Você está na página 1de 20

APONTAMENTOS SOBRE O

INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA
OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE
CONSTRUIR - SOLO CRIADO
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA OUTORGA


ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR - SOLO CRIADO

Henrique Lopes DORNELAS1

RESUMO: O presente trabalho traz apontamentos sobre a Outorga Onerosa do Direito de Construir ou
Solo Criado, positivado em nosso ordenamento jurídico pela Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que
regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabeleceu as diretrizes gerais da política
urbana, denominada Estatuto da Cidade. O objetivo deste trabalho foi de buscar a definição jurídica do
instituto, história do seu surgimento, inserção em nossa legislação, sua natureza jurídica, características
principais, entre outros aspectos relevantes. A noção de Solo Criado está atrelada a um coeficiente de
aproveitamento básico definido no plano diretor municipal e em lei específica para o instituto, onde
poderá ser definida áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do coeficiente de
aproveitamento básico adotado mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário, tendo como
objetivo controlar o adensamento populacional e a organização do espaço urbano, visando melhoria da
qualidade de vida nas cidades.
Palavras-chave: Solo Criado; Plano Diretor; Estatuto da Cidade.

ABSTRACT: This paper presents notes on the Onerous Granting of the Right to Build or Created
Solo, affirmed in our legal system by Law 10,257, dated July 10, 2001, which regulated articles 182
and 183 of the Federal Constitution and established the general guidelines of Urban policy, called the
City Statute. The objective of this work was to search for the legal definition of the institute, its history,
its insertion in our legislation, its legal nature, main characteristics, among other relevant aspects. The
notion of Solo Criado is linked to a basic utilization coefficient defined in the municipal director plan
and in a specific law for the institute, where it can be defined areas in which the right to build may be
exercised above the basic utilization coefficient adopted in consideration of Be provided by the
beneficiary, aiming to control the population density and the organization of urban space, aiming to
improve the quality of life in cities.
Keywords: Solo Criado; Master plan; Statute of the City.

INTRODUÇÃO

O Instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) vem sendo estudado e
debatido em nosso país desde a década de 1970, culminando com a publicação da Carta de Embu, em
1976, onde grupo de estudiosos do Urbanismo e do Direito estabeleceram os parâmetros do instituto.
Entretanto, várias cidades brasileiras já haviam implementado o instituto do Solo Criado, em
suas legislações municipais, como o caso de Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, São Paulo, Natal,
Brasília, muito antes da sua inserção em nosso ordenamento jurídico, que veio a ocorrer em 2001,
através da sua positivação e delineamento no Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001).

1
Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Ciências Jurídicas Sociais pela
Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF), Especialista em Direito Público pela UGF, Especialista em Direito
Tributário pela UCAM, Professor no Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas da
Universidade de Nova Iguaçu (UNIG) e Professor do Curso de Direito da Faculdade Gama e Souza (FGS), e-mail:
hldornelas@gmail.com, currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/1757944213087237

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 2


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

O presente trabalho traz a conceituação da Outorga Onerosa do Direito de Construir, a história


do instituto, sua inclusão em nosso sistema jurídico-positivo através do Estatuto da Cidade, a
necessidade do Plano Diretor na implementação do instituto pelos municípios, a conceituação do
coeficiente de aproveitamento básico, a questão da necessidade de uma lei específica de acordo com o
Plano Diretor municipal para a aplicação do instituto, a comercialização dos índices construtivos, as
condições da Outorga Onerosa, a fórmula de cálculo para a cobrança, hipóteses de isenção do
pagamento da Outorga, a contrapartida do usuário, a destinação dos recursos obtidos e aspectos a serem
observados na aplicação do mesmo.

1. Outorga Onerosa do Direito de Construir ou Solo Criado: Conceituação

O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir ou Solo Criado muito antes de ser
positivado no nosso ordenamento jurídico, que veio a ocorrer com o Estatuto da Cidade, Lei Federal
nº10.257/2001, já possuía seus contornos e delimitações muito bem definidos pela doutrina
(MARICATO, 2000, p. 143), desde os idos da década de 1970, até o ponto culminante em 1976 com
a formulação da Carta do Embu.
Afirma SILVA (2000, p. 319), que o conceito e os contornos do instituto estão precisamente
formulados pela doutrina, restando ao legislador dar-lhe normatividade jurídico-positiva.
Nesse sentido, MARICATO (2000, p. 143):

Em uma abordagem crítica, sustenta Ermínia MARICATO que “durante os anos de


1970 e 1980, até mesmo grande parte da produção acadêmica que fazia oposição ao
regime militar esteve mais voltada para aquilo que se passava nos Estados Unidos e na
Europa do que no Brasil urbano que crescia, comprometendo fortemente o meio
ambiente e as condições de vida da maior parte da população. Os debates dos
urbanistas que se opunham ao regime ditatorial concentravam-se na discussão técnica
sobre os instrumentos urbanísticos. Ganhava destaque especial, como a proposta mais
importante, o “solo criado”, com o qual se esperava captar a valorização imobiliária
decorrente de atividades imobiliárias especulativas, para que o poder público
promovesse a urbanização para todos. O Fórum de Reforma Urbana, entidade criada
por a) setores da Igreja Católica de tendência progressista, b) setores não-
governamentais e técnicos de assessoria aos movimentos sociais urbanos, e c) pelas
próprias lideranças de movimentos urbanos, permaneceu bastante ativo nos anos 1980,
na defesa de uma agenda de Reforma Urbana que sempre priorizou, entre outras, a
figura jurídica do “solo criado”. O FNRU foi um dos responsáveis pela inserção na
Constituição de 1988 de algumas conquistas relacionadas à ampliação do direito à
cidade. No entanto, ele cometeu o equívoco de centrar o eixo de sua atuação em
propostas formais legislativas, como se a principal causa de exclusão social urbana
decorresse da ausência de novas leis ou novos instrumentos urbanísticos para controlar
o mercado, quando grande parte da população está e continuaria fora do mercado ou
sem outras alternativas legais e modernas (isto é, sem segurança e sem um padrão
mínimo de qualidade).

O Solo Criado é um instrumento de ordenação urbanística que tem como objetivo limitar e
redirecionar o adensamento do solo urbano, tendo como ponto de partida a fixação de um coeficiente
de aproveitamento, que pode ser único para toda a cidade ou sofrer variações, que permite aos
proprietários edificarem, sem pagamento, área igual à de seus terrenos, sendo que se o proprietário
desejar ultrapassar o coeficiente, ou seja, ultrapassar o limite estabelecido, estará criando solo e terá
que pagar ao município, prestar uma contrapartida, de acordo com a fórmula de cálculo estabelecida
através de lei para a cobrança do valor de solo criado (RIBEIRO, 1997, p. 383).

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 3


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Em, em sentido genérico, pode-se definir Solo Criado como sendo a criação de áreas
adicionais de piso utilizável não apoiadas diretamente sobre o solo. É a criação de piso artificial, ou
seja, a idéia do Solo Criado pressupõe a adoção de um coeficiente único de aproveitamento do solo.
É partindo-se dessa ideia que se pode chegar a uma concepção de Solo Criado “strictu sensu”,
quando se terá que Solo Criado é o excesso de construção (piso utilizável) superior ao limite
estabelecido em função do coeficiente único de aproveitamento (LIRA, 1997, p. 180-181).
De acordo com MEIRELLES (1986, p. 333), podemos definir o instituto do Solo Criado
como:
Toda área edificável além do coeficiente único de aproveitamento do lote,
legalmente fixado para o local. O Solo Criado será sempre um acréscimo ao direito
de construir além do coeficiente básico de aproveitamento estabelecido pela lei;
acima desse coeficiente, até o limite que as normas edilícias admitirem, o
proprietário não terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do
Município, nas condições gerais que a lei local dispuser para a respectiva zona.

Em outras palavras, a denominada Outorga Onerosa do Direito de Construir ou Solo Criado é


a concessão pública dada ao particular para que este construa acima dos limites definidos em lei
urbanística, ou seja, trata-se de criação de áreas, sobre ou sob o solo natural, diferentes daquelas
fixadas na lei de zoneamento (MOREIRA, 2001, p. 471).
O Solo Criado pode ser definido também como a concessão do direito de construir acima do
coeficiente de aproveitamento básico, sendo este entendido como um índice urbanístico que
representa a relação entre a área construída e a área do terreno, sendo que se o coeficiente de
aproveitamento for igual a 1 significa que a área construída é igual a área do terreno.
Desta forma, segundo (LUNGO; ROLNIK, 1998, p.17):

La posibilidad de construir por encima del coeficiente básico se denomina “suelo


creado”, que el gobierno vende a los interesados. Introduce la separación conceptual
entre derecho de propiedad y el derecho de construir. Para que esa venta ocurra se
establecen reservas de área adicional (cantidades totales de metros cuadrados para
vender) diferenciados, por zonas de la ciudad y por usos, de acuerdo con la intención
de ocupación reflejada en la política urbana (grandes reservas para zonas donde se
pretende intensificar el uso y la ocupación y reservas reducidas en zonas donde la
intención es la inversa). Los recursos originados de la venta del “suelo creado”
pueden formar un fondo específico de urbanización, sin vínculo con los recursos
presupuestarios, con gestión paritaria entre el poder público y sociedad civil, para
viabilizar proyectos estratégicos concertados. Pueden también alimentar un fondo
para acciones de recuperación ambiental.

Aponta SILVA (2001, p. 233) que o fenômeno do Solo Criado, germinou da evolução
tecnológica, da realidade social, em última análise, mas só recentemente o mundo jurídico começou a
descobrí-lo, para enquadrá-lo no sistema normativo. O conteúdo do conceito deverá conjugar quatro
mecanismos básicos, os quais são: (i) coeficiente de aproveitamento único; (ii) vinculação a um
sistema de zoneamento rigoroso; (iii) transferência do direito de construir; (iv) proporcionalidade
entre solos públicos e solos privados.
Segundo GRAU (1983, p. 57), a noção de Solo Criado desenvolveu-se inicialmente a partir da
observação da possibilidade de criação artificial de área horizontal, mediante a sua construção sobre
ou sob o solo natural. Compreendia-se assim o Solo Criado como o resultado da criação de áreas
adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre o solo natural.
Após novos estudos urbanísticos a propósito do instituto, passou-se a entender como Solo
Criado o resultado de construção praticada em volume superior ao permitido nos limites do

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 4


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

coeficiente único de aproveitamento. Este é entendido como a relação existente entre a área total da
construção e a área do lote. No caso de um terreno tiver área de 300,00m² e o coeficiente máximo de
aproveitamento for “2”, significa que nesse terreno poderá ser edificado um prédio com a área máxima
de 600,00m², ou seja, o coeficiente de aproveitamento controla a densidade das edificações (SOUZA,
1991, p. 161).
Desta forma, tudo que for construído além do quantum convencionado em tal coeficiente,
inclusive no andar térreo, é entendido, como Solo Criado (GRAU, 1983, p. 57), e, nesse sentido, a
concepção de Solo Criado, de toda sorte, está naturalmente atrelada à fixação de um coeficiente de
aproveitamento único para todos os terrenos em um município, região ou país.
A noção corrente de Solo Criado o considera uma figura jurídica mediante a qual limita-se a
dimensão permitida de construção a um percentual da área do terreno, estabelecendo-se que a
edificação acima do parâmetro somente será permitida desde que se dê a aquisição do respectivo direito
de construir que seria alienado ao interessado por outro particular ou pelo Poder Público (GRECO,
1981, p. 01), e a definição mais sintética do solo criado, segundo RIBEIRO (1991, p. 233), seria a
seguinte:

Mecanismo que permite a repartição, entre proprietários da terra, incorporadores e


poder público, dos benefícios privados do processo de urbanização criado pela
iniciativa privada, mas que se funda no investimento que o conjunto da sociedade
realiza na forma da implantação dos equipamentos e da infra-estrutura urbana. Ou
seja, trata-se da apropriação, pela autoridade municipal, de parte da valorização
fundiária e imobiliária. Sua aplicação consiste na cobrança do licenciamento das
áreas construídas que excedam a uma vez a área do terreno, o que significa que será
retribuída ao Poder Público parte dos investimentos que permitiram a valorização
daquela área.

Nesse sentido, o município vai captar parte da valorização fundiária e imobiliária ocorrida
pelo processo de urbanização e que se reflete no maior ou menor potencial construtivo concedido
pela legislação urbanística para as diferentes áreas da cidade.
Uma vez definido, temos que os institutos do Solo Criado juntamente com as Operações
Urbanas Consorciadas aparecem como instrumentos jurídicos ou normativos indicados frente às
novas necessidades para uma política de terras, no qual assevera CLICHEVSKI (2003, p. 72):

Suelo Creado y operaciones interligadas. A través de estos instrumentos, el Estado


puede obtener recursos del sector inmolbiliario privado par invertirlo en zonas
carenciadas. Consiste en aumentar los índices de ocupación de determinadas zonas,
por la cual el beneficiario – propietario o empresa inmobiliaria – paga a la
municipalidad un valor, que ésta sólo puede reutilizar en planes de tierra o vivienda
para sectores de bajos ingresos. Obviamente, se deben definir máximos índices de
ocupación sin que entren en contradicción con la calidad ambiental. Experiencias en
ciudades brasileñas, a partir de 1987, han sido exitosas, aunque con limitaciones que
es necesario evaluar a la hora de definir el instrumento específico a utilizar.

Faz-se necessário também, segundo relatório apresentado por CLICHEVSKI (2003, p. 72), a
reformulação dos parâmetros territoriais-ambientais, através da redefinição de usos, índice de
ocupação, assim como condições mínimas urbano-ambientais e de construção a serem observadas
para as áreas de população de baixa renda e que as mesmas não apresentem situação de risco a saúde
da população (CLICHEVSKI, 2003, p. 72).

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 5


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

2. Breve Histórico do Instituto do Solo Criado

A Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) tem sua origem a partir de
discussões realizadas em 1971, em Roma, quando um grupo de especialistas da Comissão Econômica
para a Europa, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), concluiu pela necessidade em
dissociar o direito de edificar do direito de propriedade, dada a suposição de que este último deve
pertencer à coletividade, não podendo ser admitido, senão por concessão ou autorização do Poder
Público (GRAU, 1983, p. 60).
Surgido no início da década de 1970, como instrumento de regulação pelo Poder Público do
uso do solo urbano, o instrumento jurídico do Solo Criado tinha objetivos diferenciados: enquanto na
Europa buscava-se um novo instrumento para conter a elevação do preço da terra urbana, nos Estados
Unidos almejava-se a conciliação entre regulação pública através do zoneamento e a lógica do
mercado imobiliário. Nesse sentido, de acordo com LUNGO (1998, p.16),

El “suelo creado”comienza a surgir como un nuevo instrumento a inicios de los años


70. Es curioso notar que su origen está asociado a dos tipos distintos de evaluación
de las prácticas clásicas de regulación pública del uso del suelo. Por un lado, en
Europa, especialmente en Francia e Italia, se basa en la constatación de los estrechos
límites de los instrumentos urbanísticos tradicionales, especialmente la zonificación,
para detener la elevación de los precios de la tierra. Por otro lado, en los Estados
Unidos, se trataba de crear un mecanismo que promoviera la adaptación de la
zonificación a la lógica del mercado.

Na França, desde 1975 existe o chamado Teto Legal de Densidade (Plafond Legal de Densité
– PLD), embora a legislação não separe o direito de edificar do direito de propriedade (GRANELLE,
2002, p. 03). O Teto Legal de Densidade estabelece um limite legal para o direito de construir de
coeficiente 1,5 para Paris e 1,0 no caso de outras cidades, sendo que além desse limite, o direito de
edificar subordina-se ao interesse da coletividade e o proprietário que assim quiser proceder terá que
o adquirir, mediante pagamento ao Poder Público.
GRANELLE (2002, p. 03), ao comentar a legislação francesa de 1975, explica que:

A Lei 75-1.328, de 31 de dezembro de 1975, estipulou que ao proprietário corresponde


o direito de construir correspondente em toda a França ao coeficiente 1,0 (igual à área
do terreno) e para a região de Paris correspondente a 1,5. Para além desse patamar
legal de densidade a possibilidade de construir ficaria subordinada ao pagamento, pelo
beneficiário, de uma soma igual ao valor do terreno, de forma a ressarcir a
coletividade, titular do direito de construir acima do patamar legal. Atualmente o
coeficiente foi alterado para 2,0 para as cidades com mais de 50.000 habitantes e
coeficiente 3,0 para Paris.

Na Itália, de acordo com GRAU (1983, p. 60- 61), a Lei nº10, de 28 de janeiro de 1977,
estabeleceu a concessão onerosa para o direito de edificar, sendo que os recursos econômicos
decorrentes dessa concessão são destinados para a realização das obras de urbanização, para a
restauração do patrimônio cultural imobiliário e outros programas públicos.
Nos Estados Unidos, a experiência do Solo Criado decorreu do chamado Plano de Chicago.
Com o nome de “Space Adrift” (Espaço Flutuante), o instituto tem sido aplicado, especialmente no
seu mecanismo de transferência, para o fim de preservar patrimônio histórico. Por esse sistema, os
proprietários de imóveis, que o Poder Público definir como interesse histórico, ficam auto rizados a
alienar o direito de construir que lhes couber no terreno onde se acham tais imóveis, e que não podem

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 6


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

ser demolidos para erguerem-se no respectivo terreno construções modernas e elevadas. A


transferência do direito de construir desse terreno para outro permite acrescer em outros imóveis em
áreas construídas que não seriam possíveis de outro modo (GRAU, 1983, p. 60- 61).
O debate nacional sobre a Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) data da
década de 70, sendo que em janeiro de 1975, já se discutia que o direito de edificar acima de um
coeficiente deveria estar sujeito ao pagamento de uma remuneração ao Poder Público, e que seria
permitida a transferência do direito de construir (GRAU, 1983, p. 60-62).
Em setembro de 1975, o instituto do Solo Criado foi proposto publicamente por técnicos do
Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal - CEPAM, órgão vinculado na época à
Secretaria do Interior do Estado de São Paulo, sendo que o debate teórico e conceitual sobre o
instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) teve seu ponto culminante na
chamada Carta do Embu, documento originado na cidade de Embu, no mês de dezembro de 1976,
onde foi realizado o seminário e onde a carta foi aprovada (LIMA, 1977, p. 05).
A questão do Solo Criado foi debatida em três seminários realizados em São Sebastião, São
Paulo e Embu, respectivamente em 25/26 de junho de 1976, 28/29 de junho de 1976 e em 11/12 de
dezembro de 1976, sob o patrocínio da Fundação Prefeito Faria Lima, Centro de Estudos e Pesquisas
de Administração Municipal (CEPAM), sendo o documento principal a Carta do Embu, datada de 11
de dezembro de 1976.

3. O Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001): Marco Jurídico do Solo Criado

O Estatuto da Cidade, sancionado no dia 10 de julho de 2001 é lei regulamentadora dos


artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, embora já houvesse instrumentos que, em grande
medida, tornavam possível cumprir a promessa de todo Plano Diretor, de garantir um
desenvolvimento urbano “equilibrado”, “harmônico”, “sustentável” e outros adjetivos semelhantes,
invariavelmente apresentados na introdução da versão desse plano em cada município (MARICATO,
2001, p. 03).
Segundo os rumos que as cidades brasileiras acabaram tomando não foram, portanto,
resultados da falta de planos e de leis (MARICATO, 2000, p. 123-125), ou seja, no amplo arcabouço
da nossa legislação urbanística, os governos municipais já dispunham de mecanismos suficientes
para: a) ampliar a arrecadação de recursos para o financiamento das cidades; b) regular o mercado
visando baratear o custo da moradia; c) realizar a captação da valorização fundiária e imobiliária; d)
recuperar os investimentos em infra-estrutura; e) regularizar e urbanizar áreas ocupadas
irregularmente, com exceção de parte das áreas públicas; f) construir estoque de terras para a
promoção pública de moradias; g) garantir a preservação ambiental e o crescimento urbano
sustentável; h) garantir a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e paisagístico
(MARICATO, 2000, p. 123-125).
É preciso esclarecer que é necessária a perseguição de instrumentos urbanos mais
aperfeiçoados ou virtuosos, sendo que a questão central não é somente técnica: a aplicação de
instrumentos urbanísticos que ferem interesses calcados nos ganhos fundiários e imobiliários é
dificultada pela tradição patrimonialista da sociedade brasileira (MARICATO, 2001. p. 03).
O Estatuto da Cidade, substitutivo do projeto de lei que lhe deu forma final, partiu da proposta
original do Projeto de Lei nº. 5.788/90, conhecido como Estatuto da Cidade, que obteve sua
aprovação no Senado Federal no mesmo ano, sendo enviado à Câmara dos Deputados, onde lhe
foram apensadas outras dezessete proposições, sendo aprovado depois de mais de uma década depois,
na forma da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.
As matérias elencadas no Estatuto da Cidade encontram-se divididas em cinco capítulos,
sendo que no Capítulo I tem-se as Diretrizes Gerais, que de acordo com seu artigo 1º, parágrafo

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 7


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

único tem-se que: na execução da política urbana, de que tratam os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal, será aplicado o previsto nesta Lei; sendo que, para todos os efeitos, esta lei, denominada
Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como
do equilíbrio ambiental.
Merecem destaque nas Diretrizes Gerais do Estatuto da Cidade as que prevêem: Audiência do
Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de
empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural
ou construído, o conforto ou a segurança da população (artigo 2º, XIII); simplificação da legislação
de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos
custos e o aumento da oferta de lotes e unidades habitacionais (artigo 2º, XV); isonomia de condições
para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativas ao
processo de urbanização, atendido o interesse social (artigo 2º, XVI).
O Capítulo II do Estatuto da Cidade trata dos Instrumentos da Política Urbana, e, relaciona
instrumentos já existentes e com aplicação vigente e outros que são novos. Como instrumentos gerais
da Política Urbana têm-se: a) planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de
desenvolvimento econômico e social; b) planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações
urbanas e microrregiões; e, c) planejamento municipal.
Os institutos da Política Urbana municipal dividem-se em institutos tributários e financeiros e
institutos jurídicos e políticos, que são regidos por legislação própria, observado, todavia o disposto
no Estatuto.
Os institutos tributários e financeiros são: a) imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana; b) contribuição de melhoria; e, c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros. Os institutos
jurídicos e políticos são: a) desapropriação; b) servidão administrativa; c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano; f) instituição de unidades de conservação; g)
instituição de zonas especiais de interesse social; h) concessão do direito real de uso; i) concessão de
uso especial para fins de moradia; j) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; K)
usucapião especial de imóvel urbano; l) direito de superfície; m) direto de preempção; n) outorga
onerosa do direto de construir e de alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p)
operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídica gratuita
para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos; e, s) referendo popular e plebiscito.
O Plano Diretor no Estatuto da Cidade é reforçado como figura central e decisiva da Política
Urbana, sendo o capítulo III destinado ao mesmo. O Plano Diretor, aprovado por lei municipal, é
considerado o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, fazendo parte
integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes
orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
Em torno do Plano Diretor vão estar relacionados à maioria dos instrumentos e institutos
relacionados a consecução da função social da propriedade. Ele deve registrar as áreas que es tarão
submetidas ao parcelamento, à edificação ou a utilização compulsória, ao IPTU progressivo no
tempo e à desapropriação com títulos da dívida pública. O direito de preempção, a outorga onerosa
do direito de construir (ROLNIK, 2002, p. 12), as operações urbanas consorciadas e a transferência
do direito de construir irão depender de lei municipal específica, baseada no Plano Diretor.
O Estatuto da Cidade evidencia uma preocupação com a participação social ao estabelecer, no
capítulo IV da lei, os instrumentos garantidores da gestão democrática da cidade, os quais são: I)
órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal; II) debates,
audiências e consultas públicas; III) conferencias sobre assuntos de interesse urbano, nos nívei s
nacional, estadual e municipal; IV) iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano. Merece destaque a questão da gestão orçamentária, via

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 8


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

orçamento participativo, em que se fará debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas
do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição
obrigatória para a aprovação do orçamento municipal.
O instituto do Solo Criado foi introduzido em nosso ordenamento jurídico através do Estatuto
da Cidade (Lei Federal nº10.257/2001). Na referida Lei, está inserido no Artigo 4º, entre os
instrumentos da Política Urbana, no inciso V, que trata dos instrumentos jurídicos e políticos, sob a
alínea “n” – outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso.

Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser
exercido acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante
contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área
edificável e a área do terreno.
§ O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a
zona urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.
§ 3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes
de aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente
e o aumento de densidade esperado em cada área.
Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração
de uso do solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
Art. 30. Lei municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para
a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando:
I – a fórmula de cálculo para a cobrança;
II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;
III – a contrapartida do beneficiário.
Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de
construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos
incisos I a IX do art. 26 desta Lei.

O instituto da Outorga Onerosa é, portanto, um instrumento jurídico e não uma espécie de


tributo, aliado ao fato que se encontra elencado no inciso IV do Artigo 4º do Estatuto da Cidade.
Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a natureza jurídica do
Solo Criado, no qual se afirmou se tratar de compensação financeira pelo ônus causado em
decorrência da sobrecarga da aglomeração urbana:

EMENTA Tributário. Parcela do solo criado: Lei municipal nº 3.338/89. Natureza


jurídica. 1. Não é tributo a chamada parcela do solo criado que representa
remuneração ao Município pela utilização de área além do limite da área de
edificação. Trata-se de forma de compensação financeira pelo ônus causado em
decorrência da sobrecarga da aglomeração urbana. 2. Recurso extraordinário a que se
nega provimento.
(RE 226942, Relator (a): Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em
21/10/2008, DJe-089 DIVULG 14-05-2009 PUBLIC 15-05-2009 EMENT VOL-
02360-04 PP-00643).

O Solo Criado nada mais é que um dos instrumentos que a municipalidade pode implementar
para a concretização da política de desenvolvimento urbano, concatenado com o preceito
estabelecido no artigo 182 da Constituição Federal, onde está prescrito que a propriedade deverá
cumprir uma função social.

4. Plano Diretor Municipal e Implementação do Solo Criado


APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 9
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Da mesma forma que o princípio da função social não é novidade, também o Plano Diretor,
ou, melhor dizendo, a obrigatoriedade de elaboração de planos diretores também já esteve presente
no direito positivo brasileiro, especialmente nas antigas leis orgânicas dos municípios, que eram,
como regra geral, antes da promulgação da Constituição Federal vigente, elaboradas pelos Estados
(DALLARI, 2001, p. 15).
Através da promulgação da Constituição Federal de 1988 houve uma mudança na concepção
do Plano Diretor, ou seja, houve uma diminuição de sua abrangência (quanto aos assuntos ou setores
que deveriam conter em seu conteúdo) e um ganho em seu significado jurídico, na medida que trouxe
alteração ao conceito de propriedade imobiliária urbana (DALLARI, 2001, p. 16).
O Plano Diretor irá atuar no espaço urbano, que pode ser caracterizado como uma arena onde
se defrontam interesses diferenciados em luta pela apropriação de benefícios em termos de geração
de rendas e obtenção de ganhos de origem produtiva ou comercial, por um lado, e em temos de
melhores condições materiais e simbólicas de vida de outro, e, na luta pelo mesmo podemos
identificar os seguintes agentes: os proprietários imobiliários e fundiários; os incorporadores e a
construção civil; os empreiteiros de obras públicas; os concessionários de serviços públicos,
principalmente de transportes; as camadas médias que buscam manter ou melhorar as condições de
seu habitat, de forma a reproduzir e ampliar a distância social às camadas populares, que marca a sua
posição na estratificação da sociedade (RIBEIRO, 1990, p.13).
Nesse sentido, podemos entender o plano diretor como gestão política da cidade, na medida
em que pressupõe a:

a) Identificação das forças sociais existentes no cenário da cidade e seus respectivos


interesses no que concerne ao crescimento urbano; b) construção de um pacto
territorial em torno dos direitos e garantias urbanos que assegurem, por um lado, a
redução das desigualdades sociais através da democratização do acesso ao uso da
cidade, permitindo assim a conquista da real cidadania, e, por outro lado, a defesa de
padrões mínimos de qualidade de vida pelo estabelecimento de normas de
habitabilidade e de preservação do meio ambiente.

Com a definição dos dois elementos acima referidos, devem ser adotados critérios dentro da
gestão política da cidade que irá orientar sua gestão planejada, tais como (RIBEIRO, 1990, p.14):

a) regulação pública da produção privada do meio ambiente construído, tanto no que


se refere à construção residencial quanto aos equipamentos urbanos;
b) regulação pública da produção “informal” do meio ambiente construído,
entendendo-se por esta todas as formas de construção residencial que convivem com
a incorporação imobiliária e a construção por encomenda, o que pressupõe a
legitimação da “cidade ilegal” (favelas, loteamentos irregulares e clandestinos,
cortiços e casas de cômodos, vilas de periferia, etc);
c) regulação pública da produção e gestão privadas dos serviços urbanos (transportes
coletivos, educação, saúde, etc), em termos de quantidade, qualidade e de
distribuição espacial;
d) produção e gestão pública dos serviços urbanos municipalizados;
e) regulação pública das decisões dos agentes privados concernentes à utilização
econômica do meio ambiente construído.

Para tal planejamento é necessário uma nova concepção de plano e gestão, e, é necessário
também visualizar a cidade como um palco e objeto de conflitos, visando uma gestão democrática

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 10


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

onde possa haver a participação de todos os agentes na tomada de resoluções e enfrentamento dos
problemas, tornando a gestão da cidade um jogo explicitado (RIBEIRO, 1990, p.14-15).
Com a ordem constitucional de 1988, ficou definido que as cidades com população acima de
20.000 habitantes são obrigadas a elaborar e implementar um Plano Diretor municipal, servindo este
como um instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (HAROUEL, 1990,
p. 143-144).
Mas a realidade mostra-se contrastante, pois através da Pesquisa de Informações Básicas
Municipais de 2001, divulgada pelo IBGE, apenas 18% dos municípios brasileiros têm Planos
Diretores, sendo que dos 5.561 municípios, 27% têm mais de 20 mil habitantes. Constatou-se também
que, em 24% dos municípios, as prefeituras afirmaram existir habitações em áreas de risco e
loteamentos irregulares, sendo que a existência de favelas foi apontada por 23%.
O Plano Diretor pode ser abordado por diversas maneiras, pois o urbanismo é uma área do
conhecimento de caráter marcadamente multidisciplinar, ou seja, nenhuma disciplina específica pode
reivindicar a titularidade de forma absoluta desta matéria, exigindo a participação de muitos
profissionais de diferentes áreas do conhecimento, resultando no produto desejado (DALLARI, 2001,
p. 13).
O Plano Diretor nada mais é do que um documento em sede do qual se definem os contornos
da função social da propriedade urbana e os ditames da política urbana municipal, e pode ser definido
segundo MEIRELLES (1994, p. 95-96):

Como o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento


global e constante do Município, sob o aspecto físico, social, econômico e
administrativo, desejado pela comunidade local. Deve ser a expressão das aspirações
dos munícipes quanto ao progresso do território municipal no seu conjunto cidade-
campo. É o instrumento técnico-legal definidor dos objetivos de cada municipalidade
e, por isso mesmo, com supremacia sobre os outros, para orientar toda a atividade da
Administração e dos administrados nas realizações públicas e particulares que
interessem ou afetem a coletividade.

No processo de elaboração do Plano Diretor e na fiscalização de sua implementação, de


acordo com o artigo 40, § 4º, incisos I a III, do Estatuto da Cidade, os Poderes Legislativo e
Executivo Municipais deverão garantir a promoção de audiências públicas e de debates com a
participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade; a
publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; e, o acesso de qualquer interessado
aos documentos e informações produzidos.
Nesse sentido, de acordo com ROLNIK (2002, p. 16) mais do que um documento técnico,
normalmente hermético ou genérico, distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o Plano
deve ser concebido
Como um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e
negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Não se trata da
tradicional fase de “consultas” que os planos diretores costumam fazer – a seus
interlocutores preferenciais, “clientes” dos planos e leis de zoneamento, que
dominam sua linguagem e simbolização. O desafio lançado pelo Estatuto incorpora o
que existe de mais vivo e vibrante no desenvolvimento de nossa democracia – a
participação direta (e universal) dos cidadãos nos processos decisórios. Audiências
públicas, plebiscitos, referendos, além da obrigatoriedade de implementação de
orçamentos participativos, são assim mencionados como instrumentos que os
municípios devem utilizar para ouvir, diretamente, os cidadãos em momentos de
tomada de decisão sobre sua intervenção sobre o território.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 11


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

A aprovação do Plano Diretor faz-se através de lei, com supremacia às demais para dar
preeminência e maior estabilidade às regras e diretrizes do planejamento urbano, sendo que os
Municípios podem estabelecer em sua legislação um quórum qualificado para a aprovação ou
modificação da lei do Plano Diretor, determinando desta forma maior segurança e perenidade a esta
legislação (MEIRELLES, 1994, p. 397).
Para a implementação do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado)
faz-se imprescindível à elaboração e aprovação de um Plano Diretor Municipal, sendo que o mesmo
deverá conter: (i) a definição do coeficiente de aproveitamento básico, que poderá ser único ou
diferenciado para áreas específicas (artigo 28, §2º); (ii) o estabelecimento das áreas da cidade em que
seria admitida a edificação para alem do respectivo coeficiente básico (artigo 28, caput) e o
estabelecimento de áreas em que será interditada a criação de solo; (iii) definição dos limites
máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento, considerando a proporcionalidade
entre a infraestrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada área (artigo 28, § 3º), (iv)
fixação de áreas onde será admitida a outorga onerosa do direito de alteração de uso (artigo 29).
SILVA (2001, p. 236) sustentava que o Solo Criado deveria ser instituído por lei municipal
específica:
Antes do Estatuto da Cidade, sustentava que a instituição do Solo Criado deveria ser
estabelecida por lei municipal de uso e ocupação do solo, de preferência pelo Plano
Diretor, visto que não se trata de regular relações civis sobre a propriedade. O que
poderia aconselhar a sua adoção por lei federal seria a conveniência de estabelecer para
todo o país um único coeficiente de aproveitamento, o que evitaria disparidades de
município para município geradoras de tratamento desiguais de proprietários de uns
para outros.

Importante salientar a necessidade da elaboração de uma lei municipal específica estabelecendo


as condições para a outorga do direito de construir ou de alteração o uso do solo urbano, de acordo com
o artigo 30 do Estatuto. Essa lei é uma norma-procedimento, lei esta diversa do Plano Diretor, na qual
estarão previstas as regras de cálculo, os critérios e os parâmetros da contrapartida a ser pago pelo
beneficiário do uso do solo adicional.

5. Hipóteses de Isenção do Pagamento da Outorga e a Questão da Contrapartida do


Beneficiário

O artigo 30, inciso II do Estatuto da Cidade estabelece que a lei municipal deverá regrar as
hipóteses de isenção do pagamento da Outorga.
Estas hipóteses podem configurar-se de duas maneiras: (i) hipótese objetiva – v.g. local onde
a prefeitura estimule o adensamento, a fim de aproveitar a infra-estrutura disponível; (ii) hipótese
subjetiva – v.g. caráter beneficente do proprietário que vai receber a isenção da outorga, ou a
finalidade social da construção que utilizará o solo criado.
O valor da contrapartida do usuário ou beneficiário a ser quitada pelo Solo Criado é uma
questão importante que deve ser fixada em lei municipal específica, na qual deve haver a previsão
das modalidades e formas de pagamento.
Tem-se que na redação original do Projeto de Lei nº 5.788/90 – Estatuto da Cidade,
constavam algumas hipóteses, a saber: ativos financeiros; bens imóveis; execução de obras e sérvios
relevantes para o desenvolvimento urbano municipal, e créditos relativos a indenizações não pagas
pelo município. Na redação final do Projeto, tal como foi aprovado na Câmara dos Deputados, as
hipóteses, então previstas, foram suprimidas do texto. Sendo assim, cabe ao município, através de lei,
a incumbência de fixar as modalidades de pagamento, ou seja, da contrapartida a ser paga pelo
criador adicional de solo (MOREIRA; NETTO; DE AMBROSIS, 2001, p. 472).

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 12


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Desta forma, de acordo com o inciso III do artigo 30 do Estatuto da Cidade, temos que lei
municipal específica estabelecerá a contrapartida do beneficiário, sendo que esta formulação abre o
leque de possibilidades do pagamento do ônus do que apenas em dinheiro. Mas qual o valor? Esse é
um ponto importante a ser analisado, ou seja, qual o valor a ser fixado para a outorga onerosa de
solo? Segundo a Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM, num primeiro momento ocorre que seria
algo voltado ao valor do metro quadrado praticado na região de localização do imóvel, pois a
construção será realizada no próprio imóvel e não em outro, como ocorre com a transferência do
direito de construir. Entretanto este critério não levaria em conta o quantum de beneficio público que
vai ser apreciado pelo particular, sabendo que este vai construir além do permitido pelo zoneamento,
em razão de um interesse público específico. Nesse sentido, seria necessário adotar como critério
para o cálculo o valor das despesas que o Poder Público terá para atender a população que irá adensar
o local (MOREIRA; NETTO; DE AMBROSIS, 2001, p. 473).
Tem-se de forma clara que o município através do instituto da Outorga Onerosa do Direito de
Construir, através de lei específica, pode atrelar o pagamento do ônus pelo beneficiário em hipóteses
que satisfaçam o interesse da municipalidade em consonância com o planejamento urbano municipal
delineado no Plano Diretor, redistribuindo as mais-valias decorrentes do processo de urbanização, ou
seja, o município pode fazer a captação de parte da valorização imobiliária e fundiária, pois essa
valorização incorporada ao patrimônio dos proprietários da terra é resultado de um esforço coletivo,
liderado pelo Poder Público, dirigido à implantação de serviços de infra-estrutura e equipamentos
urbanos comunitários.

6. A Destinação dos Recursos Obtidos

Anteriormente ao Estatuto da Cidade, quando da implementação do instituto do Solo Criado


discutia-se a questão da destinação dos recursos obtidos com a Outorga Onerosa do Direito de
Construir, pois, de acordo com VILLA (2001, p.84), um argumento e objetivo muito geral, do tipo
“obter recursos para a Prefeitura”, pode provocar o argumento de que há instrumentos a serem
aproveitados melhor, antes de implementar um instrumento novo: é o caso do IPTU com planta de
valores bem feita e atualizada regularmente, da contribuição de melhoria e da cobrança de tarifas
significativas pelo uso de espaços públicos para estacionamento de carros.
De acordo com VILLA (2001. p.84-85),

Um objetivo do tipo “evitar o aumento da degradação do ambiente construído nas


áreas centrais” não é adequado para a cessão onerosa do direito de construir, pois o
adensamento seria permitido, ainda que pago; nesse caso é mais defensável o
zoneamento clássico, que simplesmente proíba construir além de determinado índice.
Um objetivo compatível com o “Solo Criado” e suficientemente específico pode ser,
por exemplo, o de manter ou alcançar determinada relação entre espaços urbanos de
propriedade particular e aqueles de propriedade pública. Essa relação poderia ser
definida de forma mais ou menos agregada: um índice médio para toda a área urbana,
ou médias por setor urbano. Nesse caso, a contrapartida óbvia para quem construísse
acima de “x” vezes a área do seu lote seria a entrega à Prefeitura de terreno, em um
esquema de equivalência a ser regulamentado, em outra zona da cidade, (ou o
pagamento para um fundo destinado a aquisição de terra) para uso comum do povo
ou para usos de interesse social bem definidos. Outra alternativa seria ligar a
construção “a mais” ao problema de trânsito gerado pelo adensamento, aplicando a
receita da venda de direito de edificar em serviços de transporte coletivo.

Os recursos arrecadados através da cobrança pela criação de solo podem também estar
destinados a programas habitacionais para a população de baixa renda, através da criação de um
APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 13
REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Fundo de Desenvolvimento Urbano. Dessa forma, atenua-se o processo de segregação social, que
acaba afastando as camadas mais pobres da população das vantagens do processo de urbanização,
que vai sendo apropriada paulatinamente, de forma privada por alguns segmentos sociais.
O Estatuto da Cidade prescreve, em seu artigo 31, que os recursos auferidos com a adoção da
outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades
previstas nos incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto, as quais são:

(i) regularização fundiária; (ii) execução de programas e projetos habitacionais de


interesse social; (iii) constituição de reserva fundiária; (iv) ordenamento e
direcionamento da expansão urbana; (v) implementação de equipamentos urbanos e
comunitários; (vi) criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; (vii) criação
de unidades de conservação ou proteção de outras áreas verdes; (vii) criação de
unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; e, (viii)
proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.

Salienta-se, entretanto que a destinação dos recursos não está direcionada exclusivamente às
áreas onde se permite a outorga onerosa, o que, por outro lado, pode ser estabelecido na lei
específica, a fim de garantir a capacidade da infraestrutura instalada (PINHO, 2002, p. 217).

7. O Coeficiente de Aproveitamento Básico

O coeficiente de aproveitamento, também denominado índice de aproveitamento ou de


utilização (VILLA, 2001, p.88), é a relação entre a área construída e a área total do terreno em que a
edificação se situa, sendo o mesmo um indicador da intensidade de construção de um terreno.
Desta forma VILLAÇA (1999, p. 234) afirma:

O coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área total construída de um edifício


(soma das áreas de todos os seus pavimentos) e a área do respectivo terreno. Parte-se
do princípio de que o Poder Público tem o poder de impor limites às edificações –
recuos, altura ou área construída máxima. A possibilidade de construir em altura seria
então objeto de concessão por parte do poder público. A tese do “Solo Criado” admite
que o direito que o proprietário de um terreno tem de nele construir limita-se a uma
área construída igual à área desse terreno. Acima disso, qualquer área construída
adicional (“Solo Criado”) seria objeto de concessão por parte do governo municipal,
podendo esta ser onerosa. Mesmo com tal concessão, o poder público poderá impor
limites – inclusive variando segundo zonas – de construção seja em altura, seja em área
total construída. Entende-se por “potencial construtivo” a área construída que a
infraestrutura (transportes e saneamento especialmente) que serve a um determinado
terreno tem de suportar as externalidades geradas por aquela área construída. Tornando
onerosa a concessão para utilização do potencial construtivo acima de um, o poder
público capta uma parcela da valorização fundiária para a qual ele contribuiu
decisivamente.

O coeficiente de aproveitamento básico pode ser definido como a relação entre a área
edificável e a área do terreno (§ 1º do artigo 28 do Estatuto da Cidade). De acordo com GRAU (1983,
p. 56):

O coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a área construída (isto é, a


soma das áreas dos pisos utilizáveis, cobertos ou não, de todos os pavimentos de uma
edificação) e a área total do terreno em que a edificação se situa.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 14


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

O coeficiente de aproveitamento básico é aquele potencialmente explorável pelo particular


independentemente de outorga pelo Poder Público. O artigo 28, caput do Estatuto da Cidade refere-se
a duas hipóteses de coeficiente de aproveitamento: o coeficiente de aproveitamento básico (artigo 28,
caput) e os coeficientes de aproveitamento a serem decorrentes da outorga onerosa do direito de
construir, até os limites máximos previstos no Plano Diretor municipal.
Os limites máximos dos coeficientes deverão ser fixados de forma integrada com as premissas
do Plano Diretor. O teto máximo para a criação de solo em cara área da cidade deverá ser fixado
tendo em vista a relação de proporcionalidade entre a infra-estrutura urbana existente e o
adensamento prospectado, na respectiva área.
Desta forma, em um determinado município todos os proprietários de lotes edificáveis para
fins urbanos poderiam, a princípio, implantar edificações com área construída igual à do lote, ou a
seu dobro, por exemplo, dependendo do que a lei fixar de forma prévia e de acordo com o Plano
Diretor Municipal.
No caso, por exemplo, de todas as construções fossem forçadas a obedecer ao coeficiente
único, entretanto, não seria aproveitado o potencial de aproveitamento real dos terrenos, que vai
sofrer variações de acordo com o sistema viário, as redes de infra-estrutura disponíveis, o relevo, a
localização do terreno dentro da cidade, etc. Para evitar esse problema, não se abandona o
zoneamento, que fixa coeficientes de aproveitamento diferenciados por zona, mas condiciona-se a
concessão para construir acima do coeficiente único a uma compensação, através da outorga ou
concessão onerosa do direito de construir, constituindo esta uma forma da coletividade ser ressarcida
por dispêndios em obras ou serviços públicos demandados em função dessas construções (VILLA,
2001, p. 81).
Segundo VILLA (2001, p.84), a justificativa de um coeficiente “x” pode ser a necessidade de
controlar a densidade em função de limitações objetivas como, por exemplo, disponibilidade de água
na bacia onde está a cidade.
A fixação do valor do coeficiente de base merece reflexão em termos de seus efeitos políticos,
além dos administrativos. Coeficientes de base inferiores a 02, além de implicar a concessão onerosa
de construir para um número muito grande de proprietários, penalizariam até conjuntos tipo COHAB
de prédios de quatro pavimentos; um coeficiente de base igual a 01 penalizaria até sobrados que
ocupem mais de 50% do lote. Uma hipótese a examinar seria a adoção, pelo menos numa primeira
fase, de coeficiente de base 2,5; assim seria exigida contrapartida apenas dos empreendedores
interessados em prédios com mais de 08 pavimentos aproximadamente (VILLA, 2001, p.84).

8. A Comercialização dos Índices Construtivos

O direito de construir para além do coeficiente de aproveitamento básico permitido, ou seja, o


Solo Criado, constitui-se em um ativo patrimonial destacado da propriedade do imóvel
correspondente. Esse bem pode ser alienado pelo Poder Público Municipal ou pelos particulares que
tiverem seu direito de construir até o limite do coeficiente básico interditado por outras medidas de
sacrifício ou condicionamento urbanístico (NETO, 2002. p. 233).
A comercialização dos índices construtivos deve ser analisada de forma criteriosa, pois o
Poder Público Municipal não poderá sair vendendo potencial construtivo como uma fonte de
capacitação de recursos, pois, o Solo Criado, sendo caracterizado como um bem público passível de
alienação, mediante a outorga onerosa, não é um bem ilimitado, devendo atender aos fins
consignados em um planejamento urbano municipal.
Em cada município haverá solo criável correspondente à diferença entre o coeficiente de
aproveitamento básico estabelecido para cada área da zona urbana (artigo 28, § 2º) e o limite máximo
passível de ser aproveitado (artigo 28, §3º), este último balizado pela disponibilidade de infra-

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 15


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

estrutura e o incremento do adensamento alvitrado (NETO, 2002, p. 233). A comercialização dos


índices construtivos deve ser feita de forma criteriosa e ponderada pelo Poder Público, a fim de não
comprometer o planejamento urbano municipal delineado no Plano Diretor.

9. Fórmula de Cálculo para a Cobrança

Vários critérios podem ser utilizados pelo Poder Público Municipal no estabelecimento para a
fórmula da cobrança da outorga, sendo que o valor máximo exigível não poderá exceder, em valor
unitário do metro quadrado de solo criado, o valor unitário do terreno, tendo como base que o valor
do acessório (solo criado) não ultrapasse o valor total do principal (o próprio terreno).
Se a transferência do potencial construtivo for realizada por outros particulares, haverá um
balizamento dos valores pelo mercado em cada município. No caso da outorga estiver subordinada ao
procedimento licitatório, o valor do ônus a ser cobrado decorrerá da oferta que for vencedora.
A outorga onerosa poderá estar condicionada a um pagamento que não seja necessariamente
em dinheiro, como a doação de áreas em outra região ou ao compromisso de efetivação de
investimentos em outras áreas da cidade, aproximando o instituto da Outorga Onerosa ao das
Operações Urbanas Consorciadas.

CONCLUSÃO

O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) é conceituado como toda
área edificável, além do coeficiente único de aproveitamento do lote, legalmente fixado para o local. O
Solo Criado será sempre um acréscimo ao direito de construir além do coeficiente básico de
aproveitamento estabelecido pela lei; acima desse coeficiente, até o limite que as normas edilícias
admitirem, o proprietário não terá o direito originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município,
nas condições gerais que a lei local dispuser para a respectiva zona.
A Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) tem sua origem a partir de discussões
realizadas em 1971, em Roma, quando um grupo de especialistas da Comissão Econômica para a
Europa, ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), concluiu pela necessidade em dissociar o
direito de edificar do direito de propriedade, dada a suposição de que este último deve pertencer à
coletividade, não podendo ser admitido, senão por concessão ou autorização do Poder Público. Na
França o instituto existe desde 1975, na Itália em 1977, sendo que nos Estados Unidos, a experiência do
Solo Criado decorreu do chamado Plano de Chicago, com a denominação de "Space Adrift" (Espaço
Flutuante).
O debate nacional sobre a Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) data da
década de 70, sendo que em janeiro de 1975, já se discutia que o direito de edificar acima de um
coeficiente deveria estar sujeito ao pagamento de uma remuneração ao Poder Público, e que seria
permitida a transferência do direito de construir. Em setembro de 1975, o instituto do Solo Criado foi
proposto publicamente por técnicos do Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal -
CEPAM, órgão vinculado na época à Secretaria do Interior do Estado de São Paulo, sendo que o debate
teórico e conceitual sobre o instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) teve
seu ponto culminante na chamada Carta de Embu, documento originado na cidade de Embu, no mês de
dezembro de 1976, onde foi realizado o seminário e onde a carta foi aprovada.
A inserção do instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado) deu-se em
nosso ordenamento jurídico em 2001, através da Lei Federal 10.257/2001, denominada Estatuto da
Cidade.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 16


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Cidades brasileiras mesmo antes da positivação do instituto em nosso ordenamento já haviam


implementado a Outorga Onerosa do Direito de Construir através de legislação municipal específica,
como o caso de Natal, Florianópolis, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.
O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir é um instrumento jurídico, que
possibilita a redistribuição das mais-valias do processo de urbanização das cidades, sendo que o
Estatuto da Cidade prescreve, em seu artigo 31, que os recursos auferidos com a adoção da outorga
onerosa do direito de construir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos
incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto, as quais são: (i) regularização fundiária; (ii) execução de
programas e projetos habitacionais de interesse social; (iii) constituição de reserva fundiária; (iv)
ordenamento e direcionamento da expansão urbana; (v) implementação de equipamentos urbanos e
comunitários; (vi) criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; (vii) criação de unidades de
conservação ou proteção de outras áreas verdes; (viii) criação de unidades de conservação ou proteção
de outras áreas de interesse ambiental; e, (ix) proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou
paisagístico.
A aplicação e implementação do instituto deverão estar em consonância com a lei específica
municipal e de acordo com o estabelecido no Plano Diretor Municipal, na consecução de um
planejamento urbano que possibilite a sustentabilidade das cidades, como a usufruição adequada dos
equipamentos urbanos, o controle pelo Poder Público da densidade construtiva das diversas áreas da
cidade e a distribuição das mais-valias decorrentes do processo de urbanização.

REFERÊNCIAS:

AGUIAR, Joaquim Castro. Direito da Cidade. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1996.

BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade. Presidência da República:


Brasília, 2001.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 226942, Relator (a): Min. MENEZES
DIREITO, Primeira Turma, julgado em 21/10/2008, DJe-089 DIVULG 14-05-2009 PUBLIC 15-05-
2009 EMENT VOL-02360-04 PP-00643 .Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28SOLO+CRIADO%29&bas
e=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/holgcv2, acesso em 20/07/2017.

CLICHEVSKI, Nora. Pobreza y acceso al suelo urbano. Algunas interrogantes sobre las políticas de
regularización en América Latina. In: CEPAL (Comisión Económica para América Latina y el
Caribe) – SERIE Medio ambiente y desarrollo, nº 75. Chile: Santiago de Chile, 2003.

DALLARI, Adilson Abreu. Aspectos Jurídicos do Plano Diretor. In: Revista de Direito Imobiliário.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 24, julho-dezembro de 2001.

DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli Ramos (organizadores). O Processo de Urbanização no Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

FILHO, Vicente Greco; AMBROSIS, Clementina de. Relatório sobre Solo Criado. Fundação
CEPAM – Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal. São Paulo, 1978.

FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA/CEPAM. Anais do Seminário sobre o Solo Criado (Carta
do Embu). São Paulo: Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM, 1976.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 17


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

GOIS, Antônio. Apenas 18% dos municípios possuem Plano Diretor. Folha de São Paulo, São Paulo,
14 de dezembro de 2002.

GRANELLE, Jean-Jacques, “A experiência francesa do teto legal de densidade”, In: Solo Criado: seu
impacto na dinâmica urbana e os desafios para a sua operacionalização. Prefeitura da Cidade do
Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente, mimeografado, novembro de
2002.

GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983.

GRAU, Eros Roberto. Solo Criado/Carta do Embu (diversos autores), CEPAM – Fundação Prefeito
Faria Lima, 1977.

GRECO, Marco Aurélio. O Solo Criado e a Questão Fundiária. In: Direito do Urbanismo: uma visão
sócio-jurídica / Coordenação de Álvaro Pessoa. Rio de Janeiro: IBAM – Instituto de Administração
Municipal, 1981.

HAROUEL, Jean-Louis. História do Urbanismo / Jean-Louis Harouel; tradução Ivone Salgado.


Campinas, SP: Papirus Editora, 1990.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Endereço eletrônico: www.ibge.gov.br,


acesso em 20/07/2017.

JÚNIOR, Nelson Saule. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento


constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Fabris
Editor, 1997.

LIMA, Fundação Prefeito Faria. Solo Criado como Instrumento de Planejamento Urbano. Revista
Brasileira de Planejamento, Porto Alegre, agosto/1977.

LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1997.

LUNGO, Mario; ROLNIK, Raquel. Gestión Estratégica de la Tierra Urbana. San Salvador:
PRISMA – Programa Salvadoreño de Investigación sobre Desarrollo y Medio Ambiente
www.prisma.org.sv, 1998.

MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: Planejamento urbano no
Brasil. In: A cidade do pensamento único: desmanchando consensos / Otília Arantes, Carlos
Vainer, Ermínia Maricato. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 2000.

__________________. O Estatuto da Cidade. In: Cadernos de Urbanismo – Secretaria Municipal


de Urbanismo, ano 3, nº 4, 2001. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Urbanismo, 2001.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de Construir. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.

_____________________. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 18


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

_____________________. Estudos e Pareceres de Direito Público – Volume IX. São Paulo: Editora
RT, 1986.

MOREIRA, Mariana; NETTO, Domingos Theodoro de Azevedo; DE AMBROSIS, Clementina. O


Estatuto da Cidade e o CEPAM. In: Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM. Estatuto da Cidade,
coordenado por Mariana Moreira. São Paulo: CEPAM, 2001.

NETO Floriano de Azevedo Marques. Outorga Onerosa do Direito de Construir. In: DALLARI,
Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (orgs.). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal
10.257/2001). São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

OSORIO, Letícia Marques (Orgs). Instrumentos de Reforma e Desenvolvimento Urbano. Porto


Alegre: CIDADE, 1994, Coleção Cadernos da Cidade, número 3, volume 1, outubro de 1994.

PDUA - PORTO ALEGRE LEI COMPLEMENTAR Nº 434 - Dispõe sobre o Desenvolvimento


Urbano no Município de Porto Alegre, institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental
de Porto Alegre e dá outras providências. Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 01 de dezembro de
1999.

PINHO, Evangelina; FILHO, Fernando Guilherme Bruno. Da Outorga Onerosa do Direito de


Construir. In: Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2002.

RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. O Solo Criado como Instrumento da
Reforma Urbana: Avaliação do seu impacto na dinâmica urbana. In: Cadernos do IPPUR. Rio de
Janeiro: IPPUR/UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, ano V, nº 1, dezembro de 1991.

_____________________________________________________. Plano Diretor e Gestão Democrática


Da Cidade. In: Revista de Administração Municipal. Rio de Janeiro, v.37, n. 196. jul/set. 1990.

RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS Jr. Orlando Alves. Globalização, Fragmentação e
Reforma Urbana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

ROCHA LIMA Jr. O Solo Criado: Sistemática para avaliação do preço. São Paulo: Boletim
Técnico do Departamento de Engenharia de Construção Civil/Escola Politécnica da Universidade de
São Paulo, BT-22/88.

ROLNIK, Raquel. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Instrumentos para as cidades que sonham
crescer com justiça e beleza. In: Revista de Direito Imobiliário. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, nº 52, ano 25, janeiro-junho de 2002.

ROVATTI, João F. O Plano Diretor de Porto Alegre e a “Reserva de Índices”. Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), s/d.

SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

SMOLKA, Martim O. Problematizando a intervenção urbana: falácias, desafios e constrangimentos. In:


Cadernos do IPPUR/UFRJ - Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 19


REVISTA DA GAMA E SOUZA – ANO 02 – Nº 04 – JUL./DEZ. 2017

Universidade Federal do Rio de Janeiro – ano VIII, nº 1, abr. 1994 – Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR,
1994.

SMOLKA, Martim O; FURTADO, Fernanda. Recuperação de Mais-valias Fundiárias Urbanas na


América Latina: Bravura ou Bravata? In: Cadernos de Urbanismo – Secretaria Municipal de
Urbanismo, ano 3, nº 4, 2001. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Urbanismo, 2001.

SOUZA, Júnia Verna Ferreira de. Solo Criado: Um caminho para minorar os problemas urbanos. In:
Temas de Direito Urbanístico 02 / Coordenadores Adilson Abreu Dallari e Lúcia Vale
Figueiredo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991.

SOUZA, Maria Regina Rau de; MARASQUIN, Marilú. Solo Criado – A Experiência em Porto Alegre.
In: Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM. Estatuto da Cidade, coordenado por Mariana
Moreira. São Paulo: CEPAM, 2001.

VILLA, Bona de. O Controle do Uso e da Ocupação do Solo Urbano pelo Município. São Paulo:
Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM – Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal,
2001.

APONTAMENTOS SOBRE O INSTRUMENTO URBANÍSTICO DA ... 20

Você também pode gostar