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FACULDADE DE ARTES E HUMANIDADES

LITERATURA, CULTURA E DIVERSIDADE


MÉTODOS E TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO NAS HUMANIDADES
PROF.ª DRª A. I. MONIZ E PROF.ª DRª CELINA MARTINS

Métodos e Técnicas de Investigação nas Humanidades


Professora Doutora Celina Martins

n.º 2017120 Laura Alba Moniz Gouveia

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FACULDADE DE ARTES E HUMANIDADES
LITERATURA, CULTURA E DIVERSIDADE
MÉTODOS E TÉCNICAS DE INVESTIGAÇÃO NAS HUMANIDADES
PROF.ª DRª A. I. MONIZ E PROF.ª DRª CELINA MARTINS

b) Tarefa: Análise Comparatista de José Guimarães Rosa e Mia Couto

Análise comparatista
“A terceira margem do rio” de J. Guimarães Rosa
e
“Nas águas do tempo” de Mia Couto
A VIAGEM CONTÍNUA

Indice

Resumo
1. Introdução
1.1.Guimarães Rosa - Intertextualidade ou a influência dialogante
1.2. No estro de Guimarães Rosa – Produção literária de Mia Couto como
consciência intertextual
2. Análise comparatista de ambos os contos
2.1. “A terceira margem do rio”
2.2. “Nas águas do tempo”
2.3. Confluências e divergências
3. Conclusão – A viagem contínua

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Resumo
Este ensaio de análise comparatista revela de que modo se processa o diálogo entre
escritas: “A Terceira Margem do Rio”, de João Guimarães Rosa, e “Nas Águas do
Tempo”, de Mia Couto. Lançando um olhar sobre os processos de criação de Guimarães
Rosa e de como a sua voz se tornou abrangente de forma inequívoca e explícita em Mia
Couto, percorremos a viagem transcendental através da paisagem brasileiro e a sua
expressão na paisagem narrativa moçambicana de Mia Couto, percorrendo estórias em
que se encontram múltiplas ligações intertextuais, submetidas ao crivo de culturas,
localizações e períodos históricos distintos, mas em que paisagens se confundem assim
como a recriação da língua portuguesa, em que se aborda a temática da travessia para a
morte representada pelo rio e o rito de iniciação em ambas: o seu insucesso e o êxito
final.

Palavras-chave: intertextualidade; viagem transcendental; morte; travessia; enigma;


iniciação

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Introdução

Nesta proposta de análise comparatista dos contos de João Guimarães Rosa e


Mia Couto, é capital referir a influência do primeiro autor sobre o segundo e qualquer
cotejo que se possa propor estará sempre subordinado à identificação dos processos de
influência de que resulta o conceito de intertextualidade.

1.1.Guimarães Rosa - Intertextualidade ou a influência dialogante

Médico, diplomata e escritor, João Guimarães Rosa nasceu a 27 de Junho de


1908 e faleceu a 19 de Novembro de 1967. Publica o seu primeiro livro em 1946,
embora anteriormente tivesse enveredado pela poesia (galardoado pela Academia
Brasileira de Letras com o título Magma em 1937) e por várias experiências na área da
ficção que lhe valeram prémios na área do conto (Lima: 2000: 187).
Em entrevista concedida em 1946 ao jornalista Ascendino Leite, Guimarães
Rosa afirma que “o que me preocupa e tortura, ao rever as páginas escritas, é a angústia
de evitar a chapa, o chavão, a frase-feita.” (Duarte:1999: 214).
Guimarães Rosa, nessa rara entrevista que acima é referida, pugna por uma
escrita que deseja libertar de lugares comuns, embora não se desligue das suas origens
nem do saber arcaico ou de todo o património cultural da sua terra natal, e a sua escrita
seja pontuada pela reprodução do falar sertanejo:

“[...] revela então as linhas básicas de sua poética, que se apoiariam principalmente no
amor à terra, nas lembranças da infância, na valorização da natureza, na pesquisa da
linguagem poética e na preferência assumida pela investigação do problema do
destino, da sorte e do azar, da vida e da morte” (Duarte: 2000: 215).”

João Guimarães Rosa diz em primeira mão como se inicia a sua experiência
como escritor e o que a motiva:

“Mas tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com
a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e
imaginar histórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como
personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, numa combinação mais
limpa e mais plausível, porque – como muita gente já compreendeu e já falou – a vida
não passa de histórias mal arranjadas, de espetáculo fora de foco. A arte e o céu serão,
pois, assunto mais sério, e também são países de primeira necessidade (Duarte:1999:
215)”

Em relação à influência de autores na produção literária, o próprio Guimarães


Rosa, numa época em que a palavra «intertextualidade» ainda não tinha sido cunhada já
formara uma opinião em relação não só ao texto escrito mas em relação à influência de
outras esferas entendidas como texto factor-despoletador de outras produções literárias

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em diálogo com outras autorias. No excerto que se segue, a opinião do autor é


sintetizada:

“[...] de qualquer forma, não é sobre si mesmo que Rosa faz considerações explícitas:
“Normalmente, todo escritor devia de ser original – já que cada criatura humana é,
no fundo, tão diferente das outras, quase uma espécie por si” (p. 19), diz ele. O autor,
entretanto, admite a impossibilidade de se esquivar das influências, mas exige que
sejam levados em consideração todos os tipos de influência, e não somente aquelas de
natureza literária: [...] «as influências – inevitáveis – tinham de ser gerais: de todos os
escritores lidos, das coisas vistas, dos filmes, dos jornais, das conversas, do que se come,
do que se bebe, do zumbido dos mosquitos e da dor-de-cabeça, de tudo – tudo,
enfim.» (Camargo: 2012: 193)

Além de uma exigência de originalidade que permeava o seu processo criativo, e


atenção a todos os aspectos da existência que originam uma obra, o autor reconhecia a
sua admiração pelo cânone não sendo de todo alheio nem inconsciente ao conceito de
influência de obras sobre a produção de outras obras, em forma de diálogo, ou como
modo de perpetuar o continuum literário:

“Os grandes livros – e tenham os bois logo nomes: a Bíblia, a Ilíada, a Odisséia, a Divina
Comédia, todo Shakespeare, todo o Goethe, todo Platão principalmente, todo Camões,
e fico nos que frequento mais – são a leitura mais atual, mais moderna e mais
quotidianamente aproveitável que possa haver. [...].”(Guimarães Rosa, apud Camargo,
2012:1)

Historicamente toda a literatura tem bebido de influências e deste modo


justificamos o facto de qualquer análise comparatista na sua elaboração pressupor uma
leitura que se sustente, busque e identifique algum tipo de diálogo, paralelismo ou
identificação e interpenetração, tal como afirma Kristeva (1969):

“[…] todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e
transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade instala-se a
de intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla”1 (Kristeva,
1969: 146).

Acrescente-se que no domínio desta(s) escrita(s) que em si já era dialogante, mas


que se torna eco em outros escritores, o legado de Guimarães Rosa destaca-se tanto pelo
cunho inovador, que é um dos aspectos de sedução da sua escrita, como pelo facto de
ainda hoje ser estímulo para debate e mote para (re)criação.
Guimarães Rosa também seguia as opiniões relativas à recepção da sua obra, não
obstante a sua aversão à emissão de opiniões que lhe fossem solicitadas sobre os
colegas de escrita coevos. Embora à época, não tivesse muito provavelmente noção do

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“(…) tout texte se construit comme mosaique de citations, tout texte est absorption et transformation
d’un autre texte. A la place de la notion d’intersubjectivité s’installe celle d’intertextualité, et le langage
poétique se lit, au moins, comme double” (Kristeva, 1969: 146)

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impacto futuro que a sua obra exerceria sobre outras gerações, sobretudo nos criadores
oriundos dos PALOP.

Não ocupa menor importância, entre os interesses de Guimarães Rosa relativos à


recepção e avaliação de sua obra, o famigerado tema das influências entre autores. O
arquivo do escritor testemunha seu ávido esforço de colecionar as críticas a seus
livros, formando um acervo de mais de 2 mil artigos. Essa fortuna crítica, como é de
se esperar, está repleta de especulações e comparações de Rosa com outros escritores,
ocorrência que nem sempre satisfaz um criador que se quer original.(Camargo,
2012:192-193).

No tocante ao uso do seu português usado para recolher memórias e saudades e


tradições arcaicas Guimarães Rosa primava pela depuração e inovação ou recriação a
nível lexical, morfo-sintáctico e retórico (Daniel:1966), pela busca incessante do
verosímil, do eficaz e isso também se reflectia na forma como revia e corrigia as
edições. A propósito da reedição de uma das suas obras essa exigência materializava-se:

“[...] na preocupação de não alterar nem mesmo as proporções – os espaços – do livro,


[...] raspava, a lâmina de gilete, quase cirurgicamente, letras, palavras, linhas,
parágrafos quase inteiros, para preencher os mesmos lugares, exatíssimo, parecendo às
vezes um legítimo palimpsesto (Lima: 2000: 204-205).

Prévio à revisão era também o processo de experimentação devido à exigência


de «uma língua poética [que] deveria ser «simples, formosa, exata em força e subtileza»
(Lima:2000:191).
Numa carta redigida a 9 de Janeiro de 1965 endereçada a Harriet de Onìs, que
traduziu uma das suas obras para a língua inglesa, Guimarães Rosa explica o seu
processo de criação em três camadas, sendo a terceira o plano metafísico:

“Nos meus livros... tem importância, pelo menos igual ao do sentido da estória, se é
que não muito mais: a poética ou poeticidade da forma, tanto a “sensação” mágica,
visual das palavras, quanto a “eficácia sonora” delas; e mais as alterações viventes do
ritmo, a música subjacente, as fórmulas-esqueletos das frases – transmitindo ao
subconsciente vibrações emotivas subtis. Tudo em 3 planos (como os ensinos das
antigas religiões orientais) [...]” (Daniel, 1966:257)

A sua necessidade de isolamento para poder exercer o seu mester não afectou a
sua capacidade de produzir uma escrita comunicante. Embora os seus coevos tivessem
experimentado algumas perplexidades perante a sua escrita, o pendor comunicativo do
seu “exercício artesanal” não prejudica a sua eficácia em termos de recepção.

Guimarães Rosa, apesar da sua sólida erudição, tem a vantagem de ser um “homem do
povo” num sentido sem paralelo no caso de James Joyce nem no de Mário de
Andrade. Mas o que lhe distingue principalmente o estilo linguístico do de Joyce ou
Mário é a moderação. Os recursos potenciais de todos três são surpreendentemente
semelhantes, mas Guimarães Rosa, além de se preocupar com o aspecto formal da

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obra literária e com a liberdade expressiva, é guiado (e às vezes refreado) por seu
compromisso fundamental com a comunicação [...] (Daniel:1966:250)

1.2. No estro de Guimarães Rosa – Produção literária de Mia Couto


como consciência intertextual

Mia Couto, pseudónimo de António Emílio Leite Couto, nasceu a 5 de Julho de


1955, na cidade da Beira, Moçambique, filho de emigrantes portugueses.
“Ser de fronteiras fluidas, entre Portugal e Moçambique, enriquecido por uma
condição mestiça plural que lhe permite a convivência com diversas mundividências
[...] sente o arrebatamento da arte da oralidade dos contadores populares.
[...] no contexto literário moçambicano [...] criar contos é o modo mais autêntico de
dar continuidade à tradição oral que representa [...] o modelo discursivo mais
apropriado de escrever prosa, porque se ajusta ao real multicultural de um país jovem
cuja identidade ainda está em processo de construção.” (Martins, 2005:95-96)

A sua experiência do mundo marcou-o profundamente «Eu queria ser um


daqueles criadores de magia, fazer adormecer o mundo como se ele fosse uma criança
doente» (Angius & Angius, 1998: 122). Porque vivendo num mundo em que havia
abismos raciais e por conseguinte, violência visível, a sua visão do apartheid em
Moçambique abala-o: “[...] na Beira havia quase apartheid em certas coisas. Não
podiam entrar negros nos autocarros, só no banco de trás... Enfim, era muito
agressivo. No Carnaval os filhos dos brancos vinham com paus e correntes bater nos
filhos dos negros...” (Chabal, 1994: 276).
Distingue-se, assim, de Guimarães Rosa não só pelo facto de ter nascido noutro
continente, mas porque o património cultural moçambicano e a sua situação política
diferem em muito do património herdado por Guimarães Rosa, autor de sua predilecção.

[...] Mia Couto desenvolve a estória como um género miscigenado, moldando-o como
um entrançar polifónico de diversas reescritas. Reescrever é um acto de arte
combinatória que se fundamenta na incessante negociação e rearticulação entre o
tradicional e o moderno, as heranças do passado e o presente literário [...] dando vida a
jogos intertextuais , que revelam laços que unem os diversos imaginários lusófonos.”
(Martins, 2005:96-97)

No entanto, o seu contacto com a escrita do autor brasileiro produz efeitos


profundos na sua existência como pensador e escritor.
Tal como afirma Mia Couto «essa poderosa influência que João Guimarães Rosa
teve em alguma literatura africana de língua portuguesa» (Couto,2009:113) explica-se
por uma propensão que ultrapassa o domínio da literatura.
Sendo o legado rosiano produtor de intertextualidades e de experiências de
recriação da escrita e da língua, não só no tocante a Mia Couto, que assume o seu
fascínio pelo escritor, mas a outros autores.

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Assim, deve-se considerar, antes da leitura que se segue, que embora distantes
geograficamente e produto de realidades culturais, sociais e políticas distintas,
Guimarães Rosa marca a produção literária de alguns autores contemporâneos e que:

“[...] influenciou tanto escritores africanos de língua portuguesa (o caso paradigmático


será Luandino Vieira, mas há outros casos como o angolano Boaventura Cardoso, os
moçambicanos Ascêncio de Freitas e Tomaz Vieira Mário). Haverá por certo uma
necessidade histórica para essa influência. Há razões que ultrapassam o autor.”
(Couto,2009:115)

Mia Couto enumera as razões dessa influência de Guimarães Rosa sobre a sua
produção literária referindo quem Guimarães Rosa é para si, nesse processo de
observação do escritor brasileiro que provocou uma espécie de terramoto na sua alma,
que irá dominar grandemente a sua escrita, e cujas razões tentou compreender.
Em primeiro lugar, Guimarães Rosa representa uma forma de reflectir a escrita e
como chegar a um estado de «intimidade» com esta e se distanciar do seu papel de
escritor para temporariamente ser «não-escritor», introduzindo-se no domínio da «não-
escrita», num jogo de equilibrista em fuga da «racionalidade dos códigos da escrita
enquanto sistema de pensamento» (Couto,2009:114).
Em segundo lugar, de acordo com Mia Couto, Guimarães Rosa viveu a vida de
escritor como «experiência religiosa» sem transformar a literatura em carreira. «Para
Rosa não são os livros que importam, mas o processo da escrita» (Couto:115) em que se
conjugam o «namoro entre língua e pensamento» (Couto,2009:115) e «o gosto do poder
divino da palavra» (Couto,2009:115).
Compreende-se esta proximidade também pelo facto de o território que é a
língua ser comum. A variante do português do Brasil, com todas as suas nuances, e o
português moçambicano, acabam por se comunicar.
Essa influência multifacetada com implicações profundas não só nos conteúdos
mas no tratamento linguístico provavelmente não se operaria no caso de autores
linguisticamente mais afastados ou cujo contacto tivesse sido facultado por traduções.

Na sociedade globalizada actual, profundamente marcada por transformações e


migrações imprevisíveis, já não faz sentido escrever nem reflectir de modo
monolingue. Daí que, inscrito na perspectiva da interculturalidade, Mia Couto encente
a aventura da desviagem ao explorar os processos criativos de Guimarães Rosa,
nomeadamente no campo da neologia. (Martins, 2005:97)

Acerca desta influência que tem repercussões semânticas e formais na obra do


escritor moçambicano, muito ainda haveria a dizer, pois é certo que a influência em
futuras produções intertextuais não se esgotou ainda.

2. Análise comparatista de ambos os contos

2.1. “A terceira margem do rio”

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Começando pela descrição e citação dos aspectos mais pertinentes para análise e
cotejo das narrativas impõe-se, em primeiro lugar, o texto do escritor brasileiro. Este
conto faz parte de uma colectânea publicada pela primeira vez em 1962, sendo a 4.ª
obra que o autor publica em vida.

“A primeira edição do quarto livro rosiano saiu pela Livraria José Olympio Editora em 1962 e
trazia uma alegre capa amarela, cheia de desenhos a bico de pena, que foram refeitos pelo ilustrador
Luís Jardim, a partir de esboços anteriores do próprio Rosa. Tais figuras também aparecem no
sumário ilustrado com belas iluminuras que resumem o enredo das narrativas e mesclam imagens
gráficas e símbolos místicos. (Rodrigues, 2018: 7)

“A terceira margem do rio”, conto de Guimarães Rosa, é o texto que tem como
cenário a proximidade do rio, uma pequena comunidade rural, de cultura católica. A
localização e as falas em discurso directo das personagens revelam-nos a localização no
Sertão brasileiro. Em Guimarães Rosa a natureza “não é cenário mas personagem”
(Lima:2000:190) sendo o ambiente rural o cenário privilegiado das suas narrações.
Além disso, nenhuma das suas estórias pode ser capturada no seu sentido mais profundo
através de leitura superficial, a um plano apenas.

Esta multifacetada interação de contrastes é relevante outrossim à preocupação do


autor com a experiencia e descrição de aspectos múltiplos e simultâneos da realidade.
As suas obras não devem ser lidas e estudadas como contos e romances puramente
realistas, pois fica sempre presente certo elemento surrealista que foge à análise..
(Daniel,1966:256)

A figura central deste relato é o pai, caracterizado pela quietude e silêncio,


homem de poucas palavras, em contraste com a mãe, mulher activa e decidida, «[...] era
homem cumpridor, ordeiro, positivo [...] não figurava mais estúrdio nem mais triste do
que os outros[...] Só quieto [...]» (Rosa,1988:32)
A dada altura, sucede-lhe uma mudança inesperada que deixa a todos
surpreendidos, mas que se deduz ser fruto de uma ponderada decisão, mas que é
interpretada como “doidice”, quebra abrupta com a normalidade do local:

«Mas se deu que, certo dia, [...] mandou fazer para si uma canoa.[...] Era a sério. [...]
de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o
remador. [...] toda fabricada [...] forte e arqueada em rijo [...] para dever durar na água
[...] E esquecer não posso o dia em que a canoa ficou pronta.” (Rosa,1988:32)

O pai, homem calado, apenas profere um adeus, no momento da partida, sem


levar consigo nada a não ser o chapéu. «Sem alegria nem cuidado [...] decidiu um adeus
para a gente. Nem falou outras palavras [...]»
Nota-se a sua proximidade com este filho-narrador, ou talvez a sua preferência
de com este partilhar sabedoria ou conhecimento, pois este é o último de toda a família
a ter contacto com ele. «Espiou manso para mim, me acenando de vir também por uns
passos. [...]» e embora temesse a reacção da mãe diz «[...] mas obedeci, de vez de jeito.»

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Após pedido do filho, fascinado pela perspectiva da viagem com o pai para um
destino misterioso, este vai-se, em silêncio. «- «Pai o senhor me leva junto, nessa sua
canoa?»” [...] “Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me
mandando para trás.» (Rosa,1966:33).
O contador desta estória, poderia muito bem ser, pelo simbolismo, uma
referência intertextual a Orfeu e indício do desfecho desta narrativa breve. O facto de o
filho se ter virado para trás faz com que perca o pai para sempre, impedindo-o de
regressar, transformando a viagem num movimento circular e errático; tal como
acontece com Orfeu e a sua incerteza em relação à presença de Eurídice, voltando-se
para verificar se esta o segue, perde-a para sempre. «Fiz que vim, mas ainda virei, na
grota do mato, para saber.» (Rosa,1988:33). Contudo, aqui os termos invertem-se: não
se trata de um regresso do submundo dos mortos que é comprometido pela curiosidade,
mas de uma viagem de partida sem retorno, navegando as águas de um poderoso e
imenso rio, que jamais poderá ser invertida e cujo profundo simbolismo é a passagem
para a morte.
O rio, muito próximo da casa onde vivia a família, não tinha sido até então lugar
para onde o pai se aventurasse: «[...] o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado
que sempre. Largo de não se poder ver a forma da outra beira.» (Rosa,1988:33)
O pai, nesse convite mudo que dirige ao filho para que o acompanhe brevemente
e veja, dá conta de um propósito: ele mesmo sugere o rito iniciático que o filho poderia
viver, incitando-o e iniciando-o apenas pela sugestão e com o olhar. Apesar do
desconhecimento do rio, o pai não hesita: «Nosso pai entrou na canoa e desamarrou,
pelo remar. E a canoa saiu se indo [...]» (Rosa,1988:33)
Mas esta é, como já foi dito, uma viagem sem retorno, e também sem destino
aparente, aos olhos dos vivos, embora seja uma viagem contínua, aparentemente
infindável e que esse homem transforma em missão:

“Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de permanecer naqueles
espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca
mais,”
[...] descrevendo que nosso pai nunca se surgia de tomar a terra, em ponto nem canto,
de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente
(Rosa:1988:33)
«Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar
ninguém se chegar à pega ou à fala.[...]» (Rosa,1966:34)

O rio por onde navega incessantemente este barqueiro assume num outro plano
de interpretação o papel de uma abstração que leva ao transcendental: e funde-se com a
dimensão do tempo, é indissociável da existência e do espaço, mas é também elemento
obscuro e misterioso que existe noutra dimensão, fora do tempo-espaço dos vivos
Por ele passam tempestades, perante ele assiste-se a vários episódios do
quotidiano, batismos, celebrações, partidas para outras paragens, mas o rio permanece,
envolvendo em mistério o navegador e transformando-o e a quem o busca. A ausência
enigmática do pai transforma as pessoas e estas, uma a uma, decidem mudar de lugar, e
o próprio filho que permanece no lugar onde nasceu. «Os tempos mudavam, no devagar
depressa dos tempos. [...] (Rosa:1966,35)

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Mais tarde, o filho afirma ser homem de «tristes palavras» e pergunta-se por que
motivo se sente tão culpado, não só pela condição do pai, mas pelo domínio do rio, pela
passagem do tempo, pela presença constante do tempo que ninguém pode evadir, que
lhe mostra na fisionomia as marcas de degradação do corpo, vivendo a carregar as
«bagagens da vida». «Se o meu pai sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio –
pondo perpétuo. Eu sofria já o começo da velhice – esta vida era só demoramento.»
(Rosa,1966:36)
E num misto de ansiedade e preocupação, pela passagem do rio-tempo, o filho
decide chamar o pai. É a sua vez de cumprir o rito de iniciação por imposição do
respeito que deve ao pai, pelo domínio que o tempo-rio também exerce sobre si. Pela
primeira vez, homem feito, com os primeiros cabelos brancos, decide chamar o pai
porque «meu coração bateu no compasso mais certo.» (Rosa,1966:36) E tendo sido
chamado, o pai anui:

«Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente:
porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro,
depois de tamanhos anos decorridos!» (Rosa,1966:37).

E do mesmo modo que tinha traído a confiança do pai, voltando-se para assistir
ao seu embarque, anos antes, de novo o trai, falhando na passagem de testemunho e
logo na viagem de iniciação e, interrompendo o fluxo da tradição e o correr do tempo: o
rio perde o seu barqueiro e a sua função simbólica de veículo de passagem para o além.
«Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além.» (Rosa,1966:37) e ninguém
espera que se regresse da morte: esse é território insondável e aterrorizador que deve ser
mantido na sombra, à distância.
O aspecto do pai já nos tinha sido narrado, e o seu envelhecimento e degradação
são sintetizados pela transformação ao longo do tempo no chapéu com que partira:

“De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de
meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e
meses, e os anos – sem fazer conta do se-ir do viver.” (Rosa,1966:34)

E em seguida pela descrição que o narrador nos faz:

“Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro,
ficado preto de sol e dos pelos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu [...]”.
(Rosa,1966:35)

A sua metamorfose e decadência, no meio de uma persistência inumana podem


ser interpretáveis como personificação de um elemento da mitologia grega: Caronte, na
sua função de transportar os mortos embora este pai não transporte nenhum morto a não
ser ele mesmo.

“Caronte é um génio do mundo infernal. É a ele que incumbe a tarefa de passar as


almas através dos pântanos do Aqueronte para a outra margem do rio dos mortos.
[...] Caronte é representado como um velho muito feio, de barba hirsuta e inteiramente
grisalha, com um manto andrajoso e um chapéu redondo.” (Grimal,1999: 76)

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Este medo enraizado da morte, e o sentimento de culpa, próprios de um certa


tradição que se confunde na cultura católica, ou da sua interpretação uma vez que «[…]
o imaginário da morte se afigura, quase sempre, como algo negativo, tenebroso, que se
opõe à vida» (Secco, 2006: 82) definem os sentimentos e pensamentos do filho
enquanto espera, depois da deserção da missão para que fora chamado, consciente do
seu falhanço: «Sou o que não foi, o que vai ficar calado.» (Rosa,1966:37). Este ficar
calado significa não que não possa proferir palavras, mas que deixou de ser
comunicante e perpetuador de uma missão que lhe fora incumbida e que recusou por
pavor, vendo e vivendo a vida como tortura e espera: «demoramento».
Temos assim, neste texto de Guimarães Rosa a expressão da tríade criativa e
interpretativa que referimos anteriormente, e que pautava o seu processo de composição
escrita, aliada à subversão dos parâmetros da língua reinventada de que foi artesão,
criando um inusitado idiolecto.

Existe no estilo do autor um paradoxo inerente, pois ao passo que se desenvolve


segundo linhas essencialmente orais, regionalistas, possui um tom claramente retórico,
frequentemente de elevada qualidade poética. [...] contraste entre a simplicidade
bárbara das suas personagens por um lado e a delicada artificialidade de muitas das
suas técnicas poéticas e retóricas por outro. É contudo êste mesmo paradoxo de tom,
também evidente nos variados níveis de vocabulário empregados pelo autor, que
fascina tanto o leitor e o mantém sempre alerta para o inesperado. [...] Assim, pois, há
[...] nas obras roseanas, um esforço dinâmico que se revela [...] também na sua sintaxe
torturada, suas criações expressivas e as técnicas estruturais tão pouco comuns.
(Daniel,1966:256)

E assim chegamos ao título do conto “a terceira margem do rio” que em si


mesmo representa o que iria acontecer, sugestão de um percurso que não se cumpre, um
rito de iniciação gorado pela desistência daquele “que ficou” na margem material e
terrena sem compreender essa outra terceira margem.

2.2. “Nas águas do tempo”

O narrador de Mia Couto descreve a memória de uma viagem conjunta de dois


seres, avô e neto, numa frágil embarcação, através do rio.

“Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele
remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava,
onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.”
(Couto,1994:13)

O avô tem um destino, o de se confundir com o mito, que é o lugar onde vive e
que dá sentido à sua existência, para que o neto um dia faça o mesmo, embora este
ainda não tenha percebido.“Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a
rede ficava amolecendo o assento.” (Couto,1994:13)
Esta é uma espécie de rito de iniciação, e de passagem de testemunho. Num
gesto voluntário o avô guia o neto, com sabedoria que não precisa de olhos, nem de

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vigor de juventude: “[...] chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me


segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um
cego desbengalado. No entanto era ele quem me conduzia [...]” (Couto,1994:13)
O concho do avô, colocado inocentemente neste cenário, parece ter vida própria
como que de ser animado. Um dos termos que descreve a canoa é «ensonada», como se
a sua missão na vida fosse embalar e ser embalada despreocupadamente.“Nosso
barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo.” (Couto,1994:14)
E a natureza é descrita também através de personificações, com vida, humores e
vontade própria. O rio neste cenário deve ser respeitado e seguido no seu fluir:

“- Sempre em favor da água, nunca esqueça!


Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer
desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem.” (Couto,1994:14)

A embarcação, feita de pedaços desse mundo em que se fundem várias


dimensões, colabora com a natureza, com o mistério que se oculta no lago onde
desemboca o rio, «zona interdita» e lugar genesíaco em que neste mítico universo surgiu
o primeiro homem:
“Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos
panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o
primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não
podia haver homem mais antigo que meu avô.” (Couto,1994:15)

E quando os fantasmas que povoam esse mistério não são saudados


devidamente, ou quando o pacto com essa dimensão é violado, para retomá-lo e
perpetuá-lo é necessário reverenciar os seres, restaurando o equilíbrio dessa subtil
comunicação; não fazê-lo tem como resultado o abismo metafórico que surge no lago.
Mas para isso é necessário conhecer as regras:

“Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem,
colocar pé em terra não-firme.
– Nunca! Nunca faça isso!” (Couto,1994:15)

Neste mundo as regras servem para que não se quebre o pacto entre o tempo
contável da materialidade e a ponte que leva às «eternidades» do transcendental que
habita o génesis.

“O ar dele era das maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio
em meu velho. Desculpei-me: estava descendo do barco mas era só um pedacito de
tempo. Mas ele ripostou:
– Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.”
(Couto,1994:15)

O avô travessa um percurso proibido até então e deixa o neto entregue à solidão
de saber um segredo do qual o avô foi detentor antes de se transformar em miragem.

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Desta vez não diz o pedacito de tempo fraccionado em agora – que era o estar
presente na existência e na vida – com que se movia no espaço com o neto “– Voltamos
antes de um agorinha” (Couto,1994:13). Ruma em direção às eternidades e deixa o neto
na solidão do saber de que é detentor, e esta solidão deve ser interpretada como a
consciência de si, a aceitação de um percurso próprio e individual que simboliza toda a
vivência da sua cultura, por parte do neto, como antes era já pertença do avô, em paz
com o seu lugar e modo de vida e que é transmitido de geração em geração.

2.3. Confluências e divergências

Em ambas as histórias o título refere a viagem transcendental e introduz a


perspectiva que deve ser usada para que a leitura se dirija para uma incursão nesse
domínio.
“A terceira margem do rio” é a dimensão metafísica da existência vivida em
conflito, pois nenhum rio tem três margens, logo, a terceira margem tem de ser
entendida como área de transfiguração e mistério mas que nunca é integrada,
precisamente por ser uma margem inesperada e irracional.

“O título da sexta narrativa deste livro inaugural instaura a natureza insólita de um rio
com três margens, sem oferecer nenhuma pista de acesso ao leitor, adensando o
mistério e surgindo, em consequência, como um bom título, segundo Eco.” (Martins,
2005:97)

“Nas águas do tempo”, conto que se baseia no primeiro, essa terceira margem é
plenamente integrada, o rio assume uma dimensão de tempo que domina o curso da
existência e essa componente integra o espírito pacificamente.
“Por seu lado, o título da estória de Mia Couto, emana um poder de sugestão que
indicia uma vertente outra do real e sugere a metáfora do tempo comparado ao fluir
contínuo da água. [...] “Nas águas do tempo” estabelece uma relação intertextual com
o livro rosiano pela mesma confluência simbólica entre a água e o tempo: o rio é a
metáfora do curso da vida.” (Martins, 2005:98)

Tanto a água – o rio – como a terra são elementos metafóricos que se compõem
para formar dois percursos alegóricos entre a vida terrena e a dimensão espiritual em
ambos os relatos. A viagem no rio e o uso da embarcação – por sua vez devem ser
reinterpretadas à luz de um rito de iniciação que se efectua pela passagem de
testemunho de valores enraizados em culturas distintas e no que estas significam na sua
dimensão identitária e intemporal.
As próprias embarcações são caracterizadas de modo diferente: em Guimarães
Rosa, a solidez, em Mia Couto a leveza, a personalidade, e a fragilidade.
Os modos distintos de processar a realidade e a tradição são a causa do resultado
final da estória: insucesso ou êxito.
Em ambos os trechos narrativos detectam-se características que os irmanam:
ambos narram viagens que o indivíduo deve fazer interiormente em direção à morte.
Há, no comportamento dos personagens, algumas diferenças.

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O avô vive em diálogo com a natureza, uma forma de ser africana em que a vida
é vista como união e diálogo com a natureza, em que a morte é uma passagem para essa
união, quase em mimetismo, mas em que o ser que morre se transforma e entra numa
esfera em que a comunicação se faz pelo espírito, e quando acontece é em forma de
respeitosa veneração e comunhão. O avô transmite essa forma de viver intensamente e
de morrer integrando-se harmoniosamente com e nessa terceira margem ao neto, e o
desejo de se fundir com a natureza e fazer essa viagem iniciática com a certeza de que
irá concretizá-la, fica-lhe como herança que irá passar aos descendentes. O avô é
símbolo da natureza, da solidez da terra e da memória que tem presente a tradição
longínqua e vive para poder passar esse testemunho. O rito de passagem desse
testemunho verte-se naturalmente para o neto que ele, de forma comunicante lhe
transmite, mostrando-lhe as regras e ensinando-o a não recear, embora o enigma, o
desconhecido, permaneça, no neto, tal como no avô, o sentido do dever passar
testemunho prevalece.
No caso do filho cujo pai lhe navega na imaginação ou em miragens, à medida
que a narração avança, vai-se submetendo ora ao medo, ora à culpa, desenvencilhando-
se do primeiro e de qualquer pacto com a semi-existência, ou aparente suicídio, do pai e
escapando desse destino por se recusar a cair no abismo.
“O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade
de viver.” (Couto,1994:13) em contraste com a quietude sem propósito que cava um
abismo arrepiante do pai em Guimarães Rosa.
Os olhos e o olhar são também um elemento que distingue ambos os adultos.
O pai mostra na sua expressão o que deseja, mas não ensina a olhar, e é o filho
que tem de aprender a ver sem explicações – esse não explicar acaba por ser a causa do
pavor.
O avô ensina o neto a olhar, embora pareça um cego sem bengala, e explica-lhe
que há um olhar interior que é necessário encontrar, cada um dentro de si, para poder
ver os fantasmas e os seus panos, entrar no domínio do inefável, nebuloso, do que
apenas se compreende em sonhos.
Em ambos os adultos há maneiras distintas de silenciar o conhecimento. O avô
consegue ser eloquente, mesmo quando não fala e ensina ao neto que estar calado não é
defeito, mas pausa para contemplação e reflexão e integração no mundo mágico do
olhar interior.

“Os dentes nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e
conversam sem nada falarem.
“O avô, calado espiava as longínquas margens. [...] Ficávamos assim, como em reza,
tão quietos que parecíamos perfeitos” (Couto,0000:13-14)

O pai, no seu silêncio, e no afastamento, sem levar o filho, deixa-lhe medo e


vazio que este tem de preencher com perguntas e sentimentos de culpa e é indiferente a
qualquer tentativa de comunicação, numa variante de despotismo caronteano.“[Caronte]
Dirige a barca fúnebre, mas não rema. São as almas que desempenham este ofício.
Mostra-se tirânico e brutal com elas, como um verdadeiro déspota.” (Grimal,1999:76)
porque o silêncio e a divisão são formas de desdém e despotismo.

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Essa incomunicabilidade tem efeitos na maneira como o filho se relaciona com o


divino, no que ele tem de transcendental. O não explicado e irracional comportamento
do pai, o seu estoicismo teimoso depois da partida em viagem circular na terceira
margem do rio, tornando-se presença permanente adivinhada, que navega ao largo, mas
nunca se aproxima, causador de terrores, escondendo-se na paisagem fluvial misteriosa,
em silêncio, e metamorfoseando-se em monstro, mantendo-se sempre separado, sem se
misturar com o rio, pode ser evocação do Deus silencioso dos católicos. O acto de
insanidade do pai, e esta representação de Caronte, podem ser fundidos com o acto de
um Deus que se sacrificou pelo homem, e que o homem não entende. Esse ser, como o
pai, continua em silêncio, e causa pavor e fascínio: o desejo de segui-lo existe, mas é
travado pelo medo da morte – esta é acto finito – quem se vai não tem panos para
abanar.
Não há uma busca deliberada por parte tanto do neto como do filho – o encontro
com a própria consciência acontece como o correr das águas do rio – é-nos mostrado o
seu percurso. Num caso pacificamente, no outro em conflito constante duma boa
intenção que sai gorada.

3. Conclusão – A viagem contínua

Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criação de fronteira, alguém que
vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade. O
nosso papel é o de criarmos os pressupostos de um pensamento mais nosso, para que a
avaliação do nosso lugar e do nosso tempo deixe de ser feita a partir de categorias
criadas pelos outros. (Couto, 2005: 59)

É verdade que o passado não pode ser nem reconstruído, nem reconstituído, mas
o grande mérito tanto de J. Guimarães Rosa como de Mia Couto, é o terem conseguido
integrar todas as facetas, por muito contraditórias que fossem, da sua realidade e
conferirem-lhes forma e darem-lhes futuro nos seus idiolectos.

“Irmanados, remam na barca da invenção lúdica, fascinados pela demanda da


mestiçagem diversificada do idioma luso, língua maleável que revivesce num jogo
constante de «brincriações» no complexo universo da lusofonia.” (Martins, 2005:97)

Tanto a terra, como a água, dois potentes símbolos nesta escrita habitam dentro
das personagens e ambas sustentam tanto a habitação do lugar como a viagem.
Ilustrados por paisagem luxuriante em que abundam mitos primordiais tanto a terra
como a água do rio permitem a viagem.
E esta viagem por ser entendida num outro patamar de compreensão como a
viagem contínua do processo criativo de transmissão de saberes, «sob o signo do
entrecruzamento de oceanos distantes, o Atlântico e o Índico, transmutados em rios num
vaivém de águas subterrâneas.» (Martins, 2005:97)
Não se pode descurar que há um diálogo intercontinental e intercultural –
transcultural – na escrita de Mia Couto, observador e sorvedor da estética literária e

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cultural de Guimarães Rosa, mas este diálogo pode ser também entendido como o
diálogo natural de um hemisfério Sul e cujo resultado natural e matemático, é o evoluir
previsível da mistura de circunstâncias caracterizadas por variações sobre o mesmo
tema que em última análise consiste na reinvenção dos parâmetros da escrita e da
língua.

“[Mia Couto] tece várias poéticas, processos e técnicas, que desembocam na


«oralitura»: uma síntese híbrida de transculturações estilísticas e culturais em que a
expressão oral e a escrita coabitam, liberadas dos conflitos e níveis de hierarquização
do canône. Deste modo o projecto literário de Mia Couto concretiza a desejada
triangulação lusófona, aventada por Eduardo Lourenço: sedimentar uma mitologia
partilhada em que o Brasil, Moçambique – e todos os países dos PALOP – e Portugal
confraternizam, assumindo cada um a sua pluralidade e diferença culturais.” (Martins,
2005:96)

Mais, ambos os escritores se situam pela experiência de vida política e pela


missão de observadores, como zeladores e sofisticados filósofos e sociólogos da cultura
do seu país, tanto pela consciência histórica, como pelo respeito e carinho que devotam
ao seu passado, ao seu presente e pela noção de evolução e crescimento das suas
realidades e do património exuberante que as constituem. Se o paradigma ocidental
sofre de cansaço, já estas culturas multifacetadas de que são provenientes, estão ainda
no começo da sua história, abertas a influências e sôfregas por uma aprendizagem que
lhes acrescente isento conhecimento na sua humanidade, mas que as não deturpe ou
escravize.

[...] Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse
sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá
onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas
vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro
permaneceram lunares. Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo
e vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada. Desse território
onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que
volta (Couto, 1994:7).

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BIBLIOGRAFIA ACTIVA

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