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Racionalidade
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mudança que há muito os filósofos da ciência tentam compreender
usando modelos concorrentes.
As questões sobre se a mudança científica é racional e se o
progresso é cumulativo têm constituído o objecto do debate
tradicional entre racionalistas e historicistas, e têm sido tratadas em
conjunto com outras questões, tais como a referência dos termos
teóricos que já não usamos, a finalidade da ciência, a capacidade
dos cientistas para comunicar eficazmente com os que defendem
teorias concorrentes, e a pluralidade de estilos de raciocínio que
caracterizam as investigações humanas sobre a natureza. Se
pensamos que a teoria que hoje aceitamos está mais próxima da
verdade (ou é mais adequada empiricamente) do que a anterior e
que consegue explicar mais factos de uma maneira mais
satisfatória e abrangente, tenderemos a considerar a mudança da
teoria anterior para a teoria actual como um exemplo de progresso,
um progresso baseado nos princípios racionais da escolha de
teorias.
Os racionalistas retratam a mudança exactamente nos seguintes
termos: a comunidade científica avança com base em
argumentação sólida sustentada por indícios empíricos sólidos. De
acordo com eles, o estilo de raciocínio promovido pela ciência,
modelado pelo método científico, é o estilo que mais contribui
para o conhecimento. Os historicistas, porém, cuja análise é
inspirada pela análise pormenorizada de episódios específicos da
história da ciência, sublinhando a complexidade dos factores que
frequentemente se vem a saber determinarem a mudança das
teorias actuais, comparam provocatoriamente a substituição de
uma teoria dominante num domínio da investigação a uma
conversão religiosa. A comunidade científica não é um agente
racional colectivo que pesa as razões a favor e contra teorias
concorrentes de uma maneira objectiva. Ao contrário, divide-se
entre a sua atitude conservadora natural, que encoraja os cientistas
a conservar as teorias existentes, e a pressão resultante da
constatação de que as teorias existentes podem ter deixado de se
adequar satisfatoriamente aos dados. Neste contexto, a escolha de
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uma teoria em detrimento das teorias concorrentes não é sempre
defendida com base em argumentos puramente racionais. O
compromisso com a verdade ou a eficácia da teoria escolhida é um
acto de fé da comunidade científica (ou de parte da comunidade
científica) em alguns pressupostos metafísicos e metodológicos, e
não uma consequência do juízo de que a teoria escolhida é superior
às suas concorrentes no que respeita a indícios neutros e padrões
objectivos.
Para tornar o debate sobre a mudança científica ainda mais
complexo, os historicistas vêem o papel dos indícios empíricos na
mudança de teorias de uma maneira diferente. Para o historicista,
não podemos discriminar facilmente entre teorias rivais baseando-
nos apenas nos dados, uma vez que estes nunca são apresentados
de uma maneira completamente neutra e podem ser interpretados
como apoiando uma ou outra das teorias incompatíveis. O
racionalista pode concordar que os dados por si só não são sempre
suficientes para discriminar entre teorias rivais (relembremos a
tese de Duhem-Quine que discutimos no capítulo anterior), mas
insiste que há critérios objectivos para a escolha de teorias que nos
permitem considerar a mudança como um exemplo de progresso.
No final deste capítulo estará habilitado a:
5.1 Revoluções
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De acordo com a obra pioneira de Thomas Kuhn sobre as
revoluções científicas, o processo da mudança científica pode ser
afectado por uma série de factores diversos e por pressões tanto
internas como externas à comunidade científica. Como o
racionalista, Kuhn reconhece que uma nova teoria é em parte
adoptada porque é confirmada por dados relevantes (por vezes,
obtém a sua vantagem com base no seu êxito nas chamadas
experiências cruciais), e que as novas hipóteses propostas têm de
ser capazes de explicar fenómenos anteriormente recalcitrantes.
Mas a confirmação e o poder explicativo cada vez maior nunca são
suficientes, por si só, para explicar a mudança: também temos de
estar atentos à maneira como a comunidade científica evolui; a que
pressões está sujeita por parte das autoridades políticas ou
religiosas ou da sociedade em geral; à hierarquia e organização
internas da comunidade científica, incluindo os princípios
metodológicos da investigação científica, a formação dos novos
praticantes, o sistema de recompensas e punições, e o conjunto de
problemas que é suposto a disciplina enfrentar e solucionar.
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seio da comunidade, e quando são disponibilizadas alternativas
plausíveis.
Numa revolução científica, a comunidade científica é atingida por
uma mudança que é muitas vezes radical e multifacetada, e, como
resultado, passa a dominar uma teoria alternativa. De acordo com
Kuhn, e como veremos, a combinação de factores políticos e
sociais e a falta de êxito empírico de uma teoria provoca uma
mudança científica, e muitas vezes a mudança envolve uma
alteração radical na linguagem — com a introdução de novos
conceitos ou com uma mudança nas descrições associadas à
terminologia antes usada. Durante uma revolução científica não é
só a teoria dominante que é derrubada: as ideias metafísicas, os
princípios da metodologia e outros aspectos da prática científica
são todos submetidos a uma revisão. O termo «revolução» sugere
que há uma forte descontinuidade entre o período prée pós-
revolucionário — o que significa que o termo é mais adequado
para descrever alguns, mas não todos, casos de mudança científica.
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refutada. Quando se demonstra que as previsões feitas com base na
teoria entram em conflito com os dados disponíveis, os cientistas
têm de procurar noutro lado e adoptar uma teoria alternativa que
tenha pelo menos a mesma porção de conteúdo empírico que a
teoria falsificada, mas que ainda não tenha sido falsificada. Neste
retrato, a teoria muda, mas o resto não muda grande coisa. Ambas
as teorias, a nova e a velha, dão resposta aos mesmos problemas e
são testadas de acordo com os mesmos critérios. Nos termos da
analogia com a esfera política, a mudança científica descrita por
Popper não é uma revolução, mas sim a formação de um novo
governo que foi regularmente eleito através de um processo
democrático e vai manter a mesma Constituição.
5.1.2 Os racionalistas
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predecessora de uma maneira significativa (e ajudar a resolver
problemas que não foram resolvidos antes); mas é também
conservadora, pois tem de explicar a razão por que a sua
predecessora funcionava (pelo menos até certo ponto). Nesta
perspectiva, o progresso é cumulativo: a nova teoria tem de ser
considerada um aperfeiçoamento da predecessora, e por
conseguinte tem de ser possível a comparação entre as duas
teorias.
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independentemente da racionalidade da escolha de cientistas
individuais. Laudan pondera se há continuidade entre as
metodologias científicas ao longo da história da ciência, e se estes
elementos de continuidade ou descontinuidade são consistentes
com a ideia de que a mudança na ciência opera de acordo com
princípios racionais. Será possível concebermos uma descrição
coerente da metodologia científica nos termos dos princípios da
agência racional seguida pelos cientistas que contribuíram em
grande medida para o avanço das suas disciplinas?
Laudan defende que o projecto de se chegar a uma noção unificada
do método científico com base em indícios históricos é mal
avisado, porque qualquer juízo de racionalidade envolve uma
consideração precisa da natureza das acções efectuadas, dos
objectivos e das intenções do agente ao agir assim, bem como das
crenças de base do agente sobre as possíveis consequências das
acções realizadas. Quando avaliamos a racionalidade dos métodos
adoptados pelos cientistas no passado, encontramos diferenças
importantes entre os objectivos e crenças de base do agente e as
nossas, não só porque o corpo de conhecimento partilhado
aumentou, mas também porque as crenças relevantes sobre a
metodologia mudaram — sobre quais os objectivos da
investigação científica e qual a melhor maneira de os atingir, por
exemplo. A falta de continuidade nas crenças sobre os fins e os
meios da ciência não é per se uma prova de irracionalidade, mas
de facto sugere que a mudança científica envolve algo mais do que
a substituição de uma teoria por outra, e que também conduz a
inovações metodológicas.
Consideremos o debate psicológico sobre a fiabilidade dos relatos
introspectivos e o seu papel num projecto científico legítimo.
Antes do behaviorismo, os psicólogos estavam interessados na
experiência consciente, fazendo uso dos relatos introspectivos
como uma maneira fiável de aceder à mesma (ainda que
discordassem relativamente ao que era considerado um relato
introspectivo). Com o surgimento do paradigma behaviorista, o
comportamento passou a ser o foco da investigação científica e a
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sua observação substituiu o registo dos relatos introspectivos como
o meio para recolher indícios sobre o objecto de estudo. A questão
sobre se a introspecção é um meio de obter conhecimento
relevante depende de facto do que se considera ser a finalidade da
psicologia científica. Os relatos introspectivos podem ser uma
importante fonte de indícios para a psicologia descritiva e para as
explicações fenomenológicas da experiência. Contudo, aceitá-los
sem os questionar não parece ser proveitoso para investigar
aspectos da psicologia cognitiva e social, uma vez que não são um
guia fiável para a identificação do tipo de razões que levam as
pessoas a agir de uma certa maneira. Isto deve-se ao fracasso
generalizado do autoconhecimento patente nos relatos
introspectivos, e à prática comum de racionalizar os próprios
pensamentos e acções para dar uma imagem coerente de si mesmo.
Titchener (1912) apresenta uma boa discussão sobre a legitimidade
da introspecção quando acontece uma mudança de paradigma.
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análises históricas da mudança científica e a observação da
mudança de métodos e objectivos na pesquisa científica não são
contrários nem à racionalidade nem ao progresso.
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Quando as expectativas da comunidade científica no que respeita à
adequação da teoria dominante aos factos observados são goradas
e a teoria não parece ser confirmada pelos dados, Kuhn fala na
existência de anomalias. Encontrar anomalias não condena por si
só uma teoria; porém, se as anomalias se acumulam e enfraquecem
a confiança que os cientistas depositam nos poderes, explicativo e
preditivo da teoria, segue-se um período de crise. Durante a crise, a
rotina da ciência normal altera-se, e é adoptada uma atitude mais
crítica no que respeita à teoria dominante. Estes períodos de crise
antecipam frequentemente uma revolução.
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consistiu meramente na sua interpretação dos resultados. Por outro
lado, hoje não aceitaríamos a sua definição de oxigénio, dado o
desenvolvimento da investigação química desde então. Poderíamos
dizer que, dependendo da nossa noção de «descoberta», o oxigénio
foi descoberto ou antes ou depois de Lavoisier, seja por aqueles
que o isolaram pela primeira vez, seja pelos que primeiramente o
definiram como elemento da maneira que hoje consideramos
correcta.
O que dizia a teoria do flogisto? Os combustíveis contêm um
princípio inflamável que libertam quando são queimados. Foram
descobertas muitas semelhanças entre a combustão e a calcinação,
e a calcinação dos metais era considerada como nada mais que
uma combustão lenta. Pensava-se que havia três tipos diferentes de
constituintes dos corpos: 1) o ar, 2) a água e 3) as terras. As terras
podiam ser de três tipos diferentes: terra inflamável, terra
mercurial e terra vítrea. Quando a combustão ocorria, libertava-se
terra inflamável. Esta substância era também chamada terra
pinguis, que em latim significa «terra gordurosa» ou phlogiston,
que em grego era usado para «princípio do fogo».
Quais eram as propriedades do flogisto? Liberta-se de corpos que
ardem com um movimento rápido, e está presente em todos os
corpos combustíveis e nos metais, que podem ser queimados para
resultarem em cales. O produto queimado pode ser reconvertido na
substância original ao fornecer flogisto de qualquer substância que
o contenha, como o azeite, a cera, o carvão ou a fuligem. Ao ser
aquecido ao rubro, o zinco arde com uma chama brilhante, e
consequentemente o flogisto é libertado. O resíduo branco é cal de
zinco (Cal de zinco + Flogisto = Zinco). Se o resíduo for aquecido
ao rubro com carvão, rico em flogisto, o zinco é reconvertido. Se o
fósforo for queimado, produz matéria ácida (Fósforo + Ácido =
Flogisto). Se o ácido for aquecido com carvão, o flogisto é
absorvido e o fósforo é reproduzido.
Na versão de Georg Stahl (1659-1734), a teoria do flogisto
explicava o fenómeno da combustão como a expulsão de uma
substância inflamável do objecto queimado (enxofre, por
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exemplo), e o da calcinação como a expulsão de flogisto dos
metais (ferro, por exemplo). A teoria era muito poderosa e
abrangente porque, ao apelar ao flogisto, conseguia explicar
algumas características da respiração: se com a combustão o ar fica
saturado de flogisto, a respiração torna-se difícil, pois a respiração
em si consiste na remoção de flogisto do corpo para o ar.
Contudo, esta teoria teve de enfrentar algumas anomalias
evidentes. Primeiro, não conseguia explicar por que razão quando
se queimavam metais as cales eram mais pesadas do que o metal
original, quando a substância tinha libertado flogisto no processo.
Segundo, não era claro por que razão a combustão cessa num
volume encerrado de ar e por que razão o volume de ar fica
reduzido após a combustão. Os teóricos do flogisto tentaram
encontrar diferentes soluções para estes problemas (originando
uma proliferação de teorias diferentemente ajustadas).
No seu Opusculum Chymico-Physico-Medicum (1715), Stahl
defendeu a ideia de que quando uma substância arde perde
flogisto, e que por conseguinte pesa menos após a combustão. Isto
aplicava-se ao que se observava na madeira, porque as cinzas são
menos pesadas do que o pedaço de madeira original. Todavia, a
conversão de metais para cales mediante o calor causava um
incremento no peso. Esta anomalia era explicada pela suposição de
que outras partículas penetravam na cal como resultado do
processo de aquecimento. A observação comum de que a
combustão, a calcinação e a respiração não podem ocorrer na
ausência de ar também era tida em consideração pelos teóricos do
flogisto. Se é o ar que absorve e remove o flogisto, quando não há
ar, o flogisto não pode ser absorvido nem emitido. Também havia
uma resposta para a questão da redução do volume de ar após a
combustão: o ar flogisticado ocupa menos espaço do que o ar
vulgar, e isto era coerente com a ideia comum de que o flogisto
tinha um peso negativo. Porém, ainda que fosse compatível com o
fenómeno da combustão dos metais, esta solução não explicava a
combustão da madeira: como é que as cinzas podem ser menos
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pesadas que a madeira se o flogisto, que está presente na madeira
mas não nas cinzas, tem um peso negativo?
Lavoisier tirou as primeiras conclusões relevantes sobre a
combustão e a calcinação em 1772, quando efectuou experiências
já conhecidas e reinterpretou os seus resultados. Explicou o facto
de o enxofre e o fósforo aumentarem de peso quando são
queimados, e que ao mesmo tempo o volume de ar fica reduzido,
supondo que durante a combustão o ar é por eles absorvido
(fixação). Embora não tivesse feito conjectura alguma sobre o
oxigénio, é provável que se tenha deixado persuadir pelo facto de
as cales efervescentes conterem ar, uma vez que na calcinação os
metais também aumentam de peso. Ainda que Lavoisier tenha
tomado logo consciência da importância dos seus resultados e
conjecturas, não estava bem certo do que era libertado — seria
todo o ar ou apenas uma parte? Nesta fase, tudo leva a crer que
ainda não tinha rejeitado a teoria do flogisto, pois em 1773 não
punha de parte a possibilidade de o ar fixado ser combinado com o
flogisto.
Antes de Lavoisier, já dois químicos tinham conseguido isolar o
oxigénio e descoberto algumas das suas propriedades, mas nenhum
deles compreendera completamente o papel que desempenhava
nos fenómenos da combustão e da calcinação. Um deles era
Priestley. As suas experiências estão relatadas na obra Experiments
and Observations on Different Kinds of Air, publicada entre 1774 e
1777. Em 1774, obteve oxigénio ao aquecer cal vermelha de
mercúrio com uma lente, e mostrou que este novo tipo de ar é
insolúvel na água e permite a combustão de uma vela com uma
chama vigorosa. Chamou a este tipo de ar «ar puro» porque achou
agradável respirá-lo e julgou que podia ser usado para fins
terapêuticos. Depois chamou-o «ar desflogisticado», porque o
supôs livre de flogisto. Se queimarmos uma vela ao ar vulgar, o
tempo de combustão é limitado, pois o ar vulgar já contém flogisto
e não pode absorver uma grande porção. Se a mesma combustão
ocorrer ao ar puro, a vela arde durante mais tempo, pois o novo
gás, que não contém flogisto, pode absorver uma maior porção.
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Lavoisier foi um dos primeiros químicos a adoptar um método
quantitativo na condução de experiências— usava regularmente
uma balança, por exemplo. Isto é importante, pois podemos ver
que o facto de levar a sério as anomalias da teoria do flogisto
dependia de dois pressupostos tácitos: o da indestrutibilidade da
matéria e o da conservação da massa. Os aspectos quantitativos
dos resultados experimentais obtidos violavam estes princípios.
Lavoisier fez suposições para justificar os resultados que obteve
com o fósforo, cujo peso aumenta após a combustão, e em 1774
repetiu as experiências de Priestley, depois de o ter conhecido em
Paris. Como outros antes dele, conseguiu isolar o oxigénio, a que
nesta fase chamava «todo o ar». Em 1778, porém, salientou o facto
de este gás ser mais puro do que aquele em que vivemos, e definiu-
o como «a porção mais salubre e mais pura do ar», como Priestley
tinha feito. Também reconheceu que era o verdadeiro corpo
combustível, e preparava-se para desenvolver uma teoria da
combustão que era incompatível com a teoria baseada no flogisto
de Stahl e uma alternativa à mesma. O ar é composto por
nitrogénio — a que Lavoisier chamava mophette — e ar puro. O ar
puro é o que os combustíveis absorvem e o que as cales contêm.
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Na combustão, o corpo a arder remove a base que atrai mais
fortemente do que a matéria do calor, e liberta a matéria
combinada do calor. A teoria do flogisto localizava a matéria do
fogo no combustível e não no ar puro. A partir de 1780, Lavoisier
passou a chamar ao ar puro principe oxygine, e é daqui que o
termo «oxigénio» deriva. Trata-se de uma palavra grega que
significa «gerador de ácido», pois Lavoisier pensava que o
oxigénio era o constituinte fundamental de todos os ácidos (hoje
sabemos que alguns ácidos não contêm oxigénio — como o ácido
clorídrico, por exemplo). Contudo, em 1780 o oxigénio de
Lavoisier não é ainda um elemento como é para a química
contemporânea, mas um composto constituído pelo principe
oxygine e pela matéria do fogo. Só mais tarde, em 1789, é que
introduziria o oxigénio na sua tabela dos elementos, juntamente
com a luz e o calórico (= matéria do fogo e do calor). Ao apelar ao
principe oxygine, Lavoisier rejeitou definitivamente a teoria do
flogisto, e em 1783 escreveu (Reflexões sobre o Flogisto) que, uma
vez que tudo na química pode ser explicado de uma maneira
satisfatória sem o auxílio do flogisto, é provável que o flogisto não
exista.
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metodológica estrita que obrigue os cientistas a abandonar
imediatamente a teoria que não se adequa perfeitamente aos dados
experimentais ou observacionais. Na ausência de outras razões
para desconfiar do modelo em que opera, é mais provável que o
cientista questione a sua própria competência na condução da
experiência do que a eficácia do modelo.
A ocorrência inicial de anomalias não representa necessariamente
uma ameaça decisiva para a teoria; pelo contrário, estimula a
pesquisa e a investigação no seu âmbito. E precisamente o que
acontece na teoria do flogisto: o aumento «não previsto» de peso
dos combustíveis foi explicado de maneiras diferentes pelos
teóricos do flogisto, e ocorreu uma proliferação de versões
ligeiramente diferentes da teoria-padrão. Kuhn refere que há
sempre dificuldades na adequação paradigma-natureza, e que
nenhuma anomalia que possa surgir constitui por si só um
argumento que derrube uma teoria. Kuhn não é optimista no que
respeita à possibilidade de falsificar uma teoria ou de escolher
entre teorias mediante a pura observação ou a investigação
empírica. Até certo ponto, algumas teorias rivais parecem ser
empiricamente equivalentes, e nenhuma experiência parece
conseguir discriminar entre elas. Da mesma maneira, quando ainda
não há uma competição para a teoria dominante, os resultados
experimentais desconcertantes podem surtir um efeito reduzido na
comunidade científica. Primeiro os cientistas vão naturalmente
tentar explicar as anomalias fazendo uso das ferramentas que o seu
paradigma já proporciona.
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cientista que confia no seu paradigma tenta melhorar a sua
coerência explicativa introduzindo hipóteses ad hoc. Um exemplo
deste fenómeno é a tentativa de Stahl de introduzir a leveza
natural, ou peso negativo, para explicar por que razão as
substâncias que absorvem flogisto ficam mais leves do que antes.
O resultado deste processo não é senão a produção copiosa, não de
alternativas, mas de tentativas de remediar os limites da teoria.
Numa fase mais avançada, quando as anomalias já se acumularam,
os cientistas tomam consciência das dificuldades cada vez maiores
da adequação paradigma-natureza. O fracasso da resolução do
problema é um primeiro passo para a formação das suas atitudes
críticas, ainda que outras razões possam causar descontentamento
em relação a uma teoria. Num modelo em que a atitude psicológica
dos cientistas pode determinar o modo como reagem às anomalias,
duvidar dos pressupostos filosóficos envolvidos na aceitação de
um paradigma pode ser relevante para a escolha de uma teoria.
Há aqui duas questões importantes: 1) se temos mesmo
justificação ao usar o conceito de descoberta quando descrevemos
a introdução de alguns conceitos úteis que se referem a entidades
teóricas antes desconhecidas; 2) qual a relevância destas
«descobertas» para a ocorrência de uma mudança revolucionária
de paradigma. Kuhn introduz uma distinção entre descobertas e
invenções, alterando ligeiramente o uso comum destas palavras: as
descobertas são novidades sobre factos, ao passo que as invenções
são novidades sobre teorias. As anomalias surgem, a teoria é
explorada e ajustada para explicar os factos novos, e em seguida a
comunidade científica está pronta para uma mudança de teoria. O
exemplo de Kuhn de como as descobertas factuais e teóricas estão
interligadas é o da descoberta do oxigénio. Sugere que devemos
atribuir a descoberta do oxigénio a Priestley e a sua invenção a
Lavoisier, uma vez que foi este último e não Priestley que tomou
consciência das implicações teóricas da descoberta do oxigénio.
Esta observação é indiciadora do que Kuhn pensa sobre uma
descoberta: primeiro, não tem significado sem uma invenção
correspondente. Não poderíamos sequer dizer que Priestley tinha
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descoberto o oxigénio se a teoria subsequente de Lavoisier não
tivesse mostrado em que consistia o oxigénio e como a combustão
funciona. Em termos mais gerais, nenhum facto novo é relevante
se não for teoricamente interpretado. A ideia é que, por si só, um
facto «novo» não pode ser usado nem para confirmar nem para
infirmar uma teoria: uma descoberta só surte efeito na dinâmica de
uma teoria científica quando o surgimento de um fenómeno que
antes não tinha sido considerado (que é novo) é incluído num
processo global de reinterpretação teórica. Neste contexto, três
químicos isolaram o oxigénio, mas apenas um o reconheceu como
uma substância distinta que desempenha um papel na combustão e
na calcinação. Priestley foi o primeiro a isolar aquilo a que hoje
chamamos oxigénio, mas não fez descoberta conceptual alguma,
pois tratou-o como ar desflogisticado, incluindo-o na explicação
proporcionada pela teoria do flogisto.
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anomalias a menos que haja um modelo concorrente que lide
melhor com pelo menos alguns problemas por resolver. Emprega a
noção de épocas de maturidade. Quando as revoluções ocorrem,
são súbitas e dramáticas, mas não podem ocorrer sem serem
antecipadas por sintomas evidentes de crise. Um campo de estudo
pode encontrar-se na fase de maturidade ou imaturidade para a
mudança, e quando inicialmente se afasta do seu paradigma, não é
desde logo claro para os cientistas se a teoria paradigmática
necessita apenas de melhoramentos e ajustamentos, ou se se presta
a ser substituída.
Kuhn tende a proporcionar um retrato psicologístico da mudança
de uma teoria, sugerindo que frequentemente os cientistas não
estão conscientes das razões para a sua escolha, seja de conservar o
velho paradigma, seja de adoptar um novo. Alguns filósofos da
ciência (Thagard 1993 e Laudan 1977) criticam a explicação de
Kuhn e descrevem a mudança de uma teoria estabelecida para uma
teoria concorrente como uma exploração gradual de novas
possibilidades conduzida conscientemente pela comunidade
científica. No entanto, note-se que Kuhn não vê a resistência a uma
nova teoria como algo irracional só porque depende da adesão
obstinada a um paradigma no âmbito do qual os cientistas foram
formados e estiveram a trabalhar. Afinal de contas, a constância na
defesa do que é considerado uma verdade estabelecida é
reconhecida como uma virtude racional. Kuhn admite que há algo
de errado na recusa de Priestley em adoptar a teoria do oxigénio
quando resiste aos argumentos de Lavoisier e permanece isolado
na comunidade científica ao continuar a aceitar a teoria do flogisto.
Priestley, nas palavras de Kuhn, deixou de ser um cientista quando
se isolou para continuar o seu trabalho, pois deixou de estar
envolvido numa comunidade de praticantes. Se considerássemos o
seu comportamento irracional, nem por isso atribuiríamos
irracionalidade à ciência em geral.
Discussão: Concorda com Kuhn quando ele diz que não se pode
ser cientista quando se está isolado de uma comunidade de
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praticantes com conhecimento partilhado e objectivos comuns?
Poderá haver ciência num mundo habitado por uma só pessoa?
202
do behaviorismo para o cognitivismo na psicologia; a revolução
darwiniana na biologia) e faça alguma pesquisa. Em seguida
avalie em que medida essa mudança se adequa à explicação
kuhniana das revoluções científicas.
203
redefinindo o progresso científico e proporcionando uma versão
mais sofisticada do falsificacionismo do que a de Popper.
De acordo com Lakatos, Kuhn descreve a ciência como irracional
porque, ao discutir a natureza da mudança, fala das revoluções
como se fossem conversões religiosas, e para Lakatos isto significa
ver a mudança científica como um esbatimento irracional de
quaisquer critérios de demarcação entre ciência e não-ciência. O
que é que Kuhn quereria dizer com a sua analogia entre a mudança
científica e as conversões? Uma conversão é uma mudança não
apenas de um conjunto de crenças, mas também de muitos
pressupostos fundamentais nos quais tais crenças assentam. Kuhn
não é o primeiro autor a comparar a mudança intelectual de
crenças à experiência da conversão. Em Sobre a Certeza, o filósofo
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) explora o problema da relação
entre cepticismo e senso comum, focando a sua atenção num tipo
especial de proposições (as chamadas proposições estruturais) que
damos como certas e raramente revemos. Estas proposições
parecem proposições empíricas sobre o mundo, mas o seu papel é
quase gramatical, uma vez que descrevem a nossa maneira de ver o
mundo e não o próprio mundo (por exemplo: «O mundo já existia
muito antes do meu nascimento»; «Tenho duas mãos»). Se
rejeitássemos estas proposições, adoptaríamos uma mundivisão
completamente diferente. E se eu quisesse convencer um membro
de uma tribo remota e culturalmente isolada que não tinha sido
ensinado a pensar que o mundo já existia antes de ter nascido e que
não acreditava em tal coisa, seria difícil convencê-lo só pela
argumentação racional. Podia dizer-lhe que aprendi em História,
uma disciplina que me ensinaram na escola, que as pessoas
viveram, prosperaram, construíram monumentos e combateram em
guerras muito antes de termos nascido. Podia dizer-lhe que
conheço pessoas, entre as quais aquelas a quem chamo meus pais,
que são mais velhas que eu e já viveram mais tempo do que eu.
Porém, estas considerações não são argumentos independentes
para a ideia de que o mundo já existia muito antes dos nossos
nascimentos, pois não as levaríamos de todo a sério se não
204
assumíssemos já que o mundo existia muito antes do nosso
nascimento. Se os membros da tribo passassem a ter a minha
mundivisão, não o fariam pressionados pela argumentação
racional, pois todos os argumentos a favor da proposição de que o
mundo não começou a existir quando nascemos já pressupõem de
alguma maneira a verdade da proposição.
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necessariamente que a mudança ocorre sem razões ou por más
razões. Após a conversão de uma comunidade científica, é então
possível encontrar razões que expliquem a mudança, e geralmente
estas podem ser encontradas no facto de um novo paradigma
explicar áreas de investigação científica que não eram
satisfatoriamente explicadas antes da mudança. Lakatos opõe-se a
esta noção de racionalidade enquanto racionalização post-hoc, e
não deixa espaço para a mesma na sua descrição de como um
programa de investigação substitui outro. A principal diferença
entre paradigmas e programas de investigação é que a validade dos
últimos pode ser avaliada objectivamente, de um ponto de vista
que não tem de ser interno ao programa de investigação que está a
ser considerado. Como já antecipámos, os programas de
investigação são sequências de teorias no âmbito de um
determinado domínio, e são constituídos por um núcleo teórico e
hipóteses auxiliares (a cintura de protecção). Quando as previsões
feitas de acordo com um programa de investigação são
falsificadas, nem sempre é claro o que deve ser rejeitado
(recordemos a tese de Duhem-Quine e as suas contraposições ao
falsificacionismo). A actividade no âmbito de um programa de
investigação é guiada por uma heurística metodológica que ajuda
os cientistas a decidir aquilo que mais provavelmente será
responsável por uma previsão falhada, seja o núcleo teórico, seja
uma das hipóteses auxiliares. Se uma teoria tem de ser rejeitada e
substituída, um novo problema no âmbito de um programa de
investigação passa a estar no centro das atenções e a mudança
pode ser progressiva ou degenerativa. Para que a mudança
contribua para o progresso, a nova teoria tem de: ser mais
informativa do que a anterior; ser capaz de explicar o êxito da
anterior; receber corroboração independente.
Lakatos sugere que o retrato de Kuhn da história da ciência como
uma série de períodos de ciência normal interrompidos por uma
revolução não é correcto: na ciência, só raramente houve um
monopólio genuíno. De acordo com Lakatos, a proliferação de
soluções alternativas para problemas existentes não é apenas uma
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característica de períodos de crise, mas sim um elemento essencial
da prática científica: a escolha entre teorias concorrentes no âmbito
dos programas de investigação e entre programas de investigação é
necessária a todo o momento e não apenas durante uma grande
revolução; fazer escolhas é a única maneira de gerar progresso. Se
os paradigmas são considerados mundivisões que tudo abrangem
— no sentido em que quando nos comprometemos com um novo
paradigma vemos o mundo de uma maneira diferente e passamos a
aceitar padrões parcialmente novos para a escolha de teorias —,
então a proliferação de paradigmas concorrentes torna-se de facto
uma situação excepcional. Porém, segundo Lakatos, devemos
rejeitar tal concepção de paradigma.
Lakatos ataca em particular a ideia de que cada paradigma tem a
sua própria racionalidade. Deparamo-nos com problemas sérios
quando nos perguntamos em que medida os paradigmas são
independentes e não podem ser objectivamente avaliados, pois a
posição de Kuhn conduz-nos às teses da incomensurabilidade. A
«incomensurabilidade» pode ser usada de diferentes maneiras —
refere-se à impossibilidade de comparar afirmações de teorias
rivais, mas também à falta de regras metodológicas comuns com
base nas quais a conduta dos cientistas pertencentes a paradigmas
diferentes pode ser avaliada, bem como à falta de critérios comuns
para a escolha de uma teoria independentes de um paradigma.
Todas estas teses da incomensurabilidade são postas em causa por
Lakatos, para quem as estratégias metodológicas e os critérios para
a escolha de uma teoria não dependem da teoria.
207
Em A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn defende que os
paradigmas concorrentes são de facto incomensuráveis, e usa a
analogia provocatória da conversão: a mudança de um paradigma
para outro não pode ser inteiramente devida a argumentos, pois o
que é considerado um argumento apoiado por boas razões para os
cientistas que aderiram ao paradigma anterior pode ser ignorado ou
ser considerado um mau argumento para os cientistas que aderem
ao último. Os paradigmas não se limitam a possuir linguagens que
resistem à tradução interparadigmática: também contêm conjuntos
de valores que são usados para avaliar se os argumentos são bons e
as teorias bem-sucedidas. Se esses critérios forem internos a um
paradigma, nenhuma escolha entre paradigmas pode ser justificada
apelando a tais valores, a menos que sejam partilhados pelos
paradigmas que nos interessa comparar. Paradigmas diferentes
podem redefinir as finalidades da ciência e propor concepções
diferentes de prova, confirmação e explicação.
Uma alternativa às noções de paradigma e de programa de
investigação é a dos estilos de raciocínio ou tradições. Tanto
Hacking (1982) como Feyerabend (1975) usam esta terminologia,
mas chegam a conclusões diferentes sobre o modo como os estilos
de raciocínio determinam as respostas a questões ideológicas e
metodológicas, e como se relacionam uns com os outros quer em
períodos de proliferação, quer de mudança. Fundamentalmente, o
problema que tanto Hacking como Feyerabend abordam de
maneira diferente é se há elementos de relativismo em qualquer
explicação historicamente correcta da mudança científica e
conceptual. Em particular, não estão interessados no corpo de
crenças verdadeiras que podem ser mantidas ou revistas de cada
vez que uma nova teoria é avançada, mas sim no modo de pensar
que vai dando forma à nossa investigação sobre a natureza, bem
como nos critérios para o que é considerado uma boa razão para
apoiar uma mudança de crença.
Feyerabend começa com uma crítica exaustiva a qualquer
abordagem da metodologia científica que prescreva regras
imutáveis com base na observação de que na história da ciência
208
diferentes estratégias foram bem-sucedidas. Tais estratégias não
podem ser vistas como excepções a um conjunto de regras: ao
invés, o facto de terem sido adoptadas e de terem produzido
resultados indica que a proliferação de abordagens metodológicas
é desejável. Em seguida, defende que para cada regra codificada
pelos filósofos da ciência há uma regra oposta que é igualmente
aceitável, e afirma que na história da ciência os maiores passos
foram dados quando os cientistas foram menos conservadores e
violaram regras metodológicas explícitas como a consistência —
ao avançarem hipóteses que não eram compatíveis com as teorias
consideradas como verdades estabelecidas na época, por exemplo.
209
no âmbito da ciência, que somos tentados a ver como um
empreendimento metodologicamente unificado, quase tudo vale.
210
Como Bird observa, a simetria podia ser defendida apelando às
intenções de um criador, e podia ser considerada uma razão para
acreditar que o número de planetas é sete nesse contexto. Na
ciência contemporânea, porém, o modo como Sizi argumenta a
favor da necessidade da existência de sete planetas não é aceitável.
Estes exemplos mostram que quando o estilo de raciocínio muda, o
tipo de explicação e justificação que é considerado aceitável
também muda e, de acordo com Hacking, o entendimento pode
falhar por esta razão.
Hacking discorda de Kuhn no que respeita a haver uma
impossibilidade de tradução entre as afirmações de uma teoria e as
da sua rival. Contudo, concorda que há descontinuidade na
mudança conceptual, na qual o fosso provém de uma variação na
maneira de pensar, e em particular no que é considerado uma boa
razão para apoiar uma afirmação. Uma vez que são o raciocínio e
os métodos que são relativos a um estilo particular, os estilos não
podem ser comparados uns com os outros com êxito e os juízos de
superioridade não podem ser justificados independentemente.
211
podem ser comparadas devido à falta de uma linguagem e de
conceitos comuns, torna-se extremamente difícil escolher entre
elas com base na sua adequação empírica. Como é que podemos
defender que uma teoria tem mais conteúdo empírico do que outra,
ou que é melhor a prever e a explicar fenómenos no mesmo
domínio? A ideia de que as novas teorias conseguem explicar o
êxito parcial das suas antecessoras parece ser um passo
fundamental para o estabelecimento de uma noção de progresso
genuinamente cumulativo.
Mas é claro que a tese de que teorias rivais não podem ser
comparadas com base no seu conteúdo e, por conseguinte, com
base na sua adequação empírica, não exclui que haja outras formas
de as distinguir e fazer uma escolha racional. As teorias podem ser
comparadas no que respeita a critérios que nos podem dar razões
para justificar essa escolha. Mas quais são esses padrões mediante
os quais avaliamos teorias? No posfácio de A Estrutura das
Revoluções Científicas, Kuhn enuncia alguns destes valores: uma
teoria deve fazer previsões exactas (na medida do possível, de uma
natureza quantitativa, e não apenas qualitativa); deve permitir a
resolução de problemas; deve ser simples e consistente; deve ser
em grande medida compatível com outras teo-rias aceites.
Newton-Smith (1981) enuncia outros valores: uma teoria deve ser
fértil e permitir desenvolvimentos teóricos e práticos; deve estar
bem integrada, não apenas com outras teorias aceites, mas também
com alguns pressupostos metafísicos gerais sobre o mundo.
As listas são muito heterogéneas. Alguns critérios parecem ser
puramente uma questão de juízo estético (a elegância de uma
prova matemática, por exemplo); outros parecem seguir virtudes
epistémicas importantes: como observámos no capítulo 1, a boa
integração com outras teorias aceites é uma razão para preferir a
psicologia à astrologia quando procuramos uma teoria que possa
dar uma explicação para o comportamento humano. Contudo, é
discutível que todos os critérios sigam virtudes epistémicas: o
debate alargado sobre a simplicidade ou a parcimónia como um
desideratum para as teorias mostra que não é fácil discriminar as
212
possíveis implicações dos critérios para a escolha de teorias antes
da investigação empírica.
Resumo
Neste capítulo considerámos diferentes abordagens filosóficas à
mudança em ciência e as suas consequências para a tese de que a
ciência é um empreendimento racional. De acordo quer com os
racionalistas quer com os historicistas, a racionalidade da ciência
parece ser refém do facto de a prática da ciência ser intocada por
aqueles factores que não têm uma relevância directa para a
confirmação ou infirmação das teorias. Os racionalistas acreditam
que a mudança de teorias é racional e há um progresso cumulativo
porque pensam que podem reconstruir o processo de mudança de
uma forma que não tem de ter em conta factores externos às
condições para a realização de testes e ao método da ciência.
Frequentemente, os historicistas negam a racionalidade da
mudança de teorias e a natureza cumulativa do progresso porque
não acreditam que o processo de mudança possa ser reconstruído
213
independentemente de factores ideológicos, sociais, psicológicos,
políticos e históricos.
Porém, devemos contestar o pressuposto partilhado neste debate:
porque é que não pode haver racionalidade na mudança se
reconhecermos que esta é afectada não apenas pelos méritos
objectivos de uma teoria e pela sua adequação aos indícios
disponíveis, mas também pela maneira como opera a comunidade
científica como um todo? O significado do contributo da ciência
para o corpo de conhecimento partilhado nas nossas comunidades
só pode ser completamente apreciado se virmos a ciência como
parte da sociedade. E por ter em certos momentos resistido e
noutros sucumbido às pressões de «fora» que a ciência se tornou o
que é hoje: uma instituição social, ao invés de um mero conjunto
de disciplinas académicas unidas por um qualquer método
abstracto.
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6. Será possível (e, em caso afirmativo, desejável) postular uma
noção de racionalidade independentemente dos requisitos da
metodologia científica?
Leituras complementares
Neste capítulo apresentei uma ilustração das ideias de Kuhn
referente à revolução química. Poderá comparar a sua perspectiva
com outras perspectivas da mudança científica com base em
exemplos de mudanças significativas na ciência, como a
Revolução Copernicana (Henry 1997; Hall 1983; Kuhn 1957,
1990; Cohen 1980). Outras opções incluem a mudança da física
newtoniana para a teoria da relatividade, ou a aceitação da teoria
da evolução de Darwin. Outras leituras de Kuhn podem ajudá-lo a
compreender a importância do seu contributo e os pormenores da
sua proposta: ver, por exemplo, Bird (2000) e Hoyningen-Huene
(1993). As ideias de Kuhn sobre a estrutura das revoluções na
ciência foram aplicadas à cognição e à computação nos trabalhos
de Andersen et al. (2006) e de Thagard (1992), que se centram na
aquisição e revisão de conceitos.
Pode encontrar artigos úteis sobre a coerência e a plausibilidade da
noção de «revolução científica» numa colectânea organizada por
Hacking (1981). Nos escritos de Popper (1963, 2002, cap. 10),
Laudan (1984) e Lakatos (1970) é possível ver perspectivas
alternativas à teoria da revolução e do progresso de Kuhn. As
colectâneas de artigos sobre a mudança científica e a natureza do
progresso também poderão dar-lhe uma ideia da estrutura do
debate: ver, por exemplo, Radnitzky e Andersson (1978);
Niiniluoto e Tuomela (1979); Lakatos e Musgrave (1970); Harré
(1975). Para uma introdução geral, ver Losee (2003). Para
contributos mais recentes da filosofia e das ciências sociais para o
debate sobre o progresso científico, ver Bird (2007), Chang (2007)
e Lohmann (2004).
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