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Medeiros, Mário
Lógicas das competências: Perspectivas para o Currículo em Ação
Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, vol. 14, núm. 2, julio-
diciembre, 2016, pp. 1031-1040
Centro de Estudios Avanzados en Niñez y Juventud
Manizales, Colombia
Referencia para citar este artículo: Medeiros, M. (2016). Lógicas das competências: Perspectivas para o Currículo em
Ação. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (2), pp. 1031-1040.
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Este artigo de reflexão é resultado de estudos desenvolvidos entre 10 de Março de 2011 e 10 de Setembro de 2014 no âmbito do projeto
‘Diferença como marca de discriminação: desenvolvimento de competências e currículo numa perspectiva reparadora’. Trata-se de um projeto
do Grupo de Pesquisa ‘Competência: aprendizagens necessárias e currículo UPE/CNPq’, sem financiamento. O projeto visa contribuir para o
desenvolvimento de competências no Ensino Básico e Superior, como prescreve a Legislação Educacional Brasileira. Registrado en el Sispg-
Sistema de informações sobre Pós-Graduação e pesquisa- da Universidade de Pernambuco-UPE en la dirección: http://www.sispg.upe.br/perfil/
docente/projetos. Área de conhecimento: Ciências Sociais. Sub-Área: Educação. Campo de estudos: Currículo.
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É Doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal. É Pós-Doutor em Ciências da Educação pela Universidad
de Málaga, Espanha. É Professor da Universidade de Pernambuco-UPE, Brasil. É lider do Grupo de Pesquisa ‘Competência: aprendizagens
necessárias e currículo UPE/CNPq. Correio eletrônico: tramataia.a@gmail.com
-1. Introdução. -2. Questões Preliminares. -3. A Lógica Condutivista. -4. A Lógica
Funcionalista. -5. A Lógica Cognitiva/Construtivista. -6. A Lógica Sócio-Crítica Interacional.
-7. Na impossibilidade de concluir... -Referências.
visando produzir uma formação integrada entre Define o desempenho efetivo como a forma
saber-fazer e saber-refletir. Ademais, é bom de alcançar resultados específicos com ações
lembrar que parte significativa das críticas que específicas, em um contexto dado de políticas,
se faz a essa abordagem centra-se no fato de que procedimentos e condições de organização.
ser ou não ser tido por competente depende de Partindo do suposto teórico de que o
uma avaliação social (Stroobants, 1998, Gagné conhecimento se alcança mediante a associação
1976) e esta, embora não esteja livre de uma boa de ideias, segundo os princípios de semelhança,
dose de subjetividade, quase sempre comporta contiguidade espaço-temporal e causalidade
uma dimensão objetiva. Lembremos ainda que (Pozo, 1994), essa lógica utiliza a análise
é impossível falar em competências sem referir- ocupacional para focar a atividade das pessoas
se a ações políticas ou situações de trabalho que que fazem bem seu trabalho, que alcançam
implicam necessariamente relações sociais de resultados excepcionais nas condições dadas,
produção que, como tais, são práxis dialógicas fragmentando, através da observação e da
complexas de auto-organização de e entre abstração, essa atividade em tarefas e essas em
sujeitos, como diria Barbosa (1997). passos, buscando, a partir desse procedimento,
Apesar das reservas explicitadas acima, estabelecer o encadeamento mais eficiente em
pensamos ser interessante adotar o esquema termos de custos e resultados.
que aparece em Ramos (2001), que classifica Essa lógica caracteriza como competências
os estudos acerca das competências em três aquelas disposições necessárias para alcançar
matrizes que aqui denominarei de lógicas: a um desempenho superior ou performance e de
Condutivista, a Funcionalista e a Cognitiva/ habilidades mínimas, aquelas que implicam um
Construtivista. Essa classificação guarda uma resultado mediano ou fraco. Tomando por base
estreita correspondência com os pontos de vista estudos desse tipo, a Secretary’s Comission on
elaborados por Gillet (1998), no artigo “Pour Achieving Necessary Skills (Scans) definiu dois
une écologie du concept de compétence”, grandes grupos de habilidades: as fundamentais,
ao qual Ramos (2001) não se refere. Neste minimamente necessárias em todos os
trabalho, vamos seguir muito de perto a ambos. trabalhos; e as competências, que distinguem
o trabalhador com perfil de excelência. Com
3. A Lógica Condutivista isso, deixa perceber que nessa perspectiva a
diferença entre competência e habilidade é
A lógica Condutivista é originária dos uma simples questão de grau. Com base nessas
Estados Unidos e é lá que se manifesta mais habilidades e competências supostamente
fortemente. Entende por competência uma requeridas, delineiam-se programas de
especialização restrita resultante da utilização formação e capacitação profissional.
exaustiva de um saber-fazer que permite o Dado o caráter objetivista e a natureza
aumento da produtividade de cada trabalhador condicionada da aprendizagem, na psicologia
de uma determinada empresa ou ramo de condutista, bem como seu menosprezo pelo
atividade. estudo dos processos mentais superiores para
O artigo de Gillet (1998) não deixa dúvidas a compreensão da conduta humana, autores
sobre a filiação dessa lógica à Psicologia como Gillet (1998) advertem que o caráter
Behaviorista. Ela procede da influência que a enfaticamente intelectual e taxonômico dessa
pedagogia por objetivos exerceu no domínio abordagem faz a mesma tender fortemente
dos estudos da aprendizagem. É baseada para o mecanicismo, podendo “os referentes
fundamentalmente, segundo Gillet (1998), assim identificados perder toda ancoragem em
na psicologia de Gagné (1976) e D’Hainaut situações específicas arriscando-se volatizar
(1980), bem como na pedagogia de Bloom em abstrações nominalistas” (Gillet, 1998,
(1972, 1975). No Brasil, Ramos (2001) insiste p. 26). Penso que esse autor está chamando
na filiação dessa abordagem a esse último autor. atenção para o fato de que há uma distância
O Condutivismo toma o desempenho entre o trabalhador, que elabora e executa os
efetivo do trabalhador como ponto de partida. procedimentos, e o pesquisador, que abstrai esses
conceber uma nova lógica das competências, à reflexão transcendental de Kant, ao espírito
lógica essa que incorpore à lógica Cognitiva/ absoluto de Hegel, à consciência pura e sua
Construtivista as categorias dialéticas da intuição das essenciais de Husserl, à imediação
totalidade e da complexidade, bem como assuma da percepção sensorial do empirismo anglo-
as relações sociais de produção ou trabalho saxão e do sensualismo francês [...] trata-se
social e as contradições delas decorrentes como de compreendê-la enquanto prática social de
centralidade da prática social. Isto equivale a conhecimento, uma tarefa que se vai cumprindo
configurar uma lógica das competências que em diálogo com o mundo e que é afinal fundada
não abra mão dos interesses históricos da classe nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que
trabalhadora e das camadas não dominantes da o compõem e a nós acomodados ou revoltados
sociedade. (Santos, 1989, pp. 11-13).
Para enfrentar esse desafio, fixaremos Presumo, contudo, a existência de dois
como ponto de partida o entendimento de que o blocos de obstáculos ao desenvolvimento
conceito de competência descreve uma porção dessa lógica, em políticas de formação e gestão
do real situado na interseção dos objetos de por competências. O primeiro deles consiste
estudo da Sociologia, Antropologia, Psicologia, na resistência disfarçada ou declarada que
Economia, História e Neurociências. Logo, na um referencial de formação fundado nesses
configuração dessa nova lógica, é indispensável pressupostos e categorias é capaz de provocar.
aceitar contribuições dessas ciências assumidas De fato, empresários e autoridades ligadas aos
sob orientação de uma Filosofia da Práxis. organismos oficiais de formação, parecem viver
Assim, fundaremos nossa reflexão livremente uma contradição da qual não podem fugir. Por
nas categorias da Interacionalidade, à qual um lado, a natureza competitiva da economia
desenvolvemos noutro trabalho (Silva, 2004), internacional exige um trabalhador sujeito de
da Enacção (Varela, 1995 e Medeiros, 2012), uma autonomia ancorada em competências
do Instituinte, do Virtual e da Atualização tal que deem acesso a significados sobre o mundo
como aparecem em Castoriadis (1982) e Lévy físico e social, possibilitando sustentar a
(1996) respectivamente. Essas aplicadas ao análise, a prospecção e a solução de problemas,
âmbito específico das competências. Para associados à capacidade de tomar decisões, à
leitura do entorno, utilizaremos as categorias da adaptabilidade a situações novas, à arte de dar
Complexidade, tal como aparece em Barbosa sentido a um mundo em mutação acelerada.
(1997), além daquelas próprias da Dialética Na verdade, para ser competitiva numa
Geral, como as de Totalidade, Contradição, economia liberalizada, desregulamentada
Historicidade e Práxis, por consubstanciarem e privatizada, em vias de mundialização,
esforços interpretativos não reducionistas. qualquer organização é obrigada a empregar
Propomos, portanto, um referencial não somente uma estratégia de redução dos
que chamaríamos de Lógica Sócio-Crítica custos de produção e de aumento de qualidade e
Interacional, que se consubstancia através de variedade dos produtos e serviços, mas encarar
pressupostos da epistemologia genética dos também os recursos humanos como o recurso
Piagetianos e da epistemologia Marxista, na mais valioso e verdadeiramente estratégico
perspectiva de Vigotsky, bem como na tradição (Estêvão, 2001, p. 186).
da Sociologia Crítica, sem, contudo, dogmatizá- Na prática, isso significa que se tem
las, deixando abertura suficiente para acolher necessidade de um trabalhador e de um
contribuições de outras procedências. Para cidadão mais criativo e produtivo, capaz de
tanto, recorremos agregar à empresa e à sociedade capacidade
[...] a uma dupla hermenêutica: de de transformação, hoje requisito indispensável
suspeição e de recuperação [...]. Compreender para permanência e obtenção de sucesso no
assim a ciência (é não) fundá-la dogmaticamente mercado e na política. Ou seja, para tanto, entre
em qualquer dos princípios absolutos ou outras coisas, o trabalhador e o cidadão devem
a priori que a filosofia da ciência nos tem ter acesso a conhecimentos e informações
fornecido, desde o ens cogitans de Descartes aos quais cada empresário, cada dirigente