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ESTUDOS

Sobre os métodos quantitativos na pesquisa


em ciências humanas: riscos e benefícios
para o pesquisador*
Jorge Tarcísio da
Rocha Falcão
Jean-Claude Régnier

Palavras-chave: análise de
dados; mensuração;
quantificação.

Ilustração: Ricardo Sinval Troula

*
O presente trabalho tornou-se
possível graças à cooperação
internacional estabelecida no
âmbito do projeto Capes-Nor-
deste, de apoio a programas de
pós-graduação e pesquisa da
região.

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prévio, um plano de observação; ela
mostra demonstrando; hierarquiza as
aparências; transcende o imediato; re-
constrói o real após haver reconstruído
seus esquemas.
Gaston Bachelard

Introdução
O esforço de quantificação, em ciên-
cias humanas, é freqüentemente apresen-
tado como uma iniciativa fundamental no
sentido de se aceder à construção de um
corpo de conhecimentos dito científico.

R
Quantificar, neste caso, implica mobilizar
um sistema de medidas que, enquanto
eflete criticamente acerca objeto matemático, caracteriza-se por de-
do uso da quantificação em terminado conjunto de propriedades abs-
pesquisas em ciências humanas, tratas, e utilizar este sistema escolhido
chamando a atenção para alguns como referencial para a abordagem
riscos que permeiam tal (mensuração) de determinado fenômeno.
atividade, como também para Uma vez constituído um corpo de medi-
determinadas situações em que das, abrem-se inúmeras possibilidades de
tais métodos podem ser trabalho:
caracterizados como • Um conjunto de medidas pode ser
descrito de várias maneiras, seja de for-
amplificadores culturais úteis e ma analítica, por meio de freqüências das
justificados. Nesse sentido, características escolhidas dos fenômenos
analisa aspectos inerentes à estudados, seja de forma sintética, atra-
atividade de quantificação, como vés de medidas-resumo unidimensionais
a interconexão estreita com a (como a média, a moda e a mediana) ou
categorização e a modelização multidimensionais, como é o caso do cen-
fundada em determinada visão tro de tipicalidade das análises fatoriais
teórica. Busca ainda explorar (Cibois, 1983).
aspectos conceituais centrais à • Tal descrição pode abranger mais de
quantificação, como a redução de um grupo de medidas, verificando-se ten-
informação em prol da detecção dências de ligação ou concomitância entre
dois ou mais conjuntos de medidas obti-
de tendências gerais e estruturas,
dos, ou mesmo avançando-se na direção
as opções de tal redução em da proposição de um modelo matemático-
função das escalas de medida algébrico que relacione um conjunto (ou
mobilizadas, a distinção entre a mais) de medidas com outro, em termos
descrição e a inferência, bem de uma função matemática. O caso habitu-
como entre o fortuito e o al considera dois conjuntos de medidas
sistemático. Procura demonstrar, numéricas, verificando-se tendência de re-
em relação a este último aspecto, lação funcional de tipo linear, representada
que a quantificação possibilita por um gráfico de pontos distribuídos ao
apenas uma aproximação longo de uma reta (esse conjunto de pon-
probabilística, o que limita seu tos é denominado nuvem estatística).
poder à detecção da • Depois da descrição, pode-se passar
a um procedimento inferencial-probabilístico,
verossimilhança, e não da no qual se procura estabelecer proprieda-
verdade. des válidas não somente para o conjunto de
dados considerado como amostra efetiva-
A observação científica é sempre uma mente analisada, mas para um conjunto
observação polêmica; ela confirma ou maior não completamente analisado, o uni-
invalida uma tese anterior, um esquema verso de observação, de onde tal amostra

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foi retirada. A utilização desse procedimento Mas, apesar desse lado oficial (ou até
indutivo nos expõe ao risco de erros quanto justamente por isso...), nem sempre a esta-
à validade das propriedades enunciadas pelo tística tem gozado de boa fama: há quem
pesquisador sobre determinada totalidade; se refira aos estatísticos profissionais como
não obstante, ele se constitui poderosa fer- os trapaceiros da matemática. Glass e
ramenta de pesquisa quando empregado Stanley (1970, p. 1), por exemplo, cunha-
com critério. Esse procedimento apóia-se par- ram o termo "statisticulation" 2 para definir a
ticularmente em teorias probabilísticas que arte de mentir com a ajuda da estatística,
permitem controlar o risco de erro quanto à mantendo-se a aparência de objetividade e
validade de determinada conjectura, falan- racionalidade; J.-L. Besson, por sua vez,
do-se de nível de confiança ou, de forma com- organizou com outros colaboradores exce-
plementar, nível de risco. Nesse sentido, os lente volume de reflexões acerca do que
testes de hipóteses ou estimação constituem- denominou de "ilusão das estatísticas"
se ferramentas básicas para entender esse (Besson, 1995). Neste contexto particular,
raciocínio estatístico. Tentaremos fornecer in- Benjamin Disraeli (citado por Angers, 1991)
dícios, mais adiante, de que esse raciocínio propôs a existência de três tipos de menti-
conduz a conclusões em termos basicamen- ras com graus de gravidade crescentes: as
te de verossimilhança e plausibilidade, e não mentiras usuais, as mentiras terríveis e a
em termos de verdade, no que diz respeito estatística – exemplo clássico em apoio à
ao exame de hipóteses explicativas propos- perspectiva do ex-primeiro ministro britâni-
tas pelo pesquisador. co: propor que alguém ponha a cabeça em
As possibilidades acima, enquanto fer- uma geladeira e os pés num forno, justifi-
ramentas culturais e objetos de reflexão e cando tal proposta nos seguintes termos:
desenvolvimento, são agregadas no domí- "na média, você vai se sentir bem...". A. F.
nio matemático da estatística. Tal domínio Siegel (1988, p. 13), por sua vez, faz uma
nasceu, historicamente, como ferramenta de
bem-humorada alusão ao fato de que, se
controle fiscal do cidadão pelo estado: a
alguém submeter um problema qualquer à
raiz latina do adjetivo statisticum é a mesma
análise de dois estatísticos profissionais,
do substantivo Estado (Droesbeke, Tassi,
com certeza obterá, no mínimo, três res-
1990). Os mesopotâmios, por exemplo, fi-
postas diferentes.
zeram uso de procedimentos para descri-
Além desses percalços, é preciso ain-
ção e cálculo de imposto em função da área
da admitir que, apesar de provocar várias
cultivável. Os antigos egípcios, por sua vez,
tabularam detalhadamente observações controvérsias quanto às utilizações even-
como a altura das cheias anuais do Nilo e a tualmente inadequadas, a estatística tem
produtividade agrícola, em função da qual tido um importante papel no contexto do
se estabelecia o imposto devido ao faraó; debate epistemológico acerca da cienti-
de posse de tais dados, os egípcios foram ficidade das ciências humanas, conforme
capazes de propor uma tabela de cálculo aludido já na abertura das presentes refle-
de imposto diretamente a partir da altura xões. É freqüente, nessa comunidade de
máxima anual do Nilo, num raciocínio cujo pesquisa, o apelo a métodos apoiados em
arcabouço conceitual antecipa as idéias de testes estatísticos, mobilizados como "selo
co-variação e co(r)-relação, só muito depois de qualidade científica", algo que confere
explicitadas matematicamente. respeitabilidade (cientificidade) aos resul-
Atualmente, pode-se facilmente verificar tados de uma pesquisa, distinguindo-os do
que a estatística continua sendo um instru- conhecimento dito de "senso comum" ou
mento absolutamente central no contexto mesmo do conhecimento especulativo.
do exercício do poder de estado. Governar Nesse sentido, o par método experimental
implica basicamente fixar objetivos, obter e teste de hipótese assistido pela estatística
informações pertinentes, controlar politica- representa para muitos pesquisadores a
mente o acesso e divulgação dessas infor- única possibilidade de encaminhamento
mações e tomar decisões em conformida- metodológico para a construção de co-
de com os aspectos anteriores. No que diz nhecimento científico em qualquer domí-
1
É o caso, no Brasil, do Institu- respeito à obtenção de informações, o pa- nio do conhecimento. Tal perspectiva,
to Brasileiro de Geografia e pel das ferramentas estatísticas é central: é hegemônica em vários contextos sociais
Estatística (IBGE) http://
www.ibge.gov.br/ praxe nos países ocidentais a montagem de de prática científico-profissional em ciên-
2
Neologismo em língua inglesa agências governamentais especificamente cias humanas, tem contudo uma contrapar-
resultante da combinação das
palavras statistics (estatística) e
encarregadas de monitorar a cena socio- tida radical, representada pela recusa sem
speculation (especulação). econômico-demográfica.1 nuanças de utilização da categorização e

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dos procedimentos estatísticos na cons- utilização por parte do pesquisador em ci-
trução de conhecimento. No contexto das ências humanas exige a aceitação do recur-
presentes reflexões, não nos cabe so à noção de mensuração, que por sua vez
aprofundar o debate acerca dos critérios não tem sentido a não ser em presença de
de cientificidade gerais ou específicos uma atividade prévia de categorização. Me-
das ciências humanas. Paralelamente, dir implica, portanto, acoplar ao fenômeno
não pretendemos subsidiar o debate observado um sistema classificatório; em ou-
simplista do pró ou contra o uso da esta- tras palavras, pressupõe necessariamente
tística no âmbito destas ciências, pois tal modelizar, uma vez que qualquer sistema de
opção, colocada em tais termos, pouco categorização/mensuração traz em seu bojo,
acrescenta à formação e à prática dos implícita ou explicitamente, um determina-
pesquisadores em ciências humanas em do modelo teórico acerca do objeto obser-
vado. Assim, quando Piaget (1970), por
geral. Nosso objetivo, aqui, consiste em
exemplo, ao examinar determinadas produ-
oferecer alguns subsídios à reflexão acer-
ções de seus sujeitos, categoriza-os como
ca dos riscos e ganhos inerentes à utili-
conservativos, intermediários e não-conser-
zação dos métodos ditos quantitativos no
vativos, apóia-se, para tal categorização,
âmbito das ciências acima aludidas, de numa perspectiva específica acerca do de-
forma a se avançar em termos da forma- senvolvimento cognitivo; esta perspectiva
ção metodológica e da prática científica fornecerá os critérios diferenciadores a partir
citadas. dos quais as produções das crianças serão
classificadas. Em conseqüência, nenhuma
categorização é rigorosamente descritiva, no
Quantificação em ciências sentido de captura dos objetos "tal como
humanas: aspectos básicos eles são na realidade", conforme discute F.
Halbwachs (1974, p. 38-60). Este mesmo
a considerar autor chama a atenção para o fato de que,
mesmo no contexto de ciências tais como a
Em termos gerais, propomos que a física, "o papel de representação desempe-
idéia de quantificação abrange um conjun- nhado pelos modelos não é de descrição
to de procedimentos, técnicas e algoritmos de uma situação real" (ibidem, p. 47). Para
destinados a auxiliar o pesquisador a ex- A.-M. Drouin, o que conta, em termos da
trair de seus dados subsídios para respon- avaliação de um modelo, não é a fidelidade
der à(s) pergunta(s) que o mesmo estabe- a um real hipotético "em si",3 mas a eficácia
leceu como objetivo(s) de trabalho. Siegel descritiva, explicativa ou preditiva de tal mo-
(1988), numa perspectiva semelhante, pro- delo cuja pertinência é validada no confron-
põe que a estatística seria "a arte de fazer to com o real, tal qual o mesmo se nos afi-
inferências sobre dados imperfeitos buscan- gura (Drouin, 1988, p. 11).
do-se a mensagem escondida em meio ao Nesse ponto da reflexão, convém
ruído" (grifo nosso). Nesse sentido, faz parte enfatizar o seguinte aspecto central:
de um esforço maior de análise de dados, quantificar exige categorizar e medir – três
e sua justificativa básica poderia ser resu- atividades que implicam modelizar, o que
mida nos seguintes termos: a informação nos remete necessariamente ao domínio
que não pode ser diretamente "visualizada" da teoria. A atividade de quantificação
a partir de uma massa de dados poderá engaja, portanto, o pesquisador em um
processo complexo, conforme esquema-
sê-lo se tais dados sofrerem algum tipo de
tizado no Quadro 1. Essas operações não
transformação que permita uma observação
se processam, na prática, de forma linear
de um outro ponto de vista. Assim, propo- e seqüencial, uma vez que os resultados
mos desde já que se tenha da quantificação obtidos podem conduzir o pesquisador a
a perspectiva de um amplificador cultural, modificar as categorias ou mesmo o mo-
no sentido proposto por J. Bruner (1983 e delo com o qual iniciou todo o trabalho.
1996). É este o caso, por exemplo, quando a
A estatística, enquanto subcampo da constatação de uma freqüência muito re-
matemática aplicada, compreende um con- duzida de uma categoria conduz a agregá-
3
A busca desse "real", com base
em que constituir-se-ia um "co-
junto de ferramentas auxiliares à quantifi- la a outra, ou quando a partição de cate- nhecimento total", em contato
cação, abrangendo a exploração sistemati- gorias prevista pelo modelo se mostra ina- com uma essência ou uma ver-
dade, é considerada por esta
zada de uma massa de dados através da dequada após uma primeira análise dos autora como "um sonho teoló-
descrição freqüencial e dos resumos. Sua dados. gico" (un rêve théologique).

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Quadro 1 – Explorando esquematicamente as bases epistemológicas
da quantificação

Tais atividades representam, sem dúvi- procedimentos de quantificação em ciênci-


da, benefícios em termos de instru- as humanas, elegendo alguns pontos de
mentalização e amplificação do poder do alto risco que precisam ser considerados
observador, mas implicam um risco criticamente, bem como seu poder como
epistemológico que o pesquisador não amplificadores culturais. Tais pontos são
pode ignorar. Tal risco se caracteriza, ao analisados ao longo dos tópicos seguintes.
mesmo tempo, por conseqüências episte-
mológicas decorrentes do acoplamento de
um sistema abstrato de medidas ao fenô-
meno que o pesquisador escolhe estudar
A categorização e a mensuração
– ou seja, conseqüências de sua aceitação
em categorizar e medir – e, em segundo Conforme esboçado anteriormente, o
lugar, por conseqüências operacionais na procedimento de categorização implica as-
exploração das possibilidades acima refe- similar um conjunto de observações siste-
ridas, riscos de percurso, muitas vezes ig- máticas e singulares feitas pelo observador
norados no contexto atual, em que pode- (por exemplo: as estratégias de resolução
rosas ferramentas informatizadas têm tor- de problemas de uma amostra de 20 sujei-
nado os procedimentos de manipulação de tos) a um conjunto mais restrito de classes
medidas um ritual automático de entrada e de informações (categorias) que abarcarão
saída de dados. O presente artigo busca, observações unificáveis de acordo com um
portanto, reagir à perda de significado dos ou mais critérios (Quadro 2).

Quadro 2 – Procedimento básico de categorização

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Em conseqüência, trata-se de um pro- diferenciação de desempenho matemático
cedimento em que inevitavelmente se perde escolar em função do gênero quando se lida
informação, pois dados que, a rigor, são di- com casos singulares, mas tal tendência se
ferentes passam a conviver sob o mesmo torna acessível quando se perde de vista a
rótulo categorial. Naturalmente, a tal perda informação singular e se agrupam informa-
corresponde um ganho que a justifica: tem- ções, de forma a se obter gráficos como o
se, com tal procedimento redutor, acesso a que vem reproduzido no Gráfico 1. Tais con-
determinada estrutura dos dados, algo que siderações nos levam, em seguida, ao exa-
tem, por definição, baixa visibilidade quan- me do tipo de transformação a que é subme-
do considerado a olho nu ou sob enfoque tida a informação depois de categorizada, de
clínico. Assim, por exemplo torna-se difícil forma a servir de suporte à decisão do pes-
verificar determinada tendência em termos de quisador após tratamento estatístico.

10
9
8
7
6
5
4
3
2
1
0
1 2 3 4 5 6 7 8 HS-1 HS-2 HS-3

Meninos Meninas

Gráfico 1 – Curvas de desempenho de meninos e meninas de escolas públicas


e privadas de Recife (n=721), ao longo de onze anos de escolarização
(1ª série do ciclo elementar à 3ª série (HS-3) do ciclo médio)
Fonte: Falcão e Loos (1999).

Um exemplo de tratamento por si, comporta uma quantidade grande


de informação categorizada: de possibilidades, no contexto das quais
o professor exercerá seu poder de escolha
a avaliação escolar com conseqüências inevitáveis: questioná-
rio com questões abertas, semi-abertas ou
Vamos considerar uma situação de fechadas, com questões independentes (ou
partida bastante comum, em que um pro- não) umas das outras, com nível de dificul-
fessor deseja avaliar o nível de aprendiza- dade semelhante ou diferenciado. Seja
gem de seus alunos após determinada ati- como for, é ainda importante considerar
vidade de ensino por ele conduzida em que se trabalha com a suposição funda-
sala de aula. Um modelo simplificado da mental de que as questões são pertinen-
situação de avaliação poderia considerar tes e relevantes enquanto elementos repre-
que o professor teria uma decisão a to- sentativos da competência que se deseja
mar, para cada aluno, em termos de duas avaliar. Por último, o aluno-aprendiz em
únicas possibilidades ou hipóteses: H0, avaliação poderá responder de forma cor-
nível de aprendizagem insuficiente, versus reta ou incorreta, ou não responder, o que
H1, nível de aprendizagem suficiente. Esse representa, portanto, três possibilidades
professor decide então recorrer a uma fer- simples de categorização de suas respos-
ramenta auxiliar bastante usual, que é o tas ao questionário. Consideremos ainda
questionário de exame; este questionário, que um questionário tem naturalmente um
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número limitado de questões, e que tais com a qual lidamos pode ser modelizada
questões não podem pretender esgotar o por uma variável matemática do tipo variá-
conjunto de aspectos que compõem a vel binomial,4 com parâmetros q e π (pi)
competência avaliada, até porque não se onde q é o número de questões e π é a
sabe ao certo em que consiste tal compe- probabilidade (ou expectativa) de se forne-
tência! Veja, portanto, o leitor sobre que cer uma resposta correta.
nível de decisões prévias, suposições e Vamos agora retomar a possibilidade
incerteza se apóia, de saída, o procedi- anteriormente aludida, segundo a qual, di-
mento (inicialmente julgado simples) de ante de um aluno qualquer que se dispõe a
avaliação aqui discutido ilustrativamente. responder o questionário, nós, avaliadores,
Para prosseguir o raciocínio, vamos poderemos ter duas "posturas" ou "expec-
propor que o professor do exemplo em tela tativas" que serão traduzidas por duas hi-
optou por um questionário bastante simples póteses: uma primeira hipótese, que cha-
e comum, o questionário de múltipla esco- maremos H0, será, nesse caso, a hipótese
lha, ou seja, aquele instrumento que se ca- de insuficiência de aprendizagem, enquan-
racteriza pela proposição de uma questão, to que uma segunda hipótese, H1, será
à qual se seguem múltiplas opções de res- aquela de aprendizagem suficiente. Dois es-
postas dentre as quais apenas uma é consi- quemas de modelos poder-se-iam abrir di-
derada correta. Vamos considerar agora ante de nós:
uma variável de decisão D, que diz respeito 1. A probabilidade de um aluno que não
simplesmente ao número de respostas cor- aprendeu suficientemente responder corre-
retas apresentadas por determinado aluno tamente a uma questão do questionário é
para o questionário-exame. Tal variável é no- igual à probabilidade deste mesmo aluno
meada "variável de decisão" porque é com errar; concomitantemente, a probabilidade
base nela que o professor decidirá onde si- de que um outro aluno que aprendeu sufici-
entemente responder corretamente a esta
tuar o aluno examinado, se no grupo dos
mesma questão é igual à probabilidade de
"suficientes" ou naquele dos "insuficientes".
ele errar.
Sabemos, por outro lado, que o conjunto
Ora, se esta expectativa for verdadeira,
de resultados possíveis a serem apresenta-
estaremos diante de um problema grave de
dos pelos alunos será o conjunto de núme-
avaliação, pois nossa capacidade de distin-
ros variando de 0 (zero) a q (número total
guir entre alunos que aprenderam e outros
de questões do questionário). Ainda à gui-
que não aprenderam, via questionário, é bas-
sa de simplificação do raciocínio, conside- tante grosseira: há uma margem proba-
remos que as questões do questionário se- bilisticamente grande de avaliarmos como
jam independentes umas das outras e de "bom" aquele aluno que não aprendeu (ou
igual nível de dificuldade; neste caso, a vari- seja, abandonarmos indevidamente a hipóte-
ável de decisão acima aludida será uma fron- se H0 de não-aprendizagem, o que chamare-
teira que demarcará duas regiões (ou mos aqui de erro de primeiro tipo), e de avali-
subconjuntos) de resultados: aquela corres- armos como "mau" aquele aluno que apren-
pondente aos alunos que serão considera- deu (abandonarmos indevidamente a hipóte-
dos insuficientes ou reprovados (região esta se H1 de aprendizagem, que denominaremos
que irá de zero até um determinado valor) e erro de segundo tipo).
aquela correspondente aos alunos julgados 2. A probabilidade de um aluno que não
suficientes ou aprovados (após este deter- aprendeu suficientemente responder corre-
minado valor até o número máximo de acer- tamente a uma questão do questionário é me-
tos possíveis). Ora, o ponto por onde pas- nor que a probabilidade deste mesmo alu-
sará a fronteira acima aludida será função no errar; concomitantemente, a probabilida-
da nossa expectativa acerca do nível de di- de de que um outro aluno que aprendeu su-
ficuldade do teste: se se trata de um teste ficientemente responder corretamente a esta
julgado "fácil", nossa fronteira será mais exi- mesma questão é maior que a probabilida-
gente: em um teste com 10 questões, po- de de ele errar.
4
Essa variável bem conhecida deríamos estabelecer que somente a partir Este é o caso ideal, em termos de utili-
permite descrever a freqüência
do número de sucessos numa de 5 acertos consideraríamos o aluno como zação de nosso questionário como instru-
série de eventos identicamente tendo demonstrado suficiência; por outro mento de avaliação, pois o risco de avaliar-
repetidos. Assim, num jogo de
cara e coroa com uma moeda, lado, se se trata de um teste julgado "difí- mos como "bom" aquele aluno que não
poderíamos estabelecer a fre- cil", já a partir de 4 pontos poder-se-ia con- aprendeu (ou seja, abandonarmos indevi-
qüência de aparição do evento
"obter 25 vezes coroa" após lan-
siderar o aluno suficiente. Em função disso, damente a hipótese H0 de não-aprendiza-
çar cem vezes tal moeda. podemos afirmar que a variável de decisão gem, cometendo um erro de primeiro tipo),

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bem como de avaliarmos como "mau" (erro de tipo 1) cairá mais e mais em função
aquele aluno que aprendeu (abandonarmos da menor probabilidade de acerto no caso
indevidamente H1, cometendo um erro de do aluno que não aprendeu, e que a pro-
babilidade de rejeição indevida de H1 (erro
segundo tipo), é menor do que o mesmo
de tipo 2) cairá mais e mais em função da
tipo de risco referido no tópico 1, acima. maior probabilidade de acerto por parte do
Podemos, inclusive, afirmar que a proba- aluno que aprendeu. Estas relações são ilus-
bilidade de uma rejeição indevida de H0 tradas pelo Gráfico 2:

Curva 2 Curva 1
1
“maior ou igual a k” (Curva 1) ou menor que k” (Curva 2)

0,9
Probabilidade que a variável de decisão tenha um valor

0,8

0,7

0,6

0,5

0,4

0,3

0,2

0,1

0
0 0,1 0,2 0,3 0,4 0,5 0,6 0,7 0,8 0,9 1
Probabilidade de responder uma questão corretamente e ao acaso

Gráfico 2 – Comportamento dos gráficos descritivos das probabilidades


de resposta correta a uma questão em função da variação de probabilidade
referente ao valor da variável de decisão

Para construir esses gráficos, é neces- α = Prob{ D≥ k sob H0 }


sário especificar previamente o modelo de – na Curva 2, β (beta) é a probabilida-
partida (nosso exemplo baseia-se sobre um de da variável de decisão de ter um resul-
questionário de q=10 questões e com o tado (número dos sucessos) menor que k
valor crítico k =5): (valor crítico) sob a hipótese H1 que um
– na Curva 1, α (alfa) é a probabilidade sujeito competente pode responder corre-
da variável de decisão ter um resultado (nú- tamente a cada questão com uma proba-
mero dos sucessos) maior que k (valor críti- bilidade π1
co) sob a hipótese H0 de responder correta-
β = Prob{ D< k sob H1 }
mente, bem como por acaso, a cada ques-
tão com uma probabilidade π0. 1-β = Prob{ D≥ k sob H1 }

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Assim, com esse questionário de 10 0 a 1 de forma inversa, e que esses dois
questões e o critério de decisão "respon- tipos de erro relacionam-se entre si confor-
der corretamente a 5 questões ou mais me ilustrado no Quadro 3, adiante. A situa-
sobre 10", sob a hipótese H0 (conside- ção fictícia e altamente simplificada que ex-
rando-se, portanto, o sujeito incompeten- ploramos acima serve para ilustrar algumas
te), a probabilidade α fica menor que 0,05 idéias fundamentais em termos de análise
para uma probabilidade π0 de responder de dados categorial-quantitativos em ciên-
corretamente inferior a 0,34. No nosso cias humanas: em primeiro lugar, nem to-
modelo, um questionário de múltipla es- das as situações se prestam a uma
colha cujas questões contêm 3 ou mais modelização em termos de hipóteses bási-
possibilidades de resposta assegura o cas de trabalho, espaço de possibilidades
respeito dessa condição.5 Alternativamen- e variáveis de decisão. Não obstante, algu-
te, sob a hipótese H1 considerando-se o mas situações se prestam a uma tal abor-
sujeito competente, a probabilidade β dagem; estas situações, contudo, são ra-
teria um valor inferior a 0,04 para uma pro- zoavelmente complexas, porque:
babilidade π1 de responder corretamente 1)partem de uma pré-análise na qual
superior a 0,85.
as escolhas, ênfases e vieses do pesquisa-
Em outros termos, se pensarmos numa
dor têm papel central na estruturação dos
situação em que a margem probabilística
dados: trata-se da etapa de escolha das
de erro de tipo 1 é baixa, ou seja, a proba-
situações, questões, etc.;
bilidade de rejeitarmos H0 indevidamente
é pequena, estaremos numa situação de 2)lidam com situações em que não
alto nível de exigência, em que será mais estão em jogo dicotomias do tipo verda-
difícil consideramos "suficiente" um aluno deiro-falso, e sim um continuum proba-
de fato "insuficiente"; mas ao estabelecer- bilístico em que se lida com as idéias de
mos um tal nível de exigência, passamos a mais provável ou menos provável, com
incorrer num risco maior de considerarmos margens de risco variáveis, porém inevi-
"insuficiente" um aluno de fato "suficiente", táveis. Assim, a análise inferencial de da-
ou seja, aceitar indevidamente H0. Nessa dos nos força a abrir mão da ambição da
ordem de idéias, se denominamos α (alfa) "verdade" e a nos contentarmos com os
a probabilidade de erro de tipo1, e β vislumbres da "verossimilhança", do que
(beta) a probabilidade de erro de tipo 2, "é" para o que "pode ser", com margem
podemos então reter que α e β variam de de erro variável.

Quadro 3 – Situações possíveis em termos de tipos de decisão tomada


pelo pesquisador, em função das hipóteses básicas consideras e tipos
de erro associados

5
Com três modalidades, a pro-
babilidade seria de 1/3≅ 0,34,
com quatro modalidades, seria
1/4 = 0,25 , com cinco seria
1/5 = 0,20...

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As variáveis estatísticas ditas escalas estatístico-probabilística. No seu domínio
de medida pelo pesquisador próprio de trabalho, o estatístico propõe
várias "caixas de ferramentas", cada dia mais
em ciências humanas: enriquecidas; nosso objetivo aqui não é
caracterizações, pressupostos expor em detalhes e extensivamente todas
e riscos essas ferramentas, mas somente discutir al-
gumas noções básicas que permitem refi-
A medida, conforme discutido anterior- nar a linguagem através da qual se constrói
mente, diz respeito especificamente à atri- a argumentação do pesquisador em ciên-
buição de um código (número, letra, etc.) a cias humanas.
determinado evento, de acordo com regras As variáveis, com as quais lida o pes-
explícitas. Tais regras dirão respeito basica- quisador acima referido, podem ser classi-
mente aos critérios de atribuição, que, por ficadas, em primeira instância, em termos
sua vez, guardam relação não só com a do objetivo básico da medida ou resultado
natureza dos dados como também com pretendido. Esta primeira partição nos con-
determinadas decisões do examinador. duz a uma diferenciação em termos de vari-
Aqui nós devemos precisar algumas áveis ditas qualitativas (que se prestam a uma
noções do domínio matemático que per- diferenciação em termos de presença/au-
mitem basear a modelização da medida de sência de determinados atributos ou quali-
forma menos superficial. Essa medida con- dades) e quantitativas
siste em estabelecer uma ligação entre um (que ensejam quanti-
conjunto de elementos (unidades estatísti- ficação da diferenci-
cas) escolhidos em função do fenômeno ação, através de ati-
estudado e um conjunto de elementos sim- vidade básica de
ples ou complexos gerados pela modeli- contagem). As vari-
zação (categorização), de tal maneira que áveis qualitati-
uma unidade estatística não possa ser re- vas podem
lacionada com mais de um elemento
categorial considerado. À guisa de exem-
plo, poderíamos pensar na representação,
em um plano cartesiano cujos eixos dizem
respeito respectivamente a uma escala de
desempenho em matemática e outra em
ciências, das notas de determinado
grupo de estudantes. Esse procedi-
mento de conexão de uma medida a
um evento categorizado é chama-
do, em termos matemáticos ge-
néricos, de estabelecimento de
relação funcional ou função, e
em termos mais especifica-
mente estatísticos, cons-
trução de variável

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ainda sofrer uma segunda partição, em fun- • A escala ordinal faz apelo a variá-
ção do caráter ordenável ou não-ordenável veis qualitativas com possibilidade de or-
do fenômeno que modelizam; em função denar os resultados. Sua utilização é perti-
desta partição, teremos variáveis qualitati- nente quando se deve atribuir rótulos a
vas ordinais e nominais, respectivamente. partir da verificação da presença de graus
As variáveis quantitativas, por seu turno, diversos e ordenados no âmbito de uma
vão sofrer uma partição com base noutro mesma variável. Tem-se, neste caso, dife-
critério, visto que os números (quantidade) renças qualitativas (como na escala anteri-
se inserem numa relação de ordem,6 o que or) a que se acrescentam diferenças quan-
faz com que tais variáveis comportem a titativas (não necessariamente explícitas,
ordenação. O critério de partição, aqui, diz como se verá mais adiante): níveis 1 (fra-
respeito à distinção entre conjunto contínuo co), 2 (médio) e 3 (forte) em desempenho
e conjunto discreto de números, o que nos em Matemática, ou níveis de desenvolvi-
conduzirá, respectivamente, a variáveis mento cognitivo geral I (pré-operacional)
quantitativas contínuas e discretas. A rigor, II (intermediário) e III (operacional). Em re-
cabe salientar que o caráter contínuo ou lação a esta escala de medida, cabem al-
discreto dos fenômenos quantificados diz gumas observações importantes do pon-
respeito antes a uma tomada de decisão to de vista da pesquisa em ciências huma-
(convenção) que a propriedades inerentes nas em geral, notadamente em psicologia,
ao fenômeno: mesmo aspectos usualmen- em que tal escala costuma ser bastante
te considerados contínuos, como o tem- utilizada. Retomemos e enfatizemos este
po, podem ser discretizados, e vice-versa. ponto central: a escala de medida ordinal
Feitas as precisões acima, cabem al- utiliza a propriedade distintiva das catego-
gumas considerações específicas acerca rias, à qual se agrega determinada propri-
da utilização, pelo pesquisador, de esca- edade hierárquico-seqüencial: categoria A
las de medidas baseadas nas variáveis < categoria B < categoria C. Muitas ve-
anteriormenente aludidas. zes, tal ordenação é simbolizada utilizan-
• A escala nominal mobiliza variáveis do-se o sistema numérico, pelo simples fato
qualitativas que não permitem ordenar, de esse sistema de codificação ser ampla-
pertinentemente, os resultados. O recur- mente disponível na cultura e já comportar
so a tal escala justifica-se quando é ne- os dois níveis de mensuração (qualitativo
cessário atribuir um rótulo diferenciador e ordenado-seqüencial) que se quer utili-
("nome") a classes qualitativamente diver- zar. Nesse caso, ao invés de se utilizar A,
sas de fenômenos. É o caso, por exem- B, C e D, utilizam-se os números 1, 2, 3 e
plo, de classificação por gênero (mascu- 4. Ora, essa última codificação ordinal
lino/feminino), por tipo de participação possui riscos nem sempre bem avaliados
em determinado desenho experimental por quem dela lança mão. Dois desses ris-
(grupos experimental e controle), e assim cos são os seguintes:
por diante. Em termos de potencialidade a) Risco de interpretação abusiva das
para análise de dados, é comum se ouvir diferenças entre categorias codificadas por
o comentário segundo o qual tal escala números: A escala numérica que é mobili-
é a mais "fraca" em termos de veiculação zada por uma mensuração ordinal é per-
de informação, pois usa apenas a propri- feitamente regular. Em outras palavras, o
edade distintiva das categorias (catego- incremento de 1 para 2, deste para 3, des-
ria A ≠ categoria B). Essa afirmação, se te para 4, e assim por diante, é constante,
bem que compreensível em termos de de forma que toda série numérica pode ser
uma comparação no interior do conjunto representada pela expressão algébrica n,
de escalas de medida, deve ser conside- n+1, (n+1)+1, ((n+1)+1)+1... ∞ na qual
rada com reserva (e sobretudo sem "com- a unidade pode, por convenção, ser subs-
plexo de inferioridade...") pelo pesquisa- tituída por qualquer outro valor. Verifique
6
dor, uma vez que o surgimento de ferra- o leitor que, nesta progressão, cada "pas-
Dados dois números quaisquer
e diferentes A e B, é sempre mentas descritivas poderosas baseadas so" unitário dado (de uma categoria para
possível estabelecer as rela- em dados nominais, como é o caso dos a categoria adjacente) representa um mes-
ções A maior que B ou B maior
que A.
procedimentos informatizados de análi- mo acréscimo ou decréscimo em termos
7
Para uma análise introdutória se multidimensional,7 ampliaram conside- de medida. Diante disso, considere as
a esses métodos, ver Bouroche
e Saporta (1980) e Fenelon
ravelmente o poder informativo de tal tipo duas mensurações ordinais e fictícias apre-
(1981). de dados. sentadas no Quadro 4, a seguir.

R. bras. Est. pedag., Brasília, v. 81, n. 198, p. 229-243, maio/ago. 2000. 239
Quadro 4 – Ordenando categorias classificatórias em duas situações distintas

Conforme se pode verificar, temos uma absoluto, garantir que a passagem do proce-
mesma escala ordinal (1 – 2 – 3) , em ter- dimento 1 para o procedimento 2 represente
mos de codificação, utilizada em duas si- o "mesmo tanto" de progresso da passagem
tuações, mas se constatam diferenças ex- de 2 para 3. É bastante pertinente pensar que
tremamente importantes ao se observar, em os dois fenômenos observados possam ter a
cada caso, a coisa medida em interação métrica hipotética representada no Gráfico 3,
com o suporte de medida. No que diz res- adiante. No caso do estudo 1, temos uma
peito à escala de votos, a natureza da coi- métrica regular, o que não é o caso no estu-
sa medida não sofre constrangimentos do 2, em que o incremento de 1 para 2 é
quando questionamos se de fato tal coisa provavelmente bastante diverso daquele que
é incrementada tão regularmente quanto se verifica de 2 para 3. Assim, é preciso ter
sugere a escala: o incremento de 1 para 2 muito cuidado para não "contaminar" o fenô-
e de 2 para 3 é o mesmo (em termos de meno estudado com propriedades do códi-
regularidade), tanto em termos de escala go de mensuração escolhido. Tal cuidado não
quanto em termos da coisa medida; neste representa um preciosismo de iniciados, mas
caso, a escala reproduz fielmente o com- deve fundamentar uma ação bastante corri-
portamento do fenômeno observado. No queira no mundo da pesquisa, que é a esco-
caso da segunda mensuração, referente ao lha do tipo de escala de mensuração e, em
desempenho em álgebra, a situação não é conseqüência, do tipo de tratamento estatís-
tão tranqüila assim: nós não podemos, em tico pertinente e adequado.

Gráfico 3 – Aventando diferenças de regularidade de métrica entre os estudos 1 e 2

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Mas os problemas não se restringem ferramentas estatísticas em ciências huma-
a questões de métrica: há algo ainda mais nas em geral, e particularmente em psi-
"grave", epistemologicamente falando, a cologia. Será que sempre faz sentido acei-
considerar, conforme discutido no item tar que 10 acertos num teste de avaliação
seguinte. representam o dobro de desempenho em
b) Risco de proposição indevida de relação a 5 acertos? Tais questões têm efe-
ordenação: A rigor, muitas vezes o pesqui- tivamente de ser enfrentadas, pois a es-
sador não pode garantir se, ao passar de cala intervalar possibilita muitos tratamen-
uma categoria para outra (no contexto de tos estatísticos dignos de atenção tanto
uma escala de mensuração ordinal), ele em termos de ganho de informação quan-
ainda tem o direito de falar de incremento to de riscos de interpretação contamina-
de algo, ao invés de falar de coisas com- da pelos artefatos de medida: é o caso,
pletamente distintas, não necessariamente notadamente, dos tratamentos que pos-
ordenáveis em qualquer hierarquia simples, sibilitam a substituição de todo um con-
o que o forçaria a retornar à escala nomi- junto de medidas por um número reduzi-
nal. De fato, a utilização da escala ordinal do de valores informativos.
pressupõe uma progressão em que há um
incremento gradativo de uma categoria a
outra, um "tanto" a mais da coisa medida. Conclusões
Será que isso sempre faz sentido, do pon-
to de vista da epistemologia do objeto in- O estatuto de existência dos objetos ex-
vestigado? Será, por exemplo, que pode- perimentais está diretamente relaciona-
mos de fato afirmar que os quatro quartis do ao fato de que tais objetos são produ-
de uma distribuição de QIs (quocientes de zidos pelo homem (F. Halbwachs).
inteligência) agregam dados psicológicos
de fato ordenáveis?8 Será que os estágios Os aspectos discutidos brevemente no
das provas piagetianas são sempre repre- presente artigo sugerem, em termos gerais,
sentativos de uma ordenação, no sentido que a quantificação em ciências humanas
estrito do termo? Naturalmente adentra-se representa uma ferramenta cultural de apoio
aqui uma discussão de caráter teórico, que ao esforço global de construção de conhe-
foge ao escopo da presente reflexão; não cimento neste domínio, ferramenta esta que
obstante, nosso intuito ao mencionar tal pode, em contextos específicos, prestar
ordem de risco na utilização de determina- serviços de amplificação da observação de
da escala de medida é enfatizar o quanto valor inegável. Por outro lado, os vários pro-
o recurso a tais ferramentas força o pesqui- cedimentos mobilizados pela quantificação,
sador a uma reflexão crítica constante, e por sua própria natureza modeladora-
em vários contextos. Tal reflexão se conclui formalizadora, podem efetivamente defor-
com as considerações seguintes, referen- mar a observação a ponto de esterilizá-la
tes às escalas numérica e intervalar. por completo. Nesse sentido, a grosseria
• As escalas numérica e intervalar são inata ao procedimento de categorização
mobilizadas para modelizar e medir variá- (que "fabrica" a homogeneidade no interior
veis quantitativas discretas e contínuas. O das categorias a partir da singularidade das
uso destas escalas pressupõe que é possí- produções que a compõem) pode de fato
vel medir no sentido forte, quantitativo do conduzir à constatação daquilo que ela pró-
termo. Conforme observações acima, uma pria criou; por outro lado, torna-se muito
tal escala considera diferenças entre medi- mais difícil vislumbrar fenômenos de con-
das numéricas, uma vez que propõe um junto que transcendem necessariamente o
sistema de medida de métrica rigorosamen- idiossincrático sem a categorização. A abor-
te interpretável, o que permite não somen- dagem de tais fenômenos de conjunto ou
te qualificar as diferenças em termos de tendências tem, portanto, na quantificação
ordem (10 acertos configuram melhor de- uma ferramenta extremamente útil; não
sempenho que 5 acertos em determinado obstante, é preciso não perder de vista que
teste), mas também quantificá-las (10 acer- a natureza matemática dos algoritmos
tos representam um incremento quantificável probabilísticos sobre os quais tais ferramen-
em relação a 5 acertos). Ressurge aqui um tas se apóiam limita necessariamente as
problema epistemológico importante. Mais conclusões e vislumbres do pesquisador a
8
Para uma discussão aprofun-
uma vez nos defrontamos com uma situa- proposições no máximo verossímeis, uma
dada desse aspecto, ver Gould
(1981). ção preocupante, no contexto do uso de vez que a presunção do atingimento da

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verdade encontra-se, por definição, fora do aquilo que se pode calcular e contar, pelo
escopo de possibilidades da inferência que se pode traduzir em números... quão
estatística. absurda seria essa avaliação 'científica'!"
Propõe-se, com as presentes refle- E o mesmo autor conclui: "Que se haveria
xões, que o pesquisador em ciências hu- apreendido, compreendido, conhecido de
manas faça efetivamente uso das ferra- uma melodia assim apreciada? Nada, e
mentas oferecidas pela quantificação, literalmente nada, daquilo que faz justa-
com critério, cuidado crítico e o máximo mente a 'música'!..." Não obstante, uma
de respeito epistêmico possível pelas pe- análise multidimensional do tipo análise
culiaridades do objeto estudado. Nesse fatorial ou classificação hierárquica
sentido, permitimo-nos aqui lançar mão (Cibois, 1983), a partir de categorização
de exemplo ilustrativo simples,9 porém de improvisos de músicos de jazz, pode-
bastante pertinente: se eu disponho de ria auxiliar um eventual estudioso a de-
20 litros d'água, recebo mais 50 litros e tectar estruturas temáticas que contribu-
quero saber de quantos litros passo a íssem, por exemplo, para enriquecer a
dispor, é perfeitamente lícito lançar mão diferenciação entre diferentes modalida-
de ferramenta matemática oriunda do des de improviso ou estilos.
campo conceitual das estruturas aditivas,
Há sempre uma relação de custo e be-
e somar as medidas de volume d'água
nefício a negociar em cada situação de aná-
implicadas: 20 litros + 50 litros = 70 li-
lise de dados em psicologia e nas ciências
tros; mas se agora tenho em mãos pro-
humanas em geral, e isso é válido tanto para
blema superficialmente semelhante (mas
de fato bem diverso), referente ao fato as abordagens ditas qualitativas quanto quan-
de dispor de dois volumes iguais de titativas: tal negociação implica considerar
água, um com temperatura de 20°C e cuidadosamente o objeto em estudo, os
outro com 70°C, e querendo eu saber a modelos teóricos que balizarão tal aborda-
temperatura final da mistura dos dois vo- gem, as categorias oriundas da análise de
lumes, não será mais pertinente pensar tal objeto a partir de tal modelo, as ferra-
em ferramentas aditivas para modelizar a mentas disponíveis para processar a infor-
situação e resolver o problema. mação bruta assim gerada. O benefício em
O uso de ferramentas quantificadoras termos de clarificação conceitual, ao que nos
a partir de categorização fundada em cri- parece, freqüentemente suplanta o custo re-
térios vinculados, por sua vez, a mode- presentado pela ênfase em aspectos secun-
los específicos tem, sem dúvida nenhu- dários, ou pela grosseria representada por
ma, um custo e um risco que justificam tratamentos estatísticos que, em última aná-
esforços sérios de conhecimento e análi- lise, somam indevidamente temperaturas de
se crítica: a mensuração, muitas vezes, dois recipientes de água. Nesse sentido, o
conduz a "largar a presa por sua som- pesquisador em ciências humanas se priva
bra", conforme dito popular francês. 10 de importante ferramenta cultural ao se
Nesse mesmo contexto de idéias, C. autoproibir, freqüentemente por motivação
Chrétien (1994) endossa reflexões de ideológica, pressão de grupo corporativo ou
Nietzsche, quando este observa que "se ignorância pura e simples, o acesso a tais
se avaliasse o 'valor' de uma música por métodos quantitativos de análise de dados.

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BESSON, J.-L. A ilusão das estatísticas. São Paulo: Ed. Unesp, 1995. 9
Tal exemplo, juntamente com
outras observações de que
BOUROCHE, J.-M.; SAPORTA, G. L'analyse des données. Paris: Presses Universitaires de muito se beneficiaram o presen-
te artigo, foi proposto pela pro-
France, 1980. fessora Terezinha Nunes
(Brookes University, Inglaterra),
BRUNER, J. S. Savoir faire, savoir dire. Paris: Presses Universitaires de France, 1983. durante discussão preliminar
das idéias aqui mencionadas.
10
"Lâcher la proie par son ombre",
______. The culture of education. Cambridge: Harvard University Press, 1996. na forma original.

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Recebido em 13 de março de 2001.

Jorge Tarcísio da Rocha Falcão, doutor em Psicologia da Aprendizagem pela


Université de Paris-5/Sorbonne, é pesquisador bolsista do CNPq e professor adjunto 1
do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPe).
Jean-Claude Régnier, doutor em Didática da Matemática pela Université de
Strassbourg (França), está atualmente vinculado ao Departamento de Sciences de l'
Education da Université Lumière – Lyon 2 (França), do qual é diretor e maître de
conférences.

Abstract
This paper is aimed to critically discuss quantification as a methodological initiative in
human sciences, focusing on important risks inherent to this activity, but also stressing its
utility as a social tool and cultural amplifier in the context of specific situations. In this context,
basic aspects concerning quantification are analyzed, particularly those referring to its
connections with theoretically guided activities like modeling and categorization. Additionally,
some important issues in the activity of quantification itself are described and analyzed: the
search for general structures and tendencies in a set of data, measurement scales, distinction
between description and inference, and finally, the interest of distinguishing random from
systematic sources of variation. In the context of this last distinction, argument is provided
concerning the limitation of quantitative methods in detecting verisimilitude, instead of truth.

Keywords: data analysis; measuring; quantitative data-analysis.

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