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LARES

Fernando Fuão

O problema da hospitalidade, da familiaridade versus hostilidade, da familiaridade versus


não familiaridade passa por um problema milenar e cultural do lar, do culto aos mortos e
aos monumentos. Na casa dormita o tema da morte, mais que que isso nela está
enraizada a própria morte, os fantasmas, espíritos e espectros que nos assolam. A casa, -
ou, quando pensamos em sua ancestralidade, sua arché, a casa grega, romana ou outras
culturas ancestrais – sempre esteve relacionada ao sagrado e à morte. Muitas vezes, a
fixação, a permanência de um grupo num lugar era determinada pelo ‘enterramento’ de
seus antepassados nesse lugar geração após geração.
Se construíssemos uma ‘História da casa’, ainda que fictícia, esta seria entrecruzada pela
história da morte, com a formação da religião, da lei, do direito da propriedade privada.
Todos esses temas, como veremos, são atravessados, entretecidos com o domus e com a
domesticação.
Se a familiaridade se alicerça numa certa ‘espera’, permanência, enraizamento é porque
existiu um trabalho secular de domesticação sobre essa potência da errância do ser
humano. Quando se fala em familiaridade da vida, de um modo habituado de ver e ser
no mundo, de uma certa rotina, quando se fala domesticação nos remetemos
infalivelmente ao oikos, ao domus, à antiguidade dos deuses ‘lares’.
Como nos explica Fustel de Coulanges (1830-1889), nas primeiras páginas de seu A
cidade antiga:
“(...) a educação nos obrigou a viver desde a infância na tradição dos gregos e dos
romanos, habituou-nos, familiarizou-nos, nos domesticou a nos comparar sempre a eles,
a julgar nossa história pela deles, fazer nossa história como um adendo da história deles,
e até a explicar nossas revoluções pelas deles, de algum modo tudo está enraizado,
fundado enquanto fundação de pedra mesmo nessa longa tradição. Mas nada da história
dos tempos modernos se parece com a história antiga Greco-romana, embora muito de
suas leis ainda permaneçam, notaremos uma íntima relação entre os juízos e regras
antigas do direito privado, entre os ritos derivados dessas crenças e suas instituições
políticas.”1
O culto aos deuses lares e o nomos* de cada casa, nos mostra como se constituíram nas
1
* Nomos (em grego, Νόμος) é, na mitologia grega, o daemon das leis, estatutos e normas. É marido de Eusébia (deusa da
piedade) e pai de Dice (deusa da justiça e vingadora das violações da lei). Nomos é geralmente um aspecto de Zeus, não
sendo considerado um deus separado. Nomos é a materialização da lei humana na Grécia antiga. Daemon (em grego
δαίμων, transliteração daímôn, tradução "divindade", "espírito"), no plural daemones (em grego δαίμονες) é um tipo de
ser que em muito se assemelha aos gênios da mitologia árabe. A palavra daímôn se originou com os gregos na
Antiguidade; no entanto, ao longo da História, surgiram diversas descrições para esses seres. O nome em latim é
daemon, que veio a dar o vocábulo em português demônio. São deuses de determinadas entidades da natureza humana,
como a Loucura, a Ira, a Tristeza, etc. Xenócrates associava os deuses ao triângulo equilátero, os homens ao escaleno, e
os daimons ao isósceles. Seu temperamento liga-se ao elemento natural ou vontade divina que o origina. Não se fala em
"bem" ou "mal". Um mesmo daemon pode apresentar-se "bom" ou "mau" conforme as circunstâncias do relacionamento
que estabelece com aquele ou aquilo que está sujeito à sua influência. No plano teleológico, os gregos falavam de
eudaemon (εὐδαίμων, eu significando "bom", "favorável") e cacodaemon (κακοδαίμων, kakos significando "mau"): por
isso, a palavra grega que designa o fenômeno da felicidade é Eudaimonia (εὐδαιμονία). Ser feliz para os gregos é viver
sob a influência de um bom daemon. Assim é a forma como Sócrates se refere a seu daemon. O conceito original entre
2

famílias gregas e romanas as regras do casamento, a autoridade paterna, o falocentrismo,


e o sentido de propriedade privada, bastante distinto da acepção atual da casa como
mercadoria.
Coulanges nos explica detalhadamente sobre a origem e significado da palavra Lares, a
qual está diretamente associada ao fogo sagrado. Diz ele:
“(...) todas as casas dos gregos ou dos romanos possuíam um altar; neste altar devia
haver sempre restos de cinzas e brasas. Era obrigação sagrada do dono de cada casa
conservar acesso o fogo, dia e noite. O fogo só deixava de brilhar sobre o altar quando
toda família havia morrido; lar extinto, família extinta, eram expressões sinônimas entre
os antigos.”
“As almas humanas divinizadas pela morte chamavam os gregos de demônios, ou heróis.
Os latinos, por sua vez, as nominavam lares, manes, gênios. ” 2
Se o fogo se extinguisse deixava de existir os deuses, a proteção dada pelos antepassados
ao domus, lembrando que a palavra doméstico tem origem na palavra domus, que quer
dizer também ‘du-omo’, do homem. Portanto, aqueles a quem os antigos chamavam
deuses lares, deuses domésticos; eram sómente as almas dos mortos, a que o homem
atribuía um poder sobre-humano e divino. E que o cristianismo consideraria
posteriormente como forma de paganismo.
O que entendemos hoje por paganismo (do latim paganus, que significa "camponês",
"rústico”), a grosso modo, hoje simplesmente corresponde a crença em outros deuses
(politeísmo) em oposição ao Deus monoteísta do cristianismo, ou mesmo até confundido
com o ateísmo.3
E esse sentido de morte que os latinos e ou os gregos tinham é bem distinta do que hoje
entendemos por mortalidade. A religião dos mortos, não se constituia sómente em um
culto aos mortos, mas simultaneamente uma religião ditada pelos mortos, um nomos,
uma lei que organizava a vida dos vivos. Os deuses lares não eram mortos tal como
entendemos hoje, eles não estavam nem mortos nem vivos, continuavam vivendo numa
espécie de outra vida enquanto pertencendo a casa e a família, e seu espírito guardava e
protegia a família. Esses mortos pareciam estar mais vivos ainda do que quando vivos,
pois enquanto mortos ditavam ainda suas leis, sua moral, maldições e conjuros caso não
se cumprissem seus desejos ditados enquanto vivos.4
Entretanto, hoje o fogo dentro da casa já não guarda nenhuma relação com nossos
antepassados mortos, nem tampouco a fumaça, o espiritual que advém dele. Já não
conseguimos ver o fogo que cultuamos na atualidade, ele arde sobre outra forma. Segue
existindo mitologicamente, mas já não queima e segue organizando e reunindo nossas
vidas em comunidade como antigamente. Esse fogo de hoje é distinto do fogo de
antigamente, diz Coulanges, esse fogo: “(...) tinha algo de divino, adoravam-no,
prestavam-lhe verdadeiro culto, davam-lhe oferendas: flores, frutas, incenso, vinho.

os gregos ainda os conecta: aos elementos da natureza, surgidos em seguida aos deuses primordiais. Assim, há daimones
do fogo, da água, do mar, do céu, da terra, das florestas, etc. A espíritos que regem ou protegem um lugar, como uma
cidade, fonte, estrada, etc. Ás afetações humanas, de corpo e de espírito, tendo sido estes daimones criados depois. Entre
eles estão: Sono, Amor, Alegria, Discórdia, Medo, Morte, Força, Velhice, Ciúmes etc.
2
3 Schmitt. Op cit..
4
3

Dirigiam-lhe fervorosas preces para dele conseguirem saúde, riqueza e felicidade. ”5


O que chamavam de Lares era o deus vivo protetor de cada casa e da respectiva família.
O lar, o fogo sagrado dos mortos estava no altar, o lugar de adoração, o homem nunca
saía ou chegava em casa sem antes dirigir uma prece ao seu lar. O fogo do lar era a
providência6 da família, se o fogo apagasse, se extinguia o Deus.
Até hoje, tanto na língua espanhola como portuguesa podemos observar esse fenômeno,
essa essência na relação com a palavra hogar, que em espanhol designa tanto lar como
lareira, e em português, também na palavra ‘lareira’ que guarda o prefixo lar, e é o lugar
do fogo dentro da casa. Sintetizando, a palavra lar durante muito tempo foi associada ao
fogo, aos mortos e aos deuses da família. Dessa maneira, devemos sempre distinguir a
palavra lar da palavra casa, porque a primeira tem e guarda o passado, os antepassados.
Em inglês se diz: ‘a house is a not a home’. Um lar tem ‘algo a mais’, nele crepita um fogo
fabuloso e inexplicável.
O culto do fogo sagrado não existiu só na cultura greco-romana, encontramos igualmente
no Oriente como (Agni)7. Coulanges observa que o fogo mantido no lar, para o
pensamento dos homens, não é o mesmo fogo da natureza material. O fogo do lar é de
natureza inteiramente distinta. É um fogo puro, só podendo ser produzido quando
ajudado por certos ritos e por determinadas espécies de madeira. É um fogo casto; a
relação sexual, por exemplo, devia ser feita longe de sua presença. O fogo do lar era, pois,
uma espécie de ser moral. Esse fogo ditava também deveres e vigiava o seu
cumprimento.
Coulanges explica que mais tarde na cultura romana e grega, esse culto ao fogo sagrado,
dos deuses lares, deu lugar ao grande o culto da deusa Vesta (nome grego que designava
o altar com o fogo sagrado). Vesta surge como deusa virgem, não representa nem a
fecundidade nem o poder, mas a ordem; não a ordem rigorosa, abstrata matemática, mas
sim a ordem moral. Na grécia era conhecida como Héstia. Grosso modo, quando se
estabelece o culto à deusa Héstia, similarmente à Vesta em Roma, estabelece-se a
criação das cidades-estados na Grécia; momento do primeiro intento de unificar todos os
distintos cultos dos deuses lares praticados em cada casa. Cada cidade-estado grega tinha
uma lareira comum com um fogo sagrado no edifício principal, onde os convidados se
reuniam oficialmente. Na fundação de novas colônias, os precursores levavam o fogo
sagrado de sua cidade natal para acender o fogo da nova cidade. De maneira similar,
quando um casal se unia, a mãe da noiva acendia uma tocha em sua casa e a
transportava diante do casal recentemente casado até sua nova casa, para que
acendessem a primeira chama em seu lar. Este ato consagrava o novo lar. Portanto, onde
quer que um novo casal se aventurasse a estabelecer um novo lar, Héstia trazia o fogo
sagrado, ligando o lar antigo com o novo.
Lar, Demônios, Heróis, deuses Lares, tudo se acha confundido como ressalta Coulanges.
Por lares entendiam os antigos os deuses lares, o fogo do lar. Virgílio empregara também
a palavra penates para lar.
Devemos entender que aqueles a quem os antigos chamavam lares ou heróis nada mais

7
Agni é uma divindade hindu. A palavra agni é sânscrito para "fogo" (nome), com a mesma origem do latim ignis. Daí
ígneo, relativo ao fogo, que é de fogo ou a ele se assemelha. Ignição
4

eram que as almas dos mortos, a que os homens atribuíam um poder sobre-humano e
divino. A lembrança destes mortos sagrados achava-se sempre ligada ao lar, ao domus.
Para essa religião a presença de um estranho, no culto dos mortos, na família perturbava
o repouso dos manes, dos espíritos da casa. Por essa razão a lei proibia o estrangeiro de
se aproximar do túmulo.
O culto dos mortos representava o culto dos antepassados, que encontra eco em versões
contemporâneas como o culto à História e o culto aos monumentos8.
Nem sempre ao longo da história da civilização os mortos eram enterrados em
cemitérios, há muito tempo por nós conhecido como a casa comum dos mortos. Na
Grécia e na Roma antiga, enterravam-se os mortos nas casas de seus familiares, e assim
se estabelecia a relação entre o culto dos mortos e o lar.9 Assim, em cada casa moravam
não só os vivos mas também os mortos numa sucessão temporal não separável. Esse lar
não queria dizer somente a casa física mas todo espaço e domínio que pudesse abranger,
assim como um território indigena antes do estabelecimento dos limites das reservas. A
cada casa seus respectivos mortos. Nela moravam vivos e mortos numa sucessão
temporal dificil de separá-los; uma co-habitação espacial temporal constituida de vivos e
mortos,e também dos que estavam para nascer. Toda essa religião dos deuses lares era
justificada pela necessidade do nascimento, a importância do nascimento do filho
homem para que os mortos pudessem se perpetuarem, e seguirem ditando suas leis.
Coulanges nos explica que essa questão do tempo se encontra amarrada à questão da
geração e da criação:
“(...) lembremo-nos, de que entre os antigos não existia ainda a ideia de criação; e por
isso, para os seus homens, o mistério da geração lhes aparecia como aquilo que o
mistério da criação hoje pode representar.... Esta religião só podia propagar-se pela
geração. O pai dando a vida a seu filho transmitia-lhe, ao mesmo tempo, com a vida, a
sua crença, o seu culto, o direito de manter o lar, de oferecer a refeição fúnebre.”10
A condição dessa geração era masculina, ao mesmo tempo pater e frater, e acabaria
resultando no direito privado e na constituição da família. A mulher, por exemplo,
quando casava seria considerada uma ‘estranha’ na família do esposo, pois ela deveria
renunciar o direito ao culto de seus próprios antepassados, ao seu lar, e passaria a cultuar
o lar, o fogo sagrado da nova família; o lar, os deuses lares de seu esposo. É ela quem
deveria manter a chama acessa dos lares. Diz Coulanges:
“Porque a moça não podia adorar o lar do esposo, enquanto seu pai vivo não tivesse
desligado do lar paterno.”11
O casamento era o ato através do qual ela se desligava quase que por completo da família
de seu pai. Ao migrar para o lar de seu marido, o Dom, entrava na casa dele, na morada
dele, na família dele; enfim, passava a viver a vida dele e seus familiares. Perdia o direito
ao culto de seus próprios antepassados.12 O culto ao deuses lares era masculino,

8 Alois Riegl.
9 Uma das primeiras regras do culto dos mortos estava no fato de este apenas poder ser prestado aos parentes de sangue
mortos. Todo estranho era rigorosamente excluído. Coulanges, 36-37.
10 Idem, p. 39.
11 Idem, p. 47.
12 Como bem explicou John Zerzan: “a civilização, fundamentalmente, é a história da dominação da natureza e a da

mulher. Patriarquismo significa o domínio sobre a mulher e a natureza. As duas instituições (civilização e história) são
basicamente sinônimas? A filosofia tem essencialmente ignorado o vasto reino de sofrimento que tem se desdobrado
desde seu início na divisão de trabalho durante seu curso. Hélène Cixous chama a história da filosofia de "uma rede de
5

falocêntrico, pater e frater, e acabaria resultando no direito privado, no direito e suas leis
de sucessão e herança, de um modo geral.
Há três coisas que, nos explica Fustel de Coulanges, desde os tempos mais antigos se
encontram fundadas e estabelecidas solidamente pelas sociedades gregas e itálicas: a
religião doméstica (os lares), a família e o direito da propriedade; três coisas que
andavam inseparáveis13. Em termos atuais corresponderia a TFP: tradição, família e
propriedade. A ideia de propriedade privada sempre esteve entranhada na própria
religião amarrada à família, e cada família tinha o seu lar e os seus antepassados. Embora
esse conceito de propriedade privada seja completamente distinto do atual. Pois essa
morada da família não era passível de venda.
O lar, o altar dos deuses lares era o símbolo da vida sedentária, da casa fixada, das
fundações. Uma vez assente nunca mais deveria mudar de lugar. O Deus da família queria
ter morada fixa sempre. Assim, o lar, o morto, tomava posse do solo, apossava-se desta
parte de terra que ficaria sendo, assim, sua propriedade. O lugar pertencia-lhe por vida e
por morte: era sua propriedade, propriedade não de um homem só, mas de uma família,
de um clã, ou de uma tribo cujos membros deveriam vir, um após o outro, geração após
geração, morrer ali, guardar-se ali.
Essa questão dos mortos e da propriedade sobre a terra não é só pertinente a cultura
Greco-romana, mas praticamente para todas as culturas ditas ‘primitivas’. Como disse o
chefe Chefe Seattle na ‘Carta Resposta do ao Presidente dos Estados Unidos’, F. Pierce,
quando em 1854, o Presidente Norte-Americano Pierce propôs comprar toda a Terra
indígena, apresento aqui um pequeno fragmento dessa carta:
“Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avôs.
Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com a vida de
nosso povo.”14

sacerdotes". A mulher é tão alheia a isso quanto sofre isso. As "glorias" da civilização e o desinteresse da mulher. Para
alguns de nós as "cabanas de palha" representa não tomar o caminho errado, o caminho da opressão e da destrutividade.
No ponto de vista da globalmente espalhada marcha de morte da civilização tecnológica, caso ainda estivéssemos
vivendo em cabanas de palha. O local exato da transformação do selvagem para o cultural é o domicílio, de maneira que
a mulher se torna progressivamente limitada em seus horizontes. A domesticação é afiliada aqui (etimologicamente, do
latim Domus, ou domestico): trabalho árduo, menos robustidade do que os coletores, muito mais crianças, e uma
expectativa de vida menor do que dos homens é encontrado entre os aspectos da existência agricultora da mulher. Aqui
outra dicotomia surge, a distinção entre trabalho e não-trabalho, que para muitos, e muitas gerações não existiu. Do
campo de produção de gênero e de sua constante extensão vem a favorecer a fundação de nossa cultura e mentalidade.
Confinada, se não totalmente pacificada, a mulher é definida como passiva. Assim como a natureza, algo para ser feito
produtivo; esperando a fertilização, estimulação externa a ela. A mulher sofre o movimento da autonomia e relativa
igualdade em pequenos grupos anárquicos dinâmicos para uma posição controlada num largo e complexo povoado
governado. A mitologia e a religião, compensações de uma sociedade dividida, testifica a redução da mulher. Na Grécia
de Homero, a terra não cultivada (não domesticada para a cultura de grãos) era considerada feminina, a morada de
Calipso, da feiticeira, das sereias que tentaram Odisseu a abandonar o trabalho da civilização. Ambos, a mulher e a terra
são novamente sujeitas à dominação. Mas este imperialismo revela traços de culpa, como na punição para aqueles
associados com a domesticação e com a tecnologia, como nas narrativas de Prometheus e Sisyphus. O projeto da
agricultura foi sentido, em algumas áreas mais que outras, como uma violação; portanto, a incidência de estupro nas
estórias de Demeter. Expostas como a montanha gasta, as relações mãe-filhas dos mitos gregos - Demeter-Kore,
Clytemnestra-Iphigenia, Jocasta-Antigone por exemplo, desapareceram”. Patriarquismo, Civilização e as Origens do
Gênero por John Zerzan. http://ervadaninha.sarava.org/patriciv.html.
13 COULANGES, p. 74
14 A Carta Resposta do Chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos F. Pierce [versão do livro "A Teia da Vida"

de Fritjof Capra.]. “O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas comparti- lham o mesmo sopro: o
animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira.
Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao [seu próprio] mau cheiro. Portanto, vamos meditar sobre sua
oferta de comprar nossa terra. Se nós a decidirmos aceitar, imporei uma condição: O homem branco deve tratar os
animais desta terra como seus irmãos. O que é o homem sem os animais? Se os animais se fossem, o homem morreria de
6

Para a cultura Greco-romana, o lar era coisa sagrada, expressão essa popular, que ainda
chegou até aos nossos tempos. Abandonar um lar significava abandonar seus Deuses,
não significava somente abandonar a família ou a casa mas também abandonar seus
antepassados, sentir-se desterritorializado, um desterrado, um errante.
A família, explica Coulanges, “estava vinculada a esse lar, e este, por sua vez, encontrava-
se fortemente ligado ao solo; uma estreita conexão estabelecia-se entre solo e família. Alí
deveria ser a sua residência permanente, que nunca pensará deixar, salvo alguma força
superior a constranja. Como o lar, a família ocupará sempre esse lugar”, numa co-
habitação entre vivos e mortos.
O lugar pertence-lhe: é sua propriedade, propriedade não de um só homem, mas de uma
família, cujos membros devem vir um após outros, nascer e morrer ali. O morto ao

uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma lição em tudo.
Tudo está ligado. Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avôs. Para que
respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enri- quecida com a vida de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que
ensina- mos às nossas: que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá também aos filhos da terra. Se
os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Disto nós sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem
é que per- tence à terra. Disto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma
ligação em tudo. O que ocorre com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não teceu a rede da vida: ele é
simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizermos à rede, fará o homem a si mesmo. Mesmo o homem branco, cujo
Deus caminha e fala com ele de amigo pa- ra amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos
irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos (e o homem branco poderá vir a descobrir um dia): Deus
é um Só, qualquer que seja o no- me que lhe dêem. Vocês podem pensar que O possuem, como desejam possu- ir nossa
terra; mas não é possível. Ele é o Deus do homem e sua compaixão é igual para o homem branco e para o homem
vermelho. A terra lhe é preciosa e feri-la é desprezar o seu Criador. Os homens brancos também passarão; talvez mais
cedo do que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos. Mas
quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, ilumina- dos pela força do Deus que os trouxe a esta terra e
por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para
nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os
recantos secretos das florestas densas impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios
que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a água? Desapareceu. É o final da vida e o inicio da
sobrevivência. Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa Idéia nos parece um pouco estranha.
Se não possuímos o frescor do ar e o bri- lho da água, como é possível comprá-los.. Cada pedaço de terra é sagrado para
meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada
clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência do meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores
carrega consigo as lembranças do homem vermelho. Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas
água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês de- vem lembrar-se de que ela é sagrada, e
devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de aconte-
cimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz dos meus ancestrais. Os rios são nossos
irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra,
vocês devem lembrar e ensinar para seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também. E, portanto, vocês devem
dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão. Sabemos que o homem branco não compreende nossos
costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à
noite e extrai da terra tudo que necessita. A terra, para ele, não é sua irmã, mas sua inimiga e, quando ele a conquista,
extraindo dela o que deseja, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda.
Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um
deserto. Eu não sei... nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem
vermelho. Talvez porque o homem vermelho seja um selvagem e não compreenda. Não há um lugar quieto nas cidades
do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater de asas de um
inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o
que resta de um homem, se não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa à
noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face
do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros."
7

sangrar a terra a ‘consa(n)grava-a’. A terra não podia ser vendida nunca, vender a terra
significava vender seu antepassados, perder a proteção. Abandonar a terra significava
tornar-se um errante, um qualquer, perder sua referência no mundo, seu sentido de
existência.
Enfim, na questão da terra, no solo, na casa, no lar jaz o tema dos espectros, mais que
que isso, nela na terra, está enraizada, enterrada, encravada a propria morte; sua
fundação; tanto no território como na propriedade em seus fundamentos, fundações
estava os mortos, os antepassados que continuavam vivos mesmo enquanto mortos.
No inicio da história da terra, da cidade e da casa esta essa questão fundamental de
‘pertencimento’, na antiguidade os homens pertenciam a terra e não a terra pertencia
aos homens, e a dita ‘propriedade’ sobre essa terra também pertencia aos mortos, assim
os vivos tratavam de adorar a terra e os mortos em simultaneidade. Todos esses temas,
como veremos, segundo Coulanges (1864) estão entrelaçados com familia, religião, e até
mesmo com o comunismo. O espectro, mesmo antes do morto se tornar um espectro, o
que funda o oikos, a oikonomia, o domus, o processo de domesticação, asssim também
como a lei da hospitalidade do espectro, que alí aguarda em seu interior sem interior o
hospede porvir do grupo, clã ou da família.15
A casa, ou o lugar de assentamento ou mesmo a marcação de rotas, quando pensamos
em sua ancestralidade, em sua arché, por exemplo: da casa grega (oikos), ou romana
(domus), também em outras culturas ancestrais que sobrevivem até nossos dias como
nas culturas indigenas das Americas - na religião da Pachamama-, os Sioux, ou até
mesmo nos quilombolas no Brasil; foram estabelecidos pelo enterramento de seus
antepasssados. A terra, a casa, sempre estiveram indissociavel do sagrado e da morte; a
fixação do grupo num determinado lugar era determinado pelo ‘enterramento’ de
geração após geração. Esse sistema de crenças criava um lugar especial; o lugar do
encontro dos vivos com os mortos que ali permaneciam protegendo os vivos, numa co-
habitação, numa comunidade, numa comum unidade.
Se construissemos uma outra história da casa, uma espectrografia da casa, ela estaria
entrecruzada pela história da morte e de seus espectros, se entrecruzaria com a
formação da religião, da lei e do direito. A família e seus deuses lares fundaram todas as
instituições segundo Fustel Coulanges, assim como todo direito privado dos antigos;
desse domus e oikos a cidade tirou seus princípios, suas leis. Como nos explicou, com
outras palavras, também Jean-Claude Schmitt em Os vivos e os mortos, na sociedade
medieval: “Os mortos, fantasmas e espectros têm apenas a existência que os vivos
imaginam para eles. Segundo suas diferenças culturais, suas crenças, sua época, os
homens atribuem aos mortos uma vida no além, descrevem os lugares de sua morada e
assim representam o que esperam para si próprio”. Essa dimensão antropológica e
universal do retorno dos mortos, retornantes está presente, segundo Schmitt, entre
outras, na tradição ocidental, desde a antiguidade, na Idade Média e até na
contemporaneidade.16 Para Schmitt as mentalidades não consistem apenas nos estratos
antigos e persistentes dos pensamentos e dos comportamentos, mas nas crenças e nas
imagens, nas palavras e nos gestos que encontram plenamente seu sentido de

15
16Schmitt,Jean-Claude. Os vivos e os mortos, na sociedade medieval. São Paulo. Editora Schwarcz Ltda. 1999.
Tradução Maria Lucia Machado. O titulo original: Les revenants. Les vivants et les morts dans la société medieval.
8

atualidade presente e bem viva das relações sociais e da ideologia de uma época. Como
bem descreve o conteudo de seu livro:
“Ele trata do funcionamento social da memória dos mortos na época medieval. Mais
exatamente, se ele se volta a esse grande tema de história que constitui a memória das
sociedades é para interessar-se principalmente por seu aparente avesso, a uma só vez a
necessidade do esquecimento e o que se opõe ao esquecimento. Perguntar-nos-emos,
com efeito, como os homens do passado procuraram lembrar-se de seus defuntos, mas,
sobretudo, esquecê-los, e como alguns desses mortos-mortos ‘muito especiais’ também,
porém mais na imperfeição que na santidade –apartentemente se rebelavam contra a
vontade de esquecimento dos vivos, revivificando suas lembranças, invadiam seus
sonhos, assombravam suas casas.”17
Por exemplo que a complexa cultura medieval foi herdeira do paganismo greco-romana,
do culto dos deuses lares, o culto dos mortos, ou da gens, ou ainda segundo Schmitt das
heranças ‘bárbaras’ revivificadas pelas migrações dos povos germânicos e integradas à
cristandade durante o primeiro milênio.18

17 Schmitt, Jean-Claude. Op. cit.; p. 13


18 Schmitt, Jean Claude; op cit., p. 8-9 .“Para os homens da Idade Média como para os de hoje. Quando se opera na dor o
‘trabalho de luto, o essencial é o conflito entre o desejo e a impossibilidade de esquecer, entre a fragilidade da memória e
a vontade de lembrar. Nesse sentido, a Idade Média não é tão diferente de nossa própria cultura”…”Paradoxalmente, a
igreja medieval, qe nos primeiros séculos manifestara uma grande reticiência com relação à crença nos fantasmas,
tomando-a como característica do ‘paganismo’ e das ‘superstições’, esteve, assim, na origem de um enquadramento e de
uma exploração da crença nos fantasmas de que os relatos de milagres e os sermões dão amplo testemunho” (p. 12)
A partir do século XI aumenta os relatos de fantasmas e isso se deve ao desenvolvimento da liturgia dos mortos. Desde a
época carolingia, o sistema de missas ditas especialmente por um morto no terceiro, sétimo e no trigésimo dia depois do
falecimento está estabelecido em toda sua coerência. Ele é completado pela prática das oferendas feita aos pobres em
memória do defunto graças às doações concedidas à Igreja. È preciso imaginar uma rede de relações complexas entre
quatro pólos distintos: o que lega divide seus bens entre a Igreja e seus herdeiros e adjura estes últimos a cuidar de sua
alma depois de sua morte e, para isso, a não anular suas piedosas doações (não muito distinto dois deuses lares, aqui a
unica diferença e a doação). Os herdeiros, de fato, são com frequencia tentados a açambarcar o conjunto de bens e a
negligenciar a memorioa de seu parente defunto. A igreja e principalmente os mosteiros recebem essas doações, com a
condição, de um lado, de orar pelo morto e, de outro lado, de redistribuir aos pobres uma parte dos bens legados. Os
pobres, enfim, beneficiam-se de uma parte das esmolas; frequentemente são uma multidão de verdadeiros miseráveis.
Alimentar materialmente os pobres equivale a alimentar simbolicamente, através de preces a alma penada (penates) do
doador que está morto” (p.37) Durante a Idade Média, um das formas não aceitas pela igreja era o ritual dos ‘comedores
de pecado’, Esse ritual foi praticado em partes da Inglaterra e Escócia, e supostamente sobreviveu até meados do final do
século XIX e início do século XX no País de Gales, bem como em certas partes da América: velava-se, como de
costume, o morto em cima da mesa e esparramava-se pão do peito do morto, copo de cerveja ou mesmo outras comidas
como frutas frutas e chamavam os miseraveis (eles eram os comedores de pecados) para comerem essa refeição,
simbolicamente aconforme iam comendo essas comidas e o pão iam incorporando os pecados do morto, e assim o morto
se livrava de seus pecados. Por isso, verdadeiras ceias eram oferecidas aos Devoradores, quando o morto gozava de certa
notoriedade em vida. Assim também associava-se aos miseraveis toda a sorte de pecados que poderiam portar. A prática
entrava em choque direto com os ensinamentos da cristandade, pois pecados podiam ser perdoados apenas mediante três
estágios: o arrependimento, a confissão e a penitência, todos com a intercessão de um sacerdote. Essa tradição perdurou
até o século XIX. Alguns cultos cristãos acreditavam que devorar os pecados, absorvendo assim, de modo simbólico, o
mal perpetrado por outra pessoa, era uma ação nobre, quase uma espécie de auto-sacrifício, talvez o maior de todos os
sacrifícios, já que essa atitude condenava a alma imortal a um suplício eterno. A tradição teria surgido em áreas rurais
isoladas, habitadas por cristãos estabelecidos em localidades destituídas de sacerdotes que pudessem ministrar o
sacramento da extrema-unção. Diante da hipótese de morrer sem a benção final de um padre, um pedaço de pão
simbolizando os pecados era consumido pelos parentes - de preferência o filho mais velho. Em seguida, este devia
buscar um sacerdote para remover os pecados que lhe haviam sido transmitidos. A ostia representa o pão e seus pecados.
“The Order”, distribuído no Brasil como “O Devorador de Pecados”. Visto como nos explica Schmidt muitas vezes para
pagar essas penitencias , para que o morto pudesse sair do inferno ou purgatoria ele deveria dioar parte de suas terras
para a greja e essa repassava pequenas esmolas para os miseraveis. Como bem comenta Scmidt “tratava-se também de
“uma técnica classificatória, ela punga os mortos em seu lugar de morto, para que os vivos, se porventura se lembrassem
de seu nome poudessem faze-lo sem temor nem paixão” (p. 12). Desde a época romântica, continuada pela literature e
pelo cinema fantástico até as histórias em quadrinhos contemporânea, os fantasmas fazem parte do cenário obrigatório
da Idade Média. O estudo de Schmitt é relevantissimo sobre a questão dos espectros na idade media, ao nos mostrar que
durante a idade media, as aparições desses fantasmas mudou conforme a estrutura social e de poder, e evidenciar que
esses fantasmas faziam parte de uma economia entre mortos e vivos, onde os vivos tiravam proveito desses retornantes
9

Coulanges nos faz ver que, “aquele sentido de propriedade na verdade era uma
instituição, sem a qual a religião doméstica não podia existir. Essa religião prescrevia
isolar o domínio e isolar também a sepultura: a vida em comum dos mortos tornava-se,
pois, impossível. Não foram as leis, mas a religião, aquilo que primeiramente garantiu o
direito de propriedade.”19
Toda essa religião se limitava ao interior da casa. O culto não era público. O larariun
nunca estava colocado fora da casa, ou nem mesmo junto a porta externa, donde
qualquer extrangeiro pudesse ver com facilidade. Os romanos escondiam-no no próprio
coração da casa. A todos esses deuses (fogo, lares, manes) chamavam-lhes também
‘deuses ocultos’, ou deuses domésticos, porque sua pratica de culto era oculta. Por isso
ainda hoje encontramos expressões que dizem que a lareira é o coração da casa. Convém
lembrar que a casa nunca foi e nunca é o lugar da transparencia, mas sim o lugar das
praticas veladas e ocultas; tanto é que em portugues se diz que ‘roupa suja se lava em
casa’. A transparência e a cristalinidade de nossas casas modernas estão diretamente
associadas ao desconjuro dos antepassados, e dos espectros e fantasmas feito pela
modernidade. Nas cidades arabes por exemplo ou nas cidades da andalucia, é tudo ao
contrário de hoje, as casas em sua maioria nao tem janelas para rua, exceto as de dois
pisos, elas ainda guardam a ideia de uma casa oculta, voltada para si mesmo, e sua
relação com o cosmo se dá através do patio interno, da ‘clareira’, em contraposição as
casas modernas cujas fachadas se parecem a vitrines, lugar de exibição. Esse oculto será
justamente, algo relacionado não só ao reprimido, corroborando com Freud, mas
também daquilo mais intimo (in–timus) que deve ser preservado guardado. A intimidade,
o recolhimendo.
Le Corbusier havia observado a dificuldade da deconstrução dos mitos contidos na casa,
no lar, que persistiam ainda no ínicio do século XX e pela terminologia empregada em seu
livro Vers une architecture, ele conhecia bem os estudos Fustel de Coulanges (1830-
1889), historiador francês e professor da Sorbone (1879) sobretudo A cidade Antiga
(1864); comenta Le Corbusuier:
"...os homens vivem em casas velhas e ainda não pensaram em costruir casas para si.
Gostam muito do próprio abrigo, desde os tempos imemorais. Tanto e tão fortemente que
estabeleceram o culto sagrado da casa. Um teto! Outros deuses lares. As religiões são
fundadas sobre dogmas; as civilizações mudaram, as religiões desmoranam apodrecidas.
As casas não mudaram. A religião das casas permanece idêntica há séculos. A casa
desabará"20
"os engenheiros constroem os instrumentos de seu tempo. Tudo, salvo as casas e alcovas
apodrecidas"21

e suas visitações. O interessante do trabalho de Schmidt é como ele se apresenta -quase como uma arqueologia
foucaultiana-, nos mostra as epistemes que atuam sobre os fantasmas, os retornantes e de como eles estruturam
justamente essas epistemes, mostrando exatamente os pontos de disjunção e as formas de como se davam essas
aparições, o ‘como’ aparecem. Por exemplo Schmitt nos mostra, ao contrario do que muitos pensam, que o inicio da
Idade Média esta despovoada de fantasmas, ha um desconjuro dos fantasmas por parte do cristianismo. Como relata:
“Uma recusa persistente, mas não desprovida de ambiguidade e de contadição, de admitir a possibilidade do retorno
dos mortos nos sonhos, ou mesmo nas visões despertas, caracteriza a cultura eclesiastica da Alta Idade Média). Uma
das razões principais dessa recusa reside na assimilação das crenças e das práticas relativas ao retorno dos mortos à
‘sobrevivência’ do paganismo antigo, cujos cultos funerários era em toda parte reprovados, domesticados, ou
ocultados”.18
19 Coulanges, p. 65-69.
20 (Le Corbusier, Por uma arquitetura, p.5). Veja-se também o ensaio O desconjuro moderno. Fuão, Fernando
21 (p. 6)
10

Em realidade, a modernidade se caracterizará pelo exorcismo dos espectros e fantasmas


contidos nas casas até o final do seculo XIX e ainda no inicio do século XX ; os espectros
dos antepassados estavam impregnados nas paredes, nos moveis, nas pinturas e retratos
pendurados nas paredes, no próprio cheiro da casa, na tradição de conservação do
passado. Para os modernos, assim como para o materialismo histórico era preciso se
desfazer de quase tudo que era antigo, - desfazer-se dos móveis ‘pesados’ que
pertenciam aos antepassados, trocar por novos e funcionais, livrar-se do peso do pensar
dos antepassados. A modernidade literalmente expulsa a morte de dento de casa,
despeja o morto para fora, para um lugar distante, expurga a pratica de velar o morto
dentro da propria casa, ela retira antecipadamente o moribundo de dentro de casa
colocando no hospital, ou no asilo. Não só o moribundo, mas o proprio nascer da vida
também sera retirado de casa. Assim, entre tantos outros fatores a modernidade cria
uma cisão na continuidade da vida das gerações dentro dessas casa. A modernidade é
antes de nada fragmentação, ela irá fragmentar a familia, a terra, o patrimonio, dividindo
o maximo possivel ao ponto de tornar irrelevante, transformando tudo em mercadoria,
até o próprio morto.
O poeta Mario Quintana em seu poema Arquitetura Funcional, retratou bem esse
deslocamento:
Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas assombrações vulgares
Que andam por aí...
É não-sei-quê de mais sutil
Nessas velhas, velhas casas,
Como, em nós, a presença invisível da alma... Tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos:
As suas casas não têm porões nem sótãos,
São umas pobres casas sem mistério.
Como pode nelas vir morar o sonho?
O sonho é sempre um hóspede clandestino e é preciso
(Como bem sabíamos)
Ocultá-lo das visitas
(Que diriam elas, as solenes visitas?)
É preciso ocultá-lo dos confessores,
Dos professores,
Até dos Profetas
(Os Profetas estão sempre profetizando outras coisas...)
E as casas novas não têm ao menos aqueles longos, intermináveis corredores
Que a Lua vinha às vezes assombrar!

Hannah Arendt em A condição humana, também observou a duplicação que se gerou a


partir do surgimento da cidade-estado. “Segundo o pensamento grego, a capacidade
humana de organização política não apenas difere, mas é diretamente oposta a essa
associação natural cujo centro é constituída pela casa (oikia) e pela família. O surgimento
da cidade-estado significava que o homem recebera, além de sua vida privada, uma
espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada cidadão pertence a duas ordens
de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquilo que lhe é próprio
11

(idion) e o que é comum (koinon)." 22


"Contudo, a antiga santidade do lar, embora muito mais pronunciada na Grécia clássica
que na Roma antiga, jamais foi inteiramente esquecida. O que impediu que a polis
violasse as vidas privadas dos seus cidadãos e a fez ver como sagrados foram os limites
que cercavam cada propriedade privada tal como a concebemos, mas o fato de que, sem
ser dono de sua casa, o homem não podia participar dos negócios do mundo porque não
tinha nele lugar algum que lhe pertencesse. "23
Como diz Coulanges: " o verdadeiro significado de família é propriedade: designa o
campo, a casa, dinheiro, escravos. Mas essa 'propriedade' não é vista como ligada à
família; pelo contrário, a família é ligada ao lar, e o lar ligado à terra. O homem é que
pasa e morre."24
Na antiguidade e ainda hoje para alguns povos e pessoas, é a terra que tem a
propriedade sobre o homem, sobre aquele que habita a casa, o lar. Assim como a casa
que passa de geração é quem tem a propriedade dos familiares que por ali passam e
desaparecem.
A esfera doméstica residia originalmente no fato de ser o lar. Como explica Arendt: "O
carater sagrado dessa privacidade, assemelhava-se ao caráter sagrado do oculto, ou seja,
do nascimento e da morte, o começo e o fim dos mortais que, como todas as criaturas
vivas, surgem e retornam às trevas de onde vieram".25
" A feição não-privativa da esfera do doméstico residia originalmente no fato de ser o lar
a esfera do nascimento e da morte, que devia ser escondida da esfera pública por abrigar
coisas ocultas aos olhos humanos e impenetráveis ao conhecimento humano."26
"Não só interior desta esfera que permanece oculta e sem significado publico, mas a sua a
aparencia externa é importante também para a cidade, e surge na esfera da cidade sob a
forma de limites entre uma casa e outra. A lei era originalmente identificada com essa
linha divisória que, em tempos antigos, era ainda na verdade um espaço, uma espécie de
terra de ninguém entre o privado e o público, abrigando e protegendo ambas as esferas e
ao mesmo tempo separando-as uma da outra."27
Arendt nos explica que a palavra nomos, lei, vem de nemein, que significa distribuir,
possuir (o que foi distribuido), e habitar. A combinação de lei e de uma espécie de 'muro'.
A palavra nomos é bem evidente num fragmento de Heraclito: 'o povo deve lutar pela lei
como por um muro'. Entretanto a palavra romana lexi tem significado inteiramente
diferente: indica uma relação formal entre as pessoas, não um muro que as separa."28
"Essa lei de carater mural era sagrada, mas só o recinto delimitado pelo muro era
político. Sem ela, seria tão impossível haver uma esfera política como existir uma

22 Arendt pag 33
23 Arend p. 39
24 Arendt p71
25
26 Arend p. 72
27
Arendt p 73
28 Arendt 73
12

propriedade sem uma cerca que a confinasse: a primeira resguardava e continha a vida
politica, enquanto a outra abrigava e protegia o processo biológico vital da família."29
"A privatividade era como que o outro lado escuro e oculto da esfera pública; ser politico
significa atingir a mais alta possibilidade da existência humana; mas não possuir um
lugar proprio e privado (como no caso do escravo) significava deixar de ser humano."30
Para Arendt, o totalitarismo requer o isolamento e desenraizamento, baseado no terror e
na ideologia, o isolamento destrói a capacidade politica, a faculdade de agir, ele é a base
de toda tirania, mas não atinge entretanto a esfera privada. Não ter raízes significa não
ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros; ser superfluo significa não
pertencer ao mundo de forma alguma.
A religião dos mortos, não era só um culto aos mortos, mas simultaneamente uma
religião dos vivos, um nomos, uma lei que organizava a vida dos vivos. E a linha que divide
o publico e o privado é exatamente a linha da vida, analogamente, ambito do publico, a
linha da morte, entre o meu oculto e o outro oculto. Não é o privado que está no ambito
do publico, tampouco seu inverso, mas uma relação que parte do oculto, sempre da casa
e dos mortos.
O que oculta a casa? se não sua propria condição de oculta, de um recolhimento de uma
especie de esconderijo? Que oculta a casa? Senão o mistério do inicio da vida e a morte.
A casa, o lar é sempre uma especie de portal, de porta ela transporta as sucessões de
gerações no tempo. A casa é uma metafora da porta, a casa se faz casa através da porta,
da abertura.
Outros dois poemas de Mario Quintana , quiça o poeta dos espectros, apresenta-se a
guisa de fechamento
A casa está morta?
Não: a casa é um fantasma,
um fantasma que sonha
com a sua porta de pesada aldrava,
com os seus intermináveis corredores
que saíam a explorar no escuro os mistérios da noite
e que as luas, por vezes,
enchiam de um lívido assombro...
Sim!
agora
a casa está sonhando
com o seu pátio de meninos pássaros.
A casa escuta... Meu Deus! a casa está louca, ela não
[sabe
que em seu lugar se ergue um monstro de cimento e
[aço:
há sempre uma cidade dentro de outra
e esse eterno desentendido entre o Espaço e o Tempo.
Casa que teimas em existir
a coitadinha da velha casa!
Eu também não consegui nunca afugentar meus
[pássaros.

29
Arendt p. 75
30 Arendt p. 75
13

Mario Quintana In Baú de Espantos

ENVELHECER
Antes todos os caminhos iam
Agora todos caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas. Mario Quintana

A antiga religião dos deuses lares, dos deuses domésticos, fazem parte de um mundo
incomensuravel, desmedidos de acompanhantes animícos (que animam a alma) e
espirito protetores, do mesmo modo similar a outros sistemas de crenças que
sobrevivem até hoje.

***

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