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ATOS DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO - PPGE/ME FURB

ISSN 1809-0354 v. 8, n. 1, p. 8-29, jan/abr. 2013

ESCOLA E MÍDIA EM UMA PERSPECTIVA CRÍTICA:


AS CONTRIBUIÇÕES DE PIERRE BOURDIEU

SCHOOL AND MEDIA IN A CRITICAL PERSPECTIVE:


THE CONTRIBUTIONS OF PIERRE BOURDIEU

SOUZA, Juliano de
Universidade Federal do Paraná
julianoedf@yahoo.com.br

MEDEIROS, Cristina Carta Cardoso de


Universidade Federal do Paraná
cricaccm@gmail.com

MARCHI JÚNIOR, Wanderley


Universidade Federal do Paraná
marchijr@ufpr.br

RESUMO: A escola e a mídia, sem dúvida alguma, se apresentam como duas das
principais instâncias socializadoras dos agentes no mundo moderno. No presente
artigo temos por objetivo problematizar essas duas esferas de socialização do
conhecimento a partir de uma visão holística e integradora, apontando, sobretudo,
para as potencialidades analíticas que a teoria sociológica de Bourdieu oferece a
este debate e, quem sabe, indo um pouco além dela. Argumentamos em tom crítico
que esses dois campos sociais concorrem de maneira ímpar para a socialização
pedagógica dos agentes nas sociedades mais diferenciadas de nosso tempo. Longe,
no entanto, de serem instituições neutras, estas duas esferas sociais de produção e
difusão de conhecimento contribuem para que os agentes sejam inseridos em uma
ordem simbólica onde impera a naturalização das práticas e uma visão meritocrática
do mundo social e, sobretudo, do acesso que os agentes têm a este mesmo mundo.
Palavras-chave: Escola. Mídia. Socialização. Pierre Bourdieu.

ABSTRACT The school and the media, without any doubt, present themselves as
two of the main social instances of the modern world agents. In this paper we have
as an aim to analyze these two spheres of knowledge socialization from a holistic
perspective and integrative, pointing especially to the potential analytical sociological
theory of Bourdieu offers this debate and maybe going a little beyond it. We discuss
in a critical bias that those two social fields compete in a unique way to the
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pedagogical socialization of the agents in the most differentiated societies of our


time. However, far from being neutral institutions, these two social spheres of
production and diffusion of knowledge contributes for the insertion of the agents in a
symbolic order, in which rules the naturalization of the practices and a meritocratic
view of the social world and, above all, the access that the agents have to this world.
Keywords: School. Media. Socialization. Pierre Bourdieu.

1 INTRODUÇÃO

A vida em sociedade gera conhecimento ao mesmo tempo em que também é


influenciada e (re)conduzida por esse conhecimento que se (re)produz nas teias de
interdependências recíprocas. Em termos bastante genéricos, esse é o núcleo do
programa investigativo de Norbert Elias levado a cabo no campo da Sociologia do
Conhecimento (ELIAS, 1980; 2008) e este mesmo é o ponto de partida teórico que
fez emergir algumas das reflexões suscitadas ao longo deste texto. Essa premissa,
por sua vez, é central na crítica que direcionamos àquelas que talvez sejam as duas
principais instâncias modernas de difusão de conhecimento, mais precisamente, a
escola e a mídia, uma vez que nos possibilita pensar a produção do saber em uma
perspectiva holística, ou seja, de maneira a libertar o pensamento do reducionismo
que advêm da percepção de que o conhecimento decisivo no propósito de orientar a
vida moderna se restringe às experiências pedagógicas da escolarização.
Esse reducionismo conceitual, em parte, se deve ao fato dos seres humanos
que integram as sociedades mais diferenciadas de nosso tempo, as denominadas
sociedades científicas, estar condicionados a enxergar importância tão somente no
conhecimento que se socializa no âmbito escolar, até porque é este mesmo tipo de
conhecimento que definirá o sucesso ou insucesso dos indivíduos na competição
social e na luta por recursos escassos. Até certo ponto isso é verdade, muito embora
essa leitura passe a assumir conotações ideológicas na medida em que não esteja
atenta ao fato de que a socialização do conhecimento intra-escolar é influenciada
determinantemente pela socialização do conhecimento na esfera da família e, de
modo irrepreensível, pelo conhecimento que se vincula ao campo midiático.
No presente artigo, procuramos superar essa forma de leitura substancial e
superficial das dinâmicas de socialização que se constroem a partir da produção e
difusão do conhecimento na contemporaneidade e, ao invés disso, nos predispomos
a problematizar algumas das instâncias ou, melhor dizendo, alguns dos campos de
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veiculação simbólica e cultural que concorrem de maneira correlata para que os


processos de socialização dos sujeitos sejam possíveis nas sociedades complexas
dos dias de hoje. Entendemos, portanto, em conformidade com Setton (2002, p.
110), ser imprescindível direcionarmos nosso esforço interpretativo justamente “[...]
para a complexidade da prática socializadora da atualidade, enfatizando a rede de
tensão, a luta simbólica entre as várias instâncias educativas [...]”, de maneira que
seja possível, dentre uma série de outras análises que decorrem dessa perspectiva
de interpretação teórica, avançar-se no tratamento das ambiguidades e dos conflitos
inerentes a atuação da esfera escolar e, sobretudo, da mídia como configurações
socializadoras do conhecimento na modernidade.
Subjacente a essa proposta reside então o questionamento da dinâmica e
lógica interna de funcionamento desses dois espaços de socialização dos agentes –
campo escolar e campo midiático –, espaços esses que se fazem responsáveis
pelas formações dos seres humanos como agentes portadores de maior ou menor
grau de conhecimento quando senão do desconhecimento do mundo em que vivem.
O suporte para essa argumentação teórica resulta, sobretudo, da apropriação que
nos aprouve fazer do esquema teórico-conceitual de Pierre Bourdieu. Assim, se em
Elias buscamos fundamentos para superar as tendências de fragmentação dos
processos educativos, expressas, dentre outras coisas, na polarização “educação
formal” versus “educação informal”, em Bourdieu procuramos nos valer de sua
proposta de apreensão hermenêutica e crítico-reflexiva dos campos de produção
dos bens culturais e simbólicos de modo, portanto, a desnaturalizarmos a ação dos
agentes no interior desses espaços bem como as funções sociais a que se prestam
a escola e a mídia nas sociedades mais diferenciadas do nosso tempo.
Com vistas de levar adiante esse programa investigativo sugerido e, mais
que isso, aprofundar nessas hipóteses preliminarmente apontadas, nos aprouve
dividir o artigo em três partes. Na primeira parte do texto, temos por objetivo então
discutir em linhas bastante gerais o papel que Bourdieu atribui à escola no processo
de socialização dos agentes. Longe de ser uma instituição neutra, a escola contribui
para que a estrutura do campo do poder seja preservada e com ela os interesses
dos grupos dominantes. Na esteira dessa reflexão aberta, procuramos na segunda
parte do artigo ponderar as estratégias que movem o campo midiático no sentido de
inserir os agentes num sistema de (des)conhecimento do social onde as divisões e
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desigualdades são avaliadas sempre de forma naturalizada e acrítica. Por fim, na


terceira e última parte do artigo, trazemos a guisa de apontamentos finais algumas
sugestões e indicações para se pensar a relação entre a instituição escolar e a mídia
no processo de socialização dos agentes em uma interface crítica e reflexiva.

2 A ESCOLA REPRODUTORA DE DESIGUALDADES E A IDEOLOGIA DO DOM

Entre os anos 1960 e 1970, Pierre Bourdieu propôs uma sociologia científica
original centrada no desvelamento do papel exercido pela instituição escolar para a
legitimação da ordem dominante e, sobretudo, para a reprodução das desigualdades
sociais. Sintomático disso que estamos argumentando, foi a publicação do livro “Les
héritiers: les étudiants et la culture” (Os herdeiros: os estudantes e a cultura) em
parceira com Jean-Claude Passeron no ano de 1964. Na referida obra, que não teve
tradução para o português, os autores se propuseram a descrever os mecanismos e
processos pelos quais o sistema de ensino legitimava os privilégios sociais.
A partir de uma análise da representação desigual das camadas sociais no
ensino superior, Bourdieu e Passeron (1975) procuraram discutir a eliminação que
operava o sistema escolar, tanto no acesso à universidade, como também no interior
da instituição e mesmo na escolha da futura profissão desses agentes, já que os
estudantes que ingressavam no curso superior se viam obrigados a escolher áreas
que poderiam ser objetivamente frequentadas por sua posição social respectiva.
Assim, mesmo conseguindo entrar na universidade, mesmo escapando dessa
eliminação, os alunos teriam em comum apenas as práticas escolares, sem que se
pudesse concluir que eles teriam uma experiência idêntica e, sobretudo coletiva,
uma vez que lidariam com as desigualdades de informações sobre os estudos, com
a diferença na aptidão do manejo de instrumentos intelectuais e na interferência dos
modelos culturais associados a certas áreas de saber, bem como a adaptação das
regras e valores que regiam institucionalmente este universo escolar.
Essa foi uma resposta original, abrangente, com sólida fundamentação teórica
e lastro empírico, para o problema das desigualdades escolares, tornando-se um
marco na história da Sociologia da Educação, mas também do pensamento e da
prática educacional em todo mundo, já que predominava nas Ciências Sociais da
época uma visão otimista, de inspiração funcionalista que atribuía à escolarização
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um papel central e decisivo no processo de superação de problemas de ordem


político-econômica e na construção de uma nova sociedade (MEDEIROS; MARCHI
JÚNIOR, 2009). Nessa perspectiva, a escola surgiria então como uma instituição
social neutra, responsável por difundir um conhecimento declarado como racional e
objetivo (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002).
Contrariando, portanto, a ideia da escola enquanto espaço social democrático
e emancipador, o programa bourdieusiano para Sociologia da Educação buscava
demonstrar como que essa instituição concorria para legitimar as práticas sociais e
culturais caras às classes dominantes. Longe de equiparar os escolares, fornecendo
instrumentos que de forma marcante e de acordo com a necessidade, pudessem
garantir o sucesso escolar, e assim, uma mudança em sua situação social, a escola
reforçava a desigualdade, uma vez que não dava possibilidades reais para que o
aluno transpusesse os diversos obstáculos de ordem social e cultural.
Esses argumentos aparecem reiterados e redimensionados num segundo
livro que Bourdieu e Passeron vieram a dedicar à Sociologia da Educação, com o
título de “La Reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement”
(A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino). 1 Cabe lembrarmos
que esse livro foi publicado pela primeira vez no ano de 1970 e nele os autores se
propuseram a ratificar a noção defendida de que o sistema de ensino contribuía para
a reprodução das desigualdades sociais e culturais e para a conservação da ordem
socialmente estabelecida (BOURDIEU; PASSERON, 1973).
Nesses dois livros mencionados, os autores se propõem então a pensar na
escola como um campo que possui uma doxa específica, ou seja, um conjunto de
pressupostos cognitivos e valorativos, cuja aceitação é imposta aos agentes que
pertencem a esse campo. No caso do campo escolar, essa aceitação é estratégica e
o novo postulante faz uma tentativa de compatibilizar seu habitus primário2 através
da busca de um reconhecimento socialmente qualificado, num processo altamente
carregado de afetividade e pelo qual o aluno admite renúncia e sacrifícios em troca
de provas de reconhecimento, de consideração ou admiração.

1
É importante lembrarmos que este livro foi lançado no Brasil em 1975 pela editora carioca Francisco
Alves, com o título “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”.
2
Colocado de forma sucinta, o habitus primário trata-se daquelas disposições para pensar e agir que
são herdadas pelos indivíduos durante a primeira infância e a adolescência no seio da família em que
crescem. Isso, por sua vez, pressupõe uma relação com a situação de classe dos agentes.
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Essa estratégia dos novos postulantes para entrar no campo pode contribuir
para explicar as relações que ocorrem na escola, mesmo com os alunos que iniciam
o primeiro ano do ensino fundamental, e que não derivam essencialmente de
disposições disciplinares, ou seja, as crianças se ajustam e aceitam determinadas
normas escolares por buscarem reconhecimento, mesmo que estas se mostrem
incompatíveis com suas necessidades, principalmente quando se trata da demanda
de movimentação corporal em crianças da faixa etária em questão, limitada em prol
da incorporação de disposições que caracterizam o processo de escolarização e que
abrangem determinações de espaço, tempo e de práticas presentes na escola.
Esse tipo de leitura sugerida é instigante para o propósito de se desvelar o
papel social da escola na concepção sociológica de Bourdieu e, por indução, nos
remete a um dos principais conceitos operacionais mobilizados pelo autor para este
desiderato. Trata-se do conceito de habitus, definido como um esquema de ação e
avaliação internalizado que permite compreender a reprodução da ordem social e as
possibilidades simbólicas de luta social a partir da não mecanização da relação entre
as disposições e as estruturas e, sim, a tendência de reproduzir a lógica objetiva de
algo encarnado, somatizado no corpo como um senso prático, mas que também
conta com um potencial gerador de práticas e de percepção das práticas. Isso, por
sua vez, implica em dizer que as práticas e representações não são nem totalmente
determinadas nem totalmente livres, o que demonstra uma economia das práticas,
ou seja, uma razão que emana das práticas que não têm origem nem em um cálculo
explícito, nem em determinações exteriores aos agentes, mas em seus habitus.
Sendo resultado, portanto, de uma posição e de uma trajetória social dos
indivíduos, o habitus é produzido a partir das aquisições referentes a determinado
pertencimento social e constituído de disposições compostas de forma primária e
adquiridas no seio familiar ao longo da infância e adolescência. Essas disposições
mais precoces, duráveis e decisivas servirão de base e referência para disposições
que forem posteriormente assimiladas, pois condicionam a aquisição ulterior de
novas disposições, como, por exemplo, a aquisição do habitus escolar.
Nesse sentido, Bourdieu e Passeron (1973; 1975), chamam atenção para o
fato de que as disputas no campo escolar no tocante ao êxito e sucesso dos alunos
decorrentes da formação de um habitus escolar compatível com as demandas deste
espaço, são injustas, uma vez que o habitus cultivado na família se ergue como um
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dos fatores mais decisivos para o aprendizado e, por conseguinte, para o sucesso
ou insucesso dos alunos nesse sistema. Logo, é possível afirmar que por mais que a
escola tente oportunizar as mesmas condições de acesso ao conhecimento para
todos os alunos ou ainda que procure reivindicar para si uma imagem de instituição
neutra, isso não passa de embuste, pois ao se valer aparentemente das mesmas
regras para indivíduos que “largam” de pontos de partida sociais, emocionais e
morais muitíssimo diferentes, essa instituição apenas reforça os privilégios trazidos
de berço pelos alunos advindos das classes dominantes.
Concomitantemente a essa influência do habitus primário ou, melhor dizendo,
do habitus familiar nas chances de sucesso que os alunos terão ou não durante
suas trajetórias escolares, atua a posse de um maior ou menor volume de capital
cultural herdado, dentre outros locus sociais, também no âmbito da família. O capital
cultural, para Bourdieu, se refere a um tipo de capital simbólico caracterizado como
um conjunto de qualificações intelectuais que pode ser percebido em princípios de
classificação e divisão que permite a seu possuidor obter vantagens ou “lucros”
sociais. Tem homologia com o capital econômico propriamente dito e pode se
apresentar na forma objetivada, ou seja, enquanto bens culturais; institucionalizada,
como títulos e certificados escolares e na forma incorporada, sendo esse seu estado
uma condição que pressupõe uma incorporação que demanda inculcação e também
assimilação, isto é, um “ter que se tornou ser” (BOURDIEU, 1998a, p. 74).
O capital cultural mais rentável na vida escolar é constituído, entre outros
aspectos, por uma facilidade verbal e por uma cultura adquirida em experiências
extraescolares, ou seja, a chamada cultura livre, que inclui diferentes saberes e
gostos que se tornam condições implícitas de êxito escolar. Percebe-se assim que o
capital cultural adquirido no ambiente familiar pode ser encarado como uma herança
cultural que definirá as atitudes tomadas diante do capital cultural que se encontra
na instituição escolar e será responsável pelas diferenças dos alunos diante da
experiência escolar. Ao analisar as principais questões que envolvem a constituição
de relações sociais perenes no campo escolar e universitário, Bourdieu classifica o
processo de herança cultural como sendo a manifestação mais perversa do que
pode constituir-se no combatido processo de reprodução das leis sociais.
Destacando o conceito de capital cultural, compreende-se então que se pode
pensar em uma “ordem de sucessão”, no “efeito de destino”, em uma “pedagogia da
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não-pedagogia” e na ação pedagógica como uma violência simbólica que, a partir de


um arbitrário cultural composto nos atos que a educação escolar automatiza, impõe,
por relações de poder, uma cultura dominante e uma forma de dominação própria do
campo escolar (BOURDIEU, 1998b; 2001; 2002a; 2002b; 2003). Para o sociólogo
francês explicar-se-ia a manutenção de determinada ordem social pela valorização
de uma cultura que não seria a transmitida pela escola.
Valorizando somente essa cultura livre ou a cultura herdada dos indivíduos
das classes favorecidas, a escola não valoriza adequadamente a cultura que ela
própria, na relativa autonomia que lhe é imputada, deveria transmitir. A cultura
escolar, não seria então uma cultura parcial ou uma parte da cultura, seria sim, uma
cultura inferior. Os elementos que a compõem, não têm o sentido que teriam em um
conjunto mais amplo. Isso se prova quando é percebido que os indivíduos de origem
social classificada objetivamente como inferior e que só adquirem a cultura escolar
em uma aprendizagem de renúncia de sua própria cultura, em um processo de
aculturação, são inferiorizados diante da exaltação da cultura dos herdeiros.
Os desfavorecidos desse tipo particular de capital cultural estarão sujeitos aos
julgamentos classificadores que estigmatizam e, em última instância, enquadram os
indivíduos em situações desfavoráveis, contribuindo para (re)produzir os destinos
anunciados de fracasso. Na condição, portanto, de princípio de hierarquização e de
avaliação de eficácia simbólica, os veredictos escolares, além de constituírem a
identidade do indivíduo, se impõem como absolutos universais e eternos.
Explica-se assim por que a escola está tão frequentemente associada com a
origem do sofrimento de pessoas que são interrogadas em pesquisas e que se
mostram decepcionadas com seu próprio projeto ou com os projetos que haviam
feito para seus descendentes ou então decepcionados por aqueles desmentidos,
promessas ou garantias da escola, ficando clara a contradição social que, segundo
Bourdieu e Passeron (1973), permeia este espaço, a saber, o fato de que o aluno
que adentra no mundo escolar com o objetivo de ascender a um determinado tipo de
conhecimento e cultura, com frequência, se deparar com professores e, sobretudo,
com um veredicto escolar que atua levado em conta sua origem social, reforçando,
de forma inconsciente, este pertencimento familiar, já que a prática pedagógica se
marcará justamente na indiferença às desigualdades sociais.
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Posto nesses exatos termos, o sistema escolar protege os privilégios e não a


transmissão aberta dos privilégios. Portanto, por mais que se esforce ou se acredite,
a ideia economicista de “investimento” no processo educacional, fundamentalmente
direcionado ao período de escolarização, invariavelmente tende a não alcançar os
resultados pré-determinados pelos seus investidores. Dito de outra forma, não será
a reserva de capital econômico da classe média, investida “nos estudos dos seus
filhos”, que irá garantir a ascensão social desejada ou ainda a inserção planejada
nos diferentes âmbitos das estruturas e das relações sociais, mas, ao invés disso, a
conduta motivacional e cultural que se herda no seio da família.
Isto pode ser atestado, dentre outras situações bastante incisivas, quando se
considera que, mesmo que a instituição escolar a partir de políticas educacionais
tenha propiciado a oportunidade de acesso a muitas crianças e jovens que até então
eram dela excluídos, os que já tinham acesso à escola, em uma condição social e
cultural mais elevada, começaram a investir mais em sua educação em termos de
títulos acadêmicos, não havendo, portanto, transformações importantes no quadro
de legitimação. O que acontece agora é que passa a entrar em vigor a ideologia do
dom, ou seja, a ideologia que afirma que as desigualdades de sucesso escolar, e
consequentemente de ascensão às classes sociais superiores, acontecem devido a
uma desigualdade de aptidão inata (BOURDIEU, 1987; 2002b).
A ideologia do dom é, portanto, uma ideologia meritocrática que determina
que, se o indivíduo não tem talento, a escola, mesmo dando as mesmas condições
para todos, nada pode fazer. A hierarquia escolar torna-se uma hierarquia social
velada e permeada pela hierarquia do dom, meio pelo qual a escola naturaliza o
social, transformando desigualdades sociais em desigualdades de competência.
Essa neutralidade em relação ao fracasso escolar em que se colocam a escola e os
professores reforça a legitimidade das classes dominantes e a exclusão das classes
dominadas que possuem um acesso desigual ao capital simbólico.
Como síntese do que até aqui então procuramos argumentar, é permissível
dizer que o núcleo da reflexão de Bourdieu ao direcionar seu olhar para a escola,
consiste basicamente em descrever os mecanismos e leis de reprodução social que
se reiteram nesse locus social, em realizar análises qualitativas das disposições lá
encontradas e interrogar-se sobre os processos que qualificam a herança cultural e
o dom social como dom natural e que, desrespeitando a posição central, em termos
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de importância, conferida à instituição escolar na sociedade, resultam em algo tão


paradoxal e naturalizado quanto à reprodução e os usos diferenciados da instituição
pelas diferentes classes sociais. Nas páginas que seguem passamos, por sua vez, a
discorrer sobre algumas das tensões e ambiguidades estruturais que percorrem todo
o processo de socialização de conhecimento que o campo de produção midiática
anima no contexto da chamada cultura de massas.

3 O CAMPO MIDIÁTICO E O DESCONHECIMENTO DO MUNDO SOCIAL

A despeito daquilo que lhe aprouve fazer com a delimitação e apreensão do


campo educacional tal como levado a efeito nos anos 1960 e 1970, Bourdieu em seu
programa investigativo sobre o campo midiático, projeto esse expresso, sobretudo,
na publicação de seu best seller “Sobre a televisão” em 1997, também procurou
questionar os mecanismos de dominação simbólica vinculados neste espaço por via
de estratégias fundadas no desconhecimento das relações sociais e informacionais
que se engendram neste lócus. Ao contrário, no entanto, do que muitos pensam
Bourdieu não apresenta uma análise pessimista do campo midiático, mas fornece
uma série de elementos teóricos que permitem àqueles profissionais que concorrem
no interior deste espaço e, de resto, aos demais produtores culturais, pensar e fazer
com que esse potencial instrumento de democracia direta não se converta em um
instrumento de opressão simbólica (BOURDIEU, 1997, p. 13).
A leitura que Bourdieu fez do subcampo da televisão no interior do campo de
produção midiática ou, mais precisamente, do campo jornalístico causou espanto e
uma sensação indigesta nos produtores culturais que se depararam com esse texto,
justamente porque essa obra revela que os especialistas culturais que concorrem
profissionalmente neste campo social são tanto manipuladores quanto eles mesmos
manipulados. Nas palavras desconcertantes de Bourdieu: “manipulam mesmo tanto
melhor, bem frequentemente, quanto mais manipulados são eles próprios e mais
inconscientes de sê-lo” (BOURDIEU, 1997, p. 21). Nesse caso, o que está em tela
na análise de Bourdieu acerca da televisão e, de forma mais ampla, a respeito do
campo jornalístico são menos os componentes racionais da ação e mais aqueles
aspectos irrefletidos, naturalizados e, por isso mesmo, com muito mais eficácia no
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propósito de se garantir e preservar da maneira mais intacta possível essa ordem


simbólica fundada na perpetuação da injustiça e da desigualdade.
A tese que Bourdieu desenvolve ao longo deste livro é bastante original e
consiste basicamente na argumentação de que o campo midiático, em especial a
partir do momento que a televisão se tornou um veículo dominante neste espaço e,
portanto, imprimiu no interior do mesmo uma nova lógica de relações, funciona à
base das influências exercidas pelo campo econômico e, além disso, impõe uma
visão particular dos demais campos de produção dos bens culturais e, sobretudo,
das lutas que se travam no interior do campo político. Dito de outro modo, trata-se
de um campo pouco autônomo, isto é, muito mais dependente das forças externas
que todos os outros campos de produção cultural (BOURDIEU, 1997, p. 76) e, acima
de tudo, de um espaço que impõe a realidade em outros campos “[...] afetando o
que aí se faz e o que aí se produz e exercendo efeitos muitos semelhantes nesses
universos fenomenicamente muito diferentes” (BOURDIEU, 1997, p. 101).
O núcleo de todo o argumento de Bourdieu no tocante ao entendimento do
campo midiático reside na constatação de que às relações que se constroem neste
espaço são reguladas em função do índice de audiência. O índice de audiência, por
sua vez, indica que o que se produz no interior deste campo obedece às demandas
do mercado de modo que a própria deontologia jornalística é afetada quando senão
se desfaz, uma vez que o que é de valor comercial passa a se sobrepor ao que seria
de valor puro no campo, ou seja, a produção de uma informação e programação
voltada para o desenvolvimento de um olhar crítico por parte dos consumidores. Ao
invés disso, o que vemos circular tanto nas primeiras páginas dos jornais impressos,
das revistas e dos semanários culturais, quanto em uma parcela considerável da
programação televisiva são notícias de variedades e de entretenimento, matérias
sobre catástrofes naturais ou então sobre crimes aptos a mobilizar a opinião pública.
O índice de audiência como elemento estruturante das relações no campo
midiático se deve muito particularmente a entrada da televisão neste lócus por volta
dos anos 1960. Não obstante esse fato é importante ressaltar que no contexto da
sociedade de consumo e da cultura de massas o chamado índice de audiência tem
sido constantemente ressignificado e, em particular, por conta da difusão da internet
para todas as direções sociais a partir do final dos anos 1990. As novas tecnologias
que emergem com uma velocidade tamanha também afetam o índice de audiência
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no campo midiático. É preciso permitir ao consumidor interagir, fazer com que ele se
sinta um agente ativo nos processos comunicativos independentemente do lugar
social onde se encontra. Se antes a informação acessibilizada pela televisão e pelos
jornais era reservada aos momentos de lazer ou aos horários de almoço, atualmente
o indivíduo pode ter acesso aos fatos sociais por via de celulares enquanto trabalha
ou se desloca para o serviço através dos metrôs das grandes cidades.
De fato, o avanço da tecnologia informacional permite que os indivíduos se
insiram nos processos comunicativos com uma maior intensidade e no momento em
que bem entendam ou queiram. Essa ruptura, por conseguinte, não se contrapõe à
leitura que Bourdieu fez do campo jornalístico, mas reforça essa leitura na medida
em que aponta que uma nova dinamicidade de processos foi posta em prática por
conta do desenvolvimento da tecnologia e da cultura da internet, sem, no entanto,
abrir mão dos ortodoxos mecanismos estruturais de funcionamento deste lócus tais
como desvelados por Bourdieu (1997). Ampliam-se assim os espectros de inserção
dos agentes na cultura informacional oferecida pela mídia e pelas novas tecnologias,
mas os efeitos de socialização dos agentes nas dinâmicas comunicacionais pela
qual se produzem e se atualizam as visões de mundo mantêm-se os mesmos.
Decorre, nesse particular, a necessidade então de situarmos aqueles efeitos
sociais de construção da realidade social que Bourdieu atribui ao campo midiático
através do desvelamento de sua dinâmica interna de funcionamento bem como do
processo de socialização dos agentes que denota, dentre outras coisas, a formação
de uma série de consensos irrefletidos representados na figura da denominada
opinião pública. Isso, por conseguinte, implica em admitirmos em diálogo com o
autor francês (1997, p. 29) que a televisão em particular e o jornalismo impresso em
geral não se apresentam como meros instrumentos de registro do mundo social,
mas, ao invés disso, se constituem em dois poderosos instrumentos de construção
daquilo a que com frequência damos o nome de realidade.
Um dos principais desdobramentos da análise bourdieusiana na esteira dessa
interpretação sugerida consiste justamente em demonstrar que o campo jornalístico
vencido pela lógica do mercado e pelo índice de audiência se presta ao exercício ou,
melhor dizendo, se põe ao serviço da circulação circular da informação. Em uma
aproximação crítica e inventiva com o conceito frankfurtiano de indústria cultural,
Bourdieu chama atenção para o fato de que o campo midiático opera através de um
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potencial nivelamento cultural, visto que a variedade de notícias e de informações


que oferta é, em medida significativa, sempre a mesma apesar da concorrência que
se estabelece entre os vários veículos de informação que se posicionam no espaço
da mídia. Em suma, pratica-se muito bem a arte de se ofertar o mesmo com uma
roupagem nova e por um ângulo que ainda não foi devidamente explorado pelos
concorrentes no campo. Além disso, parte considerável do trabalho dos jornalistas
se resume ao ato de ler os outros jornais de modo que essas pessoas carregadas
de nos informar são informadas por outros informantes (BOURDIEU, 1997, p. 35).
Se não bastasse essa circulação circular da informação, contrabalanceada
por vezes pela busca do furo3, o campo jornalístico ainda procura veicular e vincular
em suas programações uma série de fatos triviais, banais e sensacionalistas, mas
que se fazem sucesso é porque, em alguma medida, já estão interiorizadas nos
agentes os esquemas de percepção e avaliação da ação que condizem com a
estrutura das variedades culturais e informacionais que o campo midiático oferta.
Vejamos nas palavras do próprio Bourdieu como se dimensiona essa leitura:

Uma parte da ação simbólica da televisão, no plano das informações, por


exemplo, consiste em atrair a atenção para fatos que são de natureza a
interessar todo mundo, dos quais se pode dizer que são omnibus – isto é,
para todos. Os fatos-ônibus são fatos que, como se diz, não devem chocar
ninguém, que não envolvem disputa, que não dividem, que formam
consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não
tocam em nada de importante. As notícias de variedades consistem nessa
espécie elementar, rudimentar, da informação que é muito importante
porque interessa a todo mundo sem ter consequências e porque ocupa
tempo, tempo que poderia ser empregado para dizer outra coisa. Ora, o
tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos
são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis
são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas
(BOURDIEU, 1997, p. 23).

Eis, portanto, a principal função da televisão e de resto de todos os veículos


midiáticos: mostrar algumas coisas na medida em que ocultam outras; preencher o
tempo dos consumidores com fatos que produzem consenso e inseri-los e integrá-
los, deste modo, em um esquema de socialização, por assim dizer, despolitizado.
Promove-se dessa forma, mas sem que os consumidores e os produtores das ideias
midiáticas tenham profunda consciência desses efeitos, aquilo que poderíamos

3
Colocado em termos bastante práticos, o furo diz respeito ao fato de um veículo midiático conseguir
apurar e rastrear uma informação antes de seus concorrentes no campo e, deste modo, acessibilizar
esta mesma informação com exclusividade para os espectadores ou leitores.
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chamar de um desconhecimento do mundo social, uma vez que a dialética entre o


que, por um lado, se oferta e, por outro, se consome no interior do campo midiático
se demonstra carente de conteúdo crítico e emancipador, além de estar voltada para
fatos esvaziados de conteúdo político e filosófico.
Importante frisar que Bourdieu (1997) não aborda a recepção do conteúdo e
da mensagem midiática ao modo como fizeram Adorno e Horkheimer (1985), ou
seja, tratando deste fenômeno de forma tendencialmente monolítica e, acima de
tudo, desconsiderando a dinamicidade dos agentes diante do uso que fazem dos
produtos e bens midiáticos. O mais correto a afirmar segundo Setton (2001) é que
Bourdieu no tocante ao entendimento do campo midiático parte das teorizações de
Adorno e Horkheimer sobre a indústria cultural, mas assim como o faz Edgar Morin,
não entende que a cultura de massas seja fruto de uma apropriação homogênea
derivada da obediência irrestrita dos agentes. Há, sem a menor sombra de dúvidas,
um caráter diretivo no conteúdo midiático, mas também há espaço para uma série
de apropriações distintas que, no caso da arquitetura teórico-conceitual de Bourdieu,
são entendidas pelo prisma do acesso diferencial dos indivíduos as mais variadas
espécies de capital, em particular ao capital cultural e econômico.
De modo mais preciso, é permissível afirmar que o volume de capital cultural
e econômico que os agentes possuem é o que, em última instância, irá definir suas
predileções por este ou por aquele veículo de comunicação, por este ou por aquele
jornal. Para termos uma dimensão exata dessa conjectura tecida, basta revisitar
aquele que talvez seja o principal estudo de Bourdieu documentado empiricamente,
qual seja, o livro “A Distinção” (BOURDIEU, 2008). Nesse texto, Bourdieu procura
demonstrar como que a partir de consensos irrefletidos vão sendo construídas as
homologias entre o consumo cultural e o habitus de classe tendo como moeda
invisível aquilo que viria a ser por ele denominado de gosto de classe. No caso do
campo jornalístico francês, por exemplo, Bourdieu pondera que a circulação do
jornal Le Monde está associada à posse de um maior volume de capital cultural do
que econômico por parte de seus clientes ao passo que a circulação do jornal Le
Figaro indica justamente o contrário (BOURDIEU, 2008, p. 423).
Esse exemplo é interessante e suficiente para demonstrar que uma série de
aspectos intervém na escolha e mesmo no consumo e nas formas de leitura que os
agentes farão dos produtos e das mensagens midiáticas. Nesse caso, a produção
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midiática nos mais variados veículos de comunicação, embora privilegie as mesmas


variedades culturais e os “fatos-ônibus” não atinge a todos homogeneamente, até
porque tanto o espaço da produção quanto o espaço da recepção da informação se
articulam segundo ideologias políticas específicas e, por vezes, antagônicas. Isso,
por sua vez, coloca em evidência o fato de que uma parte considerável do que se
oferta no campo midiático é apropriada segundo as exigências culturais de cada
uma das classes no sentido com esse termo é evocado nos trabalhos de Bourdieu.
Não obstante essa lei de reprodução social dos bens informacionais tal como
trazida à tona, é imprescindível levar-se em conta que em alguns aspectos o campo
midiático opera através de estratégias de nivelamento, sobretudo, em se tratando da
socialização dos agentes em uma visão de mundo meritocrática. Até certo ponto
isso é compreensível, afinal a lógica meritocrática é a ideologia que rege o mundo
moderno e perpassa todos os campos e esferas de produção cultural, inclusive, o
campo científico. Todavia, uma maior autonomia no interior desses espaços poderia
fazer emergir esse problema, pois se o “toma lá da cá” da ideologia meritocrática
que o campo midiático – não podemos esquecer também do papel desempenhado
pela escola nesse processo – ajuda a difundir para todas as direções sociais através
das mensagens impressas dos produtos e bens que vincula (filmes, novelas, jornais,
revistas, desenhos etc.) no tempo que lhe é destinado, seria no mínimo justo que se
observasse que nem todos os agentes sociais largam do mesmo ponto de partida na
“corrida meritocrática” estruturada no mundo capitalista.
Ao invés disso, no entanto, os meios de comunicação corroboram para que
essa lógica da meritocracia seja travestida de uma aura democrática, como se todos
os indivíduos estivessem suficientemente preparados do ponto de vista emocional,
moral, cultural e existencial para a competição social e para a luta pelos recursos
escassos. É isso, inclusive, que a maioria dos enredos dos programas de variedade
cultural que os meios de comunicação difundem tende a aludir. Igualmente, portanto,
à escola que ao invés de atentar para essa ambiguidade estrutural e estruturante se
contenta – ainda que os agentes que se movimentam em seu interior não o saibam
plenamente disso – em mascarar o processo de produção diferenciada dos seres
humanos através da ideologia do dom, a mídia tende também, e dentro, é claro, da
especificidade de sua atuação pedagógica, a fazer com que essa ordem simbólica
repleta de desigualdades passe por uma ordem natural das coisas.
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Vale a pena frisarmos que um dos caminhos pelo qual o campo midiático
impõe este estado de coisas naturalizado aos agentes pertencentes às mais
diferentes classes e grupos sociais se concretiza a partir da formação da chamada
opinião pública. A esse respeito, é importante ser ressaltado que quando Bourdieu
(1981), diz provocativamente que a opinião pública não existe, na verdade, o autor
está procurando chamar atenção para o fato de que uma visão de mundo autônoma
que o próprio termo opinião pública se propõe a evocar não existe em estado puro,
uma vez que os grandes consensos são sempre o trabalho de um investimento
pedagógico representado, dentre outras coisas, nas pesquisas de sondagem que já
impõe aos agentes as respostas que esperam obter.
Ao seu modo, a mídia também investe na formação da denominada opinião
pública. É consenso, por exemplo, em países periféricos como o Brasil a ideia de
que quem estudou mais tenha os melhores empregos e salários, que cada indivíduo,
independentemente da classe que pertence – na acepção sociocultural deste termo
– tenha por retorno justamente aquilo que cativou ou fez por merecer ao longo de
sua vida (SOUZA, 2011). Óbvio que esta ideologia consensual que a mídia alude,
até mesmo pelo fato dos próprios produtores midiáticos crerem que se estão na
posição de dizer algo aos demais é por conta de seu merecimento, se aplica bem a
qualquer sociedade moderna. Todavia, em sociedades periféricas como a brasileira
os desdobramentos desta visão meritocrática cega à produção diferencial de seres
humanos para a competição social predatória, terá consequências profundas em
nosso país, uma vez que, objetivamente falando, a distância entre a classe dos
vencedores e a classe dos perdedores parece, por vezes, intransponível.
A mídia tem o seu devido papel nessa socialização meritocrática dos agentes.
As novelas, jornais, filmes, programas esportivos etc. reportam, não raras vezes, a
essa estruturação meritocrática do mundo. O serviço, entretanto, que esses veículos
de informação prestam são parciais e ideológicos, uma vez que se naturaliza de
forma transclassista a visão meritocrática da competição social, mas não se atenta
para a condição de que nem todos os indivíduos têm acesso ao mesmo volume de
capital cultural e econômico e, acima de tudo, a uma economia emocional que lhes
permita se inserir segundo o modelo de conduta competitiva que o mercado e o
Estado moderno tanto necessitam para sua reprodução cotidiana (SOUZA, 2011).
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A propósito, vários dos produtos culturais divulgados na mídia impressa e


televisionada poderiam ser examinados com o intuito de se demonstrar que suas
mensagens, por um lado, aludem a essa estruturação meritocrática do mundo social
e, por outro, produzem o desconhecimento dessa estrutura de produção diferencial
dos seres humanos segundo a classe social e, sobretudo, segundo a família em que
nasceram. Essa socialização que os meios de comunicação oferecem em forma de
entretenimento, produz efeitos específicos nas diferentes classes. Nas classes que
detém capital econômico e cultural, por exemplo, as pessoas que não atingem um
determinado patamar de sucesso na vida social vão ser analisadas, com frequência,
e pelo jugo de avaliações heterônomas, como marginais. Já nas classes excluídas
do acúmulo de capital econômico e cultural, esse retrato midiatizado da “vida social
meritocrática” apenas vai reforçar a auto-imagem que conservam de si próprios. Em
ambos os casos, no entanto, se reproduz a eficaz estratégia de culpabilização da
vítima, fazendo passar por individual um problema construído coletivamente.
Claro que o campo de produção midiática não concorre de maneira isolada
para a construção e para preservação dessa ordem simbólica. Na verdade, o campo
jornalístico como esfera socializadora dos agentes, com particular poder simbólico
exercido durante a formação dos indivíduos na primeira infância e na adolescência,
apenas faz repercutir sob tom cultural e de entretenimento ideias que já estão postas
no mundo social e já são aceitas pela maioria das pessoas (BOURDIEU, 1997). É
preciso, nesse caso, tomar cuidado para não fazer o campo midiático passar por um
meta-campo social como algumas análises reificantes supõem. O campo midiático
como instância pedagógica que socializa os indivíduos desde a mais tenra idade no
sistema de conhecimento e desconhecimento do mundo, não atua isoladamente,
mas requer da cumplicidade de outras esferas, em especial da escola, conforme
iremos argumentar a guisa de conclusão nas páginas que seguem.

4 APONTAMENTOS FINAIS: PARA UMA LEITURA CRÍTICA DAS INTERFACES


ENTRE ESCOLA E MÍDIA

A procura por uma visão integrada e alargada da vida humana é vantajosa


para pensarmos a produção dos agentes e sua socialização no mundo moderno.
Como vimos ao longo do texto, a escola e a mídia, como esferas interdependentes
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na produção dos esquemas de socialização de agentes com maior ou menor grau


de conhecimento do mundo em que vivem (SETTON, 2002), atuam de maneira
correlacional e com contribuições recíprocas no processo de produção dos sujeitos
pensantes, ainda que carentes de reflexão crítica e afinados, portanto, com o estado
de consciência naturalizado das sociedades complexas dos tempos de hoje. Mas de
qualquer forma, e independentemente mesmo da qualidade e autonomia com que se
produzem os indivíduos pensantes, o fato é que cada vez mais se apresenta como
inadequado retomar o conhecimento que faz e organiza a vida dos agentes a partir
de polarizações convencionais desgastadas, da qual o exemplo mais clássico seria
a retomada da “educação formal” em contraponto à “educação informal”.
Contrários a essas polarizações com função mais ou menos classificatória e,
talvez, de preservar a erudição que “se cultiva” no ambiente escolar, argumentamos
no presente artigo que a produção do conhecimento ou, melhor dizendo, de sujeitos
portadores de conhecimento, se dá a partir da mobilização conjunta de vários níveis
e instâncias pedagógicas. Neste texto, nos limitamos em retomar aquelas esferas
que julgamos serem as mais decisivas no propósito de se produzir e se difundir
conhecimento necessário para uma integração (seja ela potencial ou precária) dos
indivíduos na dinâmica configuracional que estrutura os vínculos interpessoais na
sociedade moderna. É necessário, todavia, ampliar esse espectro investigativo e
contemplar uma variedade de outras instâncias que concorrem nesse processo,
dentre as quais se destacam a religião, o esporte e, em particular, a família, tendo
essa última variável sido no mínimo considerada na discussão que aqui realizamos.
No tocante às relações e aproximações que se tangenciam entre a instituição
escolar e o campo midiático na produção de conhecimento e no intuito de socializar
os agentes nas teias de interdependências recíprocas, apontamos que se faz de
suma urgência se desenvolver uma agenda de pesquisas suficientemente crítica aos
mecanismos de reprodução simbólica que a escola e a mídia vinculam, cada qual ao
seu modo, através de suas estratégias particulares de funcionamento e dos efeitos
imperceptíveis das mensagens contidas nos produtos culturais e nos conteúdos que
acessibilizam aos sujeitos das diferentes classes sociais e idades. As dificuldades de
implementação de uma agenda de pesquisa atenta a esse quadro, explicam-se, em
parte, pelo predomínio de uma visão excessivamente otimista da interface operada
entre educação e mídia, enfatizando, sobretudo, o papel dos recursos midiáticos na
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otimização das estratégias de ensino, o que, por conseguinte, de maneira alguma


negamos, mas apenas relativizamos com vistas de demonstrar que há dominação
permeando essas trocas aparentemente neutras e salutares.
Preocupados então com o desvelamento crítico e reflexivo desses arranjos,
tivemos a oportunidade neste artigo de discutir com base nos constructos teórico-
conceituais de Pierre Bourdieu no campo da Sociologia da Educação que aquilo que
entendemos como sucesso e fracasso escolar já vêm, em medida significativa,
determinados do berço (origem familiar e habitus de classe) e que a escola, por sua
vez, apenas legitima e naturaliza essas condições de desempenho partir de seu
investimento pedagógico e da ideologia do dom. Procuramos, além disso, situar e
argumentar que a mídia a partir de sua estrutura invisível de funcionamento e de
seus programas de variedades – os fatos-ônibus – acaba por reforçar a ideologia
meritocrática que a escola adota como princípio antipedagógico de seu raio de ação,
justificando, esta ambiguidade que lhe é característica por intermédio da ideologia
do dom nato concedido aos agentes como um verdadeiro “presente dos céus”.
Cientes dos limites de nossa argumentação e da necessidade de se levar a
diante uma série de investigações empíricas a partir dessas premissas e hipóteses
articuladas, concluímos que o campo escolar e o campo midiático são dois grandes
aliados na socialização dos agentes em uma dinâmica de conhecimento que se
apresenta de forma naturalizada aos olhos tanto dos produtores culturais quanto dos
consumidores. É importante, além disso, admitir-se que onde as práticas sociais se
apresentam frequentemente naturalizadas, aí está a atuar um poderoso sistema de
desconhecimento do próprio mundo que abriga essas práticas e tem como principal
mecanismo impor e fundar uma ordem de dominação simbólica sob a roupagem de
uma arbitrariedade cultural apresentada como natural.
Revelados estes fundamentos ocultos de dominação que o campo escolar e o
campo midiático concorrem de maneira articulada, porém não plenamente refletida e
racionalizada para garantir a eficácia da ordem simbólica que governa e rege o
mundo moderno, cabe a nós pesquisadores que se atêm a investigar a realidade
social em seus diferentes e integrados níveis, a fazer um uso clínico e não cínico do
conhecimento científico que nos compete produzir acerca das mais distintas esferas
que compõe e organizam o mundo social. Como diria Bourdieu em uma de suas
fórmulas clássicas, não podemos usar do conhecimento das leis do meio para tornar
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suas estratégias mais eficazes do que já o são e, ao invés disso, devemos nos servir
desse mesmo conhecimento das leis e tendências do jogo que se joga nos campos
de produção cultural para denunciá-las e combatê-las (BOURDIEU, 1997, p. 85).
A modo de fechamento, deixamos como singela reflexão uma passagem em
que Bourdieu reivindica aquela que deveria então ser a missão de todo cientista
social que esteja comprometido com o desvelar das coisas ocultas e, num segundo,
momento com a própria possibilidade de transformação do mundo por intermédio de
uma reformulação drástica de nossas próprias representações conservadas acerca
deste mesmo mundo que tomamos como objeto: “Um sociólogo que cala, ou ele não
vê, não enxerga, não é competente, ou vê e se acomoda. Uma das funções que me
dou ao tomar a palavra é estimular outras pessoas, que podem saber mais do que
eu, a também tomar a palavra” (BOURDIEU, 2002c, p. 24).

JULIANO DE SOUZA
Doutorando em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

CRISTINA CARTA CARDOSO DE MEDEIROS


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e docente dos
programas de pós-graduação em Educação e Educação Física da Universidade
Federal do Paraná (UFPR)

WANDERLEY MARCHI JÚNIOR


Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e
docente dos programas de pós-graduação em Sociologia e Educação Física da
Universidade Federal do Paraná (UFPR)

REFERÊNCIAS

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