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Etnodesporto: a guerra dos guerreiros

Dr. José Ronaldo Fassheber


Unicentro/Brasil

Muitas práticas corporais e jogos ditos tradicionais entre povos indígenas visavam a
construção do corpo do guerreiro. Tais práticas têm relações estreitas com a cosmologia e a
organização social de cada povo indígena em suas especificidades, marcando fisicamente sua
identidade cultural. Uma vez constituído, por mais glórias que um guerreiro pode obter para
si, ele sempre necessitará de sua próxima guerra. Com o apaziguamento e confinamento
dessas populações os jogos e práticas ganharam novos contornos. Como imagem modelar de
si mesmos, perante a seu grupo ou perante aos outros, os guerreiros indígenas transformaram-
se em etnodesportistas, seja pela metáfora atribuída entre esporte e guerra, seja por uma
adaptação de modo sincrético entre novas e antigas práticas. Mas o modelo de esporte carrega
ainda o mesmo paradoxo: Uma vez constituído, por mais glórias que um etnodesportista pode
obter para si, ele sempre necessitará de sua próxima partida ou torneio para reafirmar sua
identidade. Este esporte não é apenas a cópia de uma sociedade estranha, ela pertence a
“natureza que as culturas têm de criar uma “segunda natureza”, isto é, a faculdade mimética
como um poder de alteridade. Essa realidade empírica tem sido discutida por diversos autores
em relação ao Futebol nas aldeias ou aos Jogos dos Povos Indígenas no Brasil, desde 1996.
Existe uma esportivização dos povos indígenas? Ou existe uma “indianização” dos esportes
modernos? Existe um tipo ideal etnodesportista? De quem é a demanda por olimpíadas
indígenas? A difusão da corrida de toras unifica pensamentos e dissipa diferenças e lutas
históricas? Que memórias se produzem nesses encontros? Este artigo pretende discutir essas
questões a partir de referenciais teóricos e de experiências de campo realizadas
contemporaneamente nos Jogos dos Povos Indígenas do Brasil.

******

– Era o tempo dos antigos, wãxi!...

... rememorou Waktun, um jambré kofá, rezador do Kikikói, da metade Kamé dos
Kaingang. As riscas de carvão em seu rosto suado e envelhecido não o desmentiriam. Falava
ali de uma memória que não era a dele, que ele nunca tinha vivenciado de criança ou sequer
visto de longe. Uma memória sobre coisas que se quer esquecer pode ser maldita. Uma
memória dita sempre no idioma, quase sussurrada se em português, já sem ser venerada e sem
o menor orgulho de se lembrar. Mas era contada por seus avós. E pelos avós de seus avós,
mas nunca as mesmas histórias ditas das mesmas performances.

Era o tempo antes do tempo, do uri, dos nossos carrilhões de cronos. Tempo em que se
faziam guerras com os fóg Guarani, antes dos fóg kupríg e até mesmo entre os parentes
vizinhos para pilhar seu milho, suas mulheres ou sua acomodada paz. É possível que outras
nações tenham passado por suas trilhas, por suas histórias, mas jamais teriam passado
despercebidos pelos bravos estrategistas Kaingang. Tinham uma percepção cuidadosamente
treinada para o ambiente. Ouvidos, narinas e olhos alertos, sabiam quem passava por suas
trilhas pelo cheiro, se amigo ou fóg korég, mesmo horas depois. Andavam uns sobre as
pegadas dos outros para parecerem poucos, mas desconfiavam de marcas profundas no solo.
Sinal de muitos. Mulher discretamente perfumada nunca poderia ir às suas pescarias. Mas
naquele tempo sem perfumes no corpo, mulher Kaingang era temida guerreira. Homem
também. Era o tempo de antes, em que o Kujá recebia de seu jangrê mig as potências para
curar os seus. Uma medicina fortíssima de muitos remédios-do-mato, que eles chamam de
venh-kagta. Medicina forte para uma região de temperaturas adversas, por vezes negativa.
Oca, para eles, era debaixo da terra. O jangrê mig o guiava pelo mundo em que os animais se
humanizavam e os homens escutavam seus ensinamentos de venh-kagta.

É por isso, que os Kaingang e diversos outros povos indígenas usam roupas sociais de
animais guias, encorporando-os. Perspectivamente, como aponta Viveiro de Castro, quando o
Kujá se veste de mig, não se trata de um adereço vaidoso, mas ele pretende funcionar como
um mig, assim como nossos escafandristas pretendem funcionar como peixes, sem
necessariamente parecer com eles.

Naquele tempo se praticava o Kanjire, um jogo de guerra que sempre resultava na


morte de alguns participantes, mas nunca em inimizade. Ao contrário, cantavam e enterravam
juntos os seus mortos com todos os rituais que garantem a passagem de seus mortos. Para
tanto, durante o Kikikói, ritual que era central para eles, cantavam e rezavam os clãs Kamé e
Kairú, uns para os outros em complementaridade e ambos por seus respectivos jangrê, a fim
de abrir caminho aos kupríg dos parentes até a morada do numbê. O Kanjire era um longo
jogo de guerra, um treino que para os pahy bang não passava de um jogo pueril, coisa para
treinar suas crianças. Não tinham todas as regras bem definidas, variando aqui e acolá na
imensa territorialidade por onde passavam estes semi-nômades, caçando tatetos, bugios e
veados, coletando muito pinhão dos meses frios e plantando suas abóboras e milhos de grão
preto.

É recorrente na literatura dos viajantes, missionários, engenheiros e administradores,


que por vizinhança até, os Kaingang convidavam seus parentes para o Kanjire. Esse jogo de
ágrafos foi grafado em literatura novecentista em sua maioria. De Debret a Telêmaco Borba,
todos comentam, ora horrorizados com tal jogo. Nas primeiras décadas do século vinte, o
Kanjire já aparece apenas como memória indígena relatada aos etnógrafos. Haviam
demonizado e proibido o que chamaram de barbárie.
Geralmente o Kanjire era disputado em um local descampado, em que cada lado já
vinha municiado com seus tocos e tacapes, de madeira de lei ou de abundante palmito.
Vinham as mulheres com suas armaduras de casca ou de taquaras amarradas. Armazenavam
tocos, remuniciavam os pares e recolhiam mortos e feridos no campo do jogo de guerra. Os
homens de cada lado se alinhavam e travavam o jogo. Não se contavam homens e madeiras,
cada um trazia tudo o que conseguia previamente. Às vezes os grupos podiam chegar
cautelosamente para não serem facilmente emboscados, até partirem para cima dos
adversários com vozerios, ofensas, batendo seus tocos, outras vezes não se tinha a menor
precaução, partia-se logo para a intimidação dos oponentes com gritos, arremessos e pancadas
generalizadas. Tocos iam e vinham de todos os lados, batiam-se furando olhos, quebrando
braços e pernas e quase sempre matando parentes dos dois lados.

As mulheres estavam também nessa peleja. Fossem para adentrar em meio aos campos
a fim de recolher aqueles feridos, tratar-lhes e quem sabe devolver-lhes ao embate. Fossem
para recolher os paus e tocos espalhados que não havia atingido a ninguém e os que tinham
ferido os amigos de dois lados, mas que deveriam municiar os sedentos guerreiros do Kanjire.
Iam lá as mulheres kaingang com suas carapaças tecidas de taquara, tal escudo de peito que
não vestiria nenhum de seus homens. O jogo poderia levar dias, atravessando as noites de
fogueira, administrada e sustentada pelas mulheres, momento em que se acendiam os tocos e
tacapes e o chamavam de Pinjire. Podiam perceber os traçados acesos no ar ou ainda recebê-
los apagados em suas cabeças. Dessa maneira, somavam-se ainda diversas queimaduras aos já
combalidos Kaingang. Enfim, como descrito pelo olhar de nossos gráficos novecentistas, as
práticas do Kanjire e do Pinjire não poderiam mais existir.

Não era o que deviam pensar os Kaingang e outros povos alijados de suas práticas
corporais tradicionais pelo estranhamento dos colonizadores. Brinquedo de guerra que educa
o corpo sob uma visão de mundo. Os mecanismos que diferentes culturas utilizam para educar
seus jovens – mecanismos estes que marcam a identidade de cada qual –, são antes gravados
mnemo-tecnicamente no corpo, principalmente nos ritos de passagem. O custo é sempre a
dor, pois de acordo com Clastres (1978, p.129) se trata de "pedagogia de afirmação e não
diálogo".

Com a colonização – e o ethos cristão dos diversos colonizadores –, várias


manifestações culturais Kaingang se tornaram proscritas. Tal e qual o processo de interrupção
dos rituais do Kikikói, considerada demoníaca, ocorre o processo de interrupção de certos
jogos tradicionais, principalmente esses descritos até aqui e que têm caráter beligerante. Daí é
possível crer que as tentativas de interrupção deste jogo tradicional começaram tão logo os
tais jogos começaram a ser descritos na literatura de etnógrafos, viajantes ou administradores.

Obviamente que as tentativas de silenciamento e mesmo as proibições desses jogos de


guerra encontraram resistência por parte dos Kaingang à época. Sobre essa persistência em
jogar o Kanjire, os anciãos reclamavam das tentativas de interdição, pois o jogo lhes parecia
trivial brincadeira que sequer os trazia mágoa ou rancor em jogá-los, ainda que as mortes
pudessem ocorrer, mas não o fim de suas amizades, festas e fandangos. Mas aqueles tempos
dos embates de risco foram sendo regrados e simbolizados, guiando-se para uma direção de
apaziguamento, mas não para fim das violências.

Assim, práticas como esses jogos Kanjire e Pinjire, bárbaros e torturantes para o
colonizador, e quase infantis para os Kaingang, mas enfim, treinamentos de guerra, foram
relegados a nenhum plano de existência, turvando-se no esquecimento. Hoje, rememorar
estes jogos Kaingang distantes no tempo é raro, mesmo entre os anciãos. Não é de se
surpreender que na memória atual do grupo, o Kanjire não tem destaque e já há muito tempo
perdeu-se o interesse por suas narrativas. Tommasino (1995) conseguiu algumas informações
dos anciãos Kaingang do Tibagi (PR) que se lembravam desta diversão que praticavam com
sabugos acesos que jogavam uns nos outros, ficando na dúvida se não há por trás deste quase
esquecimento, um envergonhado silêncio imposto por distantes décadas de refreamento de
tais jogos e de várias outras práticas culturais.

A nosso ver, não apenas as estratégias de poder e de controle dos colonizadores, mas
também os sentimentos de pudor e vergonha do ethos cristão contribuíram para esse
silenciamento. Esses jogos que imitavam a guerra e preparavam seus corpos para elas
contribuíram para amaldiçoar a identidade do grupo, tratado regionalmente como beligerante.
E desde outrora, desde a suspensão dos efeitos de sua “humanidade” por D. João VI em Carta
Régia de 1808, vigorada até 1810 (Fernandes, 2004).

O fim dos jogos tradicionais de guerra foi um duro golpe em uma sociedade guerreira?
Afinal, como lembra Pierre Clastres, “o guerreiro é, antes de mais nada, sua paixão pela
guerra” [2004, p.284], caso dos Kaingang. O etnógrafo explica as motivações daqueles que
buscavam o status de guerreiro. A sociedade é aquela que confere o prestígio às ações
empreendidas pelos guerreiros, aprisionando-os numa lógica em que a glória por uma ação
marcante se dissipa no memento em que é alcançada, exigindo uma nova mostra que supere a
anterior. Essa é a importância modelar do guerreiro diante de seu grupo e essa é figura
modelar em que cada sociedade faz de seus líderes os espelhos na qual se reflete não apenas
as tradições, mas também o devir da sociedade

Tudo isso foi posto em xeque nas diversas aldeias Kaingang. Construir corpos de
guerreiros para que? Para qual outra guerra? De mais a mais ou de menos a menos ainda, se
não há mais guerras por que haveria mais jogos de guerra kaingang? Então, como seria
possível se forjar o corpo indígena de seus filhos? Onde se podem rearranjar as identidades
culturais para eles? Como negociá-las sem perder de vista seus caros hábitos culturais?

Em todas as culturas, indígenas e não indígenas, o guerreiro sempre viverá de sua


próxima guerra, não obstante o quanto de sucessos ele acumula de outras guerras passadas. As
guerras passadas só o fazem um bom ex-guerreiro e sua identidade só se reafirma se há algo
porque lutar. É o que sua sociedade o cobrará. Pode parecer cruel, mas outras identidades se
fazem assim.Nós mesmos, nas tribos científicas do Brasil, vivemos situação semelhante:
pouco importa se um excelente cientista levará dez ou vinte anos aprofundados em uma
pesquisa séria e vital. Quem sabe para a cura do câncer, da AIDS ou da intolerância. Ou
mesmo para revolucionar métodos educativos ou de empoderamento social e distribuição de
renda. Não, o importante para a identidade do cientista brasileiro é produzir um pequeno texto
científico com algumas contribuições até significativas, mas que podem ser avaliadas e
mensuradas a cada três anos, segundos critérios por especificidade de cada área, que te dirão
se você é um cientista ou se talvez um ex-cientista1.

Mas se a identidade do guerreiro ou do cientista é a eterna batalha de se afirmar


perante seus pares, parece não haver muitas saídas. Parece. Mas há. Aliás, sempre houve haja
vista as culturas humanas serem dinâmicas e tradições serem inventadas e reinventadas ao
longo da história cultural de um povo. Mesmo um grupo isolado – e no Brasil estima-se ainda
haver cerca de cinquenta grupos indígenas isolados na Amazônia legal – não se repete, ao
contrário, se ressignifica porque cada experiência é original e cria novos significados sejam
eles narrativos dramáticos ou rituais.

Daí a saída pelo Futebol, jogado por todo século XX, enquanto se silenciavam e se
esqueciam do Kangire. Podemos pensar que a introdução do Futebol, na década de 1920, ter

1
Sim, penso que a CAPES faz isso com nossas identidades. Não importa ter descoberto a cura do câncer hoje, se
vê não aderir a lógica imposta pela CAPES do publicar ou perecer a cada três anos, sempre de olho no próximo
triênio, você estará do lado de fora ou jamais entrará em determinados círculos. Termos como
interdisciplinaridade ou profundidade são bonitos de se ler e de se estampar em chamadas e cartazes, mas no
darwinismo acadêmico pouco funciona, pois são estratégias identitárias de médio e longo prazo e não fazem
sentido. Obstáculos e precariedades que vislumbram a quantidade em detrimento à qualidade da ciência
produzida no Brasil, reflexo de um Estado historicamente fraco.
soado como boa metáfora das guerras e dos jogos de guerra Kaingang. Como tantos outros
elementos trazidos do contato – como o mundo do trabalho, as religiões, etc. –, o Futebol
tornou-se prática incorporada à vida Kaingang há mais de oitenta anos atrás. Jogo de guerra
ressignificado por faculdade mimética, e que traz consigo novas configurações de identidade.
Afinal o Futebol diz muito sobre as ações de avançar sobre o território adversário, conquistar
o espaço do outro, inibir seus movimentos, arremessar uma bola e até golpeá-la, eventos que
lembram o Kanjire.

Desta maneira, parte-se do pressuposto de que a faculdade mimética pertence à


natureza que as culturas utilizam para criar uma “segunda natureza”: o Etnodesporto
(Fassheber, 2006, 2010)2. Ao utilizarmos esse conceito, precisamos levar em conta, portanto,
uma mimesis3 que reconheça as duas atividades: jogos e esporte. Podemos falar, por um lado,
na mimesis dos jogos tradicionais, se reconhecermos que na construção dos jogos tradicionais
também houve contato no aprendizado com outras culturas. Pela mimesis isto é, ela não copia
o original, mas recria e dá uma identidade própria ao que foi aprendido. Por outro lado, a
encorporação da tradição inventada dos esportes modernos, principalmente o Futebol, tornou-
se uma realidade nos cotidianos de diversas aldeias. No caso dos Kaingang, a maior atividade
grupal ao lado dos ajutórios da roça.

***

Foi esse mesmo caráter mimético que fez emergir já no final do século XX os Jogos
dos Povos Indígenas do Brasil, com edições iniciadas em 1996, na cidade de Goiânia. Não por
acaso ou pela inexistente benevolência dos financiadores dos esportes brasileiros, mas uma
longa e antiga luta de destacadas lideranças como os irmãos Carlos e Marcos Terena,
remontando pelo menos duas décadas antes como nos mostrou recente e detalhadamente
Gruppi (2013). A mimesis dos Jogos Indígenas ao sabor dos jogos escolares ou de outros
modelos olímpicos de competição. E como tais, ao sabor das repetições, ganharam cada vez
mais destaque nacional e internacional e financiamento governamental de quase todas as

2
Etno-Desporto Indígena: é a prática das atividades físicas tanto sob a forma de jogos tradicionais específicos e
a mimesis que dinamiza estes jogos, quanto sob a forma de adesão ao processo de “mimesis do esporte global”
da sociedade Fóg. Em outros termos, é a capacidade de cada povo indígena de adaptar-se aos esportes modernos,
sem, contudo, perder sua identidade étnica. Etno-Desporto Kaingang: é o processo pelo qual a mimesis do
esporte dos Kaingang – pela via da transformação dos Jogos Tradicionais e da encorporação do Futebol –
permite-nos pensar a afirmação da identidade étnica de forma ímpar, se considerarmos a construção e o uso
específico que o grupo faz de sua corporalidade (Fassheber, 2006, 2010).
3
Parto da obra de Taussig (1993) para utilizar o conceito de mimesis, emque a faculdade mimética pertence à
“natureza” que tem as culturas de criar uma “segunda natureza”. Esta faculdade, no entanto, não se dá pela mera
cópia do original. Ao contrário, Taussig aponta para as ressignificações que cada cultura consegue do original,
influenciando esse original.
ações previstas para a sua realização. Sua realização, sempre provocada pelos irmãos Terena a
partir do ICT – Comitê Intertribal – conta com as rubricas e apoio do Ministério dos Esportes
no Brasil, onde se encontram várias publicações e orientações das edições de todos os jogos,
desde 1996.
Não obstante a realização dos JPIs em si, na oportunidade são discutidas questões
maiores da política indígena. Aproveita-se a reunião de várias etnias e de suas lideranças para
tal. Como nos relata mais uma vez Marcos Terena “o objetivo era aquele índio que participa
dos Jogos Indígenas, ele vem como competidor, mas ele vem também para resgatar a sua
língua, sua identidade, como um pouco daquela nação e também para resgatar as suas cores, a
sua Identidade de povo indígena”. As palavras do líder Terena são reveladoras do imaginário
social que cerca os JPIs quando destaca o evento como espaço para “resgate” de um passado
que sabemos, é impossível de ser recuperado e dele só podemos reconstituir alguns de seus
fragmentos, re-costurados pela memória. Ademais as memórias são seletivas e estão
circunscritas em lembranças e esquecimentos. Destarte, se a memória é seletiva, se
lembranças e esquecimentos não se excluem, mas se complementam as redes de
sociabilidades nas quais os índios e não índios se inserem, na ocasião dos JPIs, igualmente
interferem no jogo inconsciente do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido
(Fassheber, Freitag, 2011). Assim, à medida que um grupo define o que vai ser apresentado
na abertura dos Jogos ou seus adornos para serem comercializados estão colocando como
visíveis materiais da sua memória como escolha política. Opção não arbitrária que se faz
através do diálogo entre as lembranças e esquecimentos do grupo. Tal operação, contudo é
fundamental para a reelaboração de seus sentidos identitários. Porém, não nos resta dúvida de
que os povos indígenas obtiveram uma vitória com as realizações desses eventos, pois isso
ajuda a valorizar suas culturas, com isso todos podem observar que isso tem um valor cultural
muito grande, por mais que muitos índios não vivam mais como seus antepassados, devido ao
processo de globalização, e as influências dos não-indios.
Existe um efeito mimético intertribal. Não obstante o fato dos povos indígenas se
comunicarem – celebrando com ou guerreando com e contra – em territórios historicamente
interpenetrados e intertecidos, os Jogos dos Povos Indígenas oportunizam a cópia de alguns
jogos tradicionais distantes. Viana (2000) comenta que nos Jogos Indígenas do Amapá, os
“nativos” aderiram à “modalidade” corrida de toras. Assistiram a uma demonstração realizada
pelos Krahó (Tocantins), precisamente num desses Jogos que reúnem povos indígenas de
várias regiões do país. Gostaram da novidade e resolveram levá-la para casa.
(www.socioambiental.org, consultado em maio de 2001). Sugestões muito parecidas ouviram
de Marcos Terena reunido com os Kaingang nos eventos paranaenses, a fim de que estes
fossem observar algumas modalidades dos Jogos dos Povos Indígenas e “treinar” para
possivelmente entrarem em edições futuras. A mimesis do etnodesporte nos remete à questões
evidentes: Existe uma esportivização dos povos indígenas? Ou existe uma “indianização” dos
esportes modernos? Existe um tipo ideal etnodesportista? De quem é a demanda por
olimpíadas indígenas? A difusão da corrida de toras unifica pensamentos e dissipa diferenças
e lutas históricas?
Em relação aos Kaingang, já ressalvamos: o esquecimento e o silêncio de muitos de
seus jogos tradicionais. Vimos pessoalmente em mais de uma oportunidade, o convite feito
por Marcos Terena aos Kaingang nos eventos que promovemos em Guarapuava e Irati. E em
outras vezes em que pessoalmente perguntei a várias lideranças Kaingang em nossas
conversas e reuniões sobre a participação deles em tais jogos, e eles me responderam sobre a
dificuldade de se montar uma “seleção”, já que são muitas as Terras Indígenas e não haveria
tempo para viabilizá-la: “tem que ser democrático”, ouvia deles.
Claro, estamos falando de Futebol mais uma vez, pois a participação mais efetiva dos
Kaingang havia sido, até então, justamente no Paraná (em Guaíra) e somente no Futebol,
representados por uma aldeia de Santa Catarina. Não obstante esta singular participação em
1996, ela foi considerada pela organização dos jogos como problemática. Como lembra
Vianna (2001): “Informados de que os Kaingang do Paraná estavam planejando a realização
de protestos durante o festival de Guaíra, seus organizadores sentiram-se obrigados a cancelar
sua participação”. (www.socioambiental.org, consultado em maio de 2001).
O que me chama especialmente a atenção nas negativas Kaingang é que nota-se certo
encabulamento de seus discursos alegando não terem mais o que mostrarem em termos de
seus “jogos tradicionais”. Duplo encabulamento para dupla vergonha. A primeira que impôs
sobre os bárbaros jogos Kanjire e Pinjire, bem como muito de sua cultura ancestral e a
segunda, agora em que poderiam ter visibilidade se tornavam invisíveis e encabulados. Mas
não para sempre. Cientes da importância de participar, de ser visto e de discutir todas as
questões envolvidas nos jogos, os Kaingang participaram da última edição em 2012 (Gruppi,
2013). E não apenas com seu amado Futebol, mas com seus arcos e flechas, lanças. E como já
treinam, ainda que não tenham apresentado nesta oportunidade, corrida de toras é o jogo que
começará a ser jogado no tempo.
Tempo de jogos bem aceitos do Uri.
Sem mais os Kanjire e Pinjire de Wãxi.
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