Você está na página 1de 20

Autor: Nathan Salgado Lana - Graduando em História (UFRRJ)

O roubo da história em perspectiva: notas de Montesquieu e o Barão de


Holbach sobre a despótica Turquia.

RESUMO

O objetivo deste artigo é apresentar três perspectivas históricas acerca de


elementos e conceitos vistos tais quais fundadores da civilização, do Capitalismo e da
Democracia, operados na filosofia da história de O espírito das leis, de Montesquieu, e
no verbete Representantes, do Barão de Holbach; conjugados à perspectiva da História
Global de Jack Goody e seu livro O roubo da história, a problemática se deu na
tentativa de estipular convergências e distanciamentos em diferentes tradições letradas,
através de uma dinâmica menos dicotômica e mais aproximativa. Em função disso,
buscou-se inverter tal relação entre dois objetos e tempos, num estudo
sócio-historiográfico capaz de colidir e fazer ressurgir alguns pressupostos antigos e no
que eles são capazes de agregar aos novos, na medida de suas adversidades, limitações
teórico-metodológicas e, principalmente, ideológicas. Tendo como chave interpretativa
para questionamentos, formulações e reformulações — argumentativas e conceituais —,
o capítulo “Sociedades e déspotas asiáticos: na Turquia ou noutro lugar?” guiará todo o
texto aqui construído e servirá como o contraponto na constante revisão
sócio-historiográfica dos esquemas civilizacionais movidos por Holbach, seu verbete e
os três primeiros livros da maior obra de Montesquieu. Assim, tal disposição permitirá
identificar uma nova perspectiva para o conhecimento, de forma a entender o chão
comum que toda análise cultural, social e política divide, ou seja, que toda revisão é
inevitavelmente acompanhada de retrocessos ou mesmo estagnação. Quando o assunto é
o europeu civilizado, ou o turco oriental, há tanto semelhanças quanto diferenças nos
muitos esquemas apresentados.

Palavras-chave: Goody; sócio-historiográfio; representação; despótico.


I.

O que hoje, definitivamente, pode ser visto como um lugar comum na história
cultural e na genealogia reconstruída de culturas europeias e não europeias, isto é, que
algo foi roubado e precisa ser dignificado em seu papel esmaecido, talvez pudesse
tornar o presente artigo numa investigação repetitiva, cuja operação meramente
reproduziria bibliografias e traria à luz sínteses argumentativas de outros estudiosos. No
levantamento bibliográfico para a construção de um tema, a problemática também se
deu na exigência de fazer convergir três grandes figuras imbuídas de mentalidades
diferentes — mas que tocam todos, sintomaticamente, na questão da representação e da
civilização, ao estipularem quem as possui e porque as possui; o antropólogo Jack
Goody, na sua obra O roubo da história, discorda veementemente dessas arbitrárias
atribuições, no que ele rastreia até Montesquieu e outros estudiosos iluministas (mas
não só). Para ele, algumas regiões são tipificadas, marcadas e vistas como ignorantes e
bárbaras pelo simples fato, mas não único, de estarem separadas no espaço (GOODY,
2015, p. 117). Nesse sentido, a despótica Turquia surge como o epitome de histórias
evolucionistas, reivindicadas como una.

As abordagens dessa tradição dividem uma necessária exemplificação histórica


evocada para dar apoio ao que se escreve. Mais do que isso, para dar conta de todas as
formas de organização da vida, assim, a República e a Monarquia abrem espaço ao seu
negativo complementar: o déspota, soberano no Estado despótico, onde os escravos e as
propriedades se sujeitam a vontade e o capricho de um só (cf. MONTESQUIEU, 2000,
p. 19). Contudo, estabelecer isso apenas revela fracas relações tensionadas por uma tese
mais atual. Quão justo seria questionar Montesquieu em seu Espírito das leis ou o Barão
de Holbach no seu verbete da Enciclopédia, tendo como base análises sociológicas,
históricas e antropológicas de Jack Goody e O roubo da história?

De forma a melhor responder essa questão, eis um exemplo: um biógrafo de


Maquiavel certamente teria o clássico O Príncipe em grande estima para construir sua
singular biografia, o que não exclui o empréstimo de muitas outras já feitas para lhe
auxiliar na empreitada, muito menos uma atitude unicamente negativa ou positiva à
natureza da figura biografada, fadada inexoravelmente ao seu tempo.1 Delas,
convenções serão identificadas, postas à prova e analisadas, para, no fim, o erudito
escrever a sua própria convenção do que o ator histórico significa para o autor (vê-se
esse saber compartilhado em BURKE, 1997; nas convenções biográficas analisadas por
ele). Uma conclusão de forma alguma isolada, e Said (2007) bem provou isso com a
enorme gama de orientalistas que, em geral, agiam sob uma matriz comum de
representação do que é o oriental. Nesse jogo relacional, um choque de ideias acontece e
biografias já bem estabelecidas são questionadas. Ora, em que lugar de sua obra é
possível identificar a célebre frase “os fins justificam os meios”? Uma versão de O
Príncipe deixa bem claro na sinopse a inexistência dessas palavras, nesses exatos
termos, no Espelho de Príncipe (2019). Como Holbach e Montesquieu poderão
questionar e testar, no intermédio desse artigo, convenções notórias trazidas e também
questionadas por Jack Goody, é complexo por motivos variados. As fontes são
limitadas, tendo em vista as diferenças de publicação, de informações disponíveis e de
culturas vividas e herdadas. Que conclusão poderá se chegar, a não ser que todos os três
não deram conta do que se propuseram a fazer e legaram para a posteridade visões
fechadas e esquemáticas, as quais favoreceram um amanhecer civilizacional europeu
sem fim. Porém, Goody também têm seus vieses e reveses. Goody também é uma
convenção, assim como as biografias de Maquiavel, e este fato o torna digno de fonte: é
o que convencionou-se a chamar de exercício socio-historiográfico, entretanto,
inversamente estabelecido. Aqui, o antropólogo inglês que lutou na Segunda Guerra é
quem tem a autoridade (MONTELEONE, 2022). E é ele quem trará questões; logo, o
que ele pode acrescentar, potencializar e verificar numa bibliografia pós-Idade Média.
Quando Goody escreveu sobre o tema citado, ele não só pôs em evidência e ao
escrutínio obras clássicas, como também visitou e revisitou as mais recentes, também
clássicas — Norbert Elias, Weber, Marx e Braudel —, num trabalho fenomenal, quase
que arquitetônico. Suas referências são várias e positivamente diversas, trazem uma
enormidade de informações e conclusões tão revolucionárias quanto pífias (para alguns,
pode-se dizer insuficientes). Ele está imerso no seu lugar cultural e submergiu em
muitos outros; ele não é único, embora uma análise desavisada e ávida possa seguir
nesse sentido.

1
Aqui a referência se dá em razão dos sentimentos ambíguos que se possam brotar ao ler o Espelho de
Príncipe de Maquiavel e seus dilemas principescos — que tocam, atualmente, de forma íntima e polêmica
no imaginário popular, tendo em vista o que se pensa hoje sobre tirania e liberdade.
Alguns recortes e observações são necessários. Em primeiro lugar, para fins
metodológicos e práticos, conforme as divisões e terminologias de todos os materiais
abordados, o capítulo “Sociedades e déspotas asiáticos: na Turquia ou noutro lugar?”,
de Jack Goody, norteará a análise de fonte aqui pretendida, articulada ao verbete
Representantes do Barão de Holbach e aos três primeiros livros de O espírito das leis.2
Para não correr o risco de uma dissertação demasiado ampla, estão justificadas as
escolhas. Seja como for, estes dois últimos, de forma sintomática, buscam uma forma de
dar legitimidade e força política ao que é mais próximo, ou seja, a Monarquia moderada
e a República, em desfavor do despótico. Goody nada contra essa corrente, e realiza em
alguma medida o mesmo, só que inversamente.

Neste artigo historiográfico, a posição tomada é de que a teoria política de


Montesquieu destoa do valor histórico e de fonte que os outros dois indivíduos-objeto
representam. O princípio, a natureza e as diversas leis de um governo traçados em O
espírito das leis terão uma relação e, consequentemente, valores diversos à crítica
histórica e sociológica de Goody. Enquanto um traça esquemas ideais, o outro pensa
estar abrindo eles e materializando de fato as dinâmicas Ocidente-Oriente. O Barão de
Holbach, por seu turno, contribuía aos anais do conhecimento o lugar de cada um na
participação política, e, portanto, possui um valor teórico próximo de Montesquieu;
oposto ao de Goody, a princípio; neste verbete, ele ensaia a representação ideal, calcada
numa filosofia da história “roubada”. Se o objetivo não é desprezar tais singularidades
no processo histórico de visões duais, herdadas e entendidas em momentos distintos de
fazer e pensar a história (da Europa e do Oriente, do civilizado e do incivilizado, do
livre e do escravo), fica o desafio de como elaborar tal empreitada. Os recortes já feitos
facilitam este artigo e, apesar de limitar a proposta, a concepção do que poeticamente
pode-se chamar de duas diferentes “escolas”, possibilitam certos cuidados nos caminhos
para se observar e testar visões do presente século; por si só já mais imbuídas de
informações, tecnologias de pesquisa e conclusões mais abertas.

Na relação invertida estipulada, a tese do artigo se constrói numa trocas de status


e papéis, em que deve se pensar e relativizar a concepção que se tem do significado de
“acrescentar” historicamente. E há de se notar que somar nem sempre precisa ser
positivo, num sentido processual-evolutivo, em que abordar a fonte é desqualificá-la,
contestá-la e fazer algum tipo de justiça à condição inexorável estabelecida ao homem
pelo tempo. Por esse viés, Holbach é afetado pelo mito fundador ao qual monta, e
2
O trabalho, apesar de centrado, levará em conta outras partes das obras, especialmente a advertência do
autor, o prefácio e a introdução do Espírito das leis.
Montesquieu ao separar tipos ideais distantes da realidade; até mesmo Jack Goody
quando aponta e esquece seu lugar e papel na cultura. E a melhor maneira talvez de
seguir de forma oposta seria na flexibilização da relação fonte-bibliografia, logo, tornar
as temporalidades passadas a acrescentar — nos termos supracitados — no mais
recente. E não seria essa a condição da história?

II.

“SOCIEDADES E DÉSPOTAS ASIÁTICOS: NA TURQUIA


OU NOUTRO LUGAR?” Uma nova visão sob antigos pressupostos.

Essencialmente, a discussão produzida por Jack Goody de uma Turquia vista


como extremamente ameaçadora para a Europa no final do medievo, dada a
proximidade e importância, implica, também, numa extensa demonstração de
referências que mais aproximam essas duas culturas do que as separa. Revisões são
feitas por ele quanto ao caráter escravo do camponês subordinado ao sultão, do caráter
estático do comércio, do desenvolvimento e da ausência de “liberdade”.

A partir de uma chave anacrônica, Goody faz uma referência crítica do Ocidente
como democrático, diametralmente oposto ao objeto que ele tenta fazer justiça, isso
porque sua tese baseia-se na ideia de uma espécie de história construída e dividida —
aqui, semelhanças podem ser identificadas com Said — por pares europeus para exaltar
uma Europa fundada na sua singularidade, onde teria tido uma Idade Média e a
liberdade característica dos senhores feudais, ambos vistos como as sementes principais
e únicas do surgimento do Capitalismo e da Democracia. Já a sociedade turca além de
estática, é constituída por escravos do sultão, sem falar da distinção feita entre cristãos e
muçulmanos. Esta divisão é vista como natural, quase que intransponível, e espelha um
dos aspectos notados por Said sobre orientalistas sempre se referirem de forma
categórica ao outro, ele é oriental, é muçulmano, é impostor. O próprio Goody introduz
como estratégia argumentativa a demarcação cristã feita aos não europeus
semelhantemente: “marcados pela crueldade e pelo barbarismo: eram muçulmanos”
(GOODY, 2015, p. 117). Porém, acrescenta-se: mais forte e evidente soaria “são
muçulmanos”.

Vale citar em linhas gerais uma discussão ensaiada por Goody num outro
capítulo, não apenas pelo gancho crítico estimulado, mas de maneira a esclarecer a
flexibilização adotada pelo artigo em relação ao antropólogo e seu livro.

Se o ritmo da transição da Antiguidade para o Feudalismo pode ser questionado,


os eventos não podem. Pelo menos no Ocidente, um dramático colapso ocorreu. Assim,
o traço crítico do Ocidente não foi o progressivo desenvolvimento da cultura do período
romano, mas o declínio desastroso das culturas urbanas com o colapso do Império.
(GOODY, 2015, p. 84).

Falando sobre o feudalismo, ele questiona se realmente seria, como alguns


eruditos pensaram, uma transição para o capitalismo. Em alguns pontos, a crítica
construída para rebater análises limitantes acaba por levantar limites que lhe são
próprios. Correndo o risco de soar por demais generalizante, um discente no primeiro
período de História veria com outros olhos o que Goody chamou de “declínio no
Ocidente, continuidade no Oriente”. Na verdade, todo o arcabouço crítico de História
Medieval se dá na problematização desses dois termos e a constante escolha feita por
medievalistas ou não, em seguir um declínio ou uma continuidade. De fato, Goody se
questiona até que ponto esses termos refletem realidade, mas o fato é que a escolha foi
feita. E não faria sentido num livro que denúncia um roubo ocidental. Há, claramente,
para um público não letrado (pela Academia) e até para os que são versados, só que de
outras áreas, um risco de estar abrindo os horizontes — exceto que outros estão sendo
efetivamente fechados.

É primordial a justiça que este faz quando revela a ebulição científica e cultural
presente no Império Otomano e na China, porém, nem mesmo ele deixa de cair na
armadilha de apagar demasiadamente uma região. Aliás, um dos seus argumentos
centrais é a constante troca presente na Eurásia, crítica para o fomento do
desenvolvimento em múltiplas regiões e a difusão de ideias e invenções, como a
pólvora proveniente da China (apud. Ágoston; GOODY, 2015, p. 122). Cria-se um
esquema de dois lados em que a balança passa a pesar para o mais vilipendiado ao
decorrer dos séculos, com o tempo, facilmente naturalizado (Montesquieu e Holbach
demonstram bem tal atitude). Há nessa configuração avanços e retrocessos, retrocessos
para um bloco político hoje que ainda dita em maior ou menor medida os rumos do
“mundo civilizado” e avanços para uma área geográfica que quiçá é vista politicamente,
pois não é democrática e permite a insistência de dogmas repressivos e atrasados
(declínio só pode levar à Idade das Trevas). Não poderia dizer o mesmo da bibliografia
utilizada, com passos adiante e passos para trás?

A consequência disso é excluir a materialidade que o próprio Goody traz com


seus referenciais nada ocidentais. Não está sendo cobrado do autor mais um espaço no
banco de réus, pois veja, se Montesquieu esquematiza o Governo Moderado, o Absoluto
e o Despótico, a questão não se resume a demonstrar as falhas de Goody na Idade
Média europeia e o Oriente imediatamente contemporâneo como uma forma de
compensação. Estão claras as análises parciais e binárias de cada um, e o ponto
nevrálgico está no fato de que é possível fazer valer uma história desse conclave,
analisando-se esses movimentos de formas menos lineares. Se todos possuem limites
em alguma medida, arbitrariedades e bagagens ideológicas próprias, e talvez tal
afirmativa possa parecer clichê ou óbvia, não deixa de ser valiosa para um exercício
analítico-comparativo entre os vários dogmatismos dos objetos conjugados. Convém
pensar o quão fácil seria libertar alguns pensadores das correntes e sombras produzidas
na caverna, processo ele próprio um dogma. Tal barreira, unida às outras, é tão produto
do homem quanto as diferenças de todo tipo. E se estas são elásticas e transmissíveis,
enquanto uma unidade de ação, os limites desses três gêneros sócio-historiográficos
privilegiados também o são.

Visto acima, sua tese se pauta, na verdade, num colapso europeu e na dominação
asiática, numa troca de protagonismo entre sistemas, preponderância essa que nunca
deixou de dar frutos, o que ele demonstra longamente. É curioso notar o fato de que
Goody, Montesquieu e Holbach parecem não abrir mão de marcadores ideológicos em
relação a si e ao outro. Para ser mais exato, o feudalismo, por um lado, permitiria a
proliferação de processos desenvolvimentistas, estimulantes de certa dose de liberdade;
por outro, é problemático porque disputa com um Oriente Médio atrasado, e incapaz de
fornecer as condições necessárias para o crescimento do capitalismo (GOODY, 2015, p.
83-116). Em Holbach, esse postulado é bem claro. Goody rebate e questiona essa
teleologia. É preciso deixar alguns para trás para dar lugar a outros na frente. É um jogo
de contra-pesos, em que as intenções argumentativas por mais críticas que possam ser
não resistem, a menos que algo seja posto no sustentáculo correspondente. Montesquieu
encarna essa estratégias como ninguém, pois, embora reconheça a degeneração de todos
os seus tipos de governo, o despótico não pode degenerar, simplesmente porque sua
natureza é, naturalmente, degenerada e está sempre na esfera da tirania (cf.
MONTESQUIEU, 2000, p. 28-29). Aparentemente, a discussão está presa a um
argumento secundário sempre generalizante. Outra questão é mobilizada, a qual
acompanhava esse início do período moderno e suposto “nascimento” do mundo
civilizado: as potências do Atlântico começavam a dar resultados. Esse fator merece
atenção: um dos fortes argumentos do antropólogo inglês é a constante troca
empreendida na Eurásia, com menções à Itália e à estratégica cidade que fora Bizâncio,
além daquelas na sua esfera de influência político-religiosa — neste caso, as novas rotas
atlânticas emplacariam um duro golpe num comércio, na verdade, vibrante. Novamente,
o uso de sistemas, agora relacionados pela passagem de um a outro, como já
demonstrado na condição que norteia a disposição dos atores no palco da civilização.
Alguém, necessariamente, precisa estar à frente enquanto o outro se resigna ao papel
coadjuvante.

Goody, portanto, não vê a Monarquia do Espírito das leis ou do Representantes


tal como ela é, na intenção argumentativa iluminista; ela é absoluta, dogmática quando
o assunto é a moral cristã e atrasada. Ele opera tais argumentos em várias partes do
livro, e elas necessariamente seriam diferentes na realidade concreta da teoria de
Montesquieu e Holbach. Ambos traçam críticas ao rei absolutista, mas claro, ele nunca
esta em pé de igualdade do déspota quando o assunto é degenerar. Então, a visão do
antropólogo está marcada pela demonstração empírica que confronta a convenção
ideológica, e de forma aparente pode significar um avanço quanto à realidade dos fatos,
porém peca nas interpretações de certos aspectos na análise histórica dos autores
referendados e seus respectivos lugares; sem falar em uma visão sistêmica das trocas
marítimas revisadas pela História Global.

“O EXÉRCITO DO SULTÃO” Ou os escravos do sultão?

Com a formação do Estado-nação, uma matéria tornou-se motivo de


preocupação e passou a influir nas questões sociais e políticas que sacodem o mundo
moderno: a constituição de um exército permanente, garantidor da ordem; portanto,
oriental ou não, seria estritamente vantajoso possuir um exército, preferencialmente um
próprio. Maquiavel, apesar de falar de milícias, elabora uma discussão interessante
quanto à questão da segurança de posses e da lógica estamental (MAQUIAVEL, 2019,
p. 61-71), que desemboca numa ordem comum (fulcral aos iluministas). Com
sentimentos mais coesos, de pertencimento e a espera de uma proteção que vem de
cima, mas não como a proteção de um bem e sim de uma nação, Goody identifica essa
prática no Império Otomano, uma lógica utilitária vista esquematicamente como apenas
mais um espaço de escravos sob o chicote do déspota; na Europa em formação, a
dinâmica é mais “livre” e até mitológica, contraposta aos infiéis e bárbaros. Segundo
Goody, porém, os otomanos reuniam um exército preparado, próprio, muito antes das
potências europeias, “os janízaros”, homens cristãos entre quinze e vinte anos
capturados e otomanizados (GOODY, 2015, p. 123-124).

Todo o exposto tem coerência com uma visão denunciada por Goody sobre o
Império Otomano como não receptivo à mudança, aos inventos e aos incrementos
tecnológicos, dificilmente limitados à Europa. Eles seriam escravos, afinal, de cristãos
tornaram-se infiéis e a mão de ferro do sultão. Esta tendência identifica-se como uma
forma de se subordinar à ideologia e não ao sentido prático da questão. A pólvora, feita
na China, foi bem utilizada e as armas logo foram adotadas pelos turcos (GOODY,
2015, p. 123). A insistência de certos historiadores em insistir numa dependência da
Turquia aos avanços de terceiros (europeus) e ao número de estrangeiros na força de
trabalho procuram se desviar de alguns fatos intragáveis. Visa desqualificar
aprendizados mútuos e verdadeiras trocas por toda a Eurásia. Como estaria o “mundo
europeu civilizado” sem a pólvora descoberta pelos chineses? A perspectiva precisa
mudar, e nela as ideias de inferioridade e superioridade, unicamente fortuitas no mito
evolucionista e fundador da Europa. Se os janízaros são escravos, a leitura é fácil e o
correspondente civilizatório ganha maior forma e cada vez mais autoridade, senso de
que está no lado certo. Mas se não são, o que se segue é incompreensível, desmontam
alguns sistemas, incomoda com algumas perguntas: são capazes de se atualizar? Quem
está sob a autoridade turca não é escrava? Eles têm alguma margem de negociação e
representação?

“CAMPONESES COMO ESCRAVOS?” A representação e seus


limites.

No guarda-chuva político da Enciclopédia, a discussão é um pouco mais rígida.


Paul Heinrich Dietrich, o Barão de Holbach, define a representação como um
mecanismo do “governo moderado”, formado a partir de cidadãos escolhidos para falar
por outros, estipular seus interesses, rejeitar a opressão (lê-se a tirania) e, finalmente,
compor conjuntamente a administração das gentes (DIDEROT; D'ALAMBERT, 2006,
p. 231-232). Como já dito, conforme Montesquieu, não há degeneração possível para o
Estado despótico, porque não há moderação, e se houvesse, não se chamaria
“despótico”; por definição, não há representação.

Tal é a forma de governo na Ásia, cujos habitantes, submetidos há muitos


séculos a uma escravidão hereditária não imaginaram meios para equilibrar um
poder enorme que os emagrecer sem cessar. Não foi isto que aconteceu na
Europa, cujos habitantes, mais robustos, mais laboriosos, mais belicosos que os
asiáticos, sentiram desde sempre a utilidade e a necessidade de que a nação fosse
representada [...] (DIDEROT; D’ALAMBERT, 2006, p. 231; grifos não estão no
original).
Assim expôs o barão, o que leva a questionar em que medida a nobreza europeia,
num regime monárquico, se assemelha aos nobres turcos e ao déspota, e o quanto ela
realmente representa a nação.3 E a resposta logo é dada, sendo os europeus um povo a
mais, qualidade que remonta às migrações germânicas, origem dos governos modernos
(DIDEROT; D'ALAMBERT, 2006, p. 233). Pouco a pouco, estes bárbaros teriam se
esclarecido pelas Luzes do Evangelho e viram a necessidade de serem representados
(DIDEROT; D'ALAMBERT, 2006, p. 234-235). Daí merece comentários a nítida
tradição de uma fundação da Europa, com a união do que Le Goff e Hilário Franco
Júnior chamaram de “germanismo, cristianismo e romanismo” (SILVA, 2003, p. 88 é
90), só que visto de maneira um tanto problemática, linear e evolutiva (eurocêntrica),
em que só poderia desembocar no capitalismo, na ciência ocidental e sua democracia.
Nesse mesmo artigo em que se discute brevemente essa junção, está o debate a respeito
de transição, continuidade e queda do Império Romano e a ascensão do feudalismo,
tendo como chave a Antiguidade Tardia.

Não há no esquema de Holbach saída nem margem de performance possível a


boa parte do mundo chamada de oriental. Se repete constantemente no verbete de
Holbach acusações ao déspota, porém em momento algum é dado nome a quem se
acusa. O problema exatamente não está nessa falta de materialidade do objeto de estudo,
e sim no fato de que a dicotomia estabelecida entre o soberano e o povo implica na
vontade de libertação deste último. A condição do primeiro depende da injustiça que
sofre o último, no entanto, o sistema se apresenta quase que imbatível, inescapável.
Mais adiante, se explicará o porque, mas saiba que essa atitude analítica-comparativa
tem um objetivo emancipador cujo objetivo é se manter como um horizonte de

3
Ele se refere a nação como povo, ao qual teve espaço aberto na representação pela nobreza e pelo clero.
libertação, em que acusa, dicotomiza, diminui e simplifica o outro, para sempre estar ali
como a promessa da liberdade.

De volta aos sub-representados e a fonte em si, algumas questões são postas por
Goody referentes à situação dos turcos, se poderiam ser comprados e vendidos feito
escravos, ou se tinham direitos de parentesco (GOODY,2015, p. 125). “Escravo” pode
ser uma armadilha conceitual nessa análise iniciada, uma vez que muitos dos ideólogos4
aqui contemplados não resumem a condição escravizada do oriental a simples
materialidade. O próprio Holbach fala de representação enquanto instância política,
apesar desta estar condicionada à posse terrena. Ou seja, a posse é física e ideológica,
ser escravo não é apenas estar alheio às práticas comerciais, de agricultura ou de
“trabalho livre”, é também não poder ser representado. Nesse esquema, demonstrou-se
já ser impossível. Para Goody, a posse da terra pelo Estado (e o arrendamento dela aos
camponeses) consistia num mecanismo de proteção contra a divisão, invasão ou a
exploração desmedida, além da unidade fiscal básica que a propriedade representava.
Logo, os camponeses eram dependentes e livres ao mesmo tempo, como em muitos dos
espaços europeus — o Estado usufruir desses serviços por razões bélicas e para
sustentar a própria desigualdade dificilmente estaria em desacordo da situação de
qualquer camponês pobre na França, por exemplo. Goody traz um referencial teórico
que transcende essa limitação pautada na escravidão, ele não descarta a possibilidade do
camponês de transferir terras, nega a ignorância ao comércio, e diz que havia quem
armazenasse nessas terras transferidas e doadas trigo para exportação, inclusive, para a
Europa (GOODY, 2015, p. 126-127). Nesse cenário, é questionável qualquer posição
retórica (descolada da realidade) de que comércio e mercado não envolviam o Império
Otomano. A própria Istambul representava importante entreposto comercial, e sua
envergadura demográfica não sustentava um povo escravizado que somente produz o
que come, sem qualquer oportunidade para escoar um excedente. Obviamente, não
significa tomar camponeses como exageradamente livres e, de forma generalizada,
comerciantes. Não o eram, tampouco os europeus.

Resumidamente, definir um Império num único quadro sociológico (e histórico),


despótico e escravo, limita fatalmente a chamada representação, já limitada nos termos
do Barão. E esta limitação é coerente, pelo menos no objetivo argumentativo de
Holbach, porque ele mesmo o complementa ao falar que o déspota representa a si
mesmo, seus magistrados só executam, e a nação pouco se interessa caso venha a ter
4
Os autores da bibliografia destrinchada serão chamados de ideólogos pelo caráter genérico e desmedido
que imprimem a uma variedade de povos a condição escrava.
uma mudança de autoridade ou não — em Montesquieu, ela teme se pronunciar
(MONTESQUIEU, 2000, p. 38; em DIDEROT; D’ALAMBERT, 2006, p. 238).5 Se a
posse da terra na Turquia é relativamente flexível na complexidade que apresenta
enquanto pertencente ao Estado e manejada com certa “livre-iniciativa” pelo camponês,
eles não são escravos, nem materiais nem ideológicos. Portanto, a representação,
especificamente turca e, simultaneamente, semelhante aos europeus, é plenamente
possível, principalmente quando se envolvem o comércio e o mercado nas relações de
troca. É necessário ter em mente que disputas, consequentemente, envolvem múltiplas
representações e tomar de forma homogênea as instituições turcas (Estado e Igreja, a
presença de guildas, mercados e coletores de impostos) e a relação delas com os demais
setores sociais desvirtua uma realidade vista, de forma surpreendente para aqueles que
limitam suas visões, não tão vertical assim.

Mas limites podem ser fortuitos, em especial quando sua fonte, mais bem
equipada teórica e metodologicamente, também os praticam. A régua que Goody
utilizou para a Idade Média é um exemplo limítrofe e análogo à denúncia feita por
Holbach acerca de países que se arrogam de praticar a liberdade, entretanto, neles os
encarregados de representar os povos costumam frequentemente trair seus interesses e
abandonar os constituintes à ambição dos que pretendem saqueá-los (DIDEROT;
D'ALAMBERT, 2006, p. 243). Tal hipocrisia e dissimulação não poderia ser, de forma
alguma, dos Estados moderados que figuram na história processual-evolucionista
empreitada pelo Barão, porém descrevem muito bem uma atitude demasiadamente
confiante e fundamentada no mito fundador europeu (a tese de Goody). Aqui, se vê uma
pequena brecha, uma saída, um “quase”, referentes ao puxão de gravidade projetado
pelo esquema representativo de Holbach. Paradoxalmente, transcende e suporta limites,
pois reconhece contradições na realidade representativa, porém as ignora no seu
esquema, o que Goody reproduz quando rivaliza Ásia e Europa medieval. É uma
contradição implícita, um operar que vem sendo chamado de “necessário” no esquema,
e um excelente acréscimo a atitude comparativa e crítica de Goody.

SOBRE “COMÉRCIO, A INDÚSTRIA DA SEDA E O


COMÉRCIO DE ESPECIARIAS” Opostos, despóticos e estáticos.

5
No mesmo parágrafo, Holbach fala de modo contraditório que o povo cai na inércia ou se manifesta em
revoltas. Este pouco cuidado é o que alimenta a sua visão ideológica de boa parte do mundo. Essa
generalização sustenta a condição deles de “ideólogos”.
Introduzindo a dinâmica do comércio da seda, Goody já sintetiza um argumento
que desenvolve melhor em outro capítulo, ao tratar de Braudel e suas análises sobre
civilização e capitalismo. No conglomerado mediterrânico, o Império Islâmico era parte
intrínseca desse mundo e compartilhava com a Europa um intenso capitalismo de
mercado (GOODY,2015, p. 129). As superações europeias, com seus avanços
industriais e científicos (tributários do Oriente), só se deram posteriormente e se não foi
possível para a Ásia atingir tal pico, não no século XVIII, pelo menos, não significa que
não tenha compartilhado de um status comercial e politico muito semelhante da Europa.
Ignorar esse processo, nunca evolutivo, é anacrônico e busca no passado a confirmação
do presente. Como tudo isso conecta-se a grande obra de Montesquieu, é necessário
retornar ao argumento do caráter pragmático no desenvolvimento bélico turco. Ele pode
funcionar num sentido de necessidade frente ao inimigo e a ameaça que representa.
Assim que europeus aparecerem com armas de fogo, rapidamente o exército do sultão
passa a adotar a mesma tática. Contudo, o estritamente necessário explica parte do
processo tecnológico, não o todo. Na verdade, engessar o espírito humano no
meramente prático reproduz a visão estática de mundo imposta pelo eurocentrismo;
incapazes de inventar e produzir, se reduzem a reprodução. Não é muito diferente
daqueles que acusam o Oriente de utilizar largamente de “empréstimos tecnológicos” e,
por isso, sem ousadia ou criatividade na sua história. Jack Goody escorrega timidamente
nessa direção. Ele critica essa visão por todo o livro, as identifica e as reformula, mas,
nesse capítulo especificamente, comete o mesmo.

O necessário não é estranho às descrições dos Estados despóticos por


Montesquieu e Holbach; sem uma nobreza hereditária, não haviam forças necessárias
para frear o poder do tirano (MONTESQUIEU, 2000, p. 26; DIDEROT;
D'ALAMBERT, 2006, p. 237), sem menções às guildas, às autoridades religiosas, aos
mercados, aos soldados ou magistrados. E o povo, ou estava reduzido ao medo, ou
simplesmente não se importava. Parte do corpo social e político era necessário, e é
necessário não existir parte desse mesmo corpo, neste caso, no Oriente. Fazendo jus ao
título, para Montesquieu, as leis são relações necessárias que derivam da natureza das
coisas (MONTESQUIEU, 2000, p. 11), e se elas derivam da tirania, estão fatalmente
sujeitas ao déspota e seus caprichos; faz delas o que quiser, são tudo ou nada, pelo
menos na retórica dos ideólogos estudados.
Ao abordar a natureza dos governos, Montesquieu se utiliza de termos
repetidamente vagos, que por si só dizem tudo dado a carga ideológica de toda uma
tradição. Para representar, é preciso escolha. É preciso ter nobreza, um depósito de leis,
uma religião e não um dogmatismo para se venerar — todos esses aspectos se invalidam
porque ele diz especificamente que a Turquia não os comporta, com pouco
aprofundamento, e mesmo que o não fizesse, uma natureza degenerada jamais
permitiria tal cenário. Dito isto, a questão não é sobre como Montesquieu divide esses
povos e suas estruturas de governo, e, ainda mais significativo, como não dividiu; seria
irreal propor que são os Estados monárquicos europeus despóticos e a figura do sultão a
mais moderada dos governos (de forma conceitual e até prática, dada as diferenças
estruturais). As divisões são esquemas, convenções e escolhas que se complementam e
dão significado um ao outro. Mova ou retire uma dessas estruturas de seu lugar e o que
restar será algo sem significado, vazio. Se o apoio conceitual do outro é extremamente
necessário, é porque a teoria está descolada da realidade e os limites estão por demais
opressores. Quando fatos são aos montes arrolados para pôr à prova alguns
pressupostos, dois lados antitéticos de um tabuleiro não se resumem a desaparecer, mas
tornam a aproximar o arbitrário e diluir algumas definições. Assim, operar limites
torna-se algo possível e não um desmonte sem sentido. Goody realiza tal tarefa
magistralmente ao diluir islamismo e cristianismo sem impor dicotomias que supõem
conservadorismo tecnológico e caráter incivilizado de um lado, esclarecimento e
civilização de outro. O cristão também tem sua história de conservadorismo.

Nesta parte do capítulo, Goody desmonta as dualidades conceituais com uma


extensa e complexa relação comercial que envolvia grande parte da Eurásia. O
sultanato e os reinos cristãos não estavam desligados dessa dinâmica comercial, e tendo
estabelecido já uma relativa independência da agricultura, do comércio e de outros
setores sociais da autoridade estatal (GOODY, 2015, p. 129-135), algumas relações
podem ser feitas e certos princípios revisados.

No Estado despótico, seu princípio é o temor; no monárquico, é a honra; no


republicano, a virtude (MONTESQUIEU, 2000, p. 31). O princípio é o motor do
governo, é o que o move e o que o sustenta. Todos abaixo do déspota são escravos e por
isso iguais, obedecem sem demora as ordens e os caprichos de seu soberano, apenas a
sua vontade é a lei e o temor não pode cessar. Na República, é a virtude que não pode
cessar, haja vista que quem faz a lei também está submetida a ela. De forma similar, na
Monarquia a honra, e com ela a nobreza, está ali para fomentar moderação.
Naturalmente, este estrato social irá requerer preeminências, distinções,
reconhecimentos, característicos da ambição, vantajosa para o regime do monarca e
nociva para o governo popular. Cabe afirmar, intrínseca ao despotismo do sultão.

Interessa notar alguns encaminhamentos que o esquema de Montesquieu projeta


de forma latente nessa leitura. Singularmente, o Estado despótico não possui
moderação, seu princípio é condição da escravidão (ele não diz isso, mas está implícito)
e em nada possibilita o sufrágio. O monarca, contrariamente, está acima da lei e por não
estar sujeita a elas, não necessita de virtude; a nobreza ansiosa por honrarias
complementa a pintura, os aristocratas freiam a população de baixo e a mínima ou
máxima virtude (neste último caso, a referência se faz ao Estado popular) que possuem
os modera. O déspota e aqueles sob ele nada tem. É, em essência, uma definição que
deu conta de encaixotar toda uma cultura geográfica e historicamente mais complexa. O
panorama comercial expresso por Goody respalda a presença da liberdade nos domínios
do sultão. Não obstante, a vigência de um processo cultural dinâmico de criação e
desenvolvimento. Se há liberdade, conhecimento e trocas, há similitudes, e se as
diferenças são estreitas, aqueles que governam o fazem — com suas especificidades —
por procedimentos e costumes semelhantes, equivocadamente opostos no Espírito das
leis. A burguesia por muito tempo foi o símbolo ocidental da liberdade, do capitalismo e
da fundação de uma tradição democrática, as bases dos ideólogos europeus e a
singularidade anacrônica de suas histórias.

“UMA SOCIEDADE ESTÁTICA?” Ou que deveria ser?

Uma das advertências de Montesquieu, logo antes do prefácio da edição aqui


utilizada, alerta para o fato de que negar como motor uma qualidade ou virtude de um
governo não significa necessariamente que ela não esteja presente nele
(MONTESQUIEU, 2000, p. 3). E no livro terceiro, capítulo XI, ele ainda estabelece os
princípios como a conduta que deveria ser adotada, e não que esta estivesse sempre em
voga (MONTESQUIEU, 2000, p. 40). Constantemente, ao estabelecer os mecanismos
de moderação, o autor faz o contraponto correspondente, especificamente quando tece
observações sobre a virtude e os perigos de se perdê-la. Particularmente, é um
argumento funcional para os Estados europeus, os mais próximos a ele e representativos
de dois dos seus modelos. É também uma fortuita agregação à crítica de Goody sobre o
caráter inflexível atribuído ao islamismo. E orientalistas tal qual Bernard Lewis utilizam
deste fato para emplacar uma secularização do conhecimento “propriamente cristã”.
Ironicamente, instituições como a do Santo Ofício com certeza desmitificam o nível de
esclarecimento europeu defendido e o papel moderado da cristianização. Na visão do
século XVIII de Montesquieu, reis que sustentaram verdadeiras devassas deveriam fazer
valer a lei, e os nobres, o contraponto frente a arbitrariedade. Porém, a crítica ao
absolutismo não se restringe ao livro de Goody, mas ele parece ser o único a trazer
materialmente evidência que flexibiliza os dois lados da pintura. Montesquieu e
Holbach falam em exceções às suas regras, entretanto, fadadas à abstração. A prática
deles é libertadora e reconhece as falácias dos tipos ideias, mas ela começa errada já na
teoria. No mundo oriental, repleto de escravos, pode haver representação, virtude ou
liberdade. Ora, ao estipular exceções eles nem sequer as conjugam junto do “déspota”
ou “turco” como hipóteses. Eles não são exemplos.

Num governo tirânico e europeu, temor e honra, estão, cada um na sua medida,
presentes. E as leis, como no regime do déspota, não são nada quando deveriam ser
tudo. A tese de Goody veria como proveitosa tal relativização. No entanto, ela não
acompanha o conceito de despotismo. O antropólogo argumenta que tal palavra deve ser
abandonada, pois o abandono apenas revela um enclausuramento tão inviolável que, por
mais que as contradições eruditas sejam desfeitas e os fatos ampliados, o “despótico”
sempre será “despótico” (cf. GOODY, 2015, p. 142).. Está de acordo não só com a
proposição temática e metodológica do artigo, como dos esquemas apresentados.

“SEMELHANÇAS CULTURAIS ENTRE ORIENTE E


OCIDENTE” Aproximações e distanciamentos.

Para concluir o capítulo, Goody aborda o que ele define como um dos principais
alvos da crítica pós-iluminista, a China. É um espaço geográfico, social, cultural e
histórico que foge do delimitado anteriormente, mas está em conformidade com os
paralelos entre o Oriente e o Ocidente traçados.

O antropólogo inglês Jack Goody — em total consonância com sua formação —


propõe um escopo mais modesto e por isso mais revelador. Um deles, o
desenvolvimento de uma haute cuisine6 na China, na qual o refinamento contava
demasiadamente na corte e nos círculos elitistas, inclusive de comerciantes e da
burguesia. De maneira análoga, tem-se a cultura das flores e o cultivo delas para
elementos estéticos, rituais e outros propósitos, como presentes e oferendas (GOODY,
2015, p. 140). Ainda mais significativo, têm-se as atividades artísticas, atrativas a uma
plateia burguesa e mercantil. Os romances aparecem na China no século XVI e, bem
antes, no Japão com as Histórias de Genji (século XI). Em outro capítulo, Norbert Elias
e seu livro O processo civilizatório são intensamente revirados quando Goody discute
sobre civilização, principalmente o motivo pelo qual parte da Europa atingiu esse status
e culturas orientais não (GOODY, 2015, p. 177-205). O modo de sentar-se à mesa,
utilizar talheres, gestos e movimentos relacionados às sanções sociais e à vergonha,
exemplos da tese de Elias, não poderiam ser menos banais que os de Goody. No geral, a
banalização, é claro, significa apenas uma escolha de prioridades de pesquisa pelos
eruditos, que preferem a escrita, os grandes inventos, as grandes histórias, os grandes
homens, ao cultivo de flores — que revelam mais aproximações que distanciamentos.

A intenção de Goody é denominar esses vários Estados de outra maneira que não
a dicotomia largamente discutida. O que ele chama de “Estado tributário” — o
crescimento euroasiático — define sinteticamente “o desenvolvimento de civilizações
urbanas paralelas, a crescente troca de bens e ideias no tempo e o aparecimento de um
capitalismo mercantil euroasiático, com mercados, atividade financeira e manufaturas”
(GOODY, 2015, p. 142). Há concordância na descrição ligada a esse novo olhar. Cada
cultura e cada cidade opera em algum nível com desenvolvimentos próprios, e seria um
erro negar isso, mas um erro ainda maior é entendê-los como isolados dessa complexa
movimentação de informação, bens e gentes num mundo extremamente diferente mas
vivo.

Agora, é tempo de aproximar as bibliografias e a fonte, bem como apontar seus


distanciamentos inevitáveis. Montesquieu é a melhor opção como ponto de partida para
desenhar diferenças, e o motivo está na natureza de sua obra.7 A virtude, para
Montesquieu, é mais do que um estado de moderação e reconhecimento mútuo, que
permeia o Estado popular ou aristocrático; é, pois, um estado de coisas que poderiam,
em teoria (segundo Goody, na prática!), coexistir no governo do déspota junto do

6
A tradução para o português é “culinária gourmet”, o que, à época, seria a dieta da alta burguesia e
nobreza.
7
De longe, ele é o mais idealista de todos. E, depois de Goody, o que melhor traçou exceções às suas
regras; Holbach o faz timidamente.
despotismo de fato. Afinal, o princípio de Montesquieu é o dever, diferentemente
daquilo que viu-se como necessário, não significa ser ele algo intrínseco à natureza do
governo ou mesmo que outras qualidades ou infortúnios não estejam presentes. Goody
traz um exército próprio turco, uma prática de manutenção das leis locais e muitas
outras características comuns à Europa (de agricultura, comércio e cultura), plenamente
presentes num governo, em tese, escravizador — na realidade, relativamente livre. O
Barão de Holbach, assim como seu contemporâneo supracitado, vê como escrava a
condição daqueles sob a tirania do Império Otomano. Porém, o papel dessa gente é vista
com certa diversidade: o barão, no verbete Representantes, afirma a inércia dos súditos
do sultão, alienados da situação que se encontram, e se este cai ou está sob ameaça, para
eles pouco importa; Montesquieu os concebe como paralisados pelo medo, aterrorizados
pelo déspota.

Essas ligações são mais complexas, e é esta a máxima de Goody. Por um lado,
se há um comércio vibrante, uma constante evolução tecnológica e vários extratos
sociais dentro do Império Turco, é porque o domínio não é absoluto, então a população
tem participação (a hierarquia pode ser vertical, mas não exclui negociações). Por outro,
se os que deveriam ser representados não o são, pouco se importam, ou estão
completamente alienados, presos num esquema sem fim, a representação é nula e o
sultão eterno. Outra dicotomia. Portanto, a fonte, distante no tempo e na teoria (de uma
tradição bem mais diversa), opera como uma torre de xadrez, a qual revisita
temporalidades ao avançar a seu bel prazer, em linha reta para trás, para frente, ou para
os lados; este artigo, feito uma rainha, desliza em todas as direções possíveis no trato
historiográfico e das limitações e potencialidades ideológicas, identificando
similaridades e contradições comuns e subjacentes à camada dura da teoria, a qual
Goody confronta, contesta, desmitifica, repete, e o artigo conjuga. Como uma panela de
pressão, o esquema ele precisa aliviar sua própria disposição, ele precisa de uma
“válvula de escape”: de um lado, o Oriente é um mar de escravos; do outro, a Europa
está em queda e o Oriente vibrante; no fim, as histórias estão sendo simultaneamente
roubadas.

III.
Viu-se até aqui que até mesmo um antropólogo do presente século também se
beneficia dos usos de sistemas explicativos e esquemas antitéticos. É plenamente
possível a não-representação? Nem no esquema tipológico e nem no representativo de
Montesquieu e Holbach, respectivamente, a ausência de representação, da liberdade
relativa e da negociação marginalizada são possíveis. Os resultados de suas construções
sociais e historiográficas na verdade pressupõem um jogo de paradoxos, no que a
escravidão é a autoridade do déspota, mas o medo ou a ignorância do povo não são a
sua natureza, e sim ou princípio teórico, ou a traição daqueles que deveriam representar.
Sempre haverá nesses discursos um apelo pelo “dever” com o uso de recursos
linguísticos responsáveis por intercalar opções (os “ou”), mas, no fim, são cuidados sem
sentido, sem materialidade.

Em geral, há uma concordância, seja pela inércia ou pelo medo, acerca da


estrutura e dinâmica da Turquia, quase ou nenhuma. No entanto, Goody desmitifica esse
enquadramento que ganhou ares biológicos a partir do século XIX, ao postular uma
realidade viva de burgueses, guildas, “indústrias” e mercados. Em suma, práticas sociais
que não poderiam comportar uma política temerária, estática, atrasada, conservacionista
e inerte aos mandos. O que até aqui foi tensionado procurou demonstrar um jogo
relacional sócio-historiográfico entre temporalidades e, por conseguinte, mentalidades
dessemelhantes (daí o social e o historiográfico). Ao tornar fonte um documento do
século XXI e utilizar como apoio bibliográfico dois escritos do século XVIII, o objetivo
nada mais era que trazer contribuições passadas presentes. Não só porque reúnem
questões ainda importantes, mas pelo fato também de tentar outra perspectiva que não a
de um inquisidor. Dessa forma, o artigo foi palco para um quebra-cabeça, representado
nas convergências feitas, que formam um acréscimo teórico-metodológico para a fonte.
Portanto, se houve alguma desconfiança de um operar que unicamente buscava
confirmações, o quebra-cabeça prontamente desqualifica, pois ele testa, combina e
recombina algumas peças, reconhece falhas, limitações e contribuições. Além disso, as
diferenças letradas elas próprias formam outro quebra-cabeça, do qual o artigo teve
sempre em conservação e grande estima.

Depreende-se, a partir disso, um incessante reconhecimento de avanços e


retrocessos, aproximações e distanciamentos, limites e vantagens dos próprios limites.
Neles e apesar deles, dois tributários do iluminismo foram plenamente capazes de
conjugar conhecimento com um antropólogo inglês formado no século XX. Cada um,
condicionado à sua tradição, tiveram a oportunidade de dar novas perspectivas ao
monstro incivilizado, infiel e imediatamente próximo: a despótica Turquia. Sem que a
chamada para o roubo em ação ou perpetrado se desse em termos polarizados e
dicotômicos, característicos dos esquemas representativos os quais buscou-se não
quebrar, mas olhar de outra maneira, por dentro, na mecânica da coisa que prende e
oprime no processo argumentativo da história.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. A Invenção da Biografia e o Individualismo Renascentista. Estudos


Históricos, v. 10, n. 19, 1997. Tradução José Augusto Drummond.
HOLBACH, Barão de. Representantes. IN: DIDEROT; D’ALAMBERT (org.). Verbetes
políticos da Enciclopédia. São Paulo: Unesp, 2006.
MONTESQUIEU. O Espírito das leis. Tradução Cristina Murachco. 2. Ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução Georgia Vicente. São Paulo: Pé da Letra,
2019.
MONTELEONE, Joana. A incrível vida e os muitos escritos de Jack Goody. Brasil de
Fato. 2020. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/2020/07/24/a-incrivel-vida-e-os-muitos-escritos-de-jack-goody
. Acesso em 15 de janeiro de 2022 às 13:20.
GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se apropriaram das ideias e
invenções do Oriente. Tradução Luiz Sérgio Duarte da Silva. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015.
SILVA, Paulo Duarte. O debate historiográfico sobre a passagem da antiguidade à Idade
Média: [...]. Revista Signum, v. 14, n. 1, p. 73-91, 2013.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução
Rosaura Eichenberg. 1. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Você também pode gostar