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SOUZA, Juliano de
Universidade Federal do Paraná
julianoedf@yahoo.com.br
RESUMO: A escola e a mídia, sem dúvida alguma, se apresentam como duas das
principais instâncias socializadoras dos agentes no mundo moderno. No presente
artigo temos por objetivo problematizar essas duas esferas de socialização do
conhecimento a partir de uma visão holística e integradora, apontando, sobretudo,
para as potencialidades analíticas que a teoria sociológica de Bourdieu oferece a
este debate e, quem sabe, indo um pouco além dela. Argumentamos em tom crítico
que esses dois campos sociais concorrem de maneira ímpar para a socialização
pedagógica dos agentes nas sociedades mais diferenciadas de nosso tempo. Longe,
no entanto, de serem instituições neutras, estas duas esferas sociais de produção e
difusão de conhecimento contribuem para que os agentes sejam inseridos em uma
ordem simbólica onde impera a naturalização das práticas e uma visão meritocrática
do mundo social e, sobretudo, do acesso que os agentes têm a este mesmo mundo.
Palavras-chave: Escola. Mídia. Socialização. Pierre Bourdieu.
ABSTRACT The school and the media, without any doubt, present themselves as
two of the main social instances of the modern world agents. In this paper we have
as an aim to analyze these two spheres of knowledge socialization from a holistic
perspective and integrative, pointing especially to the potential analytical sociological
theory of Bourdieu offers this debate and maybe going a little beyond it. We discuss
in a critical bias that those two social fields compete in a unique way to the
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1 INTRODUÇÃO
Entre os anos 1960 e 1970, Pierre Bourdieu propôs uma sociologia científica
original centrada no desvelamento do papel exercido pela instituição escolar para a
legitimação da ordem dominante e, sobretudo, para a reprodução das desigualdades
sociais. Sintomático disso que estamos argumentando, foi a publicação do livro “Les
héritiers: les étudiants et la culture” (Os herdeiros: os estudantes e a cultura) em
parceira com Jean-Claude Passeron no ano de 1964. Na referida obra, que não teve
tradução para o português, os autores se propuseram a descrever os mecanismos e
processos pelos quais o sistema de ensino legitimava os privilégios sociais.
A partir de uma análise da representação desigual das camadas sociais no
ensino superior, Bourdieu e Passeron (1975) procuraram discutir a eliminação que
operava o sistema escolar, tanto no acesso à universidade, como também no interior
da instituição e mesmo na escolha da futura profissão desses agentes, já que os
estudantes que ingressavam no curso superior se viam obrigados a escolher áreas
que poderiam ser objetivamente frequentadas por sua posição social respectiva.
Assim, mesmo conseguindo entrar na universidade, mesmo escapando dessa
eliminação, os alunos teriam em comum apenas as práticas escolares, sem que se
pudesse concluir que eles teriam uma experiência idêntica e, sobretudo coletiva,
uma vez que lidariam com as desigualdades de informações sobre os estudos, com
a diferença na aptidão do manejo de instrumentos intelectuais e na interferência dos
modelos culturais associados a certas áreas de saber, bem como a adaptação das
regras e valores que regiam institucionalmente este universo escolar.
Essa foi uma resposta original, abrangente, com sólida fundamentação teórica
e lastro empírico, para o problema das desigualdades escolares, tornando-se um
marco na história da Sociologia da Educação, mas também do pensamento e da
prática educacional em todo mundo, já que predominava nas Ciências Sociais da
época uma visão otimista, de inspiração funcionalista que atribuía à escolarização
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É importante lembrarmos que este livro foi lançado no Brasil em 1975 pela editora carioca Francisco
Alves, com o título “A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino”.
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Colocado de forma sucinta, o habitus primário trata-se daquelas disposições para pensar e agir que
são herdadas pelos indivíduos durante a primeira infância e a adolescência no seio da família em que
crescem. Isso, por sua vez, pressupõe uma relação com a situação de classe dos agentes.
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Essa estratégia dos novos postulantes para entrar no campo pode contribuir
para explicar as relações que ocorrem na escola, mesmo com os alunos que iniciam
o primeiro ano do ensino fundamental, e que não derivam essencialmente de
disposições disciplinares, ou seja, as crianças se ajustam e aceitam determinadas
normas escolares por buscarem reconhecimento, mesmo que estas se mostrem
incompatíveis com suas necessidades, principalmente quando se trata da demanda
de movimentação corporal em crianças da faixa etária em questão, limitada em prol
da incorporação de disposições que caracterizam o processo de escolarização e que
abrangem determinações de espaço, tempo e de práticas presentes na escola.
Esse tipo de leitura sugerida é instigante para o propósito de se desvelar o
papel social da escola na concepção sociológica de Bourdieu e, por indução, nos
remete a um dos principais conceitos operacionais mobilizados pelo autor para este
desiderato. Trata-se do conceito de habitus, definido como um esquema de ação e
avaliação internalizado que permite compreender a reprodução da ordem social e as
possibilidades simbólicas de luta social a partir da não mecanização da relação entre
as disposições e as estruturas e, sim, a tendência de reproduzir a lógica objetiva de
algo encarnado, somatizado no corpo como um senso prático, mas que também
conta com um potencial gerador de práticas e de percepção das práticas. Isso, por
sua vez, implica em dizer que as práticas e representações não são nem totalmente
determinadas nem totalmente livres, o que demonstra uma economia das práticas,
ou seja, uma razão que emana das práticas que não têm origem nem em um cálculo
explícito, nem em determinações exteriores aos agentes, mas em seus habitus.
Sendo resultado, portanto, de uma posição e de uma trajetória social dos
indivíduos, o habitus é produzido a partir das aquisições referentes a determinado
pertencimento social e constituído de disposições compostas de forma primária e
adquiridas no seio familiar ao longo da infância e adolescência. Essas disposições
mais precoces, duráveis e decisivas servirão de base e referência para disposições
que forem posteriormente assimiladas, pois condicionam a aquisição ulterior de
novas disposições, como, por exemplo, a aquisição do habitus escolar.
Nesse sentido, Bourdieu e Passeron (1973; 1975), chamam atenção para o
fato de que as disputas no campo escolar no tocante ao êxito e sucesso dos alunos
decorrentes da formação de um habitus escolar compatível com as demandas deste
espaço, são injustas, uma vez que o habitus cultivado na família se ergue como um
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dos fatores mais decisivos para o aprendizado e, por conseguinte, para o sucesso
ou insucesso dos alunos nesse sistema. Logo, é possível afirmar que por mais que a
escola tente oportunizar as mesmas condições de acesso ao conhecimento para
todos os alunos ou ainda que procure reivindicar para si uma imagem de instituição
neutra, isso não passa de embuste, pois ao se valer aparentemente das mesmas
regras para indivíduos que “largam” de pontos de partida sociais, emocionais e
morais muitíssimo diferentes, essa instituição apenas reforça os privilégios trazidos
de berço pelos alunos advindos das classes dominantes.
Concomitantemente a essa influência do habitus primário ou, melhor dizendo,
do habitus familiar nas chances de sucesso que os alunos terão ou não durante
suas trajetórias escolares, atua a posse de um maior ou menor volume de capital
cultural herdado, dentre outros locus sociais, também no âmbito da família. O capital
cultural, para Bourdieu, se refere a um tipo de capital simbólico caracterizado como
um conjunto de qualificações intelectuais que pode ser percebido em princípios de
classificação e divisão que permite a seu possuidor obter vantagens ou “lucros”
sociais. Tem homologia com o capital econômico propriamente dito e pode se
apresentar na forma objetivada, ou seja, enquanto bens culturais; institucionalizada,
como títulos e certificados escolares e na forma incorporada, sendo esse seu estado
uma condição que pressupõe uma incorporação que demanda inculcação e também
assimilação, isto é, um “ter que se tornou ser” (BOURDIEU, 1998a, p. 74).
O capital cultural mais rentável na vida escolar é constituído, entre outros
aspectos, por uma facilidade verbal e por uma cultura adquirida em experiências
extraescolares, ou seja, a chamada cultura livre, que inclui diferentes saberes e
gostos que se tornam condições implícitas de êxito escolar. Percebe-se assim que o
capital cultural adquirido no ambiente familiar pode ser encarado como uma herança
cultural que definirá as atitudes tomadas diante do capital cultural que se encontra
na instituição escolar e será responsável pelas diferenças dos alunos diante da
experiência escolar. Ao analisar as principais questões que envolvem a constituição
de relações sociais perenes no campo escolar e universitário, Bourdieu classifica o
processo de herança cultural como sendo a manifestação mais perversa do que
pode constituir-se no combatido processo de reprodução das leis sociais.
Destacando o conceito de capital cultural, compreende-se então que se pode
pensar em uma “ordem de sucessão”, no “efeito de destino”, em uma “pedagogia da
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no campo midiático. É preciso permitir ao consumidor interagir, fazer com que ele se
sinta um agente ativo nos processos comunicativos independentemente do lugar
social onde se encontra. Se antes a informação acessibilizada pela televisão e pelos
jornais era reservada aos momentos de lazer ou aos horários de almoço, atualmente
o indivíduo pode ter acesso aos fatos sociais por via de celulares enquanto trabalha
ou se desloca para o serviço através dos metrôs das grandes cidades.
De fato, o avanço da tecnologia informacional permite que os indivíduos se
insiram nos processos comunicativos com uma maior intensidade e no momento em
que bem entendam ou queiram. Essa ruptura, por conseguinte, não se contrapõe à
leitura que Bourdieu fez do campo jornalístico, mas reforça essa leitura na medida
em que aponta que uma nova dinamicidade de processos foi posta em prática por
conta do desenvolvimento da tecnologia e da cultura da internet, sem, no entanto,
abrir mão dos ortodoxos mecanismos estruturais de funcionamento deste lócus tais
como desvelados por Bourdieu (1997). Ampliam-se assim os espectros de inserção
dos agentes na cultura informacional oferecida pela mídia e pelas novas tecnologias,
mas os efeitos de socialização dos agentes nas dinâmicas comunicacionais pela
qual se produzem e se atualizam as visões de mundo mantêm-se os mesmos.
Decorre, nesse particular, a necessidade então de situarmos aqueles efeitos
sociais de construção da realidade social que Bourdieu atribui ao campo midiático
através do desvelamento de sua dinâmica interna de funcionamento bem como do
processo de socialização dos agentes que denota, dentre outras coisas, a formação
de uma série de consensos irrefletidos representados na figura da denominada
opinião pública. Isso, por conseguinte, implica em admitirmos em diálogo com o
autor francês (1997, p. 29) que a televisão em particular e o jornalismo impresso em
geral não se apresentam como meros instrumentos de registro do mundo social,
mas, ao invés disso, se constituem em dois poderosos instrumentos de construção
daquilo a que com frequência damos o nome de realidade.
Um dos principais desdobramentos da análise bourdieusiana na esteira dessa
interpretação sugerida consiste justamente em demonstrar que o campo jornalístico
vencido pela lógica do mercado e pelo índice de audiência se presta ao exercício ou,
melhor dizendo, se põe ao serviço da circulação circular da informação. Em uma
aproximação crítica e inventiva com o conceito frankfurtiano de indústria cultural,
Bourdieu chama atenção para o fato de que o campo midiático opera através de um
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Colocado em termos bastante práticos, o furo diz respeito ao fato de um veículo midiático conseguir
apurar e rastrear uma informação antes de seus concorrentes no campo e, deste modo, acessibilizar
esta mesma informação com exclusividade para os espectadores ou leitores.
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Vale a pena frisarmos que um dos caminhos pelo qual o campo midiático
impõe este estado de coisas naturalizado aos agentes pertencentes às mais
diferentes classes e grupos sociais se concretiza a partir da formação da chamada
opinião pública. A esse respeito, é importante ser ressaltado que quando Bourdieu
(1981), diz provocativamente que a opinião pública não existe, na verdade, o autor
está procurando chamar atenção para o fato de que uma visão de mundo autônoma
que o próprio termo opinião pública se propõe a evocar não existe em estado puro,
uma vez que os grandes consensos são sempre o trabalho de um investimento
pedagógico representado, dentre outras coisas, nas pesquisas de sondagem que já
impõe aos agentes as respostas que esperam obter.
Ao seu modo, a mídia também investe na formação da denominada opinião
pública. É consenso, por exemplo, em países periféricos como o Brasil a ideia de
que quem estudou mais tenha os melhores empregos e salários, que cada indivíduo,
independentemente da classe que pertence – na acepção sociocultural deste termo
– tenha por retorno justamente aquilo que cativou ou fez por merecer ao longo de
sua vida (SOUZA, 2011). Óbvio que esta ideologia consensual que a mídia alude,
até mesmo pelo fato dos próprios produtores midiáticos crerem que se estão na
posição de dizer algo aos demais é por conta de seu merecimento, se aplica bem a
qualquer sociedade moderna. Todavia, em sociedades periféricas como a brasileira
os desdobramentos desta visão meritocrática cega à produção diferencial de seres
humanos para a competição social predatória, terá consequências profundas em
nosso país, uma vez que, objetivamente falando, a distância entre a classe dos
vencedores e a classe dos perdedores parece, por vezes, intransponível.
A mídia tem o seu devido papel nessa socialização meritocrática dos agentes.
As novelas, jornais, filmes, programas esportivos etc. reportam, não raras vezes, a
essa estruturação meritocrática do mundo. O serviço, entretanto, que esses veículos
de informação prestam são parciais e ideológicos, uma vez que se naturaliza de
forma transclassista a visão meritocrática da competição social, mas não se atenta
para a condição de que nem todos os indivíduos têm acesso ao mesmo volume de
capital cultural e econômico e, acima de tudo, a uma economia emocional que lhes
permita se inserir segundo o modelo de conduta competitiva que o mercado e o
Estado moderno tanto necessitam para sua reprodução cotidiana (SOUZA, 2011).
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suas estratégias mais eficazes do que já o são e, ao invés disso, devemos nos servir
desse mesmo conhecimento das leis e tendências do jogo que se joga nos campos
de produção cultural para denunciá-las e combatê-las (BOURDIEU, 1997, p. 85).
A modo de fechamento, deixamos como singela reflexão uma passagem em
que Bourdieu reivindica aquela que deveria então ser a missão de todo cientista
social que esteja comprometido com o desvelar das coisas ocultas e, num segundo,
momento com a própria possibilidade de transformação do mundo por intermédio de
uma reformulação drástica de nossas próprias representações conservadas acerca
deste mesmo mundo que tomamos como objeto: “Um sociólogo que cala, ou ele não
vê, não enxerga, não é competente, ou vê e se acomoda. Uma das funções que me
dou ao tomar a palavra é estimular outras pessoas, que podem saber mais do que
eu, a também tomar a palavra” (BOURDIEU, 2002c, p. 24).
JULIANO DE SOUZA
Doutorando em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
REFERÊNCIAS
_____. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A. (orgs.).
Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998a, pp. 71-79.
_____. Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ, 2002c.
_____. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:
Zouk, 2008.