, é o idioma
inglês. O domínio desta língua estrangeira foi requisitado à aluna em vários momentos da
graduação, nos quais era cobrada uma bagagem de conhecimentos que nem todos/todas
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possuem e, novamente, quem veio da rede privada tinha vantagens. A naturalização de


saberes que só os grupos mais privilegiados acessam, aparece em uma cena em que a
depoente viveu com seu colega de representação discente: ao darem um informe em uma sala
do primeiro ano, ouviram estudantes preocupados/as com a enorme quantidade de leitura que
o curso exigia. Na conversa, alguém sugere que talvez haja alunos e alunas que não consigam
ler em inglês, a partir do que a entrevistada pontua que não falar a língua aparece como mera
possibilidade. Num contexto onde a escola pública muitas vezes mal dá conta de alfabetizar
todos os estudantes na língua do país, era de se esperar que houvesse planejamento nas
universidades para suprir a necessidade de uma língua estrangeira, ou de tornar seu acesso
dispensável. Diz também da dificuldade que surge, nestes ambientes, de expor o
desconhecimento; quem não consegue ler em outras línguas não se posiciona, se assujeita.
Não atingir as expectativas se constitui como vergonhoso, humilha; também ela, que não teve
oportunidade de aprender a língua, sentia-se menos do que os outros por não ter essa
habilidade, entendendo a problemática da perspectiva de uma insuficiência pessoal (Patto,
1990/1993). A situação relata traz a questão dos parâmetros da universidade; o problema não
é a existência de um nível mínimo de conhecimento esperado, que se exige de todos/as, mas
basear este saber mínimo no que provém a educação privada. A vergonha, que neste cenário é
vivida como individual, poderia, ao invés disto, recair sobre a própria Universidade, que
deveria criar estratégias para desenvolver esse conhecimento, sobre escola da aluna, que não
lhe forneceu conteúdos suficientes para a vida universitária, e sobre as diversas instâncias do
governo, que são responsáveis por garantir o cumprimento dos deveres estatais relativos à
educação.
A individualização das questões emergentes explicitada na passagem anterior é
produzida constantemente no Instituto, fazendo a depoente sentir que os problemas
decorrentes da reprodução das desigualdades sociais se davam por falhas dela. A aluna lembra
de situações nas quais se vê reproduzindo esta individualização, por exemplo, quando se
sentia muito errada por não acompanhar o ritmo de alguns colegas, aderindo às formas de
pensar que desconsideram as diferenças culturais e materiais que separam as classes sociais
(Nogueira & Nogueira, 2005). Por morar longe, às vezes chegava cansada nas aulas e tinha
dificuldade de se concentrar e, pelo mesmo motivo, depois de um dia de estudos e duas horas
de deslocamento, tinha menos tempo e energia para estudar em casa do que alunos e alunas
que moravam perto da universidade ou tinham carro. Ainda, em decorrência da distância,
precisava dormir cedo, não podendo ficar acordada até tarde para fazer trabalhos e leituras,
45

como é habitual entre os/as estudantes. Não levando em conta as especificidades de sua
história, entendia que era necessário sempre ter o mesmo desempenho que os/as colegas mais
privilegiados/as, posicionamento que também via em professores e professoras. Traz, então, a
questão do não exercício dos pactos, que é atravessada pelas condições materiais de cada
aluno/a; o não fazer de um/uma estudante de baixa renda pode ser muito diferente do não
fazer dos mais ricos. Chama atenção, também, para a importante questão da estruturação do
currículo e das disciplinas: para quem são pensados e quais possibilidades e necessidades são
levadas em conta? Parece que grande parte da estrutura curricular do IP não considera as
histórias de quem mora longe da USP, dos que não leem inglês, dos que precisam trabalhar,
dos que também cuidam da casa e da família.
Ainda sobre a busca em si das causas das dificuldades encontradas, decorrida dos
discursos que circulam explicita e implicitamente na Universidade, lembra de uma situação
em que compartilhava aspectos de sua vida, por exemplo, em uma roda de amigos, e sentia-se
totalmente ignorada. A sensação era de ser invisível e perguntava-se o que tornava suas falas
tão desinteressantes para os outros, se seria o conteúdo do que dizia, sua forma de se
expressar ou ela mesma. Hoje, entende que em alguns contextos há falta de identificação com
o outro e cobra maior abertura por parte dos/das colegas frente ao que é diferente e
desconhecido: é possível um movimento de retração e afastamento, ou de aproximação, de
ignorar ou procurar conhecer, e seu relato aponta o problema do distanciamento que se opera
no IP. Esta falta de interesse que ela identifica pode estar relacionada à deslegitimação de
algumas experiências que se produz no Instituto, que torna as vivências de alguns alunos
menos relevante do que as de outros.
No decorrer da experiência acadêmica da depoente, alguns acontecimentos foram
importantes no sentido de relativizar os discursos apresentados que circulam pela USP e de
fazer pensar suas concepções e posicionamentos frente às questões que surgiam. Um
importante momento em que viu rachar o entendimento de que não havia espaço para pessoas
como ela no Instituto, se deu em uma disciplina obrigatória do terceiro ano, onde tratava-se de
autores que evidenciam os processos de produção das subjetividades, experiências, relações,
dos jogos de força e instituições. Frente aos textos e aulas com os quais entrou em contato, a
entrevistada pôde começar a desconstruir algumas hegemonias, flexibilizando sua
compreensão sobre os fenômenos que vivenciava na universidade. Abriu-se, assim, espaço
para a discussão sobre a diferença e a desigualdade, para o que não se enquadrava nos
formatos estabelecidos, que pôde ser ressignificado e entendido não mais como erro/falta, mas
46

dentro da chave da alteridade; outras experiências, outras realidades, outras perspectivas. A


aluna conta que, finalmente, viu surgir a possibilidade de dizer daqueles sujeitos que pareciam
não existir anteriormente, ofuscados pelo padrão dominante. Pôde iniciar um processo de
assumir sua própria posição, partindo de onde vinha, do que era e do que tinha. O
entendimento de que as relações, práticas e instituições não são fatos dados, mas sim
construídos, envoltos por interesses e pressões diversos, torna possível desnaturalizá-los e,
portanto, operar no campo de forças que os constituem, pressionando-o em outras direções.
Compreender que o despertencimento, por exemplo, não é uma consequência inerente à
convivência inter-classes, mas é efeito produzido por condições que podem ser disputadas, é
essencial para combatê-lo.
Outro momento importante nesta trajetória aconteceu durante uma supervisão ligada a
uma disciplina obrigatória do quinto semestre, quando, após visitar um bairro periférico da
cidade, alunas e alunos se reuniam para compartilhar impressões. Os/as colegas, de origem
social diferente da entrevistada, relatavam principalmente percepções sobre o espaço físico e a
arquitetura do bairro, provavelmente bastante contrastantes com as regiões que conheciam.
Para a aluna, porém, as soluções precárias que decorrem do acesso desigual a emprego e
moradia dignos, não eram tão estranhas; o que chamou sua atenção foi a organização dos
moradores e das moradoras, sua capacidade de produzir coletivo. Incomodada com a sensação
de não se sentir contemplada na discussão, procurou a supervisora do estágio e contou que sua
origem social e percepções eram diferentes das dos colegas. A docente reconheceu a
deslegitimação que ali se operava e ressaltou a importância da percepção da universitária de
que falava de um outro lugar, afirmando que a diferença dos olhares não impedia composição,
pelo contrário, complexificava a discussão. Este é um dos poucos momentos da graduação em
que a depoente viu surgir espaço para a consideração das desigualdades, do fato de que nem
todos vêm dos mesmos lugares, e portanto não veem, pensam, sentem e expressam da mesma
maneira. Também, coloca-se em cheque a concepção de que os alunos e as alunas que não
correspondem ao padrão esperado trazem consigo prejuízo e empobrecimento à universidade.
Ao tratar deste episódio, a depoente ressalta a importância do posicionamento dos/das
agentes no enfrentamento das questões que surgem. A legitimação de sua experiência tem
efeitos diferentes a depender de quem a exerce; o fato de a docente ser integrante da
instituição e estar em uma posição hierarquicamente superior à da aluna, foram fatores
importantes no processo que se desencadeou, pois a ação da professora altera o próprio
funcionamento da instituição, indica que há na Universidade discursos que racham com a
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inferiorização sistematicamente nela vivenciada, possibilidade que não se materializa em um


processo terapêutico ou na relação com colegas.
A estudante traz também uma cena relevante neste processo de fazer caber o diverso,
que ocorreu em um grupo de estudos do qual fazia parte. No início do semestre, o docente
responsável pelo curso passou aos alunos a bibliografia, toda em inglês. A entrevistada,
sentindo que haveria abertura na relação com ele, expôs sua dificuldade e teve sua questão
acolhida. Combinou-se que ela faria o que estivesse de acordo com as suas possibilidades e
que utilizaria aquele espaço para aprimorar suas habilidades com o idioma, posicionamento
que abre brecha para um processo de ensino-aprendizagem mais singular, que respeita as
potências e os limites de cada sujeito. O professor, provavelmente percebendo-se como parte
do problema, encontra uma solução para a questão, ao invés de transferir para a aluna a
responsabilidade pelo que se cria na relação.
A entrevistada relata que a partir destas experiências, principalmente, pôde rever seu
lugar no Instituto e suas concepções sobre as questões que a afastavam da participação na vida
universitária. Reposicionando-se, começou a se envolver mais ativamente nas vivências do IP,
se engajando em atividades diversas. A validação de sua história, feita pelos/as docentes
citados/as, parece abrir uma nova possibilidade de ser, como que autorizando a existência de
outras formas de viver, sentir, pensar, fazer etc. Assegurada de seu direito de pertencer à
instituição, pôde desejar participar dela e ocupar seus espaços, o que permite e constrói
sentido em sua formação.
A depoente também pontua a importância das condições materiais no pertencimento dos
alunos e alunas da Universidade. Na formação dela e de colegas de mesma origem, os auxílios
e bolsas providos foram essenciais para que pudessem frequentar o curso. Sem estes, seria
necessário trancar disciplinas e abdicar de atividades que não fossem obrigatórias,
precarizando a aprendizagem e até mesmo gerando o abandono da graduação, como acontece
atualmente com muitos estudantes. A entrevistada fala, então, das dificuldades do curso de
Psicologia, que além de integral, exige grandes quantidades de leitura, tempo de reflexão e
atividades fora de sala de aula, tornando-se difícil de acompanhar para quem mora longe, por
exemplo. Sua fala aponta para uma tensão entre qualidade de ensino e a estrutura necessária
para isso; um curso demandante não é um problema em si, na verdade, pode contribuir para
uma formação de alto nível, mas um entrave se estabelece quando atreladas a esta exigência
surgem desigualdades, que não são diretamente decorrentes das demandas em si, mas da
estrutura da vida universitária. Um curso como o de Psicologia se torna elitista e excludente
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em uma instituição pública que não dá conta de suprir as necessidades econômicas para que se
exerça a função de aluno, o que traz prejuízos à formação de alguns.
A questão da moradia é muito relevante para a aluna; entende que estar perto da universidade
é formação e sentiu os efeitos disto na sua vida acadêmica quando mudou-se para a região
próxima à portaria 3 da USP. Pontua, porém, que não vive sua nova residência como um lar,
esta é para ela apenas um espaço onde habita. Também pode-se pensar que morar longe da
Universidade não é mera coincidência, mas resultado da marginalização espacial das
populações de baixa renda, que são excluídas das regiões centrais e valorizadas da cidade.
Ademais, a mudança de habitação como busca por melhores condições de estudo lembra a
migração frequente de escolas que a aluna traz no início da conversa. A não garantia de
direitos para as populações pobres brasileiras, que se desenrola no decorrer da história do
país, leva tais grupos a se deslocarem no espaço, procurando alternativas para suprir suas
necessidades. No percurso da entrevistada, a questão aparece inicialmente na educação básica,
na passagem por várias instituições em busca de um ensino que satisfizesse suas demandas e,
posteriormente, a problemática se transfere para o ensino superior, mas como o número de
universidades públicas é pequeno, ela é quem se desloca no espaço.
Outra questão de grande relevância para o fortalecimento dos/das estudantes das classes
menos privilegiadas é a formação de coletivo. A socialização das questões, que a depoente
encontrou no Coletivo Feminista Aurora Furtado e no Coletivo de Classe IPUSP, possibilita
que alunos e alunas se identifiquem entre si, reconhecendo que não são os únicos a lidar com
determinadas questões, e também abre a possibilidade de acolher um sofrimento que não tem
espaço para surgir em outros contextos. Ela aponta que, apesar de ambos espaços atualmente
encontrarem-se menos articulados e mobilizados do que em outros momentos, ampliaram as
possibilidades dela, como mulher e aluna de um grupo minoritário, habitar o Instituto. O
espaço coletivo pode ser entendido como momento de socialização e legitimação das questões
vividas pelas minorias, possibilitando afirmar e trazer à luz o que antes era vivido como
dúvida, incerteza e estranhamento. Também, permite que se pense coletivamente em
estratégias de enfrentamento das dificuldades que surgem.
Ainda sobre a questão do coletivo e da representação, a depoente fala da sua
participação nos colegiados. Entende o papel de representante discente como desafiador, uma
vez que o ambiente é de tensão e disputa, e também muito potente, levando a voz dos alunos e
das alunas às outras categorias do Instituto. Existem pautas em que há desconhecimento por
parte dos/das docentes sobre as opiniões dos/das estudantes, cabendo aos representantes
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fazerem esta ponte. Em outras ocasiões, os interesses discentes diferem do que desejam os
professores, que são maioria - em número e força - nos colegiados, fazendo com que seja
necessário que haja alunos e alunas disputando e defendendo outras posições. Há também
situações onde a união das categorias potencializa a defesa de uma posição conjunta, sendo
que a ausência de uma delas prejudicial a todos. A entrevistada ressalta que, em um contexto
institucional em que as categoriais têm poderes de influência diferentes, torna-se ainda mais
importante ocupar os espaços disponíveis e fazer alianças. Cita o caso do critério
socioeconômico para a distribuição das bolsas de monitoria, pauta que teve sua origem na
direção do Instituto, fato que a aluna entende ter sido determinante na aprovação da proposta;
um pedido que vem diretamente do diretor, que tem importância política diferente dos demais,
acaba tendo mais impacto do que o posicionamento dos alunos.
A universitária pontua que as discussões sobre permanência estudantil e pautas que
concernem aos/às estudantes mais pobres não recebem a devida importância no IP,
ressaltando a importância de que pautas como a do critério socioeconômico cheguem a esse e
outros espaços frequentados por professores e professoras. A disseminação das problemáticas
dos/das estudantes mais pobres abre possibilidade de olhar para estas realidades e disputar as
concepções e objetivos da universidade pública. Discutir sobre as necessidades desses grupos
traz à luz a existência de histórias que antes se encontravam à margem, excluídas, como a
entrevistada diz, o debate destes temas possibilita que estes alunos e alunas passem a existir.
A depoente traz como exemplo de disputa pela visibilidade e consideração das
necessidades de quem tem menos privilégios, os eventos relacionados à sua formatura. Ela faz
parte da comissão responsável por cuidar das cerimônias de conclusão do curso e enfrentou
dificuldades de aderir ao pacote que a agência oferecia. Aponta que em um momento anterior,
provavelmente entenderia que não deveria participar da formatura, que a comissão não era um
lugar que poderia ocupar, deixando que o constrangimento atrelado à falta de dinheiro
encolhesse suas possibilidades. Hoje, porém, pode expor suas dificuldades financeiras, que
passam, então, a ser tratadas como problema do grupo. Fortalecida pelo coletivo, pôde
conversar com a agência de formatura e disputar outras possibilidades, tencionando o campo e
agindo como porta-voz de outros alunos. O fortalecimento de uma/um, contagia; a aluna tem
podido estender olhares mais sensíveis a diversos espaços, não só perante à empresa, mas nos
colegiados, em sala de aula e nos demais ambientes da universidade.
A conversa com a aluna ressalta como posicionamentos dentro do Instituto, apesar de
serem minoria numérica, têm potência para produzir inflexões no que é hegemônico. As ações
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de professoras e professores, principalmente, que disputam as noções prevalentes a respeito


dos/das estudantes menos privilegiados e dos padrões vigentes, gradualmente criam a
possibilidade de questionar a legitimidade do instituído. Em algumas disciplinas e vivências
na USP, foi possível desconstruir a naturalização das desigualdades, da humilhação, do
despertencimento e da desvalorização de modos de viver, elucidando o jogo de forças
presente na Universidade e a consequente possibilidade de nele operar. Estas brechas que se
criam afirmam os intensos esforços para disputar a possibilidade de ruptura com estas práticas
institucionais violentas.
Uma das questões mais relevantes que a depoente traz é o seu posicionamento frente
às situações difíceis que encontrou no Instituto. Uma vez podendo relativizar o que se produz
nas relações do IP e da USP, e como consequência, construir seu pertencimento na Instituição,
foi possível reconhecer que a desconstrução das formas de pensar hegemônicas passava
também por ela. Enxergando em si a potência de operar no jogo de forças, pôde refletir sobre
como suas ações contribuem ou não para rachar com o instituído.

3.5 Entrevista 4

O quarto encontro foi realizado com um aluno do terceiro ano, no início de maio. A
conversa aconteceu em seu apartamento no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) e
começamos a entrevista falando sobre sua história escolar. O depoente nasceu em Itaobim,
Minas Gerais, e mudou-se para Pitangueiras ainda bastante jovem, tendo sua formação se
dado toda na rede pública paulista. Estudou na rede municipal durante o ensino fundamental e
a mudança para a educação estadual trouxe um grande contraste no que se refere à qualidade
de ensino. Descreve os três últimos anos da educação básica como caóticos; muitos alunos
para poucos coordenadores, professores esgotados, um espaço que mais parecia uma prisão do
que uma escola e as aulas, quando ocorriam, eram mal ministradas. No segundo ano do ensino
médio precisou estudar a noite para poder trabalhar e as condições educacionais que
encontrou foram piores do que as anteriores. As faltas de professores eram muito frequentes e
os/as estudantes, tão esgotados/as quantos os/as docentes, não tinham disposição para estudar.
Depois de um longo dia de trabalho em profissões como pedreiro, auxiliar de limpeza e outros
subempregos, era difícil alguém que conseguisse se dedicar. Mesmo em uma situação que
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exigia muitos esforços, o entrevistado se vê como privilegiado neste cenário pois, por
trabalhar em um banco, ainda lhe restava alguma energia para aprender.
O trajeto do entrevistado até o ensino médio aponta para questões importantes da
educação básica brasileira. Primeiramente, deixa ver alguns impactos da falta de investimento
que historicamente se pratica no país. A má remuneração dos professores e das professoras,
que faz com que precisem se dedicar a uma quantidade excessiva de aulas, têm como
decorrência um número altíssimo de faltas e de disciplinas pouco produtivas, que também se
relacionam com a estrutura precária que se encontra em muitas instituições, contexto que
praticamente inviabiliza a formação dos/das estudantes. A escola-prisão da qual o depoente
fala, em que os/as alunos/as ficavam trancados/as no prédio de salas, diz de como a escassez
de funcionários limita as possibilidades de aposta; deixar as portas abertas, permitir que os/as
estudantes circulem e estimular o exercício da autonomia são práticas que requerem estrutura.
Diz também das violências que o Estado inflige aos usuários de suas instituições que, na
condição de alunos, estão sob sua responsabilidade e têm suas vidas ameaçadas pela
precariedade do sistema educacional; ele conta de quando um incêndio se iniciou no prédio e
não havia ninguém para abri-lo. Outro aspecto que chama atenção em seu relato é a tensão
que existe em torno dos cursos noturnos; ao mesmo tempo que são condição necessária para
que alguns possam estudar, fica claro que a educação que recebem é fortemente atravessada
por problemas socioeconômicos. Não só os/as estudantes têm sua formação prejudica pela
jornada de trabalho que a precede, mas os professores e as professoras também chegam
exaustos/as para as aulas da noite. Percebe-se que há um recorte de classe dentro da
insuficiência do ensino público; a educação que os grupos mais pobres das camadas menos
privilegiadas acessam é ainda menos potente do que a garantida aos que podem se dedicar
apenas aos estudos, assim como as condições de trabalho dos/das docentes que lecionam nos
dois períodos letivos são as mais precárias. O ensino médio noturno que se apresenta, então,
como uma solução para o problema de jovens que precisam exercer atividades remuneradas,
camufla um ponto essencial da questão, a não garantia do direito à educação pelo Estado. Ao
criar condições para esta dupla jornada, o governo dá a impressão de cumprir sua função
perante os/as estudantes, mas, na verdade, se desimplica de seu dever de suprir as
necessidades para que a educação possa se dar; mesmo que a escola tivesse a estrutura
requerida para o oferecimento de um bom ensino, é questionável se há condições reais de
aprendizagem no contexto descrito. Além disso, as práticas escolares que o entrevistado
descreve não parecem pressupor uma continuidade da vida estudantil dos alunos e das alunas,
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a quem não se fala das universidades públicas e, portanto, não se incentiva que nelas estudem.
Não se trata de defender uma escola pautada nos conteúdos e no formato de saber exigidos
para o ingresso no ensino superior, mas não parece haver possibilidade de criar condições
para isto.
Aos 15 anos, o depoente começou a estudar para entrar no colégio naval, quando
descobriu que existiam universidades públicas; até então, seu plano era se dedicar a atividades
remuneradas para poder sustentar financeiramente o resto de sua educação, pois, como sua
mãe sempre advertia a ele e à irmã, a família não poderia arcar com os custos de uma
faculdade. Terminado o Ensino Médio, o aluno começa a fazer um curso pré-vestibular
noturno, pago com quase metade de seu salário, apesar da bolsa de 80% que recebia. No
segundo ano de cursinho, presta Psicologia no vestibular da FUVEST 9 e entra na USP. A
escolha pela Universidade teve como determinante importante sua condição socioeconômica,
uma vez que a carreira de Psicologia era uma aposta arriscada, pela desvalorização econômica
atrelada à profissão e os gastos que geralmente se tem no início da carreira, por exemplo, para
abrir um consultório ou complementar a formação. Escolhendo se dedicar a uma área de baixo
retorno financeiro, algo que muitos não podem fazer, o estudante sabia que seria preciso
graduar-se em uma instituição de renome, que aumentasse suas chances no mercado de
trabalho. Dentre as universidades públicas valorizadas, a política de permanência
desenvolvida também foi um critério relevante na sua escolha e a USP, por mais falhas que
tenha nos recursos que oferece, lhe pareceu uma das melhores possibilidades. Ele indica,
assim, que estar no ensino superior demanda condições que não são garantidas pelo acesso à
instituição; a entrada das classes menos privilegiadas na graduação é apenas uma etapa de um
processo que precisa ser cuidado integralmente, não sendo suficiente haver cursos gratuitos e
de ingresso acessível.
Não só a Psicologia se configura como uma grande aposta, mas a entrada na USP
também se deu cercada de insegurança. O aluno conta que teve que estar em São Paulo duas
semanas depois de o resultado do vestibular ter sido divulgado, o que significa que se demitiu
de seu emprego, juntou todo seu dinheiro e mudou-se para uma cidade até então
desconhecida. Devido à escassez de recursos e a forma como se configura a política de
permanência da Universidade, chegou na capital sem saber ao certo onde iria morar, como se
sustentaria e que auxílios receberia. De março até julho, ficou dormindo na sala da casa de um
amigo e relata o constrangimento da situação, a sensação de estar incomodando os donos da

9
Fundação universitária para o vestibular
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moradia, além das constantes preocupações com a viabilidade de permanecer na universidade.


Apenas no segundo semestre foi possível encontrar uma vaga no CRUSP e, então, passou
mais um mês vivendo na sala de seu atual apartamento, esperando o morador anterior
desocupá-lo. O depoente ressalta como a entrada no Conjunto é tensa, uma guerra, como ele
descreve; são poucas as vagas e o processo de admissão no alojamento consiste em perguntar,
de porta em porta, se há algum dormitório vago. Apesar de achar interessante a proposta da
escolha de pares por afinidade, ele destaca o constrangimento e a dificuldade da situação; sem
conhecer ninguém e sem respaldo da assistência social, a conquista da moradia pode se
configurar como uma tarefa humilhante e que depende em grande medida da sorte.
Quanto aos auxílios e bolsas que compõem a política de permanência da USP, o
depoente conta que, por falta de informação por parte da assistência social, responsável pela
recepção dos alunos e alunas, perdeu o prazo de inscrição para o auxílio alimentação
emergencial, o que fez com que ficasse semanas sem receber qualquer ajuda financeira.
Quanto às bolsas, a primeira que conseguiu também só foi aprovada em outubro, no final do
segundo semestre e a continuidade do recebimento delas ao longo da graduação é incerta.
Critica também a impossibilidade de trancar disciplinas no primeiro semestre da graduação, o
que, em um curso integral, inviabiliza que se trabalhe.
As vivências do primeiro ano do estudante deixam ver como a entrada na USP, para
alguns, é cercada de incertezas e desamparo institucional. Demorou quase um ano para que
ele tivesse alguma estabilidade, para que encontrasse um lugar para morar, pudesse custear
sua alimentação no restaurante universitário e conseguisse uma bolsa para arcar com o resto
de seus gastos. As diversas soluções precárias que encontrou até então, como morar na sala do
colega ou do próprio CRUSP, decorrem de uma política de permanência estudantil que admite
que um aluno possa ficar cinco meses sem ter uma mordia digna garantida e oito sem receber
dinheiro para se sustentar. Em oposição a este modelo, o depoente cita o caso da irmã, que
estuda na UNICAMP. Em poucas semanas ela conseguiu uma vaga regular na habitação do
campus e logo de início recebeu um auxílio financeiro que possibilitou que se instalasse e se
mantivesse na nova cidade. Outro aspecto de grande importância para a permanência
destacado pelo aluno é a assistência social, que apresenta grandes falhas na USP. Não só a
desinformação é uma questão, mas ele também aponta o despreparo dos assistentes sociais,
que apesar de serem encarregados pela Universidade para lidar com questões de classe, não
lhe parecem ter um preparo adequado para tal tarefa, estabelecendo contatos humilhantes com
os/as alunos/as. A política de permanência, como ele ressalta, deve ser mais do que o
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fornecimento de suporte financeiro, há que se levar em conta a dimensão social e política da


inserção dos/das estudantes na universidade; a forma como são tratados/as pelos/as
representantes da instituição diz de como a comunidade uspiana entende sua presença em seu
cotidiano.
A instabilidade, a insegurança e a ameaça constante à garantia da integridade física e
psíquica que o depoente demonstra ao longo da conversa são os fatores que mais prejudicam
sua vida acadêmica. As preocupações com o que comer, vestir, onde morar e como conseguir
dinheiro tomam tempo e energia que poderiam ser destinados aos estudos, em um contexto de
maior respaldo da universidade. As questões econômicas atropelam a vida estudantil, as
leituras, o estudo para as provas, a dedicação a projetos, a atenção às aulas; preocupam,
desgastam psicologicamente. Como dar prioridade à graduação se a manutenção da
sobrevivência e da saúde não estão garantidas?
A chegada no Instituto foi tensa, desde a primeira semana a vivência universitária do
entrevistado foi marcada pelas questões que se produzem no encontro de classes desiguais. A
semana de recepção dos calouros, organizada pelos alunos e alunas do segundo ano de cada
faculdade/instituto, certamente não considerava a existência de estudantes cuja situação é tão
insegura. Enquanto o depoente se preocupava em garantir sua permanência na universidade, a
maioria dos/das colegas comemorava uma importante conquista, desfrutando do alívio de ter
conseguido entrar em uma das melhores instituições de ensino do país. Ele fala do desejo de
compartilhar desta alegria, de se engajar nas atividades lúdicas propostas, mas os
atravessamentos de sua condição socioeconômica prejudicavam a celebração. Já no dia da
matrícula, o primeiro contato dos alunos com a instituição, assistiu os colegas almoçarem nos
trailers da Escola de Comunicação e Artes (ECA), aonde um sanduiche custava 12 reais. Se
gastasse dinheiro na ocasião, teria sua volta para Pitangueiras posta em risco, então ficou sem
comer naquele dia. Partindo desta experiência, quando foi integrante da Comissão de
Recepção dos Calouros de seu ano, ele defendeu a pauta de levar os ingressantes para almoçar
no restaurante universitário, que à época custava R$1,90. A proposta não foi tão facilmente
aceita quanto ele imaginou que seria, porque a preocupação com o entretenimento dos/as
novos/as estudantes era o que seus colegas, distantes destas realidades menos privilegiadas,
ressaltavam. O depoente se pergunta, então, quais as prioridades estavam sendo estabelecidas
naquele momento e problematiza a justificativa que recebeu de que um almoço de 12 reais é
barato. A forma como se configura a semana de recepção, como mostram suas vivências
como primeiranista e veterano na comissão, dão a ver a dificuldade de acessar as vidas que
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são atravessadas por preocupações com questões básicas e urgentes, as realidades onde muito
menos direitos são garantidos, nas quais entrar na USP não é um momento apenas de alegria.
As questões de classe, que surgem desde o primeiro dia na Universidade, ganham
diversas roupagens ao longo da graduação. O entrevistado traz uma cena que ocorreu quando
visitava a casa de uma amiga da USP e se deparou com um apartamento enorme, luxuoso e
confortável. Lembrou-se de sua casa em Pitangueiras, bem menor do que aquela, alugada,
onde falta água com frequência, caindo aos pedaços, como ele diz. Outro exemplo que lhe
chama a atenção é a descoberta dos valores pagos nas mensalidades de escolas particulares,
que chegam a equivaler a mais de cinco vezes o salário de seu padrasto, que sustenta uma
família de cinco pessoas. Suas falas dão a ver a tensão que se produz nas aproximações que
escancaram as assimetrias entre os sujeitos, que aparece também no esforço necessário para
criar laços com pessoas com as quais há pouca proximidade de experiência. A sensação de
não pertencer ao contexto que o cerca e a dificuldade de criar comum surgem no encontro de
histórias injustamente desiguais (Barbosa, 2004). O depoente percebe que suas conversas com
alunos e alunas mais privilegiados/as não fluem bem, reconhecendo que alguns destes,
sensíveis à questão, deixam de falar sobre certos assuntos por temerem estabelecer contatos
violentos. Em contrapartida, ele observa que entre os/as estudantes de origem mais próxima,
as relações se desenvolvem com mais naturalidade, é possível um contato mais íntimo. O
entrave descrito pode ser pensando a partir do fato de que a notícia do privilégio alheio, em si,
é algo difícil de lidar, incomoda, causa indignação. O estreitamento das relações, como ele
mostra, escancara as desigualdades sociais abismais do país, coloca ombro a ombro o aluno
que mora no CRUSP e depende do dinheiro da Universidade para sobreviver e a colega que
tem muito mais do que o necessário. Cria-se uma situação em que a aproximação da vida do
outro é vivida como algo negativo, da qual surge um cuidado que opera distanciamento ou
uma proximidade desconfortável. Vale ressaltar que, diferente do que ocorre na maioria dos
contextos, no IPUSP as desigualdades de classe se dão entre sujeitos com o mesmo papel
social, o que desperta situações diferentes das que o aluno viveu, por exemplo, quando
trabalhava no banco atendendo a elite de Pitangueiras que, intencionalmente, tratava-o com
superioridade (Barbosa, 2004).
O contexto universitário, que permite mais intimidade do que as relações trabalhistas,
possibilita ao depoente acessar as experiências, alegrias, os problemas pessoais e os pontos de
vista dos/das colegas que pertencem a outros grupos sociais, o que frequentemente lhe causa
estranhamento e incômodo. Por exemplo, conta do espanto que teve frente a um estudante
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que, em uma assembleia de alunos, questionou a proposta de reposição de aulas levantada,


perguntando o que fariam os que já tinham viagem marcada. O entrevistado estranhou a
existência de realidades em que é possível uma viagem internacional em um feriado e critica
como o passeio ganhou mais importância na fala do colega do que as questões que geraram a
greve e a necessidade de restituir-se os conteúdos perdidos. Ele reconhece, então, que as
questões que os/as estudantes mais privilegiados/as apresentam são de ordem muito diferente
daquelas de quem não se vê tão cercado de regalias; enquanto alguns se preocupam com as
férias, as viagens e atividades de lazer, outros tentam resolver como sustentar sua vida, já
cheia de restrições e impossibilidades. Outra situação que o faz perceber a diferença em
relação às problemáticas dos colegas são as reclamações sobre estágios. Estas pessoas, que
possuem carro, moram perto da Universidade e não precisam trabalhar, abordam o assunto de
uma perspectiva bem diferente das que reclamam sobre a mesma atividade, mas dependem do
transporte público, gastam horas diariamente se deslocando pela cidade e nem sempre podem
custear as atividades extra-sala. As dificuldades com as leituras, também, não são iguais para
os mais ricos e para quem não tem dinheiro para copiar todos os textos, para os que não leem
espanhol e inglês ou moram no CRUSP, onde a internet não funciona nos apartamentos.
O constante de deparar-se com realidades mais privilegiadas que a sua, que
dominavam o cenário uspiano, produzia no aluno a sensação de que aquele lugar não era para
ele. As conversas sobre experiências que não tivera, histórias que eram semelhantes entre os
outros alunos mas diferentes das suas, a maneira inesperada de compreender alguns assuntos
etc., indicavam sua distância em relação a esse grupo. Cita como exemplo uma cena em que
um professor pergunta à classe como se fala uma palavra em determinada língua estrangeira e
uma aluna o responde, o que faz com que descubram que ambos haviam estudado na mesma
escola e agora se encontravam no IPUSP. O depoente, em contrapartida, é a primeira pessoa
da família a entrar em uma universidade pública e a quarta a ingressar no ensino superior. Sua
mãe, por exemplo, nunca tinha ouvido falar sobre a USP até que ele prestasse vestibular e, de
seus familiares, quase não recebeu parabenizações pela aprovação no vestibular, porque
também para eles esta é uma experiência desconhecida; aos seus parentes, o que mais chama
atenção é a dificuldade de se sustentar em São Paulo.
As diferenças que ele facilmente enxerga em relação aos/às colegas nem sempre são
por eles/as reconhecidas e o aluno traz cenas que representam esta questão. Um amigo lhe
oferece um produto que diz custar apenas 30 reais e, mesmo que o entrevistado diga que não
tem esse dinheiro, o outro estudante insiste diversas vezes que é barato, que o preço está bom,
57

que é possível parcelar o valor. Em outra cena muito semelhante, um aluno tenta lhe vender
uma viagem de confraternização e também diz que estava muito barato, conta o que havia
incluso no pacote e só para de insistir na venda quando o depoente lhe pergunta se 380 reais é
barato para quem é rico. Ele transparece a irritação por, reiteradas vezes, ter que explicar que
nem todos têm as mesmas oportunidades, por precisar afirmar suas impossibilidades para que
sejam compreendidas; parece faltar, nos exemplos citados, considerar as desigualdades das
possibilidades entre os mais e os menos ricos, portanto, compreender as situações de
privilégio.
A dificuldade de perceber e viver essas desigualdades perpassa várias situações
vivenciadas pelo aluno no Instituto. Ele se lembra de estar em uma roda de conversa com
colegas e alguém mencionar uma empregada doméstica. Para o grupo, esse fato não chama
atenção pois, como ele explica, todos ali também tinham funcionários em casa. Para ele,
porém, o luxo salta aos olhos e a desigualdade presente só é percebida pelos demais quando
ele aponta a sua surpresa. Ainda sobre esta conversa, o depoente percebe que há, dentre os/as
estudantes mais ricos/as, uma concepção filantrópica sobre as classes menos privilegiadas, da
qual a funcionária em questão fazia parte: enxergar a ajuda a uma empregada doméstica sob o
viés da caridade camufla um salário que não é suficiente para o sustento, por exemplo. Vê-se
que os mais ricos, quando desimplicados, tornam-se alheios ao fato de que o funcionamento
do sistema político-econômico que possibilita sua condição favorável é o mesmo que impede
o exercício de direitos por parte da maioria. Enxergam, assim, ações mínimas e paliativas
como benevolentes, favores que se faz para ajudar ao próximo. Estas ações, porém, calam
uma remuneração insuficiente, a implicação que se tem na produção das desigualdades, a
exploração da classe trabalhadora, etc. Outra fala que se relaciona com a temática ocorreu
quando uma amiga do entrevistado, moradora do CRUSP, comentou com um colega
pertencente às classes mais ricas que desejava estender a graduação de 5 para 7 anos. Ele
questiona a proposta, ressaltando implicações como gasto de dinheiro público e a ocupação de
uma vaga no conjunto residencial. O depoente aponta que o colega coloca como
responsabilidade da aluna os efeitos da falha estrutural da USP em suprir as necessidades
relativas à educação: trata o exercício de um direito como abuso de um bem público. Estender
a graduação, neste caso, tem um viés de classe que foi também desconsiderado pelo estudante,
que provavelmente não se deu conta de que a aluna terá que trabalhar para se sustentar
durante o curso, o que requer, para que a qualidade do ensino seja preservada, que se faça
menos disciplinas por semestre do que o previsto. O entrevistado também destaca a não
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implicação do aluno na situação, propondo que se considerasse a questão trazida, por


exemplo, sob o aspecto de que a parcela mais rica da sociedade paga, proporcionalmente,
menos impostos do que os demais, tendo menor contribuição na manutenção da Universidade
e, ao mesmo tempo, ocupa a maioria de suas vagas. Nos exemplos trazidos, pode-se ver a
potência do olhar de quem vem de outro lugar, que por não ter a mesma história, as mesmas
possibilidades, enxerga os privilégios, as naturalizações, as violências.
Questões perpassadas pelas diferenças socioeconômicas se fazem presentes também
no contato com os professores e as professoras, no qual o aluno também identifica situações
que o faziam sentir humilhado e despertencente. Ele questiona, principalmente, algumas
matérias introdutórias, que parecem não considerar que seus interlocutores saíram do ensino
médio há pouco. Há um atravessamento de classe na questão, visto que o contato com
disciplinas como filosofia, sociologia e antropologia é mais disseminado e bem consolidado
na rede privada de ensino, mas as dificuldades com os textos discutidos em aula e com a
linguagem acadêmica, além da falta de intimidade com os assuntos abordados, não são
exclusivas dos/das estudantes menos privilegiados/as. Incomoda a forma como as leituras são
tratadas, como se não se soubesse que a educação básica do país tem pouca ou nenhuma
ênfase na interpretação de textos das áreas de humanas. Levanta-se uma questão, se a
dificuldade com a linguagem da Psicologia é um problema que cabe aos alunos resolver,
como dão a entender os professores e as professoras de algumas disciplinas, ou se seria
responsabilidade do Instituto desenvolver estratégias com os/as ingressantes para trabalhar os
conteúdos que precisarão assimilar. O estudante também identifica falas que pressupõe
oportunidades que ele não pode acessar, apontando reiteradas vezes restrições nas suas
possibilidades; cita indicações de viagens, como visitar o museu do Freud, em Londres.
Enquanto alguns colegas parecem animados com a ideia, para a realidade do depoente a
proposta é descabida, risível. As sugestões dos/das docentes, apesar de interessantes, se
apresentam como um problema quando a dificuldade de acesso a elas é desconsiderada;
quando tudo o que se oferece para conhecer é inacessível para alguns, produz-se
despertencimento.
Outra crítica que ele traz a respeito dos professores e das professoras é a pouca
consideração dos aspectos do funcionamento social que historicamente atravessam as relações
de classe e se atualizam no Instituto. Traz o exemplo de uma aluna negra que, em uma
discussão, foi chamada de prepotente pelo professor, devido à sua fala agressiva e às gírias
que usava. O docente provavelmente não levou em conta que essas falas se produzem em um
59

meio universitário majoritariamente branco e elitista e que carregam histórias de humilhação,


discriminação, violência e violação de direitos, vividas também em outros contextos. Além
disso as gírias, vividas por ele como desrespeitosas, fazem parte da forma de expressão das
comunidades periféricas, cuja cultura frequentemente é deslegitimada na Universidade
(Barbosa, 2004; Huston, 1997).
O depoente também faz críticas à maneira como são abordados teorias e conceitos,
citando como exemplo a noção de trabalho simples, que definiu como uma atividade que não
exige formação superior ou técnica. O aluno tem clareza de que a concepção não foi criada
por uma mulher ou por um negro - é do alto da branquitude, masculinidade e riqueza que essa
ideia se produz. Ele se pergunta quão simples é trabalhar na casa de outras pessoas, ou o que
envolve o serviço de um lixeiro, os desafios de ser um jardineiro. Como chamar de simples
cargos que, em geral, requerem muito do corpo, têm um baixo valor social, são muito mal
remunerados e cujas relações empregatícias não raro envolvem abuso de poder e humilhação
social? A fala do entrevistado chama atenção para a necessidade de atualização das produções
acadêmicas; fazer uso de formulações teóricas antigas requer considerar que o contexto
histórico social atual é diferente de quando foram produzidas e fazer apontamentos neste
sentido é uma questão política; trata-se de realizar uma análise crítica daquilo que foi escrito.
O entrevistado ressalta outro aspecto importante relacionado ao olhar acadêmico sobre
o outro; a reificação (Gonçalves Filho, 1998). Reconhece que a Psicologia e outras ciências
humanas, majoritariamente, baseiam-se num fazer científico branco, burguês e euro-centrado,
que faz análises de objetos, perdendo a dimensão de que se fala de seres humanos, de que há
sujeitos sendo construídos nessas produções. Aponta que muitos trabalhos são valorizados
pelas reflexões que promovem, mas sem que haja preocupação em criar um saber comum, em
produzir mudanças nos indivíduos de quem se fala; fazer variar a vida de quem estuda não é
pouco, mas nem sempre é suficiente.
O estudante cita exemplos de estágios de observação realizados em disciplinas do
Instituto cuja proposta é aproximar as alunas e os alunos das condições de vida e das lutas das
populações menos privilegiadas. Apesar de reconhecer que há uma boa intenção nas
propostas, ele critica sua superficialidade e faz uma analogia a um zoológico, afinal espera-se
conhecer os sujeitos observando, por algumas horas, seu modo de viver. Reclama da falta de
continuidade dos projetos, entendendo-a como sinal de que não há uma real implicação
dos/das estudantes com as realidades que conhecem; muitos/as fazem apenas duas ou três
visitas, sem que isto cause repercussões neles ou nos que encontram. Enxerga nas
60

aproximações à comunidade externa propostas no IP a mesma reificação que identifica na


Academia, apontando a falta de retorno para quem é acompanhado. Questiona em que lugar
colocamos alguém que tem sua rotina obervada por um estudante da USP, por exemplo, e não
tem o direito de saber o que se produz a partir desta experiência, como sua história será
apresentada. Como o entrevistado diz, o trato com o outro é simbólico, e o formato retratado
transparece a compreensão de um corpo a ser observado, do qual se extrai informações.
O depoente delineia, então, a existência de uma bolha na qual vivem as classes mais
abastadas. Esta barreira difícil de ser transpassada se relaciona com as formas de interação
que se estabelecem no Instituto; o trato do outro como objeto, a dificuldade de implicação e
de criação de comum advém do distanciamento que se opera entre os grupos mais ricos e mais
pobres. Ele reconhece que as situações que tocam nos privilégios dos alunos e docentes são
difíceis, requerem grande disposição para serem encaradas e associa isto à resistência que
percebe nos universitários mais ricos a se aproximarem de outras realidades; os que vivem na
bolha evitam conhecer o que há fora dela, perceber sua condição de privilégio. Por conta
disto, cobra dos professores e das professoras, responsáveis pelas disciplinas com estágios,
uma postura mais aberta às percepções dos/das estudantes, relatando que as tentativas de
apontamento das questões mencionadas sofrem grande resistência, não havendo oportunidade
de reflexão sobre aquilo que as práticas produzem no campo estudado. Estas formas de
estudar os problemas sociais, que procuram suas manifestações fora do Instituto e da USP,
invisibilizam como estas questões se produzem no contexto destas instituições, ao tratar dos
temas como se só pudessem ser encontrados no ambiente extra-universidade.
As falas do estudante permitem ver a complexidade presente nos estágios citados.
Apesar da boa intenção, como ele diz, e das frequentes reformulações nas atividades
desenvolvidas, a tarefa a que se propõem é árdua, pretende dar conta da aproximação de
grupos desiguais, que como o depoente deixa claro ao longo da conversa, é tensa, traz à luz
conflitos, causa incômodos e é atravessada por questões que vão muito além de uma
disciplina ou da Universidade, para as quais não há soluções fáceis.
Como alternativa aos problemas que enxerga no modelo atual de aproximação, o
estudante sugere experiências de atuação no serviço público de saúde, onde a maioria dos
atendidos vêm das classes mais baixas. Isto é, o contato com a realidade dessas populações
deveria servir para melhorar a prestação de um serviço e não apenas ter como fim a formação
dos alunos.
61

Partindo destes exemplos, o estudante faz uma crítica à forma como é conduzida a
formação dos psicólogos e das psicólogas no Instituto, pouco voltada para a população
paulistana. Ele entende que, para a maioria dos/as alunos/as, a USP é vista como um meio
para conseguir um diploma valorizado e status profissional, perdendo-se de vista a função
pública dessa formação. Subverte-se o papel do ensino e do que é público, que passam a ser
utilizados pelas classes dominantes como forma de perpetuar a estrutura social. O que o IP
devolve majoritariamente para a sociedade, como ele diz, são profissionais interessados/as em
clínicas particulares, que se destinam a um grupo muito restrito e já bastante privilegiado. Cita
como exemplo deste funcionamento a fala de um docente que diz, comicamente, que os
psicólogos estudam bastante para poder cobrar caro em seus consultórios.
O depoente amplia o questionamento sobre o IPUSP para a Universidade como um
todo, perguntando-se a serviço do que e de quem ela se coloca. Lembra de seus colegas de
escola que considerava muito inteligentes, tanto no sentido acadêmico, quanto na habilidade
de reflexão sobre suas experiências, e que não puderam continuar seus estudos depois do
ensino médio. Ele fala, assim, de estudantes com um grande potencial, tão capazes ou mais do
que os que integram a instituição atualmente, mas a quem não foi dada a chance de ocupar um
lugar que seria seu por direito. A eles contrapõe os alunos e as alunas do Instituto, que apesar
de formados em caras e renomadas escolas, têm uma visão muito pouco abrangente da
realidade, das questões discutidas, fruto de uma educação frágil em sua dimensão política
(Carvalho, 2008). Enxerga a Universidade, então, cujo dever seria desempenhar uma função
social, como parte da engrenagem da manutenção do status quo, nos deixando uma questão:
quem deveria ter o direito de estudar na USP?
O aluno mostra, ao longo da conversa, como a Universidade foi para ele
decepcionante. Muitas aulas mal ministradas, docentes que não parecem desejar lecionar,
conteúdos que, da forma como são ensinados, se tornam nada ou pouco úteis, uma formação
que produz menos rupturas do que era de se esperar e um ambiente difícil de habitar, no qual
frequentemente lhe ocorrem situações violentas. Apesar de grande parte da USP e do Instituto
funcionarem de acordo com a lógica reprodutora das desigualdades sociais, ele enxerga
esforços para a criação de brechas neste funcionamento. Cita como exemplo a luta do
movimento negro, que conquistou a implementação de cotas raciais na Universidade,
constituindo-se como um importante passo na direção de rachar o seu projeto político, assim
como a adoção da prova do ENEM como porta de entrada para a USP e a reserva de vagas
para alunos e alunas da escola pública. Traz também o Coletivo de Classe IPUSP, que tem
62

sido um importante instrumento de luta, conseguindo pautar as demandas das/dos estudantes


menos privilegiados/as e torná-las questões da instituição, ganhando cada vez mais espaço nos
diversos âmbitos do IP. Sobre este coletivo, o depoente ressalta a boa lida ao tratar das
questões que surgem no embate de classes. Para ele, o grupo consegue implicar os alunos e as
alunas nos conflitos, sem perder de vista a dimensão política dos fenômenos: não se trata de
culpabilizar aquele ou aquela estudante, mas considerar a reprodução de fenômenos sociais.
Como exemplo, traz a questão das funcionárias terceirizadas, frequentemente desrespeitadas.
Relata que muitos alunos e alunas jogam lixo no chão, fazem festas e deixam o espaço
utilizado imundo, porque sabem que alguém vai limpar sua sujeira. Critica estes/as estudantes
que se dizem reflexivos, engajados nas causas sociais, que falam de revolução política e
econômica mas não são capazes de perceber que a desordem que produzem exige o trabalho
de funcionárias pobres e muito mal remuneradas. Quando confrontados, desimplicam-se,
alegam que não houve tempo para limpar, que a funcionária já havia feito o serviço quando se
deram conta da situação etc., justificativas insuficientes, que o entrevistado e outros/as
procuram combater. Como ele indica, falta sensibilidade para perceber que a opressão, a
dominação e a humilhação de que tratamos em aula, sobre as quais lemos nos textos e
discutimos nos trabalhos, não é algo que está lá fora, mas ocorre dentro da Universidade da
qual fazemos parte. Ressalta que ultimamente tem sido difícil colocar estas questões em
pauta, pois as responsabilidades apontadas são vividas como ataques e ofensas pessoais, o que
indica o desafio de abordar estes assuntos. Pode-se pensar como em uma relação de
distanciamento é difícil perceber o que se produz, de ambos os lados; identifica
posicionamentos que, sem intenção, ofendem, incomodam e são agressivos, proferidos tanto
pelos mais privilegiados, quanto pelos mais pobres.
A conversa com o depoente dá relevo a importantes aspectos do funcionamento do
Instituto de Psicologia e da USP que atravessam as vivências dos/das estudantes menos
privilegiados/as. Primeiro, levanta-se um questionamento sobre o curso noturno, que existe
em algumas unidades da Universidade e, votado recentemente na Congregação do IPUSP,
está tramitando. Não só na educação básica pública, como na superior, a conquista de um
espaço que se propõe acessível às classes menos favorecidas não deve ofuscar o dever do
sistema público de ensino de prover as condições necessárias ao exercício do direito à
educação; possibilitar que os alunos e as alunas estudem e trabalhem simultaneamente não é
suficiente. Faz parte dos encargos das instituições a garantia da permanência de seus
estudantes, o que, como o entrevistado aponta em diversos momentos, a USP não tem dado
63

conta de fazer. A situação é mais grave para os universitários que, como ele, vêm de outras
cidades e chegam à São Paulo sem poder contar com o respaldo da Instituição, indicando o
despreparo da Universidade para receber histórias como a dele. No contexto descrito, suas
falas chamam atenção para o momento do ingresso no ensino superior, que para muitos não é
apenas celebração e alívio, é cercado por tensões e inseguranças.
A falha na garantia da permanência das/dos estudantes e o desrespeito às formas de ser
e viver dos grupos menos privilegiados tem origem em um ensino público superior que não se
constitui voltado para atender às classes mais baixas. O entrevistado enxerga com clareza que
a USP se insere na engrenagem reprodutora da estrutura social e questiona quem de fato
deveria estar nela, retomando a história de colegas que nem sequer puderam conhecê-la.
O aluno aponta, também, que há uma dificuldade por parte dos/das estudantes e
docentes mais abastados/as em reconhecer suas práticas como reprodutoras das desigualdades
sociais, elucidando o desafio de identificar posições de privilégio e perceber as implicações
no que é produzido na instituição. Na tentativa de criar brechas nestas produções, o depoente
explicita o importante papel do Coletivo de Classe IPUSP, que assim como a presente
pesquisa, busca desvelar aspectos das relações e da estrutura do Instituto que transformam
desfavorecimento econômico em desigualdade acadêmica, produzem despertencimento,
humilhação e oprimem formas de viver que distam do padrão hegemônico.

4 Considerações finais

Partindo do que foi relatado nas entrevistas realizadas, é possível fazer uma síntese das
práticas desenvolvidas no Instituto de Psicologia e na Universidade de São Paulo que afetam
de forma significativa a experiência dos alunos e das alunas dos grupos menos privilegiados.
A seguir, pretendemos delinear como a inserção destes/as estudantes em uma instituição
elitista e a convivência de classes desiguais comparecem na produção de despertencimento,
humilhação e deslegitimação.
As falas das/dos depoentes nos indicam que as questões de classe surgem no cotidiano
do Instituto desde os primeiros contatos que nele se dão. Para alguns estudantes o impacto do
estreitamento das relações com grupos mais favorecidos é maior, enquanto para outros, mais
habituados a viver os contrastes sociais, a lida com os incômodos despertados é mais fácil.
Apesar da diferença, em ambos os casos as relações estabelecidas no IP são vividas como
64

violentas; a deslegitimação da cultura e das formas de viver não hegemônicas os pressiona a


se adaptarem a outros padrões.
Ao longo das conversas, as/os depoentes relataram situações que transparecem as
tensões originadas no encontro de classes desiguais. Identificam a dificuldade de reconhecer
condições de privilégio, por parte dos alunos e das alunas mais ricos/as, que agem como se
todos tivesses as mesmas oportunidades, gerando a necessidade de que os/as estudantes
menos abastados/as exponham suas impossibilidades, disputando a desconstrução das
naturalizações existentes. Nestas ocasiões, as dificuldades financeiras e os impedimentos
delas advindos, que por si só já incomodam, parecem maiores quando o contraste que se dá;
os entrevistados e as entrevistadas reconhecem que todos/as sofrem e enfrentam desafios, mas
percebem que as questões dos mais favorecidos são de ordem muito diferente das deles/as.
As/os depoentes contam que os referenciais da cultura hegemônica são tomados como
universais no cotidiano da Universidade, deslegitimando-se as outras histórias ali presentes
(Barbosa, 2004; Backes, 2006; Nogueira & Nogueira, 2005). Da recepção pelos/as colegas,
funcionários/as e docentes da instituição - conversas com assistentes sociais, dia da matrícula,
primeiras aulas, atividades de recepção dos/as estudantes - à formatura no final da graduação,
estes alunos e estas alunas são tratados/as como se tivessem uma vida que pressupõe
oportunidades que não tiveram; cobra-se conteúdos e habilidades que não lhes foram
ensinados, utiliza-se uma linguagem que não lhes é própria, assume-se que tiveram
experiências que não viveram e conta-se com a presença deles/as em locais financeiramente
inacessíveis. Chama atenção, no conjunto das falas, a exigência da leitura de textos em inglês,
o linguajar acadêmico rebuscado de que docentes se valem e que aparece nas obras que
indicam, a cobrança da familiaridade com conceitos que o ensino médio público e privado não
abordam, a carga de dedicação extra-sala exigida, que já é grande para quem mora perto da
Universidade e não precisa trabalhar, e os convites insistentes para viagens, atividades
culturais e de lazer, que são propostos como se todos/as pudessem bancá-los. Também
podemos mencionar a integralidade do curso, que quase inviabiliza o exercício de atividades
remuneradas, a grade horária do Instituto, irregular e cheia de intervalos, que é não pensada
para quem mora longe ou trabalha, a comida dos restaurantes universitários, do qual muitos
dependem e cuja qualidade tem caído ao longo dos anos, a pouca abertura para eventos cujos
temas se relacionam com os moradores das chamadas periferias e a maneira preconceituosa de
tratar as formas de expressão características das populações mais pobres, que atribui traços
negativos aos falantes e diminui o valor do que dizem (Huston, 1997).
65

Os alunos e as alunas dão contorno, então, a uma Academia elitista, cujas produções e
formas de trabalhar são voltadas para uma comunidade muito restrita e requerem um certo
tipo de socialização e condições socioeconômicas, que poucos no país acessam. Falam de um
fazer científico branco, burguês e euro-centrado, que dificilmente estabelece pontes com a
vida de sujeitos que não se enquadram nos padrões dominantes. Esta concepção de academia,
que embasa a construção da USP, faz dela uma instituição também elitista, que apesar de
pública e de ter aparência democrática, se põe a serviço da reprodução das desigualdades
sociais, voltando-se para a promoção de diplomas valorizados e status profissional aos mais
favorecidos (Patto, 1987; Gonçalves Filho, 1998; Moysés & Collares, 1997; Carvalho, 2008).
As inúmeras situações de violência que disso decorrem indicam às/aos estudantes que o que
têm a oferecer é pouco, dando a impressão de conhecerem menos do que os demais, de
falarem errado, de terem experiências inadequadas (Bourdieu & Champagne, 1993/2008;
Backes, 2006), o que mostra um ambiente universitário constrangedor para quem não tem
certos privilégios, que repete a humilhação e a deslegitimação das classes menos privilegiadas
(Barbosa, 2004; Gonçalves Filho, 1998).
Os alunos e as alunas vão descrevendo um cotidiano educacional que se relaciona
muito fragilmente com o contexto que vivem fora da universidade. A desconsideração de suas
histórias, operada nas práticas do IP e da Universidade, parece lhes dar pistas de que não
deveriam ocupar estes lugares; há uma frequente sensação de que as coisas não lhes dizem
respeito, não lhes pertencem (Backes, 2006; Barbosa, 2004). Como consequência deste
violento funcionamento, afastam-se, abandonam o espaço. Fica evidente a necessidade que
estas/estes estudantes têm de busca pela afirmação de sua realidade; para que algumas formas
de ser possam existir, é preciso que seu espaço seja disputado, conquistado, afinal, o respeito
às suas histórias e a seus referenciais não é garantido através da vaga no vestibular.
Com vivências que parecem tão deslocadas do contexto que os cercam, os/as
depoentes relatam dificuldade de se integrar ao grupo dominante de estudantes. As relações
com alunos e alunas mais privilegiados/as parecem não fluir, suas histórias têm pouco a ver
com as deles/delas e os assuntos que surgem causam incômodo, humilham, indignam,
enraivecem. O despertencimento que se produz no cenário descrito não se opera apenas no
contexto universitário, entrevistadas e entrevistados descrevem um limbo social, um não-
lugar; não se enquadram no perfil de estudante uspiano e, ao mesmo tempo, não mais
partilham dos referenciais comuns aos ex-alunos de escola pública moradores de bairros
periféricos. Sentem-se como se não fossem nem daqui, nem dali, não sendo reconhecidos
66

como iguais em nenhum dos ambientes (Barbosa, 2004). A maioria de seus antigos/as colegas
de escola e amigos/as de longa data, que muitas vezes só puderam conhecer a USP na vida
adulta, tomaram rumos muito distantes da academia; são pedreiros, auxiliares de limpeza,
mães e pais, técnicos etc., embora muitos tenham conhecimentos escolares e habilidade
reflexiva equiparáveis aos dos estudantes universitários, não havendo nenhuma questão
educacional que justifique sua ausência no ensino superior. Já a maioria dos/das colegas do
IPUSP mora perto da universidade, não tem dificuldades para custear alimentação, moradia e
estudo, não depende das bolsas e auxílios da instituição, almeja a Universidade desde a
educação básica, tem vários colegas que ingressaram no ensino superior público e privado,
nunca trabalhou etc. As/os depoentes ressaltam também as diferenças de classe em relação a
história educacional e profissional de seu meio social. Creditam vantagens no
desenvolvimento da vida acadêmica à possibilidade dos grupos familiares mais privilegiados
de acessar o ensino superior; a inserção na universidade é mais fácil quando os membros do
núcleo familiar foram introduzidos às discussões, formas de fazer e à linguagem acadêmica
(Nogueira & Nogueira, 2005).
Apontam, então, que a estrutura da Universidade, seguindo a lógica descrita, não se
volta para o acolhimento de histórias como as deles/delas, não sendo função prioritária, nem
de seus órgãos de decisão e nem daqueles que criam o cotidiano com os alunos e as alunas, o
desenvolvimento de uma educação igualitária. A prova de ingresso, por exemplo, pretende-se
uma forma de selecionar candidatos que tenham os conhecimentos necessários ao ensino
superior, mas é utilizada como garantia da admissão de um certo tipo de aluno/a, com
determinados valores culturais, impedindo à grande maioria da população o acesso a esta
instituição (Araújo, 2012). As/os depoentes destacam também as inúmeras falhas na política
de permanência da USP, as quais originam vivências de desamparo e angústia, relatadas
principalmente pelo quarto entrevistado. Apontam como principais problemas a
desinformação e o despreparo dos/das assistentes sociais, a demora para que os auxílios e
bolsas sejam entregues e a insuficiência de recursos destinados a este propósito, que
atualmente faz com que muitos/as precisem abandonar a graduação. Os/as estudantes
mostram, assim, que o ensino superior não pode se constituir como um direito, tornando-se
um privilégio, quando as universidades não suprem as necessidades que a função de aluno
envolve em seus contextos educacionais. Aparecem como exemplos de dificuldades desta
ordem o acesso aos textos indicados em aula e a produção de trabalhos, já que a cota de
impressão garantida para cada aluno é muito menor do que seria necessário, os computadores
67

disponíveis no Instituto são poucos e muitos estão quebrados e a impressora frequentemente


está inutilizável. Também mencionam a realização de estágios, que tem custo financeiro
(passagens) e requer gasto de tempo, que é intensamente diferente entre aqueles que vão de
carro e os que dependem do transporte público.
Os problemas de ordem econômica atropelam a vida estudantil, somando-se às
dificuldades acadêmicas comuns a todos/as; preocupam, desgastam, consomem tempo e
energia. As desigualdades sociais, que atravessam o processo de aprendizagem desde a
educação básica ao estudo pré-vestibular, dão sinais de que continuarão a existir mesmo
depois da graduação. A carreira de Psicologia se constitui, na formação do Instituto, como
necessitando da continuidade dos estudos depois da graduação, e os cursos de especialização,
congressos e supervisões costumam custar valores pouco acessíveis. Assim, mesmo tendo
ingressado em uma universidade pública, o destino traçado aos alunos e às alunas de famílias
com baixa renda mantém-se restrito.
Em um contexto em que muito pouco parece ser planejado para pessoas como
elas/eles e em que suas histórias são frequentemente desvalorizadas e deslegitimadas, é difícil
o enfrentamento das questões de classe. A associação da pobreza a características pessoais
negativas e a uma educação deficitária justificam as expectativas não alcançadas (Patto,
2009); torna-se vergonhoso e humilhante não ler em inglês, não ter dinheiro para pagar o
passeio, não conhecer a Europa, não ter ido a um certo espetáculo na Zona Oeste. A não
implicação dos/das docentes em relação às dificuldades que surgem no processo de
aprendizagem também opera silenciamento e individualização das questões,
responsabilizando os alunos e as alunas pelo que surge nas disciplinas.
Os apontamentos trazidos ao longo das conversas fazem questionar as condições de
uma inclusão efetiva dos/das estudantes das classes menos favorecidas na vida universitária.
A inserção que descrevem parece ser marginal; apesar de terem conseguido ingressar na USP,
inúmeros são os entraves que se colocam ao seu aprendizado e pertencimento (Bourdieu &
Champagne, 1993/2008; Patto, 2009). Neste sentido, levanta-se uma questão sobre as cotas
socioeconômicas, que apesar de muito importantes para possibilitar o ingresso de estudantes
das classes socioeconômicas mais pobres, fazem parte de uma política pública que não
diminui as desigualdades efetivamente, não altera a estrutura social, como os/as depoentes
indicam (Patto, 2009). No cotidiano educacional da Universidade, trata-se igualmente
alunos/as diferentes, privilegiando quem já é privilegiado; desconsiderar os atravessamentos
68

de classe na educação transforma desigualdade social em desfavorecimento acadêmico


(Nogueira & Nogueira, 2005).
Em meio a tantas práticas produtoras de humilhação, exclusão, despertencimento e
desigualdade, os/as depoentes conseguem localizar forças que operam no sentido de romper
com o funcionamento predominante da instituição. Ressaltam as posturas de professores e
professoras que, desconstruindo formas de pensar hegemônicas, asseguram o direito das
classes menos favorecidas de ocuparem a Universidade. Quanto aos movimentos estudantis,
apontam a luta do Coletivo de Classe IPUSP, que tem funcionado como espaço de troca,
acolhimento e de criação de estratégias de enfrentamento, pautando as questões dos alunos e
das alunas mais pobres em diversos espaços do Instituto. Também, o Movimento Negro tem
lutado pelo ingresso e permanência dos/das estudantes negros/as. As/os entrevistadas/os falam
também das cotas sociais e raciais e das medidas de permanência existentes, que apesar das
falhas, são essenciais para que estas/estes estudantes possam ingressar e se manter no ensino
superior. Além disso, os espaços de representação discente têm se mostrado potentes no
enfrentamento das questões de classe; neles tem sido possível disputar as concepções e
objetivos da universidade pública e legitimar, através de muitos esforços, as demandas
dos/das alunos/as menos favorecidos/as.
Como conclusão, fica claro que o pertencimento das alunas e dos alunos das classes
menos privilegiadas na Universidade e a garantia de sua participação na vida estudantil
dependem de muitos fatores, sendo necessárias estratégias que vão além de um auxílio
financeiro adequado. Estar entre semelhantes, também, não é condição suficiente para garantir
uma integração efetiva; enquanto as estruturas da USP e do Instituto de Psicologia forem
planejadas para alunos/as de origem social mais favorecida, desconsiderando em seu
funcionamento a multiplicidade de histórias existente, e os atores do meio universitário não
estiverem sensíveis às questões de classe que atravessam as relações na instituição, haverá
produção de deslegitimação, despertencimento, humilhação e desigualdade.
Neste sentido, a construção deste trabalho e a elaboração das narrativas podem ser
entendidas como estratégias de enfrentamento da reprodução das desigualdades sociais no
contexto universitário. Na medida em que dá visibilidade às práticas produtoras de
humilhação e despertencimento, bem como às formas de pensar que as embasam, esta
pesquisa permite acessar as forças em jogo e, assim, produzir variações nelas, disputando o
sentido da educação pública. Isto é, a escrita deste texto, ao rachar com as formas
hegemônicas de pensar, cria brechas no funcionamento institucional vigente na Universidade.
69

Referências

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psicologia com a educação (pp. 67-86). São Paulo: Casa do Psicólogo.
71

Anexo A - Termo de consentimento livre e esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidado/a para participar da pesquisa intitulada “Desigualdade no Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo - narrativas e análises de estudantes das classes menos
favorecidas”, sob a responsabilidade das pesquisadoras Paula Moreira Castellucci e Adriana
Marcondes Machado.

Nesta pesquisa estamos buscando analisar o processo de produção da desigualdade


socioeconômica no Instituto de Psicologia da USP (IPUSP), elucidando aspectos das suas relações de
poder, da conjuntura estrutural e das práticas institucionais que estão a serviço da reprodução da
hierarquia social vigente. Pretende-se, ainda, compreender de que forma esta manutenção da
estratificação social se reflete no exercício da função de aluno dos estudantes de baixa renda.

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido será obtido pela pesquisadora Paula


Moreira Castellucci, antes do início das entrevistas com os participantes. Sua participação
envolve uma entrevista, que será gravada se assim você permitir, e que tem a duração
aproximada de uma hora. A transcrição comentada da mesma lhe será entregue
posteriormente.
Em nenhum momento você será identificado, caso seja esta sua vontade. Os resultados da
pesquisa podem ser publicados e ainda assim a sua identidade será preservada.

Você não terá nenhum gasto e ganho financeiro por participar na pesquisa. Não existem riscos
nem benefício na participação destas pesquisa.

Você é livre para retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização
alguma.

Uma via original deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ficará com você.

Qualquer dúvida a respeito da pesquisa, você poderá entrar em contato com: Paula Moreira
Castellucci (11) 975740790 ou Adriana Marcondes Machado (11) 996376595. Poderá também entrar
em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos - CEPH-IPUSP: Av. Prof. Mello
Moraes, 1.721 - Bloco G, 2º andar, sala 27 - CEP 05508-030 - Cidade Universitária-São Paulo/SP. E-
mail: ceph.ip@usp.br Telefone: (11) 3091-4182.
72

São Paulo, ....... de ........de 2017

_______________________________________________________________

Assinatura dos pesquisadores

Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de
consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as minhas
dúvidas.

_______________________________________________________________

Participante da pesquisa

Anexo B - Roteiro de perguntas

- Como foi a sua história escolar, desde a educação básica até chegar na USP?

- Como foi chegar no IP com uma história como a sua? Quais impressões as relações dentro
Instituto produziram?

- Há momentos em que sua história não foi considerada na atitude de professores, alunos ou
funcionários?

- Sobre as dificuldades de ser aluno/a em um contexto elitista, quais situações chamaram mais
sua atenção durante a graduação, seja na relação com alunos, professores, funcionários, etc?

- Você poderia me contar sobre momentos onde identificou que desigualdades entre
estudantes do Instituto foram produzidas pelas existência de disparidades financeiras?
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- Como ocorre a reprodução das desigualdades sociais dentro do Instituto? Que pensamentos
surgem a partir destas situações?

- Quais práticas institucionais produzem desigualdade no IP?

- Você se lembra de momentos em que as questões de classe foram tratadas de forma


individualizada?

- Você poderia me dar exemplos de opressões ou situações em que não se sentiu pertencente
ao grupo de alunos?

- Você identifica práticas que possibilitam rupturas neste funcionamento?

- E em relação à comunidade externa, como é estudar na USP? Como é sua relação a respeito
do tema com familiares, amigos, colegas de trabalho?

- Atualmente, você desempenha alguma atividade remunerada? Se sim, como foi o processo
de escolha dela?

- Como foi a USP em relação às suas expectativas?

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