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Um novo Fisco para um Brasil pós-reforma

De acordo com Manuel Castells, em sua renomada obra A Sociedade em


Rede, ‘as sociedades mudam através do conflito e são geridas pela política’.
Nesse sentido, os últimos dias têm sido de muita discussão em função dos
possíveis impactos da reforma tributária apresentada no congresso nacional,
assim como de uma forte apreensão em decorrência das mudanças que
poderão advir do modelo proposto.
Com efeito, ultrapassadas as questões normativas, é certo que um novo
regime de tributos também demandará uma nova atuação das administrações
tributárias, que se já apresentavam sinais de esgotamento frente às dinâmicas
de gestão econômica, fiscal e corporativa da atualidade. Enfrentarão desafios
ainda mais complexos com o desenvolvimento e governança da sistemática
tributária no período pós-reforma.
Nesse contexto, para contribuir com este debate, listamos algumas
características que podem aprimorar o papel deste reformulado Fisco, que,
fatalmente, precisará se adaptar aos ditames inovadores de uma realidade em
mutação, e segundo as nuances de uma sociedade cada vez mais digital e em
rede. Sendo assim, passamos a detalhar tais aspectos:
● Flexibilidade:
Para se manter alinhada às mudanças constantes de uma sociedade
demandante de inovação, eficiência e serviços digitais, esta administração
tributária precisará ser mais flexível e capaz de se adaptar às tecnologias
emergentes e formas diversas de trabalho. Isso inclui a efetivação de uma Lei
Orgânica do Fisco, do Código Geral de Proteção ao Contribuinte, a revisão do
papel das carreiras fazendárias, e o dimensionamento adequado de seu
quadro de servidores, levando em consideração a digitalização dos processos
e a possibilidade de realização das atividades em sistema presencial, híbrido
ou remoto.
● Colaboração:
Uma administração tributária eficiente deve fortalecer a colaboração com
outras instituições e entidades, como empresas, organizações da sociedade
civil e agências governamentais, para alcançar seus objetivos. Neste sentido,
será essencial ampliar a integração da atuação em rede na área financeira,
tributária e fiscal, compartilhando informações e promovendo o enfrentamento
conjunto às práticas lesivas de fraudes estruturadas. Além disso, a criação de
mecanismos de efetiva interação e harmonização entre contencioso
administrativo e judicial, que afaste a cultura de excessivo enfoque no litígio,
também será fundamental para solução otimizada das controvérsias tributárias.
● Automatização de processos:
A constante automatização de processos é uma ferramenta poderosa que
permite à administração tributária processar grandes volumes de dados de
forma mais rápida e eficiente. Isso resulta em redução de erros e custos para a
sociedade, além de aumentar a eficácia governamental. Um exemplo prático
dessa automatização será a padronização nacional dos códigos de produtos
para simplificação da emissão de Documentos Fiscais Eletrônicos (DF-es), com
motor de regras tributárias automatizadas, possibilitando a declaração fiscal
assistida ou pré-preenchida pelo próprio Fisco, sem maiores esforços para o
contribuinte. Além do mais, tal automatização viabiliza a eficácia da tributação
do comércio eletrônico, em especial dos serviços digitais como computação em
nuvem e pagamentos, a responsabilização fiscal dos marketplaces
internacionais, e a disponibilização de plataformas de conformidade fisco-
tributária para as pequenas empresas, dentre outras operações digitais que
poderão ser controladas com a automatização dos processos, no enfoque de
uma base tributária ampla proposto pela reforma.
● Uso de tecnologia:
Neste novo cenário a administração tributária precisará utilizar ainda mais
tecnologia para coletar e analisar informações fiscais, identificar fraudes e
evasão fiscal, e se comunicar ativamente com os contribuintes. A melhoria da
relação com a sociedade e o desenvolvimento de soluções a partir da visão do
usuário, com interfaces intuitivas e amigáveis, são aspectos fundamentais
nesse contexto, e que incentivam o cumprimento voluntário das obrigações.
Ademais, a utilização de tecnologias de rastreabilidade logística, como
câmeras, drones, antenas, balanças móveis etc., bem como o uso de
blockchain para elaboração de registros públicos transparentes, imutáveis e
rastreáveis, são exemplos concretos de como o Fisco pode aproveitar a
tecnologia em benefício de suas competências e da sociedade. A aplicação
constante de sistemas de mineração de dados e inteligência artificial também
será uma estratégia indispensável para lidar com a complexidade das
informações fisco-contábeis e aprimorar a detecção de fraudes estruturadas.
● Integração de sistemas:
Para reduzir a burocracia, a administração tributária deverá fortalecer a
integração de seus sistemas com os sistemas das empresas e dos órgãos de
controle. Isso facilita a troca de informações e agiliza os processos, tornando o
acompanhamento do cumprimento das obrigações fiscais mais eficiente e
célere. É fundamental que a administração tributária integre o controle sobre os
novos meios de pagamentos e de tributos, implementando sistemas de
retenção e distribuição da arrecadação (Split Payment), com soluções
dinâmicas e automáticas sobre os pagamentos digitais, realizando a retenção
do tributo pelo fluxo financeiro das operações, nos moldes que ocorre
atualmente com os marketplaces. Com efeito, a adoção de um conceito de
Fisco como serviço à sociedade, contribui para facilitar a integração entre
diferentes entes governamentais. Exemplos práticos dessa integração incluem
a ampliação da colaboração do Operador Nacional dos Estados (ONE) com
agências reguladoras e a integração com o Banco Central e o Sistema de
Pagamentos Brasileiro para fiscalização financeira.
● Análise de dados:
Com o aumento do volume de dados fiscais disponíveis, a administração
tributária poderá se beneficiar da análise estatística para identificar padrões,
detectar fraudes e evasão fiscal, e gerar valor informacional para a sociedade.
Deste modo, o Fisco deve se tornar um provedor de informação estratégica
para o Estado, sociedade e até mesmo empresas, baseando-se em pesquisas
aplicadas a setores econômicos e dinâmicas de mercado. Logo, a partir dessa
análise econômico-fiscal será possível massificar o desenvolvimento de
sistemas para cálculo específico das renúncias fiscais, com base em DF-es e
declarações, a disponibilização de informações sobre circulação de pessoas e
valores, e a utilização de sistemas para comparação de preços em licitações,
além de alertas para detecção de fraudes, sonegação e lavagem de dinheiro.
● Comunicação digital:
Em uma sociedade cada vez mais digital, é essencial que a administração
tributária ofereça múltiplos canais de comunicação, para que os contribuintes
possam obter esclarecimentos e resolver problemas de forma rápida e eficaz. A
expansão da transformação digital e o uso intensivo de inteligência artificial,
como chatbots, auxiliam na demanda por consultas e atendimentos aos
contribuintes. A administração tributária também poderá implantar consultas à
legislação tributária por meio de ferramentas inteligentes, simplificadas e com
foco no usuário. Nesse sentido, será importante a utilização de uma linguagem
mais atraente e simples, aderente ao público-alvo, assim como explorar
estrategicamente a participação em redes sociais para melhorar a
comunicação com a sociedade de maneira ativa.
● Transparência:
A busca crescente pela ampliação da percepção de transparência será
essencial para fortalecer a confiança entre a administração tributária e os
contribuintes, entre sociedade e Estado. Portanto, a administração tributária
deverá priorizar o fornecimento de informações claras e acessíveis sobre suas
políticas e procedimentos, promovendo a transparência nos gastos públicos e a
divulgação de sua política fiscal. Para isso, é importante desenvolver
ferramentas que permitam a verificação simplificada dos gastos e serviços
disponibilizados pelo governo, em formato acessível à sociedade e entidades
de controle público ou privado. A melhoria dos mecanismos de monitoramento
dos gastos públicos também contribui para a transparência e a avaliação
criteriosa dos resultados apresentados.
 Participação dos cidadãos:
Um Fisco que pretender inovar sua atuação nos próximos anos, deverá abrir
mais espaço para a participação ativa dos cidadãos na tomada de decisões e
na definição de políticas fiscais. Desta forma, será necessário promover
algumas revisões das políticas tributárias para um foco prioritário em incentivos
ao meio ambiente, diversidade e sustentabilidade, e assim fomentar a
participação em grupos de discussão, de modo a melhor compreender as
demandas sociais, são medidas que podem ser adotadas. Logo, será
indispensável a criação de canais de diálogo alternativos entre a administração
tributária e os contribuintes, buscando ouvir e considerar suas perspectivas e
necessidades.
● Educação fiscal:
É sabido que a educação fiscal desempenha um papel fundamental na
conscientização dos cidadãos sobre a importância dos tributos e o
cumprimento voluntário de suas obrigações fiscais. Neste novo contexto deverá
receber ainda mais destaque. Com a utilização de tecnologias emergentes, por
meio de uma plataforma de capacitação compartilhada e colaborativa, que
envolva agentes impulsionadores da sociedade, será possível desenvolver a
educação fiscal de forma mais eficiente e massificada. Essa educação deve ser
orientada não apenas para a conscientização, mas também para as
repercussões sociais e ambientais do pagamento de tributos. O uso de novas
tecnologias, como vivências em metaverso que abordem as dinâmicas
tributárias de maneira interativa, podem tornar a educação fiscal ainda mais
atraente, inclusiva e engajadora para os educandos.
● Segurança de dados:
A segurança dos dados dos contribuintes é uma responsabilidade primordial
da administração tributária. Por isso, será necessário implementar medidas de
proteção contra ataques cibernéticos e vazamentos de informações, cada vez
mais robustas neste contexto de intensa digitalização dos serviços prestados. É
necessário que se discuta com profundidade questões como a utilização e
compartilhamento de dados fiscais, os dilemas relacionados ao sigilo fiscal e
pessoal, e os desafios e oportunidades oferecidos pela computação forense e a
mineração de dados em nuvem no combate às organizações criminosas e suas
fraudes estruturadas.
● Responsabilidade social:
Por fim, a administração tributária deve considerar o impacto social e
ambiental de suas políticas fiscais, promovendo a justiça fiscal e a
sustentabilidade. A consolidação de um modelo de planejamento e orçamento
de médio prazo, que leve em conta a inclusão social e a sustentabilidade
ambiental, é uma medida eficaz nesse sentido. Também será importante
implementar fundos específicos para períodos adversos e avaliação
transparente dos resultados das políticas públicas para os segmentos mais
vulneráveis da sociedade. A devolução de impostos vinculados a beneficiários
de programas sociais, a definição de índices de promoção de emprego
vinculados a políticas fiscais, e o desenvolvimento de índices de políticas
públicas com impacto no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), são
exemplos práticos de como o Fisco pode promover a responsabilidade social
no Brasil pós-reforma tributária.
Portanto, ainda que não exaurientes, entendemos que as características
elencadas acima são elementos essenciais para uma transição mais segura e
planejada pelas administrações tributárias, de forma a mitigar maiores riscos e
impactos negativos, bem como assegurar maior confiança aos contribuintes
acerca do novo modelo. Sendo assim, a aplicação dessas medidas, neste
período conturbado de mudanças, pode não apenas contribuir para o
aprimoramento e simplificação do sistema tributário de maneira mais
harmônica, mas também promover uma maior segurança jurídica, justiça fiscal
e sustentabilidade em todas as esferas desta sociedade em rede.

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