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TEMPERAMENTO, CARACTERIOLOGIA

E ESPIRITUALIDADE
Padre José Eduardo

Nos últimos tempos, o tema dos temperamentos voltou a ganhar espaço entre os
católicos. É uma recorrência sazonal, que aparece e desaparece do nada. É preciso
entender um pouco o que produz esses fluxos e a sua relação com a
espiritualidade.

1. Metáforas para o autoconhecimento

A teoria dos temperamentos foi criada por Hipócrates (séc. V a.C.), a partir de
teorizações anteriores, e parte de uma cosmologia integrada, em que aquela
perspectiva do mundo composto por quatro elementos era compreendida como
espelhada no corpo humano, de acordo com as fases da lua.

Os caçadores de pseudociência ficam malucos quando se fala do assunto, pois, não


o tendo passado pelo recorte estreito do crivo cientificista cujo credo professam com
fé dogmática, torna-se ipso facto herético e sacrílego. Fato é que a teoria, em si,
nunca se pretendeu científica, de acordo com esses critérios, e teve sempre uma
pretensão muito mais modesta, inclusive, do que o uso que atualmente se lhe dá.

Paralelamente, outras teorias pretendem formular caracteriologias baseadas em


diferentes critérios: por exemplo, o eneagrama divide as personalidades em
diferentes tipos, os quais, combinados, resultariam numa tipologia de personalidade;
a astrocaracteriologia pretende fazer o mesmo com base na posição astral do
nascimento.

Em todos esses casos, as determinações da personalidade se dariam apenas


através dos seus aspectos mais superficiais; por assim dizer, corpóreos. O próprio
São Tomás de Aquino, na Suma contra os Gentios, diz que “os corpos celestes não
são causa de nossas volições e de nossas escolhas” (III,84) e isso porque a
passagem da potência ao ato se dá mediante uma causa eficiente em ato e é
manifesto que “os corpos celestes não são inteligíveis em ato” (III,83 – a ironia é
fina!). Contudo, continua ele, “se os corpos celestes não podem ser diretamente
causa da nossa inteligência, podem influir indiretamente”, pois “ainda que o
entendimento não seja uma potência corpórea, não se pode dar em nós a operação
intelectiva sem a cooperação das potências corporais, que são a imaginação, a
memória e a cogitativa” (ibidem). “Os corpos celestes só influem diretamente nos
corpos” (III,84).
Nesse sentido, tanto como a astrocaracteriologia, o eneagrama ou outras técnicas
de autoconhecimento, a doutrina dos temperamentos é, quando muito, tão somente
corpórea e fala sobre as condições psicossomáticas da nossa personalidade, sendo
uma espécie de metáfora a partir da qual nós nos podemos conhecer um pouco
melhor; e, como toda metáfora, tem semelhanças com o objeto, mas um conjunto de
dessemelhanças muito maior e significativo. É importante salientá-lo, pois o
temperamento ou outra qualquer suposta determinação do nosso psiquismo
somente o é enquanto base sobre a qual atua a nossa liberdade e, inclusive, contra
a qual atua ou deveria atuar frequentemente a nossa liberdade.

Pois bem, e de onde vem essa necessidade de estabelecer um condicionamento à


nossa liberdade, uma espécie de estrutura secreta que está por baixo de tudo?

2. A estrutura abscôndita da realidade

O tema, em si, é antigo, mas a sua reapresentação contemporânea se deve a Kant.


Para ele, o nosso intelecto não pode conhecer “a coisa em si”, mas apenas o
“fenômeno” da coisa, vale dizer, os dados caóticos captados pela nossa percepção
sensível. Com esse pressuposto, Kant relegou o conhecimento à incerteza. Porém,
sobre uma suposta certeza cognitiva de base: as estruturas a priori do nosso
entendimento, que seriam as mesmas para todas as pessoas. Portanto, a
impressão de coesão que temos na realidade não seria oriunda senão de uma
projeção do nosso entendimento sobre o caos de um mundo que não podemos
saber exatamente como seria.

A epistemologia de Kant é pueril. Se não pudéssemos conhecer “a coisa em si” não


poderíamos conhecer “o pensamento de Kant em si”.
Simples assim! Contudo, Kant introduziu um novo tema na filosofia, o qual continua
a estar na ordem do dia até hoje: todos os filósofos contemporâneos estão em
busca de uma estrutura por baixo da realidade.

Hegel, a dialética histórica;


Schopenhauer, o impulso vital;
Nietzche, a vontade de poder;
Marx, a luta de classes;
Freud, a libido;
Jung, os arquétipos do inconsciente;
Levi Strauss, as estruturas sociais;
Saussurre, a estrutura linguística;
Lacan, o simbólico;
Heidegger, o ser no devir;
só para dar alguns exemplos.
O esforço de todos estes filósofos, no fundo, é o de desvendar a estrutura
abscôndita da realidade para, então, intervir em sua dinâmica ou, ao menos,
cooperar com ela.

3. A ruptura de Foucault

Quem rompe um pouco com essa missão filosófica é Foucault. Como


pós-estruturalista e pós-crítico, ele parte do fato de que combater as estruturas é um
modo de reforçá-las e passa a aplicar o desconstrucionismo ao indivíduo concreto,
“libertando-o” de toda e qualquer espécie de encaixamento de sua personalidade.

Foucault redefine o indivíduo a partir de um devir permanente e indeterminado, no


qual cada um deve assumir a missão individual e auto-messiânica de salvar-se de
toda e qualquer forma de normatividade: ninguém é nada, propriamente.

Butler leva o ideal foucaultiano às suas últimas consequências com a teoria queer e
a perspectiva de gênero, esvaziando o sujeito numa performatividade errática,
invisibilizando metafisicamente o indivíduo e libertando o desejo de maneira
completamente impessoal, atemática e arracional (a palavra existe e está
dicionarizada).

4. Projeção da física na filosofia: a matéria subjugou o espírito

É absolutamente interessante perceber como cada uma dessas teorias filosóficas é


um decalque da física:

– quando Newton implodiu o conceito de forma, surgiu Kant dizendo que o


conhecimento da forma era impossível e tudo não passa de uma projeção de tipo
geométrico do nosso entendimento (espaço e tempos uniformes);

– quando a física reformulou a teoria atômica e descobriu serem essas partículas a


estrutura do universo, os filósofos começaram a buscar essas mesmas estruturas
por todos os lados, segundo os modelos anteriormente apresentados;

– quando a mecânica quântica relativizou o conceito de átomo como estrutura


fundamental e mostrou como no nível subatômico a matéria é organizada em
campos e num “quantum” cuja essência não se sabe qual é, os filósofos
pós-estruturalistas começaram a combater o que chamam de “essencialismo” e a
dizer que as estruturas são apenas discursos do poder regulador, sem existirem
propriamente estruturas elementares.

Até que ponto os filósofos se deram conta disso, não é possível afirmar, mas que o
paralelismo impressiona, ah, impressiona!
Em todos esses casos, percebemos como a matéria subjugou o espírito, como a
física suplantou a metafísica. Essa é a história do pensamento moderno. E é dela
que os nossos contemporâneos são escravos, embora pensem que a transcendem
pela sua inteligência. Como diria o velho Frei Tomás, a matéria não pode ser
intelectiva em ato! Isso continua sendo a grande trave de tudo.

5. Náufragos à procura de apoio

Ora, abandonado ao total indeterminismo, é natural que o homem se desespere e


procure agarrar-se a alguma estrutura elementar que o conecte a qualquer coisa de
estável e determinado. Daí o desespero por encontrar uma pauta sobre a qual
escrever a própria psicobiografia, pois o princípio autoral do agir humano é um
dever inevitável, que fazia até existencialistas ateus como Sartre tremerem de
medo.

Se alguns neurocientistas, ao dizerem que a consciência é um fenômeno


meramente psicoquímico, não se dão conta que a fisiologia do pensamento não é
idêntica ao conteúdo deste, também relegam a liberdade ao mundo das ilusões,
contrariando a sua própria experiência (e aqui é a hora em que, sim, Armínio tira
sarro de Calvino), pois se o estão dizendo é porque o querem, senão não o diriam.
Fato é que o cérebro não tem condições de perceber o que é a realidade e o que é
uma alucinação, o que agrada muito ao nosso velho Kant; mas também é fato que
nós o percebemos muito bem, pois ninguém trocaria uma cerveja real por uma
imaginária!…

Ou seja, a noção de realidade não é meramente cerebral. Sabemos que algo é por
uma faculdade intrinsecamente espiritual que, embora tenha limitações físicas, as
transcende em ato o tempo todo!

E é a partir deste núcleo que podemos reconstruir o caminho de volta para longe
dessa bipolaridade: não somos determinados univocamente por nenhum dos pólos,
mas multideterminados por todos em nossa autodeterminação livre e
autotranscendente.

6. Temperamento, liberdade e virtude

Se a questão em termos metafísicos é tão antiga quanto decisiva (o problema do


ser para Parmênides e Heráclito, a questão do uno e do múltiplo em Platão e a
doutrina do ato e da potência em Aristóteles, harmonizada esplendidamente por São
Tomás na síntese platônico-aristotélica da participação metafísica), em termos
morais é muito mais intrincada e complexa.

Com efeito, os princípios das ações, segundo São Tomás, são “os vícios e as
virtudes” e os mesmos “não procedem da natureza, mas do costume” (III,85). Na
Suma Teológica, quando São Tomás já tinha atingido uma maior maturidade
teológica, ele afirma que “as virtudes morais são causadas pelas potências
apetitivas enquanto movidas pela razão” ou “por Deus” (I-II, q. 51, aa. 2 e 4).

Embora enunciados de maneira tão sintética, esses princípios são importantes e


decisivos, pois são eles que nos impedem de nos escondermos e nos
entrincheirarmos por detrás de eventuais determinações temperamentais ou
caracteriológicas: “eu agi assim porque meu temperamento é deste modo, etc”.

As determinações do temperamento ou do caráter servem como uma espécie de


superfície contra a qual exercemos o poder da nossa deliberação livre. O problema
nunca são as nossas tendências, mas o que queremos fazer com as mesmas. Esta
é a questão crucial!

Alguns santos, como São Francisco de Sales ou São José de Cupertino


conseguiram dominar de tal modo o seu comportamento mediante as virtudes
morais e infusas que chegaram praticamente ao temperamento oposto ao seu:
extremamente nervoso, o santo bispo de Genebra destacou-se de tal modo pela
mansidão, que mereceu o epíteto de “doutor melífluo”; e o santo frade que levitava,
embora tivesse um caráter naturalmente tão violento que os psicólogos e calígrafos
diziam que ele poderia ter sido um perigoso assassino, viveu numa vida de total
paciência e doçura! O que não pode o engenho da natureza movido pela
sobrenaturalidade da graça?…

Uma pulsão não nos pode dominar a ponto de obscurecer ou subjugar a nossa
razão e a nossa vontade. A virtude é o que nos permite não apenas disciplinar as
nossas pulsões, mas amar essa disciplina, porque orientada de acordo com a regra
da razão.

Apenas a virtude nos concede a posse da razão. Apenas quando somos virtuosos
fazemos aquilo que realmente queremos, não aquilo a que as nossas tendências ou
paixões nos coagem a fazer. E esse senhorio que podemos exercer sobre nós,
faz-nos transcender a nós mesmos em nossa própria experiência existencial
autopoiética. Mas isso não é tudo.

7. Liberdade e contemplação

O homem é chamado a um nível de liberdade superlativo, que não lhe é acessível


senão por aquilo que na tradição cristã de chama de contemplação. Todas as
místicas alternativas falam de um esvaziamento puro, em que a alma encontra a
paz mediante a inatividade. Só o cristianismo mostra o outro lado desse
esvaziamento, que é o preenchimento do Espírito Santo, a efusão santíssima da
caridade divina. No vazio, o homem não se sente pleno, apenas se sente homem,
faz a experiência metafísica do seu “não-ser” ou, melhor dizendo, do seu “ser
potencial”. Na plenitude, o homem é recolhido pela cortesia do amor divino, que o
sacia inteiramente, numa crescente efervescência cujo único limite é a eternidade.
No processo rumo à contemplação, a alma vai se desagarrando do mundo dos
sentidos e deixando-se elevar à sutileza do espírito, de tal modo que não vive mais
segundo a carne e as suas tendências, mas é impulsionada por uma atração
inteiramente sobrenatural, que a realiza na alteridade de uma abraço interior que se
estende desde a fina ponta do seu ato de ser até as camadas mais exteriores de
sua percepção. Esse processo é chamado de espiritualização, e vai na contramão
da dependência das circunstâncias físicas.

Desde modo, o intelecto de um santo não é suscetível à mera influência dos astros
e as suas virtudes não são limitadas pelas suas predisposições psicossomáticas. A
vida espiritual justamente o desaprisiona disso. E é nisso que um cristão deveria
mirar, não na dependência das fisicidades materiais.

É nesse sentido que São João da Cruz exprobrava com tanta veemência aqueles
que dependiam de coisas exteriores e faziam toda a sua devoção voltar-se para
objetos materiais… Tanto faz se são imagens sagradas ou pedras ou velas ou
qualquer outro ente; o caminho da espiritualidade deve conduzir o homem para
dentro, não para fora.

O homem espiritual tem dentro de si tudo que lhe faria falta: as virtudes se
incorporam de tal modo às suas potências que ele já não sabe distinguir mais a sua
vontade daquilo que Deus quer, a lei entrou nele e, por isso, de certo modo, deixa
de existir como preceito e passa a ser um ditame do seu próprio interior.
Desamarrada de apegos e querências, pode voar a Deus, nada a impede de seguir
o sopro do Espírito Santo que a une misticamente a Cristo e, por Ele, a toda a
Trindade, sem desejar mais nada senão a pura união com o Deus que é Espírito.

Haverá liberdade mais perfeita do que essa? Não querer nada senão aquilo que já
tem: o Deus que transcende tudo, fazendo-a transcender-se nEle!…

Que miséria seria um cristão aferrolhar-se na masmorra de limitações físicas que,


ao invés de servirem como desculpa para vícios, deveriam ser deixadas para trás,
num arrebatamento espiritual que a conduziria às alturas do Amor! Toda essa
preocupação, portanto, apenas evidencia o imenso vácuo espiritual dos cristãos da
nossa geração, tão apegados ao seu ego que o transformam no ídolo ao qual
prestam culto servilmente com todas as suas ações.

No espiritual, o ego psicológico evaporou-se, tornando-se uma sutil presença na


Presença. O “Deus que é” é-lhe não apenas o fundamento metafísico, mas o centro
para o qual converge toda a sua atenção e amor. O espiritual desaprendeu o eu.
Agora, ele é apenas para Ele.
8. Convergências admiráveis

Se, de um lado, neurocientistas e astrólogos, físicos e mestres do temperamento e


da caracteriologia estão unidos na busca de um chão que determina o homem
através da matéria; de outro lado, ativistas de gênero e esotéricos,
pós-estruturalistas e usuários de enteógenos estão unidos na busca de uma
indeterminação absoluta. Todos têm as suas doses de razão, embora todos estejam
no percurso errado; quer porque não há biopolaridade alguma, mas está tudo
misturado em nossa experiência e na realidade; quer porque desconhecem o
caminho para a verdadeira liberdade, que não é a emancipação do espírito pela
matéria, nem a emancipação da matéria pelo espírito, mas na assimilação de tudo
na verdade de Deus, que é o único que nos pode elevar às alturas de sua própria
incondicionalidade.

A ideologia de gênero, por exemplo, não entrega aquilo que vende: promete livrar o
homem da determinação da heteronormatividade para agrilhoná-lo na
superdeterminação da gêneronormatividade.

Qualquer psiquiatra minimamente experiente sabe que a coisa mais complexa que
existe é fechar um diagnóstico de uma psicopatologia, uma vez que cada uma
ganha contornos cabalmente individuais, numa mistura caleidoscópica quase
impossível de se discernir; qualquer psicólogo sabe que psicoterapia tem muito de
artesanal e que as técnicas não dão conta de abordar a inabarcável diversidade dos
casos.
No fim das contas, todas essas técnicas, mesmo sendo mais ou menos
estandarizadas em protocolos científicos, que podem passar ou não por um crivo
metanarrativo respeitável, são meras aproximações, tentativas de enfoque de uma
realidade quase inacessível de ser enfocada. O trabalho de enfocar é calibrado caso
a caso, com muita dificuldade, sem a verdadeira certeza de se ter “pegado” o caso
pela eventual tipologia, porque a alma, a psique, não pode ser pega!

Ao fim e ao cabo, todas são aproximações e distanciamentos humanos;


aproximações e distanciamentos que podem nos aproximar ou distanciar do divino.
Mas quando o homem resolve parar com esse vai-e-vem, deixa de se fazer de difícil
e abre espaço para esse vir divino que o faz sair de si mesmo fazendo-o entrar
nEle, numa ida sem volta; então, ele descobre que não precisa agarrar nada, pois já
foi agarrado por aquele que nos chama pelo nome e ao qual temos a alegria de
dizer: “eis-me aqui!”

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