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Pistas para não cultivar crápulas1

Eles conhecem todos os métodos de sedução, da mão no ombro até o pontapé em


qualquer lugar, passando pelo sermão com voz contida, olhos nos olhos. Pelo efeito que
isso já teve neles, tente outra coisa (p. 23)

Inclinar-se demais sobre eles é a melhor posição para receber um chute no traseiro. (p.
45)

Sobretudo, não tente saber o que falam de você entre eles. Eles ficam com vontade de
sair andando quando lhe veem chegar? Eis seu trabalho. (p. 55)

Se quiser que eles sejam eles mesmos, e você só pode querer isso, meta-se no meio
deles sem armas e sem couraça, sem castigos nem recompensas. Se for atacado,
pratique, se estritamente necessário, o jiu-jitsu, pois tanto essa arte quanto a maneira de
usá-la são fruto do conhecimento humano. Digo isso em sentido figurado: está fora de
questão eles lhe atacarem. Se isso acontecer, mude de profissão: é que você é baixinho
demais, tem a cara feia ou os pés chatos. (p. 45)

Quando lhe falarem de sua abnegação, espero que fique muito surpreso. Se não ficar,
mude de profissão. (p.42)

Quando tudo funciona, é chegada a hora de começar outra coisa. (p. 38)

Desconfie: aquele que se exibe é o que tem vontade de se fazer ver, e, portanto, de se
esconder. (p. 38)

Se eles bocejam de boca escancarada enquanto lhe escutam contar uma história, tome
isso, se puder, como uma mostra de confiança. (p. 41)

Esteja presente, sobretudo, quando não está ali. (p.37)

Capazes de tudo? É seu esse “tudo”. (p. 37)

Você os faz cantar cantos que glorificam a beleza do mundo. E o que eles buscam, olhos
baixos, é uma bituca de cigarro solitária. (p. 37)

Antes de se indignar, lembre-se daquilo que você mesmo era capaz quando tinha a idade
deles. (p.38)

1
"Semente de crápula: conselhos aos educadores que queiram cultivá-la" é o primeiro livro do educador e
poeta francês Fernand Deligny. E um balizador de seu trabalho, que o situaria como uma das maiores
referências da educação especial – lidando com crianças e jovens psicóticos, delinquentes, “perigosos”,
“marginais” – e da pedagogia em geral. Ao longo dos 134 aforismos, Deligny apresenta suas “sementes”:
jovens de um meio social delinquente, cultivadas pelo educador que deve deixar de lutar contra as ervas
daninhas, pragas sociais atadas ao nosso convívio social, para mergulhar nas dinâmicas espaciais desses
jovens que criam outros sentidos de lugar e convivência no território. Publicado em 1945, o livro foi
rapidamente bem sucedido na França por sua linguagem poética e simples e franqueza do autor. Deligny
passou os primeiros vinte anos de atuação profissional entre escolas especiais, instituições médico-
pedagógicas e hospitais psiquiátricos

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Se quiser conhecê-los depressa, faça-os brincar. Se quiser ensiná-los a viver, deixe os
livros de lado. Faça-os brincar. Se quiser que peguem gosto pelo trabalho, não os
amarre à carteira, faça-os brincar. Se quiser fazer seu trabalho, faça-os brincar, jogar,
brincar. (p.27)

Nas maiores confusões, você é a calma sorridente. Nas grandes calmarias, você é o
vento. (p. 29)

O maior mal que você pode lhes causar é prometer e não cumprir. Além disso, você
pagará caro e isso será justiça. (p.29)

Já sabe que a vida não é para ele e, com as mãos nos joelhos, vê passarem as horas. (p.
29)

Nunca se esqueça de olhar se aquele que se nega a andar não tem um prego no sapato.
(p. 29)

Aquele que chorar sem parar: faça-o lavar a sala. Se você tiver pena, mude de profissão.
(p. 42)

Epileptoide, deprimido, hipomaníaco...É isso que o médico olha. Seu refrão, por sua
vez, deve ser: “Vamos brincar de quê”? (p. 52)

Que a sua simpatia por aqueles que, dentre eles, se pareçam com você, não lhe impeça
de compreender os outros (p.61)

Talvez valesse mais ter, perto das crianças infelizes, velhos presidiários adornados com
o título de educadores em vez de certas “almas” de boa vontade. Pois se uns podem
afastar o vício, os outros podem afastar a vida honesta. (p.67)

Uma nação que tolera as favelas, os esgotos a céu aberto, as salas de aula superlotadas e
que ousa castigar os jovens delinquentes me faz pensar naquela velha bêbada que
vomita sobre seus filhos toda a semana e que esbofeteou o menorzinho, sem querer,
num domingo, porque ele tinha babado em seu avental (p.68)

Se por pouco você está desenganado da profissão, não suba no nosso barco, porque
nosso combustível é o fracasso cotidiano, nossas velas se inflam de zombarias e
trabalhamos duro para trazer ao porto uns arenques muito pequenos, quando tínhamos
partido para pescar a baleia. (p. 71)

ERA uma vez uma sardinhazinha que não sabia nadar. Colocaram-na dentro de uma lata,
bem apertada, entre outras duas. Com muito cuidado, adicionou-se um pouco de azeite.
Como estava feliz a sardinhazinha! Ela envelheceu três anos. Abriram a lata. Mas ninguém
nunca mais tentou fazê-la nadar. Pois se tratava de uma sardinhazinha e não de uma criança
delinquente.(P. 67)

Jangada

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Usei2 a imagem da jangada para evocar o que está em jogo nessa tentativa, nem que seja para dar
a ver que ela deve evitar ser sobrecarregada, sob pena de afundar ou de virar, caso a jangada
esteja mal carregada, a carga mal distribuída [...] Uma jangada, sabem como é feita: há troncos
de madeira ligados entre si de maneira bastante frouxa, de modo que quando se abatem as
montanhas de água, a água passa através dos troncos afastados. Dito de outro modo: não retemos
as questões. Nossa liberdade relativa vem dessa estrutura rudimentar, e os que a conceberam
assim – quero dizer, a jangada – fizeram o melhor que puderam, mesmo que não estivessem em
condições de construir uma embarcação. Quando as questões se abatem, não cerramos fileiras –
não juntamos os troncos – para constituir uma plataforma concertada. Justo o contrário. Só
mantemos do projeto aquilo que nos liga. Vocês veem a importância primordial dos liames e dos
modos de amarração, e da distância mesma que os troncos podem ter entre eles. É preciso que o
liame seja suficientemente frouxo e que ele não se solte.

2
Fernand Deligny foi escritor, cineasta, pedagogo, sobretudo um obstinado e solitário
experimentador de modos de existência coletiva, que ele chamava de “tentativas”, ou
“jangadas”. Dedicou parte de sua vida à construção de um lugar de vida para crianças
autistas, na França. Sua obra, constituída de textos, fotos, mapas e desenhos, foi reunida
por Sandra Alvarez de Toledo em Oeuvres (L ́Arachnéen). In: Cadernos de subjetividade
(2013), pág. 90. Disponível em: https://cadernosdesubjetividade.wordpress.com

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