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Fernando Fuão
os gregos ainda os conecta: aos elementos da natureza, surgidos em seguida aos deuses primordiais. Assim, há daimones
do fogo, da água, do mar, do céu, da terra, das florestas, etc. A espíritos que regem ou protegem um lugar, como uma
cidade, fonte, estrada, etc. Ás afetações humanas, de corpo e de espírito, tendo sido estes daimones criados depois. Entre
eles estão: Sono, Amor, Alegria, Discórdia, Medo, Morte, Força, Velhice, Ciúmes etc.
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3 Schmitt. Op cit..
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Agni é uma divindade hindu. A palavra agni é sânscrito para "fogo" (nome), com a mesma origem do latim ignis. Daí
ígneo, relativo ao fogo, que é de fogo ou a ele se assemelha. Ignição
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eram que as almas dos mortos, a que os homens atribuíam um poder sobre-humano e
divino. A lembrança destes mortos sagrados achava-se sempre ligada ao lar, ao domus.
Para essa religião a presença de um estranho, no culto dos mortos, na família perturbava
o repouso dos manes, dos espíritos da casa. Por essa razão a lei proibia o estrangeiro de
se aproximar do túmulo.
O culto dos mortos representava o culto dos antepassados, que encontra eco em versões
contemporâneas como o culto à História e o culto aos monumentos8.
Nem sempre ao longo da história da civilização os mortos eram enterrados em
cemitérios, há muito tempo por nós conhecido como a casa comum dos mortos. Na
Grécia e na Roma antiga, enterravam-se os mortos nas casas de seus familiares, e assim
se estabelecia a relação entre o culto dos mortos e o lar.9 Assim, em cada casa moravam
não só os vivos mas também os mortos numa sucessão temporal não separável. Esse lar
não queria dizer somente a casa física mas todo espaço e domínio que pudesse abranger,
assim como um território indigena antes do estabelecimento dos limites das reservas. A
cada casa seus respectivos mortos. Nela moravam vivos e mortos numa sucessão
temporal dificil de separá-los; uma co-habitação espacial temporal constituida de vivos e
mortos,e também dos que estavam para nascer. Toda essa religião dos deuses lares era
justificada pela necessidade do nascimento, a importância do nascimento do filho
homem para que os mortos pudessem se perpetuarem, e seguirem ditando suas leis.
Coulanges nos explica que essa questão do tempo se encontra amarrada à questão da
geração e da criação:
“(...) lembremo-nos, de que entre os antigos não existia ainda a ideia de criação; e por
isso, para os seus homens, o mistério da geração lhes aparecia como aquilo que o
mistério da criação hoje pode representar.... Esta religião só podia propagar-se pela
geração. O pai dando a vida a seu filho transmitia-lhe, ao mesmo tempo, com a vida, a
sua crença, o seu culto, o direito de manter o lar, de oferecer a refeição fúnebre.”10
A condição dessa geração era masculina, ao mesmo tempo pater e frater, e acabaria
resultando no direito privado e na constituição da família. A mulher, por exemplo,
quando casava seria considerada uma ‘estranha’ na família do esposo, pois ela deveria
renunciar o direito ao culto de seus próprios antepassados, ao seu lar, e passaria a cultuar
o lar, o fogo sagrado da nova família; o lar, os deuses lares de seu esposo. É ela quem
deveria manter a chama acessa dos lares. Diz Coulanges:
“Porque a moça não podia adorar o lar do esposo, enquanto seu pai vivo não tivesse
desligado do lar paterno.”11
O casamento era o ato através do qual ela se desligava quase que por completo da família
de seu pai. Ao migrar para o lar de seu marido, o Dom, entrava na casa dele, na morada
dele, na família dele; enfim, passava a viver a vida dele e seus familiares. Perdia o direito
ao culto de seus próprios antepassados.12 O culto ao deuses lares era masculino,
8 Alois Riegl.
9 Uma das primeiras regras do culto dos mortos estava no fato de este apenas poder ser prestado aos parentes de sangue
mortos. Todo estranho era rigorosamente excluído. Coulanges, 36-37.
10 Idem, p. 39.
11 Idem, p. 47.
12 Como bem explicou John Zerzan: “a civilização, fundamentalmente, é a história da dominação da natureza e a da
mulher. Patriarquismo significa o domínio sobre a mulher e a natureza. As duas instituições (civilização e história) são
basicamente sinônimas? A filosofia tem essencialmente ignorado o vasto reino de sofrimento que tem se desdobrado
desde seu início na divisão de trabalho durante seu curso. Hélène Cixous chama a história da filosofia de "uma rede de
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falocêntrico, pater e frater, e acabaria resultando no direito privado, no direito e suas leis
de sucessão e herança, de um modo geral.
Há três coisas que, nos explica Fustel de Coulanges, desde os tempos mais antigos se
encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades gregas e itálicas: a
religião doméstica (os lares), a família e o direito da propriedade; três coisas que
andavam inseparáveis13. Em termos atuais corresponderia a TFP: tradição, família e
propriedade. A ideia de propriedade privada sempre esteve entranhada na própria
religião amarrada à família, e cada família tinha o seu lar e os seus antepassados. Embora
esse conceito de propriedade privada seja completamente distinto do atual. Pois essa
morada da família não era passível de venda.
O lar, o altar dos deuses lares era o símbolo da vida sedentária, da casa fixada, das
fundações. Uma vez assente nunca mais deveria mudar de lugar. O Deus da família queria
ter morada fixa sempre. Assim, o lar, o morto, tomava posse do solo, apossava-se desta
parte de terra que ficaria sendo, assim, sua propriedade. O lugar pertencia-lhe por vida e
por morte: era sua propriedade, propriedade não de um homem só, mas de uma família,
de um clã, ou de uma tribo cujos membros deveriam vir, um após o outro, geração após
geração, morrer ali, guardar-se ali.
Essa questão dos mortos e da propriedade sobre a terra não é só pertinente a cultura
Greco-romana, mas praticamente para todas as culturas ditas ‘primitivas’. Como disse o
chefe Chefe Seattle na ‘Carta Resposta do ao Presidente dos Estados Unidos’, F. Pierce,
quando em 1854, o Presidente Norte-Americano Pierce propôs comprar toda a Terra
indígena, apresento aqui um pequeno fragmento dessa carta:
“Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avôs.
Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com a vida de
nosso povo.”14
sacerdotes". A mulher é tão alheia a isso quanto sofre isso. As "glorias" da civilização e o desinteresse da mulher. Para
alguns de nós as "cabanas de palha" representa não tomar o caminho errado, o caminho da opressão e da destrutividade.
No ponto de vista da globalmente espalhada marcha de morte da civilização tecnológica, caso ainda estivéssemos
vivendo em cabanas de palha. O local exato da transformação do selvagem para o cultural é o domicílio, de maneira que
a mulher se torna progressivamente limitada em seus horizontes. A domesticação é afiliada aqui (etimologicamente, do
latim Domus, ou domestico): trabalho árduo, menos robustidade do que os coletores, muito mais crianças, e uma
expectativa de vida menor do que dos homens é encontrado entre os aspectos da existência agricultora da mulher. Aqui
outra dicotomia surge, a distinção entre trabalho e não-trabalho, que para muitos, e muitas gerações não existiu. Do
campo de produção de gênero e de sua constante extensão vem a favorecer a fundação de nossa cultura e mentalidade.
Confinada, se não totalmente pacificada, a mulher é definida como passiva. Assim como a natureza, algo para ser feito
produtivo; esperando a fertilização, estimulação externa a ela. A mulher sofre o movimento da autonomia e relativa
igualdade em pequenos grupos anárquicos dinâmicos para uma posição controlada num largo e complexo povoado
governado. A mitologia e a religião, compensações de uma sociedade dividida, testifica a redução da mulher. Na Grécia
de Homero, a terra não cultivada (não domesticada para a cultura de grãos) era considerada feminina, a morada de
Calipso, da feiticeira, das sereias que tentaram Odisseu a abandonar o trabalho da civilização. Ambos, a mulher e a terra
são novamente sujeitas à dominação. Mas este imperialismo revela traços de culpa, como na punição para aqueles
associados com a domesticação e com a tecnologia, como nas narrativas de Prometheus e Sisyphus. O projeto da
agricultura foi sentido, em algumas áreas mais que outras, como uma violação; portanto, a incidência de estupro nas
estórias de Demeter. Expostas como a montanha gasta, as relações mãe-filhas dos mitos gregos - Demeter-Kore,
Clytemnestra-Iphigenia, Jocasta-Antigone por exemplo, desapareceram”. Patriarquismo, Civilização e as Origens do
Gênero por John Zerzan. http://ervadaninha.sarava.org/patriciv.html.
13 COULANGES, p. 74
14 A Carta Resposta do Chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos F. Pierce [versão do livro "A Teia da Vida"
de Fritjof Capra.]. “O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas comparti- lham o mesmo sopro: o
animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira.
Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao [seu próprio] mau cheiro. Portanto, vamos meditar sobre sua
oferta de comprar nossa terra. Se nós a decidirmos aceitar, imporei uma condição: O homem branco deve tratar os
animais desta terra como seus irmãos. O que é o homem sem os animais? Se os animais se fossem, o homem morreria de
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Para a cultura Greco-romana, o lar era coisa sagrada, expressão essa popular, que ainda
chegou até aos nossos tempos. Abandonar um lar significava abandonar seus Deuses,
não significava somente abandonar a família ou a casa mas também abandonar seus
antepassados, sentir-se desterritorializado, um desterrado, um errante.
A família, explica Coulanges, “estava vinculada a esse lar, e este, por sua vez, encontrava-
se fortemente ligado ao solo; uma estreita conexão estabelecia-se entre solo e família. Alí
deveria ser a sua residência permanente, que nunca pensará deixar, salvo alguma força
superior a constranja. Como o lar, a família ocupará sempre esse lugar”, numa co-
habitação entre vivos e mortos.
O lugar pertence-lhe: é sua propriedade, propriedade não de um só homem, mas de uma
família, cujos membros devem vir um após outros, nascer e morrer ali. O morto ao
uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma lição em tudo.
Tudo está ligado. Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avôs. Para que
respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enri- quecida com a vida de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que
ensina- mos às nossas: que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá também aos filhos da terra. Se
os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Disto nós sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem
é que per- tence à terra. Disto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma
ligação em tudo. O que ocorre com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não teceu a rede da vida: ele é
simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizermos à rede, fará o homem a si mesmo. Mesmo o homem branco, cujo
Deus caminha e fala com ele de amigo pa- ra amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos
irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos (e o homem branco poderá vir a descobrir um dia): Deus
é um Só, qualquer que seja o no- me que lhe dêem. Vocês podem pensar que O possuem, como desejam possu- ir nossa
terra; mas não é possível. Ele é o Deus do homem e sua compaixão é igual para o homem branco e para o homem
vermelho. A terra lhe é preciosa e feri-la é desprezar o seu Criador. Os homens brancos também passarão; talvez mais
cedo do que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos. Mas
quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, ilumina- dos pela força do Deus que os trouxe a esta terra e
por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para
nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os
recantos secretos das florestas densas impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios
que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a água? Desapareceu. É o final da vida e o inicio da
sobrevivência. Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa Idéia nos parece um pouco estranha.
Se não possuímos o frescor do ar e o bri- lho da água, como é possível comprá-los.. Cada pedaço de terra é sagrado para
meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada
clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência do meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores
carrega consigo as lembranças do homem vermelho. Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas
água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês de- vem lembrar-se de que ela é sagrada, e
devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de aconte-
cimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz dos meus ancestrais. Os rios são nossos
irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra,
vocês devem lembrar e ensinar para seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também. E, portanto, vocês devem
dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão. Sabemos que o homem branco não compreende nossos
costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à
noite e extrai da terra tudo que necessita. A terra, para ele, não é sua irmã, mas sua inimiga e, quando ele a conquista,
extraindo dela o que deseja, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda.
Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um
deserto. Eu não sei... nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem
vermelho. Talvez porque o homem vermelho seja um selvagem e não compreenda. Não há um lugar quieto nas cidades
do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater de asas de um
inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o
que resta de um homem, se não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa à
noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face
do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros."
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sangrar a terra a ‘consa(n)grava-a’. A terra não podia ser vendida nunca, vender a terra
significava vender seu antepassados, perder a proteção. Abandonar a terra significava
tornar-se um errante, um qualquer, perder sua referência no mundo, seu sentido de
existência.
Enfim, na questão da terra, no solo, na casa, no lar jaz o tema dos espectros, mais que
que isso, nela na terra, está enraizada, enterrada, encravada a propria morte; sua
fundação; tanto no território como na propriedade em seus fundamentos, fundações
estava os mortos, os antepassados que continuavam vivos mesmo enquanto mortos.
No inicio da história da terra, da cidade e da casa esta essa questão fundamental de
‘pertencimento’, na antiguidade os homens pertenciam a terra e não a terra pertencia
aos homens, e a dita ‘propriedade’ sobre essa terra também pertencia aos mortos, assim
os vivos tratavam de adorar a terra e os mortos em simultaneidade. Todos esses temas,
como veremos, segundo Coulanges (1864) estão entrelaçados com familia, religião, e até
mesmo com o comunismo. O espectro, mesmo antes do morto se tornar um espectro, o
que funda o oikos, a oikonomia, o domus, o processo de domesticação, asssim também
como a lei da hospitalidade do espectro, que alí aguarda em seu interior sem interior o
hospede porvir do grupo, clã ou da família.15
A casa, ou o lugar de assentamento ou mesmo a marcação de rotas, quando pensamos
em sua ancestralidade, em sua arché, por exemplo: da casa grega (oikos), ou romana
(domus), também em outras culturas ancestrais que sobrevivem até nossos dias como
nas culturas indigenas das Americas - na religião da Pachamama-, os Sioux, ou até
mesmo nos quilombolas no Brasil; foram estabelecidos pelo enterramento de seus
antepasssados. A terra, a casa, sempre estiveram indissociavel do sagrado e da morte; a
fixação do grupo num determinado lugar era determinado pelo ‘enterramento’ de
geração após geração. Esse sistema de crenças criava um lugar especial; o lugar do
encontro dos vivos com os mortos que ali permaneciam protegendo os vivos, numa co-
habitação, numa comunidade, numa comum unidade.
Se construissemos uma outra história da casa, uma espectrografia da casa, ela estaria
entrecruzada pela história da morte e de seus espectros, se entrecruzaria com a
formação da religião, da lei e do direito. A família e seus deuses lares fundaram todas as
instituições segundo Fustel Coulanges, assim como todo direito privado dos antigos;
desse domus e oikos a cidade tirou seus princípios, suas leis. Como nos explicou, com
outras palavras, também Jean-Claude Schmitt em Os vivos e os mortos, na sociedade
medieval: “Os mortos, fantasmas e espectros têm apenas a existência que os vivos
imaginam para eles. Segundo suas diferenças culturais, suas crenças, sua época, os
homens atribuem aos mortos uma vida no além, descrevem os lugares de sua morada e
assim representam o que esperam para si próprio”. Essa dimensão antropológica e
universal do retorno dos mortos, retornantes está presente, segundo Schmitt, entre
outras, na tradição ocidental, desde a antiguidade, na Idade Média e até na
contemporaneidade.16 Para Schmitt as mentalidades não consistem apenas nos estratos
antigos e persistentes dos pensamentos e dos comportamentos, mas nas crenças e nas
imagens, nas palavras e nos gestos que encontram plenamente seu sentido de
15
16Schmitt,Jean-Claude. Os vivos e os mortos, na sociedade medieval. São Paulo. Editora Schwarcz Ltda. 1999.
Tradução Maria Lucia Machado. O titulo original: Les revenants. Les vivants et les morts dans la société medieval.
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atualidade presente e bem viva das relações sociais e da ideologia de uma época. Como
bem descreve o conteudo de seu livro:
“Ele trata do funcionamento social da memória dos mortos na época medieval. Mais
exatamente, se ele se volta a esse grande tema de história que constitui a memória das
sociedades é para interessar-se principalmente por seu aparente avesso, a uma só vez a
necessidade do esquecimento e o que se opõe ao esquecimento. Perguntar-nos-emos,
com efeito, como os homens do passado procuraram lembrar-se de seus defuntos, mas,
sobretudo, esquecê-los, e como alguns desses mortos-mortos ‘muito especiais’ também,
porém mais na imperfeição que na santidade –apartentemente se rebelavam contra a
vontade de esquecimento dos vivos, revivificando suas lembranças, invadiam seus
sonhos, assombravam suas casas.”17
Por exemplo que a complexa cultura medieval foi herdeira do paganismo greco-romana,
do culto dos deuses lares, o culto dos mortos, ou da gens, ou ainda segundo Schmitt das
heranças ‘bárbaras’ revivificadas pelas migrações dos povos germânicos e integradas à
cristandade durante o primeiro milênio.18
Coulanges nos faz ver que, “aquele sentido de propriedade na verdade era uma
instituição, sem a qual a religião doméstica não podia existir. Essa religião prescrevia
isolar o domínio e isolar também a sepultura: a vida em comum dos mortos tornava-se,
pois, impossível. Não foram as leis, mas a religião, aquilo que primeiramente garantiu o
direito de propriedade.”19
Toda essa religião se limitava ao interior da casa. O culto não era público. O larariun
nunca estava colocado fora da casa, ou nem mesmo junto a porta externa, donde
qualquer extrangeiro pudesse ver com facilidade. Os romanos escondiam-no no próprio
coração da casa. A todos esses deuses (fogo, lares, manes) chamavam-lhes também
‘deuses ocultos’, ou deuses domésticos, porque sua pratica de culto era oculta. Por isso
ainda hoje encontramos expressões que dizem que a lareira é o coração da casa. Convém
lembrar que a casa nunca foi e nunca é o lugar da transparencia, mas sim o lugar das
praticas veladas e ocultas; tanto é que em portugues se diz que ‘roupa suja se lava em
casa’. A transparência e a cristalinidade de nossas casas modernas estão diretamente
associadas ao desconjuro dos antepassados, e dos espectros e fantasmas feito pela
modernidade. Nas cidades arabes por exemplo ou nas cidades da andalucia, é tudo ao
contrário de hoje, as casas em sua maioria nao tem janelas para rua, exceto as de dois
pisos, elas ainda guardam a ideia de uma casa oculta, voltada para si mesmo, e sua
relação com o cosmo se dá através do patio interno, da ‘clareira’, em contraposição as
casas modernas cujas fachadas se parecem a vitrines, lugar de exibição. Esse oculto será
justamente, algo relacionado não só ao reprimido, corroborando com Freud, mas
também daquilo mais intimo (in–timus) que deve ser preservado guardado. A intimidade,
o recolhimendo.
Le Corbusier havia observado a dificuldade da deconstrução dos mitos contidos na casa,
no lar, que persistiam ainda no ínicio do século XX e pela terminologia empregada em seu
livro Vers une architecture, ele conhecia bem os estudos Fustel de Coulanges (1830-
1889), historiador francês e professor da Sorbone (1879) sobretudo A cidade Antiga
(1864); comenta Le Corbusuier:
"...os homens vivem em casas velhas e ainda não pensaram em costruir casas para si.
Gostam muito do próprio abrigo, desde os tempos imemorais. Tanto e tão fortemente que
estabeleceram o culto sagrado da casa. Um teto! Outros deuses lares. As religiões são
fundadas sobre dogmas; as civilizações mudaram, as religiões desmoranam apodrecidas.
As casas não mudaram. A religião das casas permanece idêntica há séculos. A casa
desabará"20
"os engenheiros constroem os instrumentos de seu tempo. Tudo, salvo as casas e alcovas
apodrecidas"21
e suas visitações. O interessante do trabalho de Schmidt é como ele se apresenta -quase como uma arqueologia
foucaultiana-, nos mostra as epistemes que atuam sobre os fantasmas, os retornantes e de como eles estruturam
justamente essas epistemes, mostrando exatamente os pontos de disjunção e as formas de como se davam essas
aparições, o ‘como’ aparecem. Por exemplo Schmitt nos mostra, ao contrario do que muitos pensam, que o inicio da
Idade Média esta despovoada de fantasmas, ha um desconjuro dos fantasmas por parte do cristianismo. Como relata:
“Uma recusa persistente, mas não desprovida de ambiguidade e de contadição, de admitir a possibilidade do retorno
dos mortos nos sonhos, ou mesmo nas visões despertas, caracteriza a cultura eclesiastica da Alta Idade Média). Uma
das razões principais dessa recusa reside na assimilação das crenças e das práticas relativas ao retorno dos mortos à
‘sobrevivência’ do paganismo antigo, cujos cultos funerários era em toda parte reprovados, domesticados, ou
ocultados”.18
19 Coulanges, p. 65-69.
20 (Le Corbusier, Por uma arquitetura, p.5). Veja-se também o ensaio O desconjuro moderno. Fuão, Fernando
21 (p. 6)
10
22 Arendt pag 33
23 Arend p. 39
24 Arendt p71
25
26 Arend p. 72
27
Arendt p 73
28 Arendt 73
12
propriedade sem uma cerca que a confinasse: a primeira resguardava e continha a vida
politica, enquanto a outra abrigava e protegia o processo biológico vital da família."29
"A privatividade era como que o outro lado escuro e oculto da esfera pública; ser politico
significa atingir a mais alta possibilidade da existência humana; mas não possuir um
lugar proprio e privado (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano."30
Para Arendt, o totalitarismo requer o isolamento e desenraizamento, baseado no terror e
na ideologia, o isolamento destrói a capacidade politica, a faculdade de agir, ele é a base
de toda tirania, mas não atinge entretanto a esfera privada. Não ter raízes significa não
ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser superfluo significa não
pertencer ao mundo de forma alguma.
A religião dos mortos, não era só um culto aos mortos, mas simultaneamente uma
religião dos vivos, um nomos, uma lei que organizava a vida dos vivos. E a linha que divide
o publico e o privado é exatamente a linha da vida, analogamente, ambito do publico, a
linha da morte, entre o meu oculto e o outro oculto. Não é o privado que está no ambito
do publico, tampouco seu inverso, mas uma relação que parte do oculto, sempre da casa
e dos mortos.
O que oculta a casa? se não sua propria condição de oculta, de um recolhimento de uma
especie de esconderijo? Que oculta a casa? Senão o mistério do inicio da vida e a morte.
A casa, o lar é sempre uma especie de portal, de porta ela transporta as sucessões de
gerações no tempo. A casa é uma metafora da porta, a casa se faz casa através da porta,
da abertura.
Outros dois poemas de Mario Quintana , quiça o poeta dos espectros, apresenta-se a
guisa de fechamento
A casa está morta?
Não: a casa é um fantasma,
um fantasma que sonha
com a sua porta de pesada aldrava,
com os seus intermináveis corredores
que saíam a explorar no escuro os mistérios da noite
e que as luas, por vezes,
enchiam de um lívido assombro...
Sim!
agora
a casa está sonhando
com o seu pátio de meninos pássaros.
A casa escuta... Meu Deus! a casa está louca, ela não
[sabe
que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e
[aço:
há sempre uma cidade dentro de outra
e esse eterno desentendido entre o Espaço e o Tempo.
Casa que teimas em existir
a coitadinha da velha casa!
Eu também não consegui nunca afugentar meus
[pássaros.
29
Arendt p. 75
30 Arendt p. 75
13
ENVELHECER
Antes todos os caminhos iam
Agora todos caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas. Mario Quintana
A antiga religião dos deuses lares, dos deuses domésticos, fazem parte de um mundo
incomensuravel, desmedidos de acompanhantes animícos (que animam a alma) e
espirito protetores, do mesmo modo similar a outros sistemas de crenças que
sobrevivem até hoje.
***