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Fernão Lopes, Crónica de D. João I (c.

1443)

11. DO ALVOROÇO QUE FOI NA CIDADE CUIDANDO QUE MATAVAM O


MESTRE, E COMO ALI FOI ÁLVORO PAIS E MUITAS GENTES COM
ELE.

 O Pajem do Mestre que estava à porta, como lhe disseram que fosse pela vila
consoante já fora combinado, começou de ir rijamente a galope encima do cavalo em
que estava, dizendo em altas vozes, bradando pela rua: Matam o Mestre! Matam o
Mestre nos Paços da Rainha! Acorrei ao Mestre que o Matam! E assim chegou a casa
de Álvoro Pais, que era dali grande espaço.

As gentes que isto ouviam saíam à rua a ver que coisa era, e, começando a falar uns
com os outros, alvoroçavam-se nas vontades e começavam a tomar armas cada um
como melhor e mais asinha podia. Álvoro Pais, que estava prestes e armado com uma
coifa na cabeça, segundo a usança daquele tempo, cavalgou logo à pressa encima de
um cavalo, quando havia anos que não cavalgava, e todos os seus aliados iam com
ele, que, bradando a quaisquer que achava, dizia: Acorramos ao Mestre, amigos,
acorramos ao Mestre, que filho é delRei dom Pedro. E assim bradavam ele e o Pajem
indo pelas ruas.

Soaram as vozes do arruído pela cidade, ouvindo todos bradar que matavam o Mestre,
e assim como viúva que rei não tinha, e como se este outro lhe ficara em lugar de
marido, se moveram todos com mão armada, correndo à pressa para onde diziam que
isto se fazia, para lhe darem vida e escusar a morte. Álvoro Pais não se detinha ao ir
para lá, bradando a todos: acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre que
matam sem porquê.

A gente começou de se juntar a ele, e era tanta que era estranha coisa de ver. Não
cabiam pelas ruas principais e atravessavam lugares escusos, desejando cada um de
ser o primeiro, e perguntando uns aos outros quem matava o Mestre, não minguava
quem respondesse que o matava o Conde João Fernandes, por mandado da Rainha.

E, por vontade de Deus, todos feitos de um só coração com talante de o vingar,


quando foram às portas do Paço, que eram já cerradas antes que eles chegassem, com
espantosas palavras começaram de dizer: Onde matam o Mestre? Que é do Mestre?
Quem cerrou estas portas? Ali eram ouvidos brados de desvairadas maneiras. Tais aí
havia que certificavam que o Mestre era morto, pois as portas estavam cerradas,
dizendo que as britassem para entrar adentro, e que veriam que era do Mestre ou que
coisa era aquela.

Alguns deles bradavam por lenha e que viesse lume para porem fogo aos Paços e
queimar o traidor e a aleivosa. Outros se afincavam pedindo escadas para subir acima
e verem que era do Mestre, e em tudo isto era o arruído tamanho que se não
entendiam uns com os outros nem determinavam coisa nenhuma. E não somente era
isto à porta dos Paços mas ainda ao redor deles, por onde homens e mulheres
pudessem estar. Uns vinham com feixes de lenha, outros traziam carqueja para
acender o fogo, e cuidavam queimar assim o muro dos Paços, dizendo muitos doestos
contra a Rainha.

De cima não minguava quem bradasse que o Mestre era vivo e o Conde João
Fernandes morto, mas isto não queria nenhum crer, dizendo: Pois se vivo é mostrai-
no-lo e vê-lo-emos. Então os do Mestre, vendo tamanho alvoroço como este, que cada
vez se acendia mais, disseram que fizesse sua mercê de se mostrar àquelas gentes,
doutra guisa estas poderiam quebrar as portas ou pôr-lhes o fogo, e entrando assim
por ali dentro à força não as poderiam tolher de fazer o que quisessem.

Então se mostrou o Mestre a uma grande janela que dava para a rua onde estava
Álvoro Pais e a mais força da gente, e disse: Amigos apacificai-vos, que eu vivo e são
sou a Deus graças. E tanta era a turvação deles, e tinham já assim em crença que o
Mestre era morto, que tais aí havia que teimavam que não era aquele, porém,
conhecendo-o todos claramente, houveram grande prazer quando o viram, e diziam
uns para os outros: Oh que mal que fez! Pois que matou o traidor do Conde e que não
matou logo a aleivosa com ele. Crede em Deus que ainda lhe há-de vir algum mal por
ela. Olhai e vede que maldade tão grande, mandaram-no chamar donde já ia em seu
caminho para o matarem aqui por traição, Oh aleivosa! Já nos matou um senhor e
agora queria matar-nos outro! Deixai-la, que ainda há-de acabar mal por estas
coisas que faz.

E sem dúvida que se eles entravam dentro não se livraria a Rainha de morte, e já fora
maravilha quantos eram da sua parte e do Conde poderem escapar. O Mestre estava à
janela e todos olhavam para ele, dizendo: Oh Senhor! Como vos quiseram matar à
traição, bento seja Deus que vos guardou desse traidor. Vinde-vos, dai ao demo esses
Paços, não sejais lá mais. E em dizendo isto muitos choravam pelo prazer de o ver
vivo. […]

12. COMO O BISPO DE LISBOA E OUTROS FORAM MORTOS E


LANÇADOS DA TORRE DA SÉ ABAIXO.
 

Sendo toda a cidade ocupada neste alvoroço, e tendo vindo com o Mestre até junto da
Sé, alguns lembraram-se que ao irem por ali com Álvoro Pais bradaram aos de cima
que repicassem o sinos, e que, repicando em São Martinho e nas outras igrejas, na Sé
não quiseram repicar, e souberam que o Bispo era lá em cima e que mandara cerrar as
portas sobre si. E porque era castelhano disseram logo que era da parte da Rainha e do
Conde, e que fora sabedor da traição e morte que quiseram dar ao Mestre, e que por
isso não repicaram, assacando contra ele estas e muitas outras suspeitas que não
minguava quem as afirmasse. E ficou logo ali grande parte do povo, aceso com brava
sanha, para ser à pressa entrada a Sé e filharem logo vingança do Bispo.

O Bispo era natural de Zamora e havia por nome dom Martinho, […] E estando ele a
comer naquele dia, e junto com ele o Prior de Guimarães, que havia um ano e mais
que o não via, ouviram uma grande volta no Paço da Rainha que era ali perto, e
carpinhas (carpidos, lamentos) de mulheres, com grandes vozes de gentes pelas ruas
em redor, bradando todos que matavam o Mestre. […] O homem bom não sabia que
tumulto era aquele, e além disso, porque o tocar dos sinos em tal igreja era azo de
grande alvoroço na cidade, duvidou muito de o fazer.

Eles, quando viram que não haviam repicado na Sé, que o Bispo estava daquela guisa
na torre com as portas da igreja fortemente fechadas, e que as não podiam tão
asinha (depressa) quebrar, agarraram em escadas e entraram por uma fresta, e foram
depois as portas muito à pressa abertas. Entraram então quantos quiseram, porém
muito poucos em relação aos que estavam cá fora, e a comum voz de todos era que
fossem lá cima ver quem estava na torre e porque é que não repicara como nas outras
igrejas, e que se fosse o Bispo o deitassem ao fundo.

Silvestre Estevens, homem honrado, Procurador da Cidade, e o Alcaide pequeno dela,


e outros, subiram por uma estreita escada que anda à volta, pela qual não se ia mais
que um atrás do outro nem ninguém podia entrar na torre enquanto de cima a
quisessem defender. O Bispo, vendo como era castelhano e de nação a eles contrária,
receava muito de tal união, o que todo sisudo deve de recear, e não lhes dava lugar a
que entrassem.

Mas vendo-se sem culpa e, ademais, sendo tal pessoa e eclesiástica, e tendo-lhe dado
primeiro seguro os que subiam, assim como aos que com ele estavam, puderam entrar
em cima. E perguntando-lhe porque não mandara dar aos sinos, visto que aquelas
gentes bradavam que repicassem, ele se escusou com suas mansas e boas razões, de
jeito que todos foram contentes. A cega sanha, que em tais feitos nenhuma coisa
esguarda, começou tanto a arder nos entendimentos do povo que estava à porta
principal da igreja que começaram a bradar em altas vozes aos de cima o que estavam
fazendo, porque não deitavam o Bispo cá baixo? E diziam: Guardai-vos que não
vamos nós lá, pois se nós lá imos todos vós haveis de vir abaixo com ele.

Aos de cima, que vontade não tinham de lhe fazer mal nem nojo, era-lhes muito grave
de o fazer, à uma por ser bispo, e mais a mais seu Prelado, depois pelo seguro que lhe
haviam dado, e não sabiam assim que fizessem.

A sanha trigava (acelerava) os corações de todos, e com grande zanga começaram a


bradar, olhando todos para cima e dizendo: Que demora é essa que vós lá fazeis que
não deitais esse traidor abaixo? E como? Já vos tornastes castelhanos como ele? E
ademais peitou-vos para que o não deitasses e sois já todos num acordo? Então
começaram todos de jurar que se não o deitavam, e iam lá cima, que todos haviam de
vir abaixo com ele. E porquanto todo o temor é justo quando um homem pode estar à
morte ou bem perto disso, tiveram disto tão grande receio que logo o Bispo foi morto
a golpes e lançado à pressa cá baixo, onde lhe foram dados outros muitos, como se
com isso ganhassem perdão, que sua carne já pouco sentia.

Ali o desnudaram de toda a vestidura, dando-lhe pedradas com muitos e feios doestos
até que disso se enfadaram os homens e os cachopos, e foi roubado de quanto havia.
Semelhantemente foi lançado ao fundo aquele Prior de Guimarães, seu convidado,
porque um Escudeiro que lhe queria mal, subindo acima com os do Concelho, viu
tempo azado para o matar, e buscando-o pela torre, achou-o escondido e matou-o, e
não se tendo ninguém importado com a morte dele porque estava com o Bispo, nem
havendo quem dali o levasse, deitaram-no da torre ao fundo. […]

E logo nesse dia algumas pessoas refeces lançaram ao Bispo, onde jazia nu, um
baraço nas pernas, e havendo chamado muitos cachopos para que o arrastassem, ia um
rústico bradando adiante: justiça que manda fazer nosso Senhor o Papa neste traidor
cismático castelhano, porque não tinha com a santa Igreja. E assim o arrastaram pela
cidade, com as vergonhosas partes descobertas, e o levaram ao Rossio onde o
começaram a comer os cães, que nenhum o ousava soterrar. E sendo já deles muito
comido, soterraram-no ao outro dia ali no Rossio, e os outros dois foram depois
soterrados, para tirarem o fedor diante de suas vistas. E posto que a algumas pessoas
tais coisas parecessem mal e desonestamente feitas, nenhum era ousado de dizer o
contrário.

115. POR QUE GUISA ESTAVA A CIDADE CORREGIDA PARA SE


DEFENDER QUANDO ELREI DE CASTELA PÔS CERCO SOBRE ELA.
 […]

Onde sabei que quando o Mestre e os da cidade souberam da vinda delRei de Castela,
e esperaram o seu grande e poderoso cerco, logo foi ordenado de recolherem para a
cidade os mais mantimentos que haver pudessem, assim de pão e carnes como de
quaisquer outras coisas. E iam-se muitos às lezírias em barcas e batéis depois que
Santarém esteve por Castela, e dali traziam muitos gados mortos que salgavam em
tinas e outras coisas de que fizeram grande açalmamento. E acolheram-se à cidade
muitos lavradores com as mulheres e filhos e coisas que tinham, e outras pessoas da
comarca do arredor, aquelas a que prouve de o fazer, e alguns deles passaram o Tejo
com os seus gados e bestas, e o que puderam levar, e foram-se para Setúbal e para
Palmela, ao passo que outros ficaram na cidade e não quiseram dali partir, e tais aí
houve que guardaram todo o seu e ficaram nas vilas que por Castela tomaram voz.

Os muros todos da cidade não haviam míngua de bom repairamento (reforço), e nas
setenta e sete torres que ela tem em redor de si foram feitos fortes caramanchões de
madeira, os quais estavam bem fornecidos de escudos e lanças e dardos, e bestas de
torno e doutras maneiras com grande abundância de muitos virotões.

Havia ademais nestas torres muitas lanças de armas e bacinetes e outras armaduras, e
reluziam tantas em cada uma das torres que ela bem mostrava que por si só era
abastante para se defender. Em muitas delas estavam trons bem acompanhados de
pedras, e bandeiras de são Jorge e das armas do reino e da cidade e doutros alguns
senhores e capitães que as punham nas torres que lhes eram encomendadas.

E decidiu o Mestre com as gentes da cidade que a guarda dos muros fosse repartida
pelos fidalgos e cidadãos honrados, aos quais deram certas quadrilhas (troços das
muralhas), e besteiros e homens de armas em ajuda a cada um para guardar bem a sua.
Em cada quadrilha havia um sino para repicar quando tal coisa vissem, e quando cada
um ouvia o sino da sua quadrilha, logo todos rijamente corriam para ela, porquanto às
vezes os que tinham carrego das torres vinham espaçar pela cidade e deixavam-nas
encomendadas a homens de que muito fiavam, e outras vezes não ficavam nelas senão
as atalaias, mas quando davam à campana logo os muros eram cheios, e com muita
gente ficando de fora.

E não somente aos que eram de serviço em cada lugar para defensão mas também às
outras gentes da cidade, ouvindo repicar na Sé e nas outras torres, avivavam-se neles
os corações, e, dando os mesteirais folgança aos seus ofícios, logo todos com armas
corriam rijamente para onde diziam que os castelhanos davam mostras de vir. Ali
veríeis os muros cheios de gentes, com muitas trombetas e brados e apupos,
esgrimindo espadas e lanças e armas semelhantes, mostrando foiteza contra seus
inimigos. […]

Não deixavam os da cidade, por serem assim cercados, de fazer a barbacã ao redor do
muro da parte do arraial, desde a porta de Santa Catarina até à torre de Álvoro Pais,
que não estava ainda concluída, o que seriam uns dois tiros de besta; e as moças, sem
nenhum medo, apanhando pedra pelas herdades, cantavam em altas vozes, dizendo:
«Esta é Lisboa prezada,/ mirá-la e deixá-la./ Se quiseres carneiro,/ qual deram ao
Andeiro,/ se quiseres cabrito,/ qual deram ao Bispo», e outras razões semelhantes.
[…]

As outras coisas que pertenciam ao regimento da cidade todas eram postas em boa e
igual ordenança; aí não havia nenhum que com outro levantasse arruído, ou o
empecesse com arbitrários excessos, mas todos usavam de amigável concórdia,
acompanhada de comum proveito.

Oh que formosa coisa era de ver! Um tão alto e poderoso senhor como é elRei de
Castela, com tanta multidão de gentes quer por mar, quer por terra, postas em tão
grande e boa ordenança, ter cercada tão nobre cidade. E ela assim guarnecida contra
ele de gentes e de armas com tais avisamentos para sua guarda e defensão. Tanto que,
diziam os que o viram, tão formoso cerco de cidade não havia em memória de homens
que fosse visto de há mui longos anos até esse tempo.

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