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INSTITUTO DE PSICOLOGIA
São Paulo
2017
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Sumário
2 Objetivo e método
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O Conselho Universitário (CO) é o órgão legislador de maior poder da Universidade, composto pelo reitor, pró-
reitores, diretores das unidades e diversos outros representantes da comunidade USP
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Exame Nacional do Ensino Médio
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2.1 Método
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Coletivo auto-organizado de estudantes de baixa renda do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo, que visa o acolhimento e combate de opressões de classe social no Instituto.
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As narrativas foram, então, entregues aos/às entrevistados/as para que pudessem agir
sobre a forma como suas histórias seriam retratadas e, também, para que suas reflexões acerca
dos textos produzidos pudessem ser incorporadas à pesquisa. A partir deste processo de
escrita das narrativas e discussão das mesmas com os alunos e as alunas, foram elencadas
questões que se destacaram para compor as considerações finais.
Foram coletadas as assinaturas do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no
momento da entrevista e também depois do compartilhamento das narrativas com os/as
depoentes. Optou-se por retirar o nome dos entrevistados e das entrevistadas do texto, afim de
preservar seu anonimato.
3 As narrativas
possibilitou que o que nos foi dito servisse como disparador de reflexões sobre a realidade
(Bourdieu, 1993/2008, Capozzolo et. al, 2014). As falas, gravadas e transcritas, das quais
retiramos temas e questões relevantes para a compreensão do assunto tratado, permitiram uma
reorganização dos conteúdos trazidos pelos/pelas depoentes e a criação de um percurso
narrativo. Nas narrativas, procuramos cuidar da forma dominante em nós de interpretar a fala
dos entrevistados e das entrevistadas. (Bourdieu, 1993/2008; Santos & Barone, 2007;
Machado, 2010). Cuidou-se para creditar aos alunos e às alunas suas próprias considerações,
diferenciando-as das reflexões da pesquisadora e mostrando que ambas (reflexões dos
entrevistados e da entrevistadora) foram tecidas a partir da entrevista como experiência.
Proteger os/as depoentes implicou considerar que o que nos diziam não poderia ser reduzido a
interpretações pontuais e descontextualizadas, isto é, buscamos ler suas falas como produzidas
em relações de poder e de saber que nelas se exprimem. Este cuidado foi estendido aos alunos
e professores de quem se falava, procurando colocar em cena elementos da construção
política das situações relatadas (Bourdieu, 1993/2008). Por exemplo, havíamos escrito que,
segundo um dos entrevistados, a fala de uma docente transparecia que os/as estudantes menos
privilegiados/as não eram bem-vindos no IPUSP, no sentido de que eles/elas próprios teriam
que se haver com suas necessidades; percebendo que nossa escrita culpabilizava a professora,
colocando-a como a origem do problema, reescrevemos a passagem, deixando claro que ela
era porta-voz de uma forma de pensar vigente na Universidade. Ao longo das diversas versões
de cada texto, fazíamos o exercício de avaliar a escolha de nossas palavras, a composição das
ideias e os efeitos produzidos, sempre levando em conta que, ao escrever sobre sujeitos,
construímos formas de viver (Alaion, 2017). Outro exemplo, em uma das versões das
narrativas, escrevemos sobre uma situação narrada em que estudantes migravam de uma
escola recém estatizada para a rede particular, procurando um ensino adequado. A maneira
com que escrevemos ficava indicado que o ensino público era inadequado em sua totalidade.
Na reescrita, pontuamos que a mudança de instituição carregava também o preconceito em
relação ao ensino público e os problemas ocorridos naquela escola.
Finalizada a primeira parte da escrita das narrativas, foram feitas as chamadas
devolutivas com os/as depoentes. Mais do que devolutiva, podemos considerar esse momento
como uma etapa da pesquisa, muito importante, que abre a possibilidade de que os alunos e as
alunas interviessem na forma como suas histórias eram retratadas e pudessem nos apontar
partes da escrita que tivessem aderido à lógica reprodutora de desigualdades ou cuja forma
carecesse de reformulação por outro motivo. Este momento socializa o conhecimento
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3.2 Entrevista 1
A primeira entrevista desta pesquisa foi realizada com uma aluna do quarto ano da
graduação. Nos encontramos na estação de metrô Vila Madalena em uma manhã durante as
férias de verão e caminhamos algumas quadras até uma praça. Sentamos em uma mesa e
iniciamos a conversa falando sobre sua vida escolar. Os estudos da depoente se iniciaram em
casa, tendo a mãe como professora até a pré-escola. A primeira instituição de ensino que
frequentou ficava em Osasco, perto de sua casa, e era paga. A escola, da qual gostava muito,
oferecia uma ótima estrutura; turmas com apenas 15 alunos, atividades extracurriculares como
balé e teatro, além de um ensino que lhe parecia adequado. Com o passar dos anos, o preço da
mensalidade aumentou, o que fez com que a estudante tivesse que mudar de escola. A
segunda instituição, cujo custo era em torno de um quarto do valor da anterior, oferecia
também uma boa educação, mas a queda no custo trouxe uma restrição nas possibilidades do
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ensino. Anos depois, já na sétima série, o valor da mensalidade também aumentou muito e,
novamente, a família da entrevistada não pôde arcar com seu custo. Porém, devido a
cobranças irregulares, a instituição sofreu um processo judicial e se tornou pública, o que
permitiu que a aluna permanecesse nela. Nesta mudança, a escola sofreu várias alterações.
Quanto aos seus integrantes, as famílias mais abastadas migraram para escolas particulares
renomadas, seja por preconceito em relação ao público ou pelos efeitos sentidos da
estatização, e também alguns professores/as se retiraram, devido à precarização dos salários.
Além disso, estabeleceu-se uma prova de ingresso, uma vez que a escola era boa, como a
aluna pondera, em relação aos padrões da escola pública brasileira, e portanto tornou-se
concorrida.
O relato da vida escolar da entrevistada permite pensar os entraves e as condições de
acesso à educação no cenário do país. A primeira escola frequentada, que dispunha de
melhores condições educacionais, era privada e seu preço subiu ao longo dos anos, levando à
exclusão dos alunos e das alunas de classe social mais baixa. A segunda instituição, de menor
preço, já não era tão potente e a falta de dinheiro só não colocou a qualidade da educação
recebida em risco, novamente, devido a questões judiciais. No setor público, também, existem
mecanismos de exclusão de certos estudantes; quando a escola mencionada se torna pública e,
portanto, supostamente acessível a todos/as, a qualidade somada à gratuidade tornaram o
ingresso na instituição concorrido, o que levou à instauração de um prova de seleção
meritocrata, cujo objetivo era triar os estudantes com melhor desempenho acadêmico,
impedindo o ingresso de alunos/as menos preparados/as, restando-lhes escolas de qualidade
inferior. Percebe-se que primeiramente há uma barreira econômica que impede aos mais
pobres o acesso a um bom ensino, já que na educação básica brasileira o setor privado
costuma poder mais do que o público e, quando superada, surge outro impedimento, as provas
de ingresso (Patto, 1990/1993).
A lógica da reprodução das desigualdades sociais aí se instaura e a continuação é
trazida pela depoente. Ao tentar ingressar na USP, ela se dá conta, na comparação com os
outros candidatos, de que o preparo acadêmico que recebeu não condizia com as exigências
do vestibular da FUVEST4, uma vez que a situação se inverte no nível superior, sendo as
instituições públicas as mais concorridas e de maior reconhecimento. Mediante uma formação
que não ofereceu os conhecimentos necessários para acessar uma universidade pública, a
estudante recorreu a cursos pré-vestibulares, que podia frequentar graças ao seu bom
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Fundação Universitária para o Vestibular
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desempenho nos testes, que garantia descontos na mensalidade; mais uma vez, o critério
acadêmico imperou e foi condição para o acesso à educação. A aluna acrescenta que a escola
pública que frequentou não teve falhas apenas nos conteúdos ensinados, mas na formação
como um todo, no aprendizado, no estímulo ao estudo e ao engajamento no fazer científico e
também no preparo para as seleções dos vestibulares.
O percurso deixa ver que o impacto do ensino básico na continuidade da educação
formal é atravessado por um recorte de classe. Para os alunos e as alunas mais pobres, um
desempenho aquém do ideal pode ser condição impeditiva para a entrada nas escolas mais
concorridas, o que pode acarretar num baixo resultado nas provas de bolsa dos cursos pré-
vestibulares e nos exames vestibulares, reduzindo significativamente as chances de acesso à
educação superior. No caso das/dos estudantes mais privilegiadas/dos, há a possibilidade de
pagar bons cursos preparatórios, o que independe de resultados em provas, além de ingressar
em instituições superiores privadas, cuja aprovação costuma ser menos exigente. Além disso,
como a história da depoente mostra, nem mesmo um ótimo desempenho na rede pública é
suficiente; os/as melhores alunos/as das escolas públicas são menos bem preparados para a
vida universitária do que os/as estudantes das particulares.
Em relação à época do cursinho, a aluna conta como as dificuldades financeiras
também interferiam em seus estudos. Apesar da bolsa, o cursinho voltado para as classes mais
ricas ainda era caro, não sendo o desconto suficiente para equiparar as oportunidades dos/das
estudantes, de forma que ela precisou trabalhar para bancar seus estudos. Diferente de muitos
colegas de situação socioeconômica mais favorável, que podiam estudar depois das aulas, ela
precisava se ocupar com atividades remuneradas durante as tardes e noites. Assim, a depoente
começou a duvidar de que a USP seria um lugar para ela, pois a prova da FUVEST é muito
demandante e exige possibilidade de grande dedicação. Apesar de não conseguir ingressar na
Universidade naquele ano, através do ENEM e das bolsas do Prouni5, começou a frequentar
uma instituição particular de preço acessível. Como é frequente no sistema educacional
brasileiro, o ensino superior privado, quando tem preços reduzidos, não oferece uma boa
formação; insatisfeita com o curso, retorna ao cursinho, desta vez sem trabalhar, e presta
FUVEST novamente. Tenta a USP mais uma vez pois esta é sua única opção; as demais
instituições públicas eram muito distantes de sua casa e suas condições financeiras não
permitiriam bancar a vida em outra cidade ou os grandes deslocamentos necessários.
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Programa Universidade para Todos - o Programa concede bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de
graduação e de formação específica, em instituições de ensino superior privadas, a estudantes oriundos do ensino
médio da rede pública ou bolsistas integrais da rede particular, com renda familiar per capita de até três salários
mínimos
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que não se fala para alguns dos que ali estão, o que leva os alunos e as alunas que não se
enquadram nos parâmetros esperados a se afastarem; gradualmente vão deixando de
frequentar as aulas e/ou de participar delas, não sentido que o que nelas ocorre lhes diz
respeito, lhes pertence. Também contribui para o cenário de distanciamento criado a forma de
falar rebuscada adotada por alguns/algumas docentes, que impede a transmissão de
conhecimento para os que não compartilham seus referenciais linguísticos. A entrevistada
afirma a existência de professoras e professores que parecem ter maior abertura,
demonstrando preocuparem-se com que o conteúdo ensinado tenha relação com as
possibilidades dos/das estudantes. Ela pontua que esta questão não é particular do Instituto ou
da USP, mas algo que perpassa a Academia como um todo, que se relaciona com o já
comentado domínio das produções teóricas pelos grupos mais privilegiados; os trabalhos
acadêmicos, que via de regra utilizam-se de termos específicos de uma área, com construções
gramaticais e textuais complexas, demonstram serem produzidos para uma comunidade muito
restrita, não se propondo a dialogar com a população em geral. Esta é também uma forma de
seleção e, portanto, exclusão; fala-se apenas para aqueles que partilham dos mesmos
vocabulários, saberes, conceitos, etc., cujo aprendizado requer um tipo de socialização e
educação muito restrito (Nogueira & Nogueira, 2005). Este afastamento de que a aluna fala
pode ser compreendido também como uma das formas de inclusão excludente que se opera na
Instituição, em relação aos/às estudantes de perfil não hegemônico; apesar de inseridos/as nela
fisicamente e aparentemente fazerem parte das atividades desenvolvidas, muitas vezes não
existem condições efetivas de participação (Bourdieu & Champagne, 1993/2008; Patto,
2009). Ressaltamos aqui, que a entrevistada fala das condições que devem ser consideradas,
mas não podem ser tomadas como determinantes da capacidade de aprender dos alunos e das
alunas.
Outra questão apontada pela depoente é a sensação de que determinados/as docentes
têm vivências limitadas sobre os assuntos de que tratam em sala, no que se refere às
realidades que não lhes são próprias. Apesar de as conhecerem de perto, não fazem parte
daqueles contextos; assim como acontece com as alunas e os alunos, a expressiva maioria dos
professores do Instituto e das universidades são brancos e pertencem às classes mais
privilegiadas. Docentes privilegiados, que falam para alunos e alunas privilegiados/as, por
vezes causam nos/nas estudantes que vivem outras realidades a impressão de que se está em
um zoológico, percepção que deixa claro a diferença entre conhecer e viver uma realidade;
como a entrevistada diz, é como conhecer profundamente o organismo de determinado
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animal, mas não fazer parte de sua espécie. É possível pensar que mesmo os professores e as
professoras que se aproximam de temas relacionados às desigualdades sociais em suas
pesquisas e atividades de extensão, nem sempre estão sensíveis a estas questões durante as
aulas, tratando os alunos e as alunas com base em seus próprios referenciais, talvez por não
reconhecerem neles alguém que possa fazer parte das comunidades pobres estudadas, dos
grupos minoritários.
Ainda sobre a produção de diferenças na função aluno em decorrência de questões de
ordem econômica, a entrevistada reconhece que para alguns colegas de situação semelhante à
sua, dentro do contexto estrutural do IP, a falta de dinheiro implica prejuízo no desempenho
acadêmico. Sem apoio institucional, estudantes de baixa renda enfrentam dificuldades para
custear seus estudos, faltando dinheiro para se alimentar durante o período de aulas, se
locomover até a faculdade e pagar os materiais necessários, como cópias dos textos indicados.
Há também a questão do tempo de dedicação extra-classe; a aluna explica que precisa fazer
grandes esforços para ter um bom desempenho acadêmico, tendo que se desdobrar para
compensar a falta de tempo atrelada à sua condição social. Pela impossibilidade de morar
perto da universidade ou de possuir um carro, ela e muitos outros gastam diariamente horas se
locomovendo pela cidade, tempo que em outras condições poderia ser destinado aos estudos.
Por conta disso, faz leituras durante as viagens de trem, quando isso é possível, ou abdica de
horas de sono em prol de elaborar um bom trabalho. Conta também que, em não tendo
condições de pagar alguém para auxiliar nas tarefas domésticas, tem que limpar a casa, fazer
compras no mercado, cozinhar, etc., atividades que também demandam tempo; enquanto
alguns colegas chegam em casa e logo começam a estudar, ela demora em torno de três horas
entre sair da USP e iniciar alguma atividade. A depoente explica que as dificuldades
socioeconômicas se somam às questões acadêmicas comuns a todos os estudantes.
Apesar das questões apresentadas, a entrevistada pontua que, novamente como
exceção, os atravessamentos das questões relativas às diferenças de classe lhe afetam mais no
que se refere ao (não) pertencimento ao grupo hegemônico de alunos do que em prejuízos ao
desempenho acadêmico. Mediante a muito esforço e auxílio da família, as horas de sono
perdidas, as leituras no trem e a dedicação em sala de aula, em seu caso, conseguem
compensar as desigualdades sociais, possibilitando que ela tenha um bom desempenho no
curso.
É possível estabelecer um paralelo entre a situação descrita e a época em que estudava
no cursinho, onde também percebia que por ter menos dinheiro podia dedicar menos tempo
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aos estudos. Ao longo de toda sua vida escolar, tanto na educação básica, quanto no cursinho
e na universidade, a aluna conseguiu compensar as desigualdades socioeconômicas em
relação aos colegas, sempre tendo um desempenho acadêmico de destaque, mas pontua que
esta não é a trajetória da maioria dos alunos e das alunas da rede pública de ensino. Frisa que
além do esforço pessoal teve muita ajuda de sua família, cuja condição possibilitou que ela
tivesse muitas possibilidades e oportunidades das quais nem todos desfrutam.
O relato da entrevistada mostra como as desigualdades entre as classes não são apenas
monetárias, não dizem exclusivamente dos bens que se pode ou não obter, do conforto e das
facilidades adquiridos ou não, mas também têm um viés social, causam implicações nas
funções sociais dos sujeitos, nas relações que habitam. Um aluno ou aluna das classes menos
privilegiadas tem aspectos de sua vida estudantil prejudicados ou impossibilitados, como
aparece ao longo da entrevista, seja na participação de atividades de lazer e integração, por
exemplo viagens e festas, como nos aspectos acadêmicos, no que se refere aos estudos e
atividades extracurriculares. É importante ressaltar que, como mostra a história da depoente, a
condição econômica não é fator determinante do desempenho acadêmico, nem da trajetória
que percorre, afinal, a estudante sempre esteve entre os melhores da turma e conseguiu entrar
na USP. Porém, fica claro que os atravessamentos das condições materiais produzem marcas
nas histórias escolares e impõe restrições.
Frente às realidades de privilégios que encontrou na USP, as dificuldades financeiras
da aluna e os impedimentos que delas decorrem, que por si só já incomodam, parecem
maiores; a depoente reconhece que todos sofrem, enfrentam problemas, mas sabe muito bem
caracterizar quais os obstáculos e desafios de quem não tem dinheiro, de quem vive a
impossibilidade de adquirir um alimento ou um artigo qualquer, dos que trabalham uma longa
jornada para suprir as necessidades básicas, de quem quase não tem direito ao ócio e ao lazer;
são questões de ordem diferente, como ela diz. A estudante relata que o choque das
disparidades econômicas produziu, ao longo de sua história, diversos efeitos, como raiva,
inveja, sentimento de exclusão e de injustiça. No decorrer da conversa, relata diversas falas e
atitudes que traziam a ela contextos muito diferentes do seu, que geravam uma sensação de
nunca estar à vontade, presente desde a primeira escola em que estudou. Quanto à USP, cita
as frequentes conversas em que alunos/as dizem achar barato algo que ela não pode ter,
deslegitimando sua falta de dinheiro através da insistência de que ela poderia arcar com tais
custos. Hoje, reconhece que as diferenças socioeconômicas são construídas historicamente,
não sendo culpa deste ou daquele indivíduo, mas aponta uma falta de consideração por parte
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de alguns quanto à realidade alheia. Há uma falta de noção, como ela diz, na relação com o
outro, que desconsidera a diferença e subjulga estas outras formas de existência. Sua
colocação remete à dificuldade de perceber o que se (re)produz na relação com o outro e,
portanto, à necessidade de sensibilização; a depoente recorda diversos momentos onde algo
era dito ou feito de forma não intencional, mas que produzia exclusão, despertencimento e
humilhação.
O relato da aluna deixa claro a potência da implicação dos membros do IP no
funcionamento da instituição: a percepção sobre o efeito das atitudes e sobre a multiplicidade
de realidades presente são fatores essenciais para mudar o cenário descrito. Em uma
sociedade desigual e segregacionista como a brasileira, o contato entre classes sociais diversas
costuma ser escasso ou se dar de forma hierarquizada, o que produz e naturaliza concepções
acerca da superioridade de um grupo sobre o outro, assim como de seus referentes culturais
(Barbosa, 2004). Como a estudante diz, é no convívio com o diferente que se percebe que sua
história não é natural, que suas vivências não são universais, que seu modo de pensar não é
óbvio. A relativização que disto advém é condição necessária para que as formas de viver não
hegemônicas passem a ser consideradas e respeitadas no funcionamento do Instituto, e que se
possa disputar as concepções até então estabelecidas. Como estratégia de enfrentamento à
falta de percepção que a depoente localiza em entre os alunos e professores, ela defende
atividades que tratem sobre as questões de classe e suas manifestações. Pontua, porém, que a
sensibilização se conquista não sem riscos; a exposição da condição de pobreza, de assimetria
e de privação, especialmente em meio aos que não vivenciam estas questões, costuma vir
atrelada aos sentimentos de vergonha e humilhação.
A fala da entrevistada deixa ver dificuldades no enfrentamento da questão. Em um
contexto social onde se valoriza a riqueza e associa-se o seu revés a uma série de
características pessoais negativas, cria-se um alto preço para a exposição da pobreza; levantar
a mão e dizer que não pode pagar algo, que não conhece determinado assunto, não diz
respeito apenas da falta de dinheiro ou de informação, remete à incompetência, falta de
esforço, ignorância, uma formação deficitária, enfim, abre brecha para interpretações de um
menor valor pessoal (Patto, 2009). Enfrentar situações de desigualdade se atrela ao risco,
também, de mais uma vez não ser ouvido/a, de que sua experiência continue não sendo
considerada, de que suas questões não sejam importantes; desanima, envergonha, causa
estranhamento. Dá-se a ver, nesses casos, a necessidade de coletivo, de pertencimento a um
grupo em que se possa escapar do sentimento de exclusão e inferioridade, e também encontrar
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a clareza de que essas situações de desigualdade são produzidas por uma engrenagem em que
todos estamos envolvidos.
Estas dificuldades de oposição a atitudes violentas se relacionam com o silenciamento
que a entrevistada vivencia e identifica nas/nos colegas. Faz uma analogia entre falar sobre
classe social dentro do Instituto de Psicologia e se posicionar, como mulher, em um grupo de
homens. Como ela aponta, nestas situações, a construção histórica da posição social das
mulheres e das populações pobres opera uma diminuição na propensão de se posicionar, em
decorrência dos lugares de desprivilégio e inferiorização em que estes são constantemente
colocados. Contribui para o silenciamento, também, a rejeição de certas formas de expressão;
a depoente percebe que sua fala é diferente da de alguns colegas e que não é ouvida da mesma
forma que eles. Como exemplo, cita situações em que alunos e alunas, tratando de assuntos
sensíveis, se utilizam de vocabulários e atitudes agressivos, que são recusados pelos e pelas
docentes, por serem entendidos como desrespeitosos. A desconsideração destas falas se dá,
como ela explica, pela não compreensão do contexto onde surgem, do fato de serem fruto de
uma história de opressões e silenciamento, de vivências de violência e humilhação, inclusive
dentro da Universidade. Estes apontamentos chamam atenção para como a forma da fala, e
não seu conteúdo, define a escuta, havendo mais espaço para os que dizem de maneira polida
e gramaticalmente correta (Backes, 2006). Por último, menciona a individualização de
problemas coletivos como fator que cala e dificulta o enfrentamento das questões. Cita o
exemplo de estudantes que, em não podendo arcar com os custos de determinada atividade ou
objeto, reclamam seu direito de participação e obtém como resposta posicionamentos que
colocam a questão como um problema individual, responsabilizando quem sofre da exclusão e
desimplicando o coletivo da segregação que se opera.
A depoente relata como estudar na USP com uma história como a dela produz
despertencimento não só nas relações dentro da universidade, mas também fora dela; por
vezes não se sente integrada nos relacionamentos com familiares e antigos amigos. Para
muitos e muitas dos que estão ao seu redor, estudar na USP é, além de uma grande conquista
e motivo de muito orgulho, uma realidade distante, inalcançável, muitas vezes nem mesmo
sonhada. As entusiasmadas parabenizações e elogios com os quais está acostumada também
lhe dizem, em alguma medida, que o lugar que ocupa não era esperado para si, que é uma
exceção entre os seus próximos. A posição de despertencimento é, então, dupla, não se
enquadrando no perfil de estudante uspiana, nem no de ex-aluna de escola pública, moradora
de um bairro afastado do centro (Barbosa, 2004).
20
6
Conjunto Residencial da USP, que atende alunos e alunas vindos de outras cidades e/ou de baixa renda
21
lhe parece importante é a flexibilidade com faltas e atrasos, além da criação de um curso
noturno de Psicologia, que permita o exercício de atividades remuneradas regulares. Estas
considerações atestam que a inclusão e a permanência não se dão apenas a nível
material/econômico, com bolsas e auxílios, mas ocorrem através da consideração das formas
de ser e viver dos sujeitos.
A conversa com a depoente dá relevo, assim, a alguns importantes aspectos
relacionados à reprodução das desigualdades sociais dentro do Instituto de Psicologia. Seu
trajeto escolar representa muito bem os mecanismos das políticas educacionais que conduzem
à exclusão da população de baixa renda do acesso à educação formal. O sistema púbico de
ensino brasileiro, no que se refere à Educação Básica, tem um longo histórico de aparentes
fracassos; desde sua expansão a toda à população, ouve-se de uma educação de baixíssima
qualidade, que forma alunos e alunas que não adquirem habilidades mínimas esperadas para o
seu grau de formação, em contraste com a educação particular, como a estudante verifica
(Patto, 2009). Na Educação Superior, onde o direito de estudar é bem menos disseminado, o
critério meritocrático dificulta que as populações menos privilegiadas acessem as instituições
públicas, e as desigualdades econômicas as impedem de ingressar nas boas universidades
privadas, exatamente como a trajetória da estudante mostra.
A entrevistada define em seus relatos, também com frequência, sua entrada na USP
como excepcional. A complicada trajetória percorrida até o ingresso na universidade
demonstra que sua história não é regra entre os que são de sua classe socioeconômica, que
alcançar uma boa formação acadêmica é algo conquistado a duras penas, envolvendo grande
esforço pessoal e suporte familiar. A excepcionalidade de seu percurso é, também, dupla;
diferente do que acontece com a maioria dos/das estudantes da rede pública e, ao mesmo
tempo, diferente da maioria dos alunos e alunas da USP e do IP. Esta sensação de um tanto
sem lugar, que faz com ela não sinta que de fato ocupe a posição de estudante oriunda do
ensino público, se relaciona com a sua adaptação aos modos de viver dos grupos mais
favorecidos, que diversas vezes permeia a conversa. Por ter convivido com as classes mais
privilegiadas desde a infância, foi ajustando sua forma de se comportar, falar, vestir,
compreender e agir, o que a aproximou destes outros grupos e, ao mesmo tempo, fez parecer
menos estranhas as assimetrias de classe. Porém, apesar disso, o costume não a torna
insensível às situações de reprodução da estratificação social; o contato com estudantes e
docentes não sensibilizados para a multiplicidade de histórias existentes no Instituto
produzem nela sensação de afastamento, humilhação, exclusão e inadequação. Isto culmina
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em um importante assunto trazido pela depoente em momentos variados de sua fala; o preço e
o risco para o enfrentamento da questão. Ao mesmo tempo que reconhece a exposição das
assimetrias como condição necessária à mudança, aponta que vir a público em um meio que,
devido a condições históricas, faz sua voz valer menos do que a de outros, não se faz
facilmente.
3.3 Entrevista 2
O segundo encontro foi realizado com um aluno que havia acabado de se graduar no
Instituto de Psicologia. A conversa ocorreu em uma manhã do período de férias, na própria
instituição, em uma das salas da biblioteca. Iniciou-se a entrevista conversando sobre sua vida
escolar. Frequentou escolas particulares na educação básica, em sua maioria ganhando bolsa
de estudo e, depois de concluído o Ensino Médio, começou a cursar História na FFLCH-
USP7. Descontente com o curso, decide fazer um curso pré-vestibular novamente, também
tendo desconto, e entra na Psicologia. O percurso em escolas particulares faz pensar na
estreita relação que a USP estabelece com a educação privada; o exercício do direito de
participação da vida universitária costuma estar atrelado à possibilidade de um grande
investimento monetário, que no caso dos alunos e das alunas menos privilegiados/as depende
da concessão de isenções/descontos. O recorte de classe que se vê na instituição, habitada
majoritariamente por estudantes ricos/as, se relaciona com a seleção meritocrática que
perpassa toda a vida escolar do depoente; desde o nível básico de escolarização até os cursos
pré-vestibular, o critério para as bolsas de estudo é o resultado em provas conteudistas, o que
faz das defasagens características da educação básica pública do país um fator que dificulta o
acesso ao ensino. Para quem iniciou a formação em escolas gratuitas precárias, as chances de
aprovação nas provas de ingresso das boas instituições públicas ou nas seleções para bolsa nas
particulares são baixas, tanto no nível da educação básica, quanto no nível superior. A entrada
do aluno na universidade segue a lógica descrita; a seleção do vestibular da FUVEST se dá
nos mesmos moldes meritocráticos mencionados e é baseada em formas de saber muito
específicas (Nogueira & Nogueira, 2005). Este critério de seleção, confluindo com o contexto
educacional brasileiro, faz com que a trajetória dos/das estudantes seja fortemente afetada
pelo tipo de instituição de ensino frequentada; enquanto a expressiva maioria dos estudantes
7
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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do país frequentam a rede pública durante a educação básica, o vestibular da USP aprovou,
em 2016, apenas 34,6% destes alunos, segundo dados apresentados pela Pró-Reitoria de
Graduação da USP (Sala de imprensa USP, 2016).
Por frequentar a rede privada desde a Educação Básica, o entrevistado teve contato
próximo, ao longo de toda sua formação, com colegas de outras classes sociais e com as
questões por ele suscitadas. O contraste com as alunas e os alunos que pagavam as escolas
integralmente trazia consigo situações de exclusão e marginalização; as viagens
internacionais, os caros celulares e diversos outros bens que ele não acessava, lhe mostravam
cotidianamente as faltas, impossibilidades e a não participação que a distribuição desigual de
renda, em um certo contexto social, implica. Por não ter grana, como ele diz, sentia-se
deslocado, à margem.
A chegada ao Instituto de Psicologia, assim, não foi vivida como uma grande ruptura
no que se refere ao convívio social. Também nesta instituição encontrou muitos alunos ricos,
cujas realidades distavam da sua. Diferencia-se, neste aspecto, de outros/as estudantes de
classe socioeconômica semelhante, ressaltando que já vivia um cotidiano que deixa
transparecer as profundas desigualdades do contexto brasileiro, estando mais habituado a lidar
com os embates que disto surgem. Explica que para alguns alunos e alunas das classes mais
baixas, em contra partida, o impacto do contato próximo com realidades tão injustamente
discrepantes se intensifica na graduação, mobilizando questões até então não vivenciadas;
enquanto alguns, relegados pela USP e pelas políticas públicas de permanência estudantil, têm
dificuldades de custear seus estudos, outros vivem cercados por conforto. O entrevistado traz
o exemplo marcante de uma aluna que às vezes não tinha dinheiro para se alimentar e que
ouvia colegas conversando sobre grandes gastos absolutamente supérfluos, com manicure e
lipoaspiração.
Sobre o acostumar-se ao convívio com as desigualdades mencionado, o depoente o
entende como um processo de amadurecimento, que em sua história se iniciou pela raiva
direcionada ao que possui dinheiro e os privilégios dele decorrentes, e gradualmente se
transformou na compreensão de que as pessoas que detém tais regalias não deveriam ser
culpabilizadas individualmente. A questão seria, então, não a posse de privilégios em si, mas
práticas e ações que se concretizam nas relações sociais desiguais, às quais se pode atribuir
responsabilidade. É possível pensar que este aprendizado, nomeado por ele de costume, diz
respeito não apenas à compreensão histórica da problemática, mas também ao
desenvolvimento de formas de lidar com os sentimentos de humilhação, raiva, injustiça e com
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as violências que decorrem do encontro entre classes desiguais; como relata ao longo da
conversa, sua lida com as questões socioeconômicas modifica-se ao longo do percurso no
Instituto.
Apesar de familiarizado com o tipo de ambiente que encontrara no Instituto, o
depoente se retrata como muito retraído socialmente e associa o pouco contato que manteve
com os/as estudantes, no início da graduação, à esta característica pessoal e ao fato de não ter
podido participar da Semana de Recepção dos Calouros, pois estava procurando um emprego.
Sua integração à turma se dá, depois de algum tempo, pela via acadêmica, quando começa a
fazer resumos das matérias aprendidas e os compartilha com colegas. Assim, o aluno pode
criar pontos de aproximação em meio à diversidade de histórias presente no Instituto, partindo
de assuntos relacionados à sala de aula, provavelmente o que há de mais semelhante a todos
os membros do corpo discente. É possível pensar a timidez descrita e a pouca abertura aos
colegas não como decorrências de traços pessoais, primordialmente, mas como características
construídas ao longo da sua história escolar, na qual conviveu com alunos e alunas cujas
realidades não lhe diziam respeito e com os/as quais o contato era atravessado pelas
assimetrias socioeconômicas. Analisando seu relato sobre os anos da Educação Básica, onde
sentia-se colocado à margem, não surpreende o fato de encontrar dificuldades no contato com
os membros do IP. Ressalta, porém, que alguns alunos mais ricos tinham vivências
diversificadas e transitavam sobre vários assuntos, facilitando a aproximação e produção de
comum. Revela-se, assim, a potência de criação de interações não excludentes, humilhantes
ou opressoras, que pode existir quando se vive a não homogeneidade da realidade e a
desnaturalização das experiências pessoais.
A sensação de estar em um ambiente violento, onde suas vivências são desvalorizadas,
e de não fazer parte do que nele se desenvolve, tendo dificuldade de compreender a realidade
de que se trata, são impressões que de alguma forma estavam presentes desde a escola e
permanecem após a entrada na USP. Uma cena interessante trazida pelo aluno diz respeito ao
cigarro; por vezes, estudantes que lhe pediam cigarro rejeitavam logo em seguida o lhes
oferecia, alegando que aquela marca era muito forte. O depoente explica que a diferença entre
os produtos nada tinha a ver com a composição; os seus eram mais baratos, paraguaios, ao
passo que os demais tinham alguma grife, apesar de serem igualmente "fortes". Situações
como esta fazem-no sentir que o que tem a oferecer é pouco, que suas possibilidades são
insuficientes, marcando uma posição de inferioridade em relação aos demais, que vai além do
aspecto financeiro. As relações de classe se apoiam em simbolismos culturais, como mostra o
25
ser pobre, evidentemente, não diz apenas do quanto dinheiro se tem, mas do valor individual
de cada um (Patto, 2009).
O desconhecer e desconsiderar dos modos de viver não hegemônicos vivenciados no
Instituto está imbricado ao não reconhecimento dos próprios privilégios por parte dos alunos e
das alunas das classes mais favorecidas, que pode ser identificado nas cenas relatas, por
exemplo, no caso dos colegas que entendem que todos/as podem despender de certas quantias
de dinheiro. A noção de que o que se tem não é natural e universal, mas sim uma condição de
vantagem em relação aos/às demais, é algo que nem sempre é claro e que, portanto, necessita
ser disputado, explicitado, reafirmado e discutido. Frente a situações onde se apresenta esta
insensibilidade, o depoente entende que a culpabilização dos grupos sociais menos
favorecidos invisibiliza a dimensão do desprivilégio; se a condição econômica é fruto de
esforço, então o problema da pobreza são os que não se empenham, os incompetentes, e não
uma estrutura social que produz desigualdade (Bourdieu & Champagne, 1993/2008; Araújo,
2012). O entrevistado conta que por muito tempo ficava calado frente a encontros que lhe
produziam incômodo, não sabendo como reagir a estas situações difíceis e violentas, onde as
questões eram apresentadas de forma individualizada. Também sentia falta de respaldo do
grupo de amigos, que eram mais ricos e dificilmente entenderiam suas vivências, sentindo-se
sem suporte para agir. A necessidade de coletivo, dos espaços de troca, acolhimento e criação
de estratégias de enfrentamento se faz presente, sendo parte potente desta inversão de lógica,
que vai do individualismo à dimensão social da questão.
A conversa com o aluno evidencia que os privilégios dos mais ricos vão muito além da
dimensão monetária, de mais fácil percepção. A possibilidade estar em um meio onde suas
formas de ser-viver são consideradas e aceitas não é igual para os/as estudantes mais e menos
abastados (Backes, 2006). Como os exemplos que o depoente traz mostrarão, diversas são as
ocasiões em que sua realidade não encontra espaço no cotidiano do Instituto, havendo que se
batalhar por ele. Uma das situações que marcaram sua passagem pela universidade, por conta
da grande violência, ocorreu quando promoveu um evento de Rap no IP, previamente
autorizado pela diretoria, e que foi reprimido pela Guarda Universitária, a pedido de um/a
docente anônimo/a. O aluno entende que, ao tentar trazer a estética da periferia para a USP,
foi barrado através de uma interferência truculenta e legitimada pela Universidade; silencia-
se, à força, a voz das populações marginalizadas. O/a professor/a responsável pelo ato,
protegido/a pela figura de poder de um terceiro, infligiu uma prática agressiva e humilhante,
sem sequer criar possibilidade de diálogo; como o depoente descreve, a corda estoura para o
27
lado mais fraco, o do aluno ou da aluna pobre. Esta cena remete às técnicas de segregação que
USP e a elite utilizam, em diversos contextos. Ações violentas que são performadas em vários
espaços da cidade e visam reprimir e apartar as classes mais pobres. Reproduz-se, na
Universidade, a ordem social, sendo o poder, o direito a participação e os lugares de fala
reduzidos para os menos privilegiados.
De forma mais sutil, por ser simbólica e não física, mas não menos violenta, a cena
relatada se reproduz entre as alunas e os alunos da instituição. Dentro do espaço de
convivência estudantil do Centro Acadêmico Iara Iavelberg, o entrevistado e colegas de classe
socioeconômica semelhante já tiveram suas músicas vetadas; quando se dão conta, já não é
mais seu celular que está tocando e outro estilo musical ocupa o ambiente. Sem nenhum
diálogo, aviso ou brecha para contestação, suas referências culturais são eliminadas do local,
substituídas pelo que ditam os padrões de outros grupos. Essas experiências indicam que as
formas de expressão de alguns não são bem-vindas, impressão que se repetirá em diversas
situações trazidas ao longo da conversa. Há uma norma de ocupação do espaço do Instituto,
uma forma dominante de ser, que é explicitada nas situações descritas; há maneiras certas e
erradas, aceitas e recusadas de falar, vestir, habitar, ouvir música, etc. (Barbosa, 2004;
Backes, 2006). A violência produzida nestas ações tornam alguns espaços do IP aversivos,
produzem humilhação e despertencimento; o depoente conta que, segundo sua experiência,
poucos alunos da periferia se sentem bem neste local que deveria ser de convivência.
Outro campo de disputa que produz conflitos no encontro das classes é a linguagem,
que se constitui como uma importante marca identitária dos grupos sociais. A norma culta é,
via de regra, a forma de se expressar na academia, utilizada tanto nas discussões em sala de
aula, quanto nos trabalhos que as embasam, nos espaços de trocas entre as categorias que
compõem o corpo da Universidade, nas produções dos alunos e das alunas etc. Os desvios dos
seus padrões, o uso de gírias e construções gramaticais alternativas são associados à imagem
de erro, desconhecimento e inferioridade. A linguagem, assim, se constitui como barreira,
entrave e humilhação, é motivo para que lhes atribuam características negativas, para que
sofram chacota e tenham seu valor de fala diminuído. O entrevistado diz de um consequente
esforço para se expressar de maneira "adequada"; falar uma segunda língua requer
concentração e vigilância. Como mencionado em outras situações, o modelo da elite, mais
uma vez, é naturalizado e elevado ao patamar de regra, entendendo-se o desviante como um
padrão inferior. Para que seja respeitado, ouvido, compreendido, é preciso adequar-se à norma
hegemônica (Houston, 1997; Nogueira & Nogueira, 2005).
28
8
Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo
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uma aluna que disse a um colega que não tinha interesse em se envolver com ele, pois era
preto. O entrevistado descreve, então, relacionamentos falsamente cordiais; impera o discurso
de igualdade e respeito à diferença, mas nas práticas cotidianas valores opostos se expressam.
Estas relações, tidas por ele como hipócritas, dizem dos preconceitos profundamente
arraigados na cultura do país, assim como da naturalização das desigualdades sociais, que
concorrem na construção dos discursos circulantes. Apensar dos esforços de defesa das
práticas democráticas, estes antigos valores ainda circulam no ideário da instituição,
contribuindo para as incoerências e contradições observadas; participa-se de um ato em defesa
dos trabalhadores terceirizados, ao mesmo tempo que se deixa a sala desorganizada e suja, a
cargo da única funcionária responsável pela limpeza do bloco de salas de aula, também sob
um regime de contratação precário.
Frente às inúmeras situações violentas de discriminação e opressão e das vivências
fortemente atravessadas pela desigualdade das classes sociais, o aluno, ao longo da sua
passagem pelo Instituto, operou sobre as tensões existentes, buscando formas de resistência.
Ao se deparar com a pouca expressividade de pobres e negros na composição da comunidade
uspiana, a não ser como funcionários/as de posições hierarquicamente inferiores, ele
organizou eventos que buscavam trazer o protagonismo da periferia para dentro da instituição.
Os eventos organizados trazem a voz e a estética das populações marginalizadas, buscando a
ocupação dos espaços por alunas e alunos usualmente desconsiderados, rompendo a lógica
segregadora vigente, como ele explica. Suas festas, chamadas de "invasões", afirmam que o
Instituto é um espaço seu, que também ele tem o direito de estar na Universidade. O
estudante, trazendo o familiar para dentro da USP, procura aumentar o pertencimento e a
inclusão dos alunos das classes mais baixas, fazendo caber as formas de viver não
contempladas.
Fica claro, ao longo da entrevista, que o espaço dos/das estudantes de baixa renda no
IP e na USP precisa ser conquistado, não é algo dado, que advém da vaga garantida no
vestibular. Enquanto alunos e alunas mais ricos/as encontram nos territórios da Universidade
um ambiente mais familiar, onde se partilham seus referências e suas formas de ser/viver são
respeitadas, os que vêm de outras classes socioeconômicas precisam atuar no sentido de
marcar suas diferenças e pressionar o campo de forças para fazê-las caber no funcionamento
descrito. O habitar dos espaços é, como mostra a trajetória do entrevistado, uma construção,
envolve um esforço de disputa e autoafirmação. O aluno, porém, faz uma crítica às novas
gerações que estão entrando no Instituto, entendendo que elas se preocupam mais com a
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disputar que as formas de ser e viver que diferem do estabelecido tenham espaço na USP e na
vida acadêmica. Os movimentos do entrevistado que surgem disto se dão através de duas
estratégias: trazer para dentro da Universidade o que sempre se colocou para fora dela e
transpor as vivências periféricas para a esfera acadêmica. Com o intuito de aproximar o que
historicamente se colocou distante, o aluno traz para o campus elementos culturais e pessoas
das regiões marginalizadas, ao mesmo tempo que em seus estudos sobre Rap procura fazer
uma leitura teórica da realidade que encontra fora dos muros da USP.
3.4 Entrevista 3
A terceira entrevista desta pesquisa foi realizada com uma aluna do quinto ano. No
começo de abril, nos encontramos no Centro Cultural São Paulo, local que ela costuma
frequentar em momentos de lazer, e nos sentamos em uma das mesas da área externa. A
conversa se iniciou com um breve resumo da história escolar da depoente, que foi aluna da
rede pública estadual da primeira série do Ensino Fundamental até o último ano do Ensino
Médio. A entrevistada passou por cinco escolas durante os onze anos da educação básica,
sendo que primeira mudança se deu porque a instituição só abrangia os quatro primeiros anos
do ciclo. Na nova escola, encontrou condições precárias de ensino e estrutura; faltas de
professores eram muito recorrentes, assim como aulas que não lhe pareciam bem ministradas,
o que se somava à precariedade de nível material, como uma sala no subsolo onde havia uma
goteira que vinha do banheiro. Havia também proximidade com o tráfico de drogas, que se
inseria no cotidiano escolar de forma natural e acrítica, como ela diz, de maneira que o
comércio e uso de substâncias ilícitas se misturava mais à vida da escola do que em outros
contextos. Frente a estas condições de ensino e questões de indisciplina da aluna, que
provavelmente estavam relacionadas entre si, a mãe da entrevistada procura outra instituição.
Nesta segunda mudança, a estudante se viu insatisfeita, detestou a escola e então buscou outra
opção nos arredores de sua casa. A quarta escola frequentada, de ensino técnico, era
considerada boa em comparação às outras possibilidades da região, e este primeiro ano do
Ensino Médio funcionou para ela como um organizador de sua vida acadêmica. O ingresso
através de um vestibulinho, assim como a produção de um trabalho de conclusão de curso
foram como que um preparo a educação superior. No segundo ano do Ensino Médio, mudou-
se de instituição pela última vez, e retomou o engajamento com os estudos.
36
e humilhação. Um dos primeiros estranhamentos dela em relação aos colegas foi o fato de
muitos deles terem estudado nas mesmas escolas, ou fazerem parte de um mesmo ciclo de
amizades, o que facilita a criação de comum entre eles. Os amigos dela, em contrapartida,
haviam seguido caminhos muito diversos do seu, sendo que para muitos/as a USP nem sequer
existia. O desconhecimento por parte de estudantes de baixa renda da escola pública sobre
uma universidade gratuita e de renome em sua cidade, dá pistas de como a vida universitária,
especialmente na rede pública, se constitui distanciada das vivências das classes menos
privilegiadas. Para os/as que vêm das camadas mais altas da hierarquia social, onde costuma
haver possibilidade de formação acadêmica, certamente a USP é, se não um horizonte, ao
menos conhecida. Para algumas pessoas do convívio da depoente, a Universidade só viria a
tomar corpo anos após sua conclusão do ensino médio, quando passarem a integrar a
educação superior privada. As colocações da entrevistada mostram, assim, que tanto o
ambiente da Universidade, quanto o meio fora dela, indicam que aquele não é um espaço
esperado para os membros de sua classe social, como será discutido ao longo da entrevista.
A diferença com que a educação formal e a noção de carreira se constituem no
cotidiano das classes mais altas e mais baixas da sociedade é um fator de grande influência na
questão do pertencimento dos menos privilegiados. No caso das famílias mais abastadas, onde
há maiores possibilidades de frequentar o ensino superior, as questões da vida acadêmica se
inserem no cotidiano dos/das estudantes com mais facilidade, de forma que chegam à
universidade com uma bagagem sobre diversos temas que concernem a ela (Nogueira &
Nogueira, 2005). Para a família da depoente, porém, o ensino superior é uma realidade
distante; em seu núcleo doméstico ninguém teve contato com as dinâmicas da educação
superior. A mãe e o tio estudaram até a oitava série do ensino fundamental, o pai até a quarta
e a avó não foi alfabetizada. Soma-se a isto a tradição elitista da Academia, cujas temáticas de
ensino, pesquisa e prática em psicologia dificilmente consideram realidades tão diferentes da
vida de privilégios nas quais geralmente são criadas. Deixa-se de fora, por exemplo, as
vivências onde os esforços se concentram em questões essenciais, como o trabalho, as contas
que precisam ser pagas, o suprimento de necessidades vitais, como a entrevistada diz, coisas
que gritam. Aos alunos e às alunas mais pobres, então, reflexões sobre o que é ciência, seus
objetivos e métodos, além dos assuntos comumente abordados pela psicologia, não são
habituais em seu universo cultural, havendo uma necessidade, não suprida, de que se trate
destes temas em níveis mais básicos durante a graduação; alguns estudantes dependem mais
das instituições de ensino para saber o que elas exigem, enquanto outros, oriundos dos grupos
39
dominantes, têm seus referenciais de classe acolhidos pela educação formal (Bourdieu &
Champagne, 1993/2008). Da dificuldade de tecer um comum com o que é experienciado fora
da vida acadêmica, resulta uma sensação de falta de sentido, de que as discussões do Instituto
não lhe dizem respeito; há pouca identificação e repercussão. O abandono do espaço é
identificado pela aluna como um desdobramento desta ausência de sentido, que perpassa as
aulas esvaziadas do IP e a pouca ocupação de seu espaço.
A falta de familiaridade que a aluna descreve em relação à cultura universitária se
relaciona com a divisão social do trabalho historicamente construída. As famílias mais ricas
geralmente podem se ocupar de cargos que dependem de formação acadêmica especializada,
que são socialmente valorizados e bem remunerados. Já às mais pobres, restam os trabalhos
tecnicistas, braçais e/ou que dispensam educação formal, cujos postos estão no nível mais
baixo da hierarquia trabalhista (Araújo, 2012). Assim, o ensino superior torna-se comum aos
mais privilegiados, que projetam suas carreiras, desde a educação básica, para se
especializarem e assumirem cargos valorizados. Em contra partida, para as classes mais
baixas a formalização dos conhecimentos não se faz tão possível, portanto, não tão necessária
e as urgências da vida cotidiana ocupam lugar de destaque na inserção no mundo do trabalho.
Desta forma, se constitui um ciclo: as classes dominantes ocupam o ensino superior, fazendo
com que este se constitua voltado para elas, o que garante sua inserção nas universidades, pois
estas adotam seus referenciais, acolhem suas necessidades e orientam-se por seus interesses. É
preciso pontuar que esta reprodução da estrutura social só se dá quando o Estado governa com
base nos interesses dos grupos mais privilegiados, o que permite que a educação básica
pública seja, desde a sua expansão, falha e insuficiente, e que as universidades públicas sejam
destinadas aos mais ricos (Patto, 1990/1993; Patto, 2009).
A partir do que a entrevistada descreve, forma-se uma espécie de limbo social, um
não-lugar (Barbosa, 2004). Quando em casa, não encontra correspondência com o que
aprende na universidade e, quando se dedica aos estudos, não encontra equivalência com sua
realidade de origem. Fica assim em uma posição mal colocada, ao mesmo tempo que não
pertence mais ao contexto familiar, também não se adéqua à vida da USP. A aluna conta
como estas desconexões a desorientaram, colocaram em xeque sua identidade; não está lá,
nem cá, não parece se encaixar em nenhum dos modelos. Enxerga em si, porém, a potência de
superação desta posição deslocada, através da árdua construção de pontes entre estas
realidades tão diversas.
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disciplinas que de alguma forma conseguem acessar certas dimensões básicas da vida de
sujeitos cujas vivências não se enquadram nos padrões de riqueza, branquitude e
heterossexualidade, deixando-se de fora fatores importantes que atravessam estas outras
formas de viver.
São várias as cenas da vida discente vivenciadas pela depoente que, desde o início da
graduação, deixam perceber que o espaço para um certo tipo de diversidade é bastante restrito
no Instituto, produzindo nela uma sensação de estar à parte. A aluna conta que as relações
estabelecidas no IP faziam-na se sentir inadequada, uma vez que, em havendo um tipo de
aluno adequado, os que estão fora do padrão esperado são colocados em posição de
deslegitimação e inferioridade, e diversos foram os momentos em que sinalizou-se que
pessoas como ela não deveriam estar na Universidade. A entrevistada fala de como a
legitimação de certas vivências e desvalorização de tantas outras, faziam-na sentir que
aspectos de sua vida, não contemplados nas vivências do Instituto, fossem inadequados,
errados; por um lado, não deveria ter tido algumas experiências que tivera e, por outro, algo
nela estava incompleto, deveria ter passado por coisas pelas quais não passara (Backes, 2006).
Ela pontua que a atribuição de valores diferentes às vivências dos grupos sociais é algo que
não se restringe ao IP, nem à USP, mas é uma característica da sociedade como um todo, que
se reproduz no âmbito da educação. Talvez não fosse possível estruturar uma universidade,
um curso ou uma forma de educar que contemplasse a diversidade da experiência humana,
mas certamente a existência de um modelo que domina os outros, produz um funcionamento
impeditivo e constrangedor de certas formas de viver.
Outra cena, trazida pela entrevistada, que elucida a presença deste padrão nas relações
da comunidade uspiana ocorreu durante uma aula em que se perguntava de que escolas
vinham os alunos e as alunas, a fim de se saber dos métodos de ensino de cada instituição. As
escolas públicas não foram mencionadas e ausência delas na discussão não pareceu ter sido
notada pelo grupo. A depoente se pergunta se não é importante discutir a educação pública;
chama-lhe a atenção o fato de isto acontecer justamente em uma instituição que faz parte
desta rede, aonde seria de se esperar que o resto dela fosse relevante. A aluna entende que isto
decorre de um descuido, e não da intencionalidade de excluir e violentar os/as estudantes que
não vieram do ensino privado. Considera, porém, que se trata de uma questão política,
mencionar ou não o público e como isto é feito, produz diferentes efeitos nas relações. Para
ela, esta desconsideração se deve a uma dificuldade de enxergar as outras realidades do corpo
discente, apontamento que deixa ver a potência da elucidação dos processos de reprodução da
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exclusão dos grupos minoritários, como condição que possibilita a legitimação e inclusão dos
"excluídos no interior" (Bourdieu & Champagne, 1993/1997).
A entrevistada se lembra também de situações nas quais as alunas e os alunos mais
pobres foram diretamente desrespeitadas/os e humilhadas/os, em decorrência da forma com
que se enxerga suas diferenças em relação ao padrão hegemônico. Relata um evento em que
docentes e estudantes de diversos anos estavam em um dos auditórios do IP e um aluno falava
ao grupo. Por conta de discordâncias com algumas regras gramaticais em sua fala, uma
professora indagou como poderia haver um aluno da USP que falasse daquele jeito,
questionando se ele não havia passado no vestibular. Como a depoente aponta, uma fala que
foge à norma culta é entendida como vinda de um estudante incapaz, que não sabe falar, cuja
educação é insuficiente para estar no ensino superior, tornando uma questão linguística
motivo suficiente para deslegitimar sua presença no Instituto. Ressalta também o
atravessamento de classe presente, uma vez que a flexibilidade linguística que se apresenta é
usual nas classes menos abastadas, cujo apego às formalidades expressivas é menor em
relação aos grupos dominantes (Houston, 1997). A aluna ressalta que esta fala reflete um
pensamento que circula na comunidade uspiana, de que os grupos menos privilegiados não
deveriam estar na universidade, sob o risco de prejuízo à Academia. Além disso, a
naturalidade como o comentário é feito, em voz alta, dá uma ideia de como o cotidiano no
IPUSP passa a mensagem de que quem difere do modelo dominante não é bem-vindo. A fala
que é verbalizada também permite pensar sobre o processo de ingresso via vestibular, cujo
objetivo se pretende a seleção de candidatos e candidatas com aporte conceitual necessário
para a educação superior mas, evidentemente, almeja a admissão de certo tipo de estudante,
com determinados valores culturais, e o consequente afastamento da grande maioria da
população (Araújo, 2012).
Na cena relatada e em diversas outras, percebe-se o silenciamento das alunas e dos
alunos como efeito da humilhação social que sofreram ao longo de sua história, dentro e fora
da Universidade. Frente a estas falas e posicionamentos violentos, é difícil encontrarem a
possibilidade de romper com o assujeitamento produzido, de modo que tais ideias muitas
vezes circulam no Instituto sem gerar estratégias de resistência. Como a depoente trará ao
longo da conversa, o processo de mudança e fortalecimento que a permitiu alterar seu
posicionamento diante de questões desta ordem foi gradual e dependeu da ação de vários
atores.
43
como é habitual entre os/as estudantes. Não levando em conta as especificidades de sua
história, entendia que era necessário sempre ter o mesmo desempenho que os/as colegas mais
privilegiados/as, posicionamento que também via em professores e professoras. Traz, então, a
questão do não exercício dos pactos, que é atravessada pelas condições materiais de cada
aluno/a; o não fazer de um/uma estudante de baixa renda pode ser muito diferente do não
fazer dos mais ricos. Chama atenção, também, para a importante questão da estruturação do
currículo e das disciplinas: para quem são pensados e quais possibilidades e necessidades são
levadas em conta? Parece que grande parte da estrutura curricular do IP não considera as
histórias de quem mora longe da USP, dos que não leem inglês, dos que precisam trabalhar,
dos que também cuidam da casa e da família.
Ainda sobre a busca em si das causas das dificuldades encontradas, decorrida dos
discursos que circulam explicita e implicitamente na Universidade, lembra de uma situação
em que compartilhava aspectos de sua vida, por exemplo, em uma roda de amigos, e sentia-se
totalmente ignorada. A sensação era de ser invisível e perguntava-se o que tornava suas falas
tão desinteressantes para os outros, se seria o conteúdo do que dizia, sua forma de se
expressar ou ela mesma. Hoje, entende que em alguns contextos há falta de identificação com
o outro e cobra maior abertura por parte dos/das colegas frente ao que é diferente e
desconhecido: é possível um movimento de retração e afastamento, ou de aproximação, de
ignorar ou procurar conhecer, e seu relato aponta o problema do distanciamento que se opera
no IP. Esta falta de interesse que ela identifica pode estar relacionada à deslegitimação de
algumas experiências que se produz no Instituto, que torna as vivências de alguns alunos
menos relevante do que as de outros.
No decorrer da experiência acadêmica da depoente, alguns acontecimentos foram
importantes no sentido de relativizar os discursos apresentados que circulam pela USP e de
fazer pensar suas concepções e posicionamentos frente às questões que surgiam. Um
importante momento em que viu rachar o entendimento de que não havia espaço para pessoas
como ela no Instituto, se deu em uma disciplina obrigatória do terceiro ano, onde tratava-se de
autores que evidenciam os processos de produção das subjetividades, experiências, relações,
dos jogos de força e instituições. Frente aos textos e aulas com os quais entrou em contato, a
entrevistada pôde começar a desconstruir algumas hegemonias, flexibilizando sua
compreensão sobre os fenômenos que vivenciava na universidade. Abriu-se, assim, espaço
para a discussão sobre a diferença e a desigualdade, para o que não se enquadrava nos
formatos estabelecidos, que pôde ser ressignificado e entendido não mais como erro/falta, mas
46
em uma instituição pública que não dá conta de suprir as necessidades econômicas para que se
exerça a função de aluno, o que traz prejuízos à formação de alguns.
A questão da moradia é muito relevante para a aluna; entende que estar perto da universidade
é formação e sentiu os efeitos disto na sua vida acadêmica quando mudou-se para a região
próxima à portaria 3 da USP. Pontua, porém, que não vive sua nova residência como um lar,
esta é para ela apenas um espaço onde habita. Também pode-se pensar que morar longe da
Universidade não é mera coincidência, mas resultado da marginalização espacial das
populações de baixa renda, que são excluídas das regiões centrais e valorizadas da cidade.
Ademais, a mudança de habitação como busca por melhores condições de estudo lembra a
migração frequente de escolas que a aluna traz no início da conversa. A não garantia de
direitos para as populações pobres brasileiras, que se desenrola no decorrer da história do
país, leva tais grupos a se deslocarem no espaço, procurando alternativas para suprir suas
necessidades. No percurso da entrevistada, a questão aparece inicialmente na educação básica,
na passagem por várias instituições em busca de um ensino que satisfizesse suas demandas e,
posteriormente, a problemática se transfere para o ensino superior, mas como o número de
universidades públicas é pequeno, ela é quem se desloca no espaço.
Outra questão de grande relevância para o fortalecimento dos/das estudantes das classes
menos privilegiadas é a formação de coletivo. A socialização das questões, que a depoente
encontrou no Coletivo Feminista Aurora Furtado e no Coletivo de Classe IPUSP, possibilita
que alunos e alunas se identifiquem entre si, reconhecendo que não são os únicos a lidar com
determinadas questões, e também abre a possibilidade de acolher um sofrimento que não tem
espaço para surgir em outros contextos. Ela aponta que, apesar de ambos espaços atualmente
encontrarem-se menos articulados e mobilizados do que em outros momentos, ampliaram as
possibilidades dela, como mulher e aluna de um grupo minoritário, habitar o Instituto. O
espaço coletivo pode ser entendido como momento de socialização e legitimação das questões
vividas pelas minorias, possibilitando afirmar e trazer à luz o que antes era vivido como
dúvida, incerteza e estranhamento. Também, permite que se pense coletivamente em
estratégias de enfrentamento das dificuldades que surgem.
Ainda sobre a questão do coletivo e da representação, a depoente fala da sua
participação nos colegiados. Entende o papel de representante discente como desafiador, uma
vez que o ambiente é de tensão e disputa, e também muito potente, levando a voz dos alunos e
das alunas às outras categorias do Instituto. Existem pautas em que há desconhecimento por
parte dos/das docentes sobre as opiniões dos/das estudantes, cabendo aos representantes
49
fazerem esta ponte. Em outras ocasiões, os interesses discentes diferem do que desejam os
professores, que são maioria - em número e força - nos colegiados, fazendo com que seja
necessário que haja alunos e alunas disputando e defendendo outras posições. Há também
situações onde a união das categorias potencializa a defesa de uma posição conjunta, sendo
que a ausência de uma delas prejudicial a todos. A entrevistada ressalta que, em um contexto
institucional em que as categoriais têm poderes de influência diferentes, torna-se ainda mais
importante ocupar os espaços disponíveis e fazer alianças. Cita o caso do critério
socioeconômico para a distribuição das bolsas de monitoria, pauta que teve sua origem na
direção do Instituto, fato que a aluna entende ter sido determinante na aprovação da proposta;
um pedido que vem diretamente do diretor, que tem importância política diferente dos demais,
acaba tendo mais impacto do que o posicionamento dos alunos.
A universitária pontua que as discussões sobre permanência estudantil e pautas que
concernem aos/às estudantes mais pobres não recebem a devida importância no IP,
ressaltando a importância de que pautas como a do critério socioeconômico cheguem a esse e
outros espaços frequentados por professores e professoras. A disseminação das problemáticas
dos/das estudantes mais pobres abre possibilidade de olhar para estas realidades e disputar as
concepções e objetivos da universidade pública. Discutir sobre as necessidades desses grupos
traz à luz a existência de histórias que antes se encontravam à margem, excluídas, como a
entrevistada diz, o debate destes temas possibilita que estes alunos e alunas passem a existir.
A depoente traz como exemplo de disputa pela visibilidade e consideração das
necessidades de quem tem menos privilégios, os eventos relacionados à sua formatura. Ela faz
parte da comissão responsável por cuidar das cerimônias de conclusão do curso e enfrentou
dificuldades de aderir ao pacote que a agência oferecia. Aponta que em um momento anterior,
provavelmente entenderia que não deveria participar da formatura, que a comissão não era um
lugar que poderia ocupar, deixando que o constrangimento atrelado à falta de dinheiro
encolhesse suas possibilidades. Hoje, porém, pode expor suas dificuldades financeiras, que
passam, então, a ser tratadas como problema do grupo. Fortalecida pelo coletivo, pôde
conversar com a agência de formatura e disputar outras possibilidades, tencionando o campo e
agindo como porta-voz de outros alunos. O fortalecimento de uma/um, contagia; a aluna tem
podido estender olhares mais sensíveis a diversos espaços, não só perante à empresa, mas nos
colegiados, em sala de aula e nos demais ambientes da universidade.
A conversa com a aluna ressalta como posicionamentos dentro do Instituto, apesar de
serem minoria numérica, têm potência para produzir inflexões no que é hegemônico. As ações
50
3.5 Entrevista 4
O quarto encontro foi realizado com um aluno do terceiro ano, no início de maio. A
conversa aconteceu em seu apartamento no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) e
começamos a entrevista falando sobre sua história escolar. O depoente nasceu em Itaobim,
Minas Gerais, e mudou-se para Pitangueiras ainda bastante jovem, tendo sua formação se
dado toda na rede pública paulista. Estudou na rede municipal durante o ensino fundamental e
a mudança para a educação estadual trouxe um grande contraste no que se refere à qualidade
de ensino. Descreve os três últimos anos da educação básica como caóticos; muitos alunos
para poucos coordenadores, professores esgotados, um espaço que mais parecia uma prisão do
que uma escola e as aulas, quando ocorriam, eram mal ministradas. No segundo ano do ensino
médio precisou estudar a noite para poder trabalhar e as condições educacionais que
encontrou foram piores do que as anteriores. As faltas de professores eram muito frequentes e
os/as estudantes, tão esgotados/as quantos os/as docentes, não tinham disposição para estudar.
Depois de um longo dia de trabalho em profissões como pedreiro, auxiliar de limpeza e outros
subempregos, era difícil alguém que conseguisse se dedicar. Mesmo em uma situação que
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exigia muitos esforços, o entrevistado se vê como privilegiado neste cenário pois, por
trabalhar em um banco, ainda lhe restava alguma energia para aprender.
O trajeto do entrevistado até o ensino médio aponta para questões importantes da
educação básica brasileira. Primeiramente, deixa ver alguns impactos da falta de investimento
que historicamente se pratica no país. A má remuneração dos professores e das professoras,
que faz com que precisem se dedicar a uma quantidade excessiva de aulas, têm como
decorrência um número altíssimo de faltas e de disciplinas pouco produtivas, que também se
relacionam com a estrutura precária que se encontra em muitas instituições, contexto que
praticamente inviabiliza a formação dos/das estudantes. A escola-prisão da qual o depoente
fala, em que os/as alunos/as ficavam trancados/as no prédio de salas, diz de como a escassez
de funcionários limita as possibilidades de aposta; deixar as portas abertas, permitir que os/as
estudantes circulem e estimular o exercício da autonomia são práticas que requerem estrutura.
Diz também das violências que o Estado inflige aos usuários de suas instituições que, na
condição de alunos, estão sob sua responsabilidade e têm suas vidas ameaçadas pela
precariedade do sistema educacional; ele conta de quando um incêndio se iniciou no prédio e
não havia ninguém para abri-lo. Outro aspecto que chama atenção em seu relato é a tensão
que existe em torno dos cursos noturnos; ao mesmo tempo que são condição necessária para
que alguns possam estudar, fica claro que a educação que recebem é fortemente atravessada
por problemas socioeconômicos. Não só os/as estudantes têm sua formação prejudica pela
jornada de trabalho que a precede, mas os professores e as professoras também chegam
exaustos/as para as aulas da noite. Percebe-se que há um recorte de classe dentro da
insuficiência do ensino público; a educação que os grupos mais pobres das camadas menos
privilegiadas acessam é ainda menos potente do que a garantida aos que podem se dedicar
apenas aos estudos, assim como as condições de trabalho dos/das docentes que lecionam nos
dois períodos letivos são as mais precárias. O ensino médio noturno que se apresenta, então,
como uma solução para o problema de jovens que precisam exercer atividades remuneradas,
camufla um ponto essencial da questão, a não garantia do direito à educação pelo Estado. Ao
criar condições para esta dupla jornada, o governo dá a impressão de cumprir sua função
perante os/as estudantes, mas, na verdade, se desimplica de seu dever de suprir as
necessidades para que a educação possa se dar; mesmo que a escola tivesse a estrutura
requerida para o oferecimento de um bom ensino, é questionável se há condições reais de
aprendizagem no contexto descrito. Além disso, as práticas escolares que o entrevistado
descreve não parecem pressupor uma continuidade da vida estudantil dos alunos e das alunas,
52
a quem não se fala das universidades públicas e, portanto, não se incentiva que nelas estudem.
Não se trata de defender uma escola pautada nos conteúdos e no formato de saber exigidos
para o ingresso no ensino superior, mas não parece haver possibilidade de criar condições
para isto.
Aos 15 anos, o depoente começou a estudar para entrar no colégio naval, quando
descobriu que existiam universidades públicas; até então, seu plano era se dedicar a atividades
remuneradas para poder sustentar financeiramente o resto de sua educação, pois, como sua
mãe sempre advertia a ele e à irmã, a família não poderia arcar com os custos de uma
faculdade. Terminado o Ensino Médio, o aluno começa a fazer um curso pré-vestibular
noturno, pago com quase metade de seu salário, apesar da bolsa de 80% que recebia. No
segundo ano de cursinho, presta Psicologia no vestibular da FUVEST 9 e entra na USP. A
escolha pela Universidade teve como determinante importante sua condição socioeconômica,
uma vez que a carreira de Psicologia era uma aposta arriscada, pela desvalorização econômica
atrelada à profissão e os gastos que geralmente se tem no início da carreira, por exemplo, para
abrir um consultório ou complementar a formação. Escolhendo se dedicar a uma área de baixo
retorno financeiro, algo que muitos não podem fazer, o estudante sabia que seria preciso
graduar-se em uma instituição de renome, que aumentasse suas chances no mercado de
trabalho. Dentre as universidades públicas valorizadas, a política de permanência
desenvolvida também foi um critério relevante na sua escolha e a USP, por mais falhas que
tenha nos recursos que oferece, lhe pareceu uma das melhores possibilidades. Ele indica,
assim, que estar no ensino superior demanda condições que não são garantidas pelo acesso à
instituição; a entrada das classes menos privilegiadas na graduação é apenas uma etapa de um
processo que precisa ser cuidado integralmente, não sendo suficiente haver cursos gratuitos e
de ingresso acessível.
Não só a Psicologia se configura como uma grande aposta, mas a entrada na USP
também se deu cercada de insegurança. O aluno conta que teve que estar em São Paulo duas
semanas depois de o resultado do vestibular ter sido divulgado, o que significa que se demitiu
de seu emprego, juntou todo seu dinheiro e mudou-se para uma cidade até então
desconhecida. Devido à escassez de recursos e a forma como se configura a política de
permanência da Universidade, chegou na capital sem saber ao certo onde iria morar, como se
sustentaria e que auxílios receberia. De março até julho, ficou dormindo na sala da casa de um
amigo e relata o constrangimento da situação, a sensação de estar incomodando os donos da
9
Fundação universitária para o vestibular
53
são atravessadas por preocupações com questões básicas e urgentes, as realidades onde muito
menos direitos são garantidos, nas quais entrar na USP não é um momento apenas de alegria.
As questões de classe, que surgem desde o primeiro dia na Universidade, ganham
diversas roupagens ao longo da graduação. O entrevistado traz uma cena que ocorreu quando
visitava a casa de uma amiga da USP e se deparou com um apartamento enorme, luxuoso e
confortável. Lembrou-se de sua casa em Pitangueiras, bem menor do que aquela, alugada,
onde falta água com frequência, caindo aos pedaços, como ele diz. Outro exemplo que lhe
chama a atenção é a descoberta dos valores pagos nas mensalidades de escolas particulares,
que chegam a equivaler a mais de cinco vezes o salário de seu padrasto, que sustenta uma
família de cinco pessoas. Suas falas dão a ver a tensão que se produz nas aproximações que
escancaram as assimetrias entre os sujeitos, que aparece também no esforço necessário para
criar laços com pessoas com as quais há pouca proximidade de experiência. A sensação de
não pertencer ao contexto que o cerca e a dificuldade de criar comum surgem no encontro de
histórias injustamente desiguais (Barbosa, 2004). O depoente percebe que suas conversas com
alunos e alunas mais privilegiados/as não fluem bem, reconhecendo que alguns destes,
sensíveis à questão, deixam de falar sobre certos assuntos por temerem estabelecer contatos
violentos. Em contrapartida, ele observa que entre os/as estudantes de origem mais próxima,
as relações se desenvolvem com mais naturalidade, é possível um contato mais íntimo. O
entrave descrito pode ser pensando a partir do fato de que a notícia do privilégio alheio, em si,
é algo difícil de lidar, incomoda, causa indignação. O estreitamento das relações, como ele
mostra, escancara as desigualdades sociais abismais do país, coloca ombro a ombro o aluno
que mora no CRUSP e depende do dinheiro da Universidade para sobreviver e a colega que
tem muito mais do que o necessário. Cria-se uma situação em que a aproximação da vida do
outro é vivida como algo negativo, da qual surge um cuidado que opera distanciamento ou
uma proximidade desconfortável. Vale ressaltar que, diferente do que ocorre na maioria dos
contextos, no IPUSP as desigualdades de classe se dão entre sujeitos com o mesmo papel
social, o que desperta situações diferentes das que o aluno viveu, por exemplo, quando
trabalhava no banco atendendo a elite de Pitangueiras que, intencionalmente, tratava-o com
superioridade (Barbosa, 2004).
O contexto universitário, que permite mais intimidade do que as relações trabalhistas,
possibilita ao depoente acessar as experiências, alegrias, os problemas pessoais e os pontos de
vista dos/das colegas que pertencem a outros grupos sociais, o que frequentemente lhe causa
estranhamento e incômodo. Por exemplo, conta do espanto que teve frente a um estudante
56
que é possível parcelar o valor. Em outra cena muito semelhante, um aluno tenta lhe vender
uma viagem de confraternização e também diz que estava muito barato, conta o que havia
incluso no pacote e só para de insistir na venda quando o depoente lhe pergunta se 380 reais é
barato para quem é rico. Ele transparece a irritação por, reiteradas vezes, ter que explicar que
nem todos têm as mesmas oportunidades, por precisar afirmar suas impossibilidades para que
sejam compreendidas; parece faltar, nos exemplos citados, considerar as desigualdades das
possibilidades entre os mais e os menos ricos, portanto, compreender as situações de
privilégio.
A dificuldade de perceber e viver essas desigualdades perpassa várias situações
vivenciadas pelo aluno no Instituto. Ele se lembra de estar em uma roda de conversa com
colegas e alguém mencionar uma empregada doméstica. Para o grupo, esse fato não chama
atenção pois, como ele explica, todos ali também tinham funcionários em casa. Para ele,
porém, o luxo salta aos olhos e a desigualdade presente só é percebida pelos demais quando
ele aponta a sua surpresa. Ainda sobre esta conversa, o depoente percebe que há, dentre os/as
estudantes mais ricos/as, uma concepção filantrópica sobre as classes menos privilegiadas, da
qual a funcionária em questão fazia parte: enxergar a ajuda a uma empregada doméstica sob o
viés da caridade camufla um salário que não é suficiente para o sustento, por exemplo. Vê-se
que os mais ricos, quando desimplicados, tornam-se alheios ao fato de que o funcionamento
do sistema político-econômico que possibilita sua condição favorável é o mesmo que impede
o exercício de direitos por parte da maioria. Enxergam, assim, ações mínimas e paliativas
como benevolentes, favores que se faz para ajudar ao próximo. Estas ações, porém, calam
uma remuneração insuficiente, a implicação que se tem na produção das desigualdades, a
exploração da classe trabalhadora, etc. Outra fala que se relaciona com a temática ocorreu
quando uma amiga do entrevistado, moradora do CRUSP, comentou com um colega
pertencente às classes mais ricas que desejava estender a graduação de 5 para 7 anos. Ele
questiona a proposta, ressaltando implicações como gasto de dinheiro público e a ocupação de
uma vaga no conjunto residencial. O depoente aponta que o colega coloca como
responsabilidade da aluna os efeitos da falha estrutural da USP em suprir as necessidades
relativas à educação: trata o exercício de um direito como abuso de um bem público. Estender
a graduação, neste caso, tem um viés de classe que foi também desconsiderado pelo estudante,
que provavelmente não se deu conta de que a aluna terá que trabalhar para se sustentar
durante o curso, o que requer, para que a qualidade do ensino seja preservada, que se faça
menos disciplinas por semestre do que o previsto. O entrevistado também destaca a não
58
Partindo destes exemplos, o estudante faz uma crítica à forma como é conduzida a
formação dos psicólogos e das psicólogas no Instituto, pouco voltada para a população
paulistana. Ele entende que, para a maioria dos/as alunos/as, a USP é vista como um meio
para conseguir um diploma valorizado e status profissional, perdendo-se de vista a função
pública dessa formação. Subverte-se o papel do ensino e do que é público, que passam a ser
utilizados pelas classes dominantes como forma de perpetuar a estrutura social. O que o IP
devolve majoritariamente para a sociedade, como ele diz, são profissionais interessados/as em
clínicas particulares, que se destinam a um grupo muito restrito e já bastante privilegiado. Cita
como exemplo deste funcionamento a fala de um docente que diz, comicamente, que os
psicólogos estudam bastante para poder cobrar caro em seus consultórios.
O depoente amplia o questionamento sobre o IPUSP para a Universidade como um
todo, perguntando-se a serviço do que e de quem ela se coloca. Lembra de seus colegas de
escola que considerava muito inteligentes, tanto no sentido acadêmico, quanto na habilidade
de reflexão sobre suas experiências, e que não puderam continuar seus estudos depois do
ensino médio. Ele fala, assim, de estudantes com um grande potencial, tão capazes ou mais do
que os que integram a instituição atualmente, mas a quem não foi dada a chance de ocupar um
lugar que seria seu por direito. A eles contrapõe os alunos e as alunas do Instituto, que apesar
de formados em caras e renomadas escolas, têm uma visão muito pouco abrangente da
realidade, das questões discutidas, fruto de uma educação frágil em sua dimensão política
(Carvalho, 2008). Enxerga a Universidade, então, cujo dever seria desempenhar uma função
social, como parte da engrenagem da manutenção do status quo, nos deixando uma questão:
quem deveria ter o direito de estudar na USP?
O aluno mostra, ao longo da conversa, como a Universidade foi para ele
decepcionante. Muitas aulas mal ministradas, docentes que não parecem desejar lecionar,
conteúdos que, da forma como são ensinados, se tornam nada ou pouco úteis, uma formação
que produz menos rupturas do que era de se esperar e um ambiente difícil de habitar, no qual
frequentemente lhe ocorrem situações violentas. Apesar de grande parte da USP e do Instituto
funcionarem de acordo com a lógica reprodutora das desigualdades sociais, ele enxerga
esforços para a criação de brechas neste funcionamento. Cita como exemplo a luta do
movimento negro, que conquistou a implementação de cotas raciais na Universidade,
constituindo-se como um importante passo na direção de rachar o seu projeto político, assim
como a adoção da prova do ENEM como porta de entrada para a USP e a reserva de vagas
para alunos e alunas da escola pública. Traz também o Coletivo de Classe IPUSP, que tem
62
conta de fazer. A situação é mais grave para os universitários que, como ele, vêm de outras
cidades e chegam à São Paulo sem poder contar com o respaldo da Instituição, indicando o
despreparo da Universidade para receber histórias como a dele. No contexto descrito, suas
falas chamam atenção para o momento do ingresso no ensino superior, que para muitos não é
apenas celebração e alívio, é cercado por tensões e inseguranças.
A falha na garantia da permanência das/dos estudantes e o desrespeito às formas de ser
e viver dos grupos menos privilegiados tem origem em um ensino público superior que não se
constitui voltado para atender às classes mais baixas. O entrevistado enxerga com clareza que
a USP se insere na engrenagem reprodutora da estrutura social e questiona quem de fato
deveria estar nela, retomando a história de colegas que nem sequer puderam conhecê-la.
O aluno aponta, também, que há uma dificuldade por parte dos/das estudantes e
docentes mais abastados/as em reconhecer suas práticas como reprodutoras das desigualdades
sociais, elucidando o desafio de identificar posições de privilégio e perceber as implicações
no que é produzido na instituição. Na tentativa de criar brechas nestas produções, o depoente
explicita o importante papel do Coletivo de Classe IPUSP, que assim como a presente
pesquisa, busca desvelar aspectos das relações e da estrutura do Instituto que transformam
desfavorecimento econômico em desigualdade acadêmica, produzem despertencimento,
humilhação e oprimem formas de viver que distam do padrão hegemônico.
4 Considerações finais
Partindo do que foi relatado nas entrevistas realizadas, é possível fazer uma síntese das
práticas desenvolvidas no Instituto de Psicologia e na Universidade de São Paulo que afetam
de forma significativa a experiência dos alunos e das alunas dos grupos menos privilegiados.
A seguir, pretendemos delinear como a inserção destes/as estudantes em uma instituição
elitista e a convivência de classes desiguais comparecem na produção de despertencimento,
humilhação e deslegitimação.
As falas das/dos depoentes nos indicam que as questões de classe surgem no cotidiano
do Instituto desde os primeiros contatos que nele se dão. Para alguns estudantes o impacto do
estreitamento das relações com grupos mais favorecidos é maior, enquanto para outros, mais
habituados a viver os contrastes sociais, a lida com os incômodos despertados é mais fácil.
Apesar da diferença, em ambos os casos as relações estabelecidas no IP são vividas como
64
Os alunos e as alunas dão contorno, então, a uma Academia elitista, cujas produções e
formas de trabalhar são voltadas para uma comunidade muito restrita e requerem um certo
tipo de socialização e condições socioeconômicas, que poucos no país acessam. Falam de um
fazer científico branco, burguês e euro-centrado, que dificilmente estabelece pontes com a
vida de sujeitos que não se enquadram nos padrões dominantes. Esta concepção de academia,
que embasa a construção da USP, faz dela uma instituição também elitista, que apesar de
pública e de ter aparência democrática, se põe a serviço da reprodução das desigualdades
sociais, voltando-se para a promoção de diplomas valorizados e status profissional aos mais
favorecidos (Patto, 1987; Gonçalves Filho, 1998; Moysés & Collares, 1997; Carvalho, 2008).
As inúmeras situações de violência que disso decorrem indicam às/aos estudantes que o que
têm a oferecer é pouco, dando a impressão de conhecerem menos do que os demais, de
falarem errado, de terem experiências inadequadas (Bourdieu & Champagne, 1993/2008;
Backes, 2006), o que mostra um ambiente universitário constrangedor para quem não tem
certos privilégios, que repete a humilhação e a deslegitimação das classes menos privilegiadas
(Barbosa, 2004; Gonçalves Filho, 1998).
Os alunos e as alunas vão descrevendo um cotidiano educacional que se relaciona
muito fragilmente com o contexto que vivem fora da universidade. A desconsideração de suas
histórias, operada nas práticas do IP e da Universidade, parece lhes dar pistas de que não
deveriam ocupar estes lugares; há uma frequente sensação de que as coisas não lhes dizem
respeito, não lhes pertencem (Backes, 2006; Barbosa, 2004). Como consequência deste
violento funcionamento, afastam-se, abandonam o espaço. Fica evidente a necessidade que
estas/estes estudantes têm de busca pela afirmação de sua realidade; para que algumas formas
de ser possam existir, é preciso que seu espaço seja disputado, conquistado, afinal, o respeito
às suas histórias e a seus referenciais não é garantido através da vaga no vestibular.
Com vivências que parecem tão deslocadas do contexto que os cercam, os/as
depoentes relatam dificuldade de se integrar ao grupo dominante de estudantes. As relações
com alunos e alunas mais privilegiados/as parecem não fluir, suas histórias têm pouco a ver
com as deles/delas e os assuntos que surgem causam incômodo, humilham, indignam,
enraivecem. O despertencimento que se produz no cenário descrito não se opera apenas no
contexto universitário, entrevistadas e entrevistados descrevem um limbo social, um não-
lugar; não se enquadram no perfil de estudante uspiano e, ao mesmo tempo, não mais
partilham dos referenciais comuns aos ex-alunos de escola pública moradores de bairros
periféricos. Sentem-se como se não fossem nem daqui, nem dali, não sendo reconhecidos
66
como iguais em nenhum dos ambientes (Barbosa, 2004). A maioria de seus antigos/as colegas
de escola e amigos/as de longa data, que muitas vezes só puderam conhecer a USP na vida
adulta, tomaram rumos muito distantes da academia; são pedreiros, auxiliares de limpeza,
mães e pais, técnicos etc., embora muitos tenham conhecimentos escolares e habilidade
reflexiva equiparáveis aos dos estudantes universitários, não havendo nenhuma questão
educacional que justifique sua ausência no ensino superior. Já a maioria dos/das colegas do
IPUSP mora perto da universidade, não tem dificuldades para custear alimentação, moradia e
estudo, não depende das bolsas e auxílios da instituição, almeja a Universidade desde a
educação básica, tem vários colegas que ingressaram no ensino superior público e privado,
nunca trabalhou etc. As/os depoentes ressaltam também as diferenças de classe em relação a
história educacional e profissional de seu meio social. Creditam vantagens no
desenvolvimento da vida acadêmica à possibilidade dos grupos familiares mais privilegiados
de acessar o ensino superior; a inserção na universidade é mais fácil quando os membros do
núcleo familiar foram introduzidos às discussões, formas de fazer e à linguagem acadêmica
(Nogueira & Nogueira, 2005).
Apontam, então, que a estrutura da Universidade, seguindo a lógica descrita, não se
volta para o acolhimento de histórias como as deles/delas, não sendo função prioritária, nem
de seus órgãos de decisão e nem daqueles que criam o cotidiano com os alunos e as alunas, o
desenvolvimento de uma educação igualitária. A prova de ingresso, por exemplo, pretende-se
uma forma de selecionar candidatos que tenham os conhecimentos necessários ao ensino
superior, mas é utilizada como garantia da admissão de um certo tipo de aluno/a, com
determinados valores culturais, impedindo à grande maioria da população o acesso a esta
instituição (Araújo, 2012). As/os depoentes destacam também as inúmeras falhas na política
de permanência da USP, as quais originam vivências de desamparo e angústia, relatadas
principalmente pelo quarto entrevistado. Apontam como principais problemas a
desinformação e o despreparo dos/das assistentes sociais, a demora para que os auxílios e
bolsas sejam entregues e a insuficiência de recursos destinados a este propósito, que
atualmente faz com que muitos/as precisem abandonar a graduação. Os/as estudantes
mostram, assim, que o ensino superior não pode se constituir como um direito, tornando-se
um privilégio, quando as universidades não suprem as necessidades que a função de aluno
envolve em seus contextos educacionais. Aparecem como exemplos de dificuldades desta
ordem o acesso aos textos indicados em aula e a produção de trabalhos, já que a cota de
impressão garantida para cada aluno é muito menor do que seria necessário, os computadores
67
Referências
Araújo, L. R. (2012). Desafios e Dificuldades dos Jovens das Classes Populares no Ensino
Superior Público. Monografia de Licenciatura plena, Faculdade de Formação de Professores
da Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
Capozzolo, A. A., Casetto, S. J., Imbrizi, J. A., Henz, A. de O., Kinoshita, R. T. & Queiroz,
M. de F. F. (2014). Narrativas na formação comum de profissionais de saúde. Trab. Educ.
Saúde, 12(2), 443-456.
Sala de Imprensa - Universidade de São Paulo (2016, maio 25). Pró-Reitoria de Graduação
apresenta resultados do processo seletivo 2016. Recuperado de
http://www.usp.br/imprensa/?p=57700.
Você está sendo convidado/a para participar da pesquisa intitulada “Desigualdade no Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo - narrativas e análises de estudantes das classes menos
favorecidas”, sob a responsabilidade das pesquisadoras Paula Moreira Castellucci e Adriana
Marcondes Machado.
Você não terá nenhum gasto e ganho financeiro por participar na pesquisa. Não existem riscos
nem benefício na participação destas pesquisa.
Você é livre para retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização
alguma.
Uma via original deste Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ficará com você.
Qualquer dúvida a respeito da pesquisa, você poderá entrar em contato com: Paula Moreira
Castellucci (11) 975740790 ou Adriana Marcondes Machado (11) 996376595. Poderá também entrar
em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos - CEPH-IPUSP: Av. Prof. Mello
Moraes, 1.721 - Bloco G, 2º andar, sala 27 - CEP 05508-030 - Cidade Universitária-São Paulo/SP. E-
mail: ceph.ip@usp.br Telefone: (11) 3091-4182.
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_______________________________________________________________
Declaro que concordo em participar desse estudo. Recebi uma cópia deste termo de
consentimento livre e esclarecido e me foi dada a oportunidade de ler e esclarecer as minhas
dúvidas.
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Participante da pesquisa
- Como foi a sua história escolar, desde a educação básica até chegar na USP?
- Como foi chegar no IP com uma história como a sua? Quais impressões as relações dentro
Instituto produziram?
- Há momentos em que sua história não foi considerada na atitude de professores, alunos ou
funcionários?
- Sobre as dificuldades de ser aluno/a em um contexto elitista, quais situações chamaram mais
sua atenção durante a graduação, seja na relação com alunos, professores, funcionários, etc?
- Você poderia me contar sobre momentos onde identificou que desigualdades entre
estudantes do Instituto foram produzidas pelas existência de disparidades financeiras?
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- Como ocorre a reprodução das desigualdades sociais dentro do Instituto? Que pensamentos
surgem a partir destas situações?
- Você poderia me dar exemplos de opressões ou situações em que não se sentiu pertencente
ao grupo de alunos?
- E em relação à comunidade externa, como é estudar na USP? Como é sua relação a respeito
do tema com familiares, amigos, colegas de trabalho?
- Atualmente, você desempenha alguma atividade remunerada? Se sim, como foi o processo
de escolha dela?