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Escola de Governo

Fiocruz
RESIDÊNCIA MULTIPROFISSIONAL EM GESTÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA SAÚDE

Portifólio
1º semestre 2023.
João de Oliveira Gusmão

Brasília
2023
INTRODUÇÃO

Caro leitor,

seja bem-vinde à uma interlocução


itinerante entre meus pensamentos, críticas
e condutas dentro do primeiro semestre do
programa de residência em gestão de
política pública para saúde.

O desiderato dessa conversa retórica que


você vai construir a seguir está direcionado à
materialidade das produções e percepções
que me atravessaram nesse período em
forma de diário de campo em autoreflexão.

Desfrute com calma.


SUMÁRIO

Página 4. De Salvador à Brasília

Página 7. Conhecendo a estrutura do caos. A Estrutural.

Página 13. Hum território em minhas mãos.

Página 19. A urgência de uma contingência.

Página 23. Dos desejos que ainda quero gozar: do


mundo platônico à estruturação.
De Salvador à Brasília
Na madrugada de 8 de Fevereiro, Salvador estava quente.
E eu tranquilo em saber que possuía mais três semanas
úteis antes de embarcar para iniciar uma nova jornada em
Porto Alegre.

Estava conversando com uma amiga paulista, que passava


uns dias lá em casa, sobre as mudanças de nossas vidas
após a graduação.

Durante essa troca de prosa, folheava o meu telefone na


tentativa de achar algo interessante nas redes sociais,
quando me deparei com um e-mail meio perdido sobre
um aviso de matrícula da Fiocruz.

Estranhei.

Tinha certeza que não tinha passado naquele processo


seletivo de residência…..

Estava errado.

Meu mundo virou!


Mudei meus planos.

Na semana seguinte, estava fazendo matrícula na escola.


Duas depois, iniciava meu ciclo da residência em Brasília.

Cidade difícil, clima seco.


De Salvador à Brasília
No primeiro dia de aula escutei o burburinho dos colegas
e dos veteranos sobre quais cenários de prática seriam
mais “legais” e/ou “tranquilos” para se desenvolver no
campo.

Daí, no momento de escolher o local de atuação, eu


farejei a dificuldade.

Sabia que teria que enfrentar a primeira jornada da


residência em uma unidade básica de saúde…Não queria
um cenário fácil, organizado, muito menos dentro da
ideia de plano piloto.

É porque eu tenho fome do que é marginal!

e eu sou produto disso.


De Salvador à Brasília
Naquela primeira tarde, estávamos em roda atentos nos
bairros de atuação lotados no quadro da sala.

O meu destino estava em último plano, mas a


coordenadora começou de baixo para cima.

Em alto e bom som, falou: “ESTRUTURAL”.

Dois “Eu” firmes surgiram, e o silêncio dominou a sala.


Eu e o Diego, estrangeiros do avião piloto do Brasil,
escolhemos o cenário mais vulnerável que estava disposto
para nós.

Eu estruturei minha causa e motivação do que queria


fazer neste ano.

Eu escolhi a Ubs Estrutural.

O início de um vínculo.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.

2 ônibus e uma hora e meia me separa, diariamente, do


meu cenário de prática.

O trajeto é lindo, vejo o Sol ainda “raiando”.

Como disse, o território é carente e vulnerável, a


esmagadora maioria dos equipamentos públicos, como a
UBS, Creas, Cras e Conselho tutelar se concentram em
uma grande quadra na ponta principal do bairro… e isso é
uma questão!

A cidade estrutural é dividida nitidamente em dois


blocos: o concreto e a madeirite.

O concreto porque está, razoavelmente, próximo aos


equipamentos públicos e há locais com ruas organizadas,
asfaltadas, com presença de pequenos prédios e
comércios locais, luz elétrica e saneamento básico.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.

Já a madeirite é a ausência parcial ou total dessas


características. É falta de rede de transporte público, é
chão de barro, esgoto ao céu aberto e casas construídas
com pedaços do que sobra de obras. É lamentável.

E foi nessa dicotomia que passei estudando e saindo para


conhecer o território da Estrutural.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.
Em junho, uma das últimas vezes que nós (residentes)
fomos lá foi para organizar uma ação do dia da saúde
numa creche bem articulada na ocupação da Santa Luzia.

Nesse momento, estava contemplado a estrutura da


paisagem das casas de lá quando me passa na frente um
cachorro extremamente magro, esquelético e
enfraquecido.

Era fome, sol quente e barro no chão que lhe servia


diariamente como alimentação.

Baleia. Foi o nome que o Diego falou e que logo me veio à


cabeça uma denúncia de Brasil de um século passado que
Graciliano Ramos vez, e que ainda perece na realidade.

E é no desiderato desse meu devaneio de olhar um


cachorro e enxergar uma realidade do território que me
enche de raiva juvenil. Apesar de ainda não saber
conduzí-la, sei que meu propósito neste cenário é
pressionar por mudança, desagradando quem quer que
seja.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.
Entretanto, é bom dizer que esse primeiro contato com o
território só foi possível pela experiência pregressa dos
nossos R2.

Os dois veteranos nos conduziram e nos aterraram na


cidade estrutural.

E Sim. Isso foi uma boa dinâmica de passagem de cenário


que vocês (coordenação) implementaram!

Por outro lado, quando adentro a coisa física do cenário


de prática que é a ubs da estrutural me vejo numa casa
grande.

A UBS da estrutural é enorme e com muita gente


DIFERENTE.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.
Minha recepção foi muito boa, mas Narciso acha feio o
que não é espelho. Alguns profissionais não foram e não
querem ser parceiros nessa minha jornada de residência.

E eu acho isso ótimo. Estamos em democracia.

As mais de 100 cabeças adultas e atuantes que fazem a


unidade de saúde girar são extremamente distintas em
atuação e comportamento. Acho isso muito curioso de se
viver, porque aciono minha habilidade mais cotidiana: a
gestão de conflitos.

Imaginem a cara de paisagem que faço para encarar e


ser neutro nas discussões entre eles. É difícil!

Muitos deles já ocuparam a gerência e/ou tem mais da


metade da minha idade lotados na estrutural. Eles
criaram raízes de seus comportamentos e devir na
unidade. E isso me aguça demais em entender o que eles
fazem e por quê eles fazem.

Bem.

Apesar disso, também percebo muita gestão do cuidado


da gerência para os profissionais e os grupos de
profissionais entre si. Isso é materializado nas inúmeras
confraternizações que há dentro da UBS.

.
Conhecendo a estrutura do caos.
A Estrutural.

As pessoas se importam com as outras!

E isso diz muito sobre o que é fazer gestão.


Hum território em minhas mãos.
Passadas duas semanas na unidade, eu já estava craque
nos trabalhos de rotina e semi administrativos que
permeiam o meu cotidiano na UBS. Gestão de
pessoas/RH, folgas, abonos e análise de déficit são
algumas das coisas que preciso me atentar no dia a dia.

No entanto, ao fim do primeiro mês de trabalho, recebi


uma encomenda “represada” da gestão local central
(DIRAPS) de reterritorialização da Cidade Estrutural.

Para explicar:
A GSAP Estrutural, apesar de possuir 2 UBS, não tem
capacidade instalada de receber toda a população em
suas instalações, há uma sobrecarga de trabalho
profissional, volume de atendimento e um enorme vazio
assistencial no território

Há apenas esses dois equipamentos de saúde para suprir


todo o território.

Mapa da divisão das equipes ESF no território da cidade estrutural


Hum território em minhas mãos.
Com isso, a gerência da GSAP começou a pensar e
produzir esse novo processo de territorializar a
Estrutural de maneira mais sensível.

Após algumas conversas encabeçadas pela DIRAPS da


região, a gerência - sob operação dos residentes de
gestão - passa a “mapear” o que é a cidade estrutural e
como estão divididas suas equipes e áreas de cobertura
assistencial, conforme os parâmetros lá do programa
Previne Brasil que prevê 4000 pessoas cadastradas por
Equipe de Saúde da Família.

Grava essa info!

Tabela 1 - Margem de indivíduos cadastrados e estimativa populacional por Equipe ESF da


Cidade Estrutural (mai/2023)
Hum território em minhas mãos.
Daí, começamos a “botar a mão na massa”:

Afinamos a área de cobertura do Mapa antigo pela


ferramenta do My Maps;

Passamos a contar casa por casa por outra ferramenta de


mapa online para descobrir a quantidade de casas no
território;

Saímos para contar casas na rua, pois os mapas da


internet não nos davam a realidade da dinâmica da
construção rápida de moradias na Estrutural;
Hum território em minhas mãos.
Fomos contar casas/lotes na ocupação, agora no bairro
Santa Luzia;

Calculamos o número médio de moradores por


casa/famílias, e booom:

chegamos à uma estimativa populacional da cidade


Estrutural dividida por por ESF e quadra do território.
Hum território em minhas mãos.
E no ínterim dessa construção fui perpassado por uma
tutoria do Dirceu que me colocou contra parede: estou
me baseando em projeção populacional e não em
volume de atendimento na unidade.

Apesar de discordar do professor, em primeiro


momento, isso me deixou "encucado"
Talvez essa seja uma brecha para meu próximo passo
nesse processo.

Fiquei animado com os resultados….

Apresentamos-os para DIRAPS

Teve equipe até com 2,2 vezes o número permitido de


gente dentro em potencial do que pactuado no
programa.
Gráfico 1 - Margem de indivíduos extravasados por Equipe ESF da Cidade Estrutural (mai/2023)
Hum território em minhas mãos.
Tudo isso fez com que rolasse uma sensibilização na
DIRAPS em abrir campo para mais uma equipe de ESF na
Estrutural.

como? também não sabemos.

Não temos infraestrutura para receber mais uma equipe,


mas a gestão e eu adoramos a ideia.
Isso vai significar num futuro próximo mais gente
assistida, cuidada e menos desrespeito com a população
local.

Pois bem,
isso foi apenas o início do trabalho árduo que estou
encarando….
e seguimos em construção.
A urgência de uma contingência.
Eu não esqueci de falar da infraestrutura da GSAP em
que estou lotado por acaso, mas sim porque me chamou
muito atenção sua divisão.

Para além dos milhares consultórios, sala de curativo e


outros espaços mais convencionais de uma potente UBS
(que antes era centro de saúde), a UBS1 da Estrutural é o
único equipamento de saúde da atenção primária em
que há uma sala de estabilização de emergência.
Uns dizem que é apenas uma sala de estabilização;
Outros já viram coisas como tiros, partos, PCR e óbitos
nesse mesmo quadrado.
E é isso que me causou agitação e curiosidade em saber
o que se passava ali.

No primeiro momento, realmente, se parece com uma


sala de estabilização normal para pequenos agravos e
descompensações de saúde, mas acontece cada coisa
menino…..

Funciona assim:

a sirene da sala toca e todos vão.

Loucura? sim
errado? também.

O soar da sirene da sala vermelha faz descolar uma


massa importante de profissionais da equipe de saúde da
família ao vigilânte do posto.
A urgência de uma contingência.
Por um lado, acho importante todos quererem colaborar
- independente da situação que venha acontecer - mas
esse fato se dá de modo razoavelmente desorganizado.

Primeiro que não há consciência do que é uma situação


de urgência entre os profissionais de saúde da UBS, o que
faz a sirene ser acionada sem necessidade.

Outro cenário que é a maioria desses profissionais


evadem seus postos (no meio de uma
consulta/procedimento) para ver o que está
acontecendo.

Acho essas coisas bem problemáticas, apesar do ímpeto


deles em ajudar.

Parece que ter essa situação de urgência mobiliza dar um


certo “tesão” nesses profissionais em praticar/pensar o
diferente de sua atuação cotidiana na atenção básica.

E foi no meio de um soar e outro de sirene que fiquei


matutando sobre a possibilidade de construir um plano
de contingência para esses cenários de
urgência/emergência na sala vermelha.
Plano esse que gostaria de focar nas no âmbito da gestão
de operações ou coisa do tipo, independe do evento de
saúde que venha acontecer no ambiente.
A urgência de uma contingência.
Complexo?
complexo!
ainda mais se pensar isso numa UBS e quando a gerência
não “apoia” essa ideia.

Sinto que esse é o principal ponto que me instiga na


unidade, no entanto, parece ser pouco exequível: tanto
pela pouca base teórico-prática que encontro, como pelo
engajamento da gerência e dos profissionais sobre isso.

Mesmo assim, fiquei pensando em como poderia


esboçar algum piloto no início do princípio das coisas
para esse planejamento.

Isso resultou num arquétipo primário de como gostaria


de desenvolver essa contingência.

mas que não sei se dará certo.

Sigo tentando.
A urgência de uma contingência.

Ideia rascunho de fluxograma do plano de contigência - gestão de operações


Dos desejos que ainda quero gozar: do
mundo platônico à estruturação.
Desde que cheguei na Estrutural uma série de
intervenções vieram à minha mente para serem
construídas.
Sei que esse processo é complicado e nem sempre darei
conta de tudo.

Algumas delas até seriam factíveis.


Mas não sei se terei tempo hábil para realizá-las.

Entre elas,

Temos uma vigilância e notificação de agravos dos


eventos de saúde muito, mas muito ruim na unidade.
O pessoal de enfermagem parecem ter pouco domínio
do que é noticiável ou não. E se têm, desdenham dessa
situação.
Então, a construção de uma vigilância e capacitação seria
um intervenção;

Outrossim, são as ouvidorias.

A unidade recebe muitas ouvidorias, principalmente de


reclamação do usuário. E respondemos tudo via SEI!!!
eu acho isso um absurdo, pois, aparentemente não se
tem um sistema OuvidorSUS aqui no DF que consiga
congregar as ouvidorias de modo descentralizado com
acesso de gestor para fazer análises do que está
acontecendo na unidade.
Dos desejos que ainda quero gozar: do
mundo platônico à estruturação.
Dito esse desabafo, fiquei inquieto em montar alguma
análise das ouvidorias da unidade, pontuados os
problemas norteadores e mais frequentes que chegam na
gerência por meio de “despacho”

Por fim,

Lá na sala da gerência tem uma tv de led, papo de 40


polegadas, boazinha que fica parada sem utilização.
Nela, queria jogar uma sala de situação com alguns
indicadores de saúde das eSF, de volume de atendimento
e demanda….coisas assim.
Essse talvez seja a parte mais “tranquila” de se fazer, eu só
precisaria de tempo (que eu não tenho)

Ultimamente tenho desejo de ter tempo na unidade.


Parece que, como eles me entenderam que eu sou
gestão, fico resolvendo os pepinos que brotam, as
intempéries do próprio processo de trabalho dos
profissionais de saúde e pensando e decidindo os fluxos
assistenciais dos problemas-caso que chegam.

Percebi que amo fazer isso. Me dá tesão!!!

Mas, pouco faço outras coisas de gestão que eu também


gostaria de fazer.
Dos desejos que ainda quero gozar: do
mundo platônico à estruturação.
Tudo isso?

É só um feedback do campo do dia a dia anotado em


papel e prosa.

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