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Rio de Janeiro
2008
VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ
Banca Examinadora:
Rio de Janeiro
2008
Para Fábio
RESUMO
O objetivo desta tese consiste em discutir o tratamento atual da “questão social” como
“pobreza”. Aponta-se para a emergência do conceito de “pobreza” como um novo
eixo de sua enunciação na América Latina. Procura-se questionar e desconstruir essa
formulação, argumentando que, por mais que seja apresentada em caráter puramente
“técnico”, sua construção pressupõe uma visão específica para o mundo social e se
associa a um projeto político. Para tanto, tomam-se por objeto empírico os relatórios
dos organismos internacionais que tratam da temática da pobreza e suas causas e que
vem se dedicando à formulação de recomendações de políticas para combatê-la:
Banco Mundial, PNUD e OIT. Discutem-se criticamente as prováveis implicações do
tratamento da questão social como “pobreza”, tais como: a naturalização e a
individualização de um problema que é essencialmente social; a construção de um
conceito que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos marcos
neoliberais; e o reforço de um discurso de poder voltado para a legitimação do projeto
neoliberal-globalizante dos organismos internacionais e para o desmonte do mundo
social que foi construído ao longo da “era dourada”.
This thesis aims to debate the current treatment of the “social question” as “poverty”,
pointing to the emergence of the concept of poverty as the new axis of the “social
question” enunciation in Latin America. Our goal is both to question and deconstruct
such formulation by arguing that, although this view is presented in a purely
“technical” manner, its construction not only assumes a specific assessment of the
social world, but is also associated to a political agenda. To achieve this task,
international agencies’ reports concerning poverty from World Bank, UNDP and ILO
have been taken as empirical source. Those agencies have been working on the
poverty issue and its causes and also on the design of public policy prescriptions to
overcome it.. Finally, the expected implications of the treatment of the “social
question” as “poverty” are critically discussed, such as the naturalization and
individualization of a issue that is essentially social; the construction of a concept that
helps to design the social reality from the neoliberal outlook; and the strengthening of
a discourse of power that is employed both to legitimate the neoliberal-globalized
agenda and to dismantle the social world that had been built during the “golden age”.
Expresso aqui meus agradecimentos àqueles que foram muito importantes nesse longo
processo de elaboração da tese.
Sou muitíssimo grata aos professores da EHESS. A Denis Merklen agradeço por sua
orientação, seus comentários críticos e construtivos, suas sugestões de leituras e a
grande atenção que me concedeu no período em que estive em Paris. A Monique de
Saint Martin agradeço a disponibilidade, enorme atenção e presteza em todos os
momentos que precisei. E a Robert Castel, pela leitura atenciosa que fez de meu
trabalho e pelo prazer de ter podido assistir seus seminários ministrados juntamente
com Denis Merklen.
Agradeço com muito carinho à minha tia Inés Menendez, quem me possibilitou um
encontro apaixonante com o idioma francês. Sem sua dedicação e paciência, com
certeza teriam surgido enormes barreiras às minhas leituras e, principalmente, à minha
ida à França. Merci beaucoup, Tinés!!
Aos amigos Laura Pelajo, Pedro Miranda, Esther Dweck, Mauricio Metri, Bruno
Carvalho, Flavio Encarnação, Luanda Antunes e Gabriel Rached, por nossa amizade
permeada de momentos sempre divertidos, interessantes e construtivos. Com certeza,
todos - cada um à sua maneira - foram muito importantes para este trabalho.
Agradeço aos meus amigos “parisienses”, Pedro Velloso, Magali Bueno, Célia
Abicalil e Paula Marcelino, com os quais construí uma bonita relação, que contribuiu
para que meu séjour tenha sido maravilhoso e muito aconchegante.
À minha família – Alicia, Pablo, Inés e Luna – que sempre me deu muita força e que,
com muito carinho, entenderam a importância desta fase em minha vida. À minha
mãe, um obrigado especial, por seu contínuo apoio, incentivo e, é claro, por sua
enorme paciência.
Um agradecimento muito especial ao Fábio, quem mais uma vez - com muito amor,
carinho, companheirismo, grande paciência e compreensão - estimulou enormemente
o meu trabalho e abrandou consideravelmente essa árdua e longa fase pela qual acabo
de passar.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1. Apresentação 11
2. Arranjo Expositivo 13
2. Da marginalidade 85
3. A enunciação contemporânea da questão social 94
3.1. Algumas considerações sobre a “nova questão social” 94
3.2. Os Estados Unidos e o debate sobre a underclass 96
3.3. O debate francês sobre a exclusão social 101
3.4. América Latina: o discurso sobre a “pobreza” 107
1. Apresentação
11
social, mas, sobretudo, a construção de um conceito que ajuda a recortar e interpretar
a realidade e, ainda, incidir sobre ela.
Para Topalov (1994), um dos grandes objetivos das ciências sociais consiste em
procurar fornecer meios de deslegitimação de prescrições fundadas sobre afirmações
“de fato” e, portanto, em questionar as categorias de descrição do mundo que, em
dado momento, se colocam como evidência. Diante disto, a proposta desta tese reside
em desconstruir essa nova forma de enunciação para a questão social - a partir do
conceito de pobreza -, problematizando-a, desnaturalizando-a e associando-a a um
projeto político e a uma visão de mundo específicos.
Pode-se dizer que esta tese situa-se na fronteira entre duas áreas das Ciências Sociais:
a Sociologia e a Ciência Política, já que, por um lado, trabalha-se com conceitos
próprios da primeira, sobretudo o de “questão social” (CASTEL, 2003) e, por outro,
considera-se que : (i) sua enunciação (ou tratamento) devem ser pensados a partir da
política, dado que se tratam de resultados de uma disputa política em torno da
definição de sentido sobre o mundo social; e (ii) as recomendações de políticas para
“resolver” a questão social tem mais a ver com a luta política pela destruição da
ordem social construída ao longo da chamada “era dourada” (HOBSBAWM, 1995)
do que com a questão social propriamente dita.
12
2. Arranjo Expositivo
Embora, numa análise sociológica, seja possível interpretar essa nova questão social
enquanto como produto da própria dinâmica social – tal como sugere Castel (2003) -,
quando se observa como ela vem sendo enunciada e interpretada – sobretudo, no
âmbito das políticas públicas – nota-se que nem sempre o “nome” diz respeito à
“coisa”, o que torna evidente o perfil político do problema a ser discutido.
Assim, para compreender como a questão social vem sendo enunciada e interpretada,
reconhece-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo
contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Deste modo, no segundo capítulo,
analisa-se rapidamente o discurso neoliberal – desde quando se colocava como
“utopia”, cujo alvo inimigo era a intervenção estatal, até o momento em que consegue
chegar ao poder e, paulatinamente, afirmar-se como “ideologia” do capitalismo
globalizado.
13
da individualidade especificamente contemporânea: o trabalhador enquanto
“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002) e como indivíduo teórico
competitivo. Essas novas figuras ajudam a pensar, posteriormente, o modo como a
questão social vem sendo problematizada.
No terceiro capítulo, aquela separação entre o “nome” e a “coisa” fica bem mais clara.
Considera-se como “coisa” o conceito de “questão social” formulado por Castel
(2003) - conceito este que traz consigo a idéia de suas próprias metamorfoses - e
como “nome” tomam-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada – ou
“enunciada” - ao longo do tempo. Desta maneira, aponta-se, mais especificamente,
para um deslocamento interpretativo da questão social no contexto latino-americano.
Se, no contexto do desenvolvimentismo, ela era tratada a partir da idéia de
“marginalidade” – vinculada a interpretações preocupadas com os processos
estruturais que a geravam -, nota-se que, a partir dos anos oitenta, o conceito de
marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a questão
social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a partir da
idéia da “pobreza”. Mostra-se também, como contraponto, como a nova questão
social vem sendo debatida no contexto francês (como “exclusão”) e no norte-
americano (como underclass).
A partir disso, conclui-se que o tratamento da questão social como “pobreza” traz
consigo algumas implicações. De maneira bastante resumida, podem-se ressaltar as
seguintes: (i) esse tratamento resume-se a uma abordagem individualizante e des-
historicizada, enfraquecendo perspectivas sociológicas baseadas em explicações que
enfatizem os caracteres social e político da questão (ii) vai sendo construído um
conceito (“pobreza”) que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos
marcos neoliberais; (iii) reforça-se um discurso de poder cujo objetivo fundamenta-se
14
na busca pela legitimação do projeto neoliberal-globalizante dos organismos
internacionais e, em última instância, pelo desmonte do mundo social que foi
construído ao longo da “era dourada”.
15
Capítulo I – TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS RECENTES E O
SURGIMENTO DA “NOVA QUESTÃO SOCIAL”
Para além de suas diferenças, se tomados em conjunto, nota-se que todos esses
autores estão tratando de um mesmo fenômeno, que veio a ser chamado de
globalização financeira, cujas origens “remontam aos anos 60, ao início do processo
de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e
deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em
Bretton Woods” (FIORI, 2001, p. 97).
16
A esse desmoronamento da ordem monetária internacional estabelecida em Bretton
Woods somou-se o choque do petróleo, em 1973, como mais um fator para a crise,
cujos impactos também foram bastante fortes para o contexto econômico da época;
isto gerou um aumento abrupto dos preços desse recurso energético em escala mundial e
causou forte recessão mundial, combinando baixas taxas de crescimento com altos
índices de inflação. Com a queda da rentabilidade do capital investido na indústria, a
partir dos anos setenta, os capitais industriais passam a buscar novas formas de
valorização: sobretudo, as financeiras.
Para desenvolver esse argumento, Arrighi (1996) utiliza a formulação de Karl Marx
(2002), em O Capital: D-M-D’, em que D significa capital-dinheiro (liquidez,
flexibilidade e liberdade de escolha); M é o capital-mercadoria (ou seja, aquele
investido numa certa combinação de insumos, para obtenção de lucro); e, por fim, D’,
que é o dinheiro obtido no final do empreendimento, representa a ampliação da
liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha e é o resultado da reprodução do
capital. A atividade financeira seria, então, expressa por D-D’, onde D se transforma
diretamente em D’, sem passar pelo setor produtivo.
17
Tem-se, assim, um “dinheiro produtor de dinheiro, a forma mais absurda do capital”.
(HILFERDING apud BRAGA, 1997, p. 197). O capital financeiro portanto
“representa ‘a forma mais alienada, mais fetichizada da relação capitalista’, a forma
D-D’" (MARX apud CHESNAIS, 1996, p. 246). Assim, diante da possibilidade de se
expandir no âmbito financeiro (D-D’), a acumulação de capital se desloca da esfera da
produção para a esfera financeira (rentista).
É evidente que, esse novo movimento do capital, cuja valorização não tem mais a
necessidade de passar pela esfera produtiva, traduziu-se em criação de limitações ao
desenvolvimento em bases produtivas, gerando, é claro, desemprego. Embora as
mazelas da financeirização pudessem ser remediadas ou revertidas através da política,
tudo fica mais difícil num momento em há um reforço da hegemonia do capital
financeiro e de seu discurso liberal-globalizante.
1
O regime de acumulação fordista atingira sua maturidade no pós-1945, embora tenha sido
simbolicamente inaugurado por Henry Ford, em 1914, quando introduziu o sistema de linha de
montagem, em busca da contínua redução do tempo de fabricação dos veículos, tornando o processo
mais simples e eficiente e, os produtos, as ferramentas e as peças, mais padronizados. A grande
18
Antunes (1999) avalia a crise do fordismo como uma “expressão fenomênica” da crise
estrutural do capitalismo cujos traços foram evidenciados nesse período. Nesse
quadro, chama a atenção para: queda da taxa de lucro (em função do aumento dos
salários na “Era Dourada”); incapacidade do fordismo em responder à crescente
retração do consumo; hipertrofia da esfera financeira2 (ibidem, p. 30), além da crise
do petróleo que passa a ser o estopim e o marco simbólico do fim de uma era.
Assim, como resposta ao novo contexto, iniciava-se, desse modo, a passagem para um
novo regime de acumulação. Esse novo “modelo” tem sido caracterizado por
novidade desse modelo de produção se baseava em sua visão de que produção em massa significava
consumo em massa, o qual era possibilitado pelos baixos preços dos produtos, pelos maiores salários
dos trabalhadores e pela existência de uma enorme demanda reprimida. Era nessas inovações que se
percebia o caráter estruturante do fordismo, já que, junto ao Estado interventor e de bem-estar,
conseguiu transformar profundamente a sociedade do pós-guerra. Essa capacidade de transformação
social e cultural do fordismo foi analisada por Gramsci (2001), que ressaltou: “a racionalização
determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de
processo produtivo” (idem, p. 248). Assim, a partir da centralidade da nova forma do processo de
trabalho, ele percebe uma nova forma da vida moderna e compreende que, como ressalta Finelli
(1997), analisando Gramsci, há uma “produção de toda uma organização social, em seu nexo articulado
de plano material, plano relacional-social e plano ideológico-simbólico, a partir da centralidade da
fábrica”.
2
Como foi visto na seção anterior.
3
Ou “informacionalismo” - conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação,
telecomunicações/radiodifusão e optoeletrônica.
4
Como ressalta Cardoso, no prefácio de A sociedade em rede, Castells encontra “no paradigma
tecnológico baseado na informação os princípios organizadores de um novo ‘modo de
desenvolvimento’, que não se substitui ao modo de produção capitalista, mas lhe dá nova face e
contribui de forma decisiva para definir os traços distintivos das sociedades do final do século XX. A
análise se desdobra na identificação de uma nova estrutura social, marcada pela presença e o
funcionamento de um sistema de redes interligadas” (p. II).
19
“acumulação flexível” (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1995), ou por “toyotismo”
(ANTUNES, 1995) – o modelo japonês. Não cabe aqui um estudo pormenorizado
desses novos modelos5, mas simplesmente ressaltar aspectos mais gerais da
reestruturação produtiva, tal como a questão da flexibilização.
Boltanski (1999), por sua vez, ressalta como um dos eixos principais da
transformação das estratégias das empresas a flexibilização, que pode ser dividida em
flexibilização interna e externa. Ele entende a primeira como a transformação
profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência,
autocontrole, desenvolvimento da autonomia) e destaca como flexibilização externa a
transformação do tecido produtivo, que passa a estar assentado numa organização do
trabalho dita “em rede”.
5
Para tanto, ver Antunes (1995) ou Harvey (1992).
20
seres humanos mais rapidamente do que a economia (...) gerava novos empregos para
eles.” (HOBSBAWM, 1995, p. 404)
Assim, ao contrário do que Marx (2002) havia percebido em O Capital - que, com o
desenvolvimento do capitalismo, o trabalho se tornava cada vez mais coletivo -,
Castells (2000) afirma que, no capitalismo contemporâneo, o trabalho tende a ser cada
vez mais individual, o que acaba por desorganizar estruturalmente a classe
trabalhadora.
21
Ademais, outro fator que contribui para a perda de poder de barganha dos
trabalhadores é a flexibilização geográfica da produção ou a “deslocalização do
processo produtivo”. Possibilitada pelas inovações tecnológicas e adequada à lógica
da competição de livre comércio mundial, essa deslocalização da produção se dá em
termos, por um lado, da possibilidade de se fragmentar o processo produtivo,
realizando suas variadas etapas em distintos países – especialmente naqueles em que
as condições lhes sejam mais favoráveis, isto é, baixos salários, mão-de-obra barata,
subsídios, isenções fiscais. Por outro, ocorre através da transferência direta do
processo produtivo para países nos quais os custos de produção – sobretudo, o da mão
de obra – são menores.
Assim, assiste-se hoje, por exemplo, ao deslocamento das plantas produtivas dos
Estados Unidos para o México, da Europa Ocidental para o Leste Europeu, do Japão
para a Índia e China, sempre em busca dos menores custos de produção. Nesse
sentido, por um lado, os trabalhadores dos países do centro do sistema, tendo seu
poder de barganha reduzido, se vêem obrigados a diminuir suas reivindicações e, por
outro, esses países começam a alinhar suas legislações trabalhistas e de proteção
social àquelas do Estado onde lhes forem mais favoráveis - leia-se: onde a proteção
for menor (CHESNAIS, 1996, p. 306).
Paralelamente, nos países periféricos, para fazer frente às exigências da abertura das
fronteiras comerciais, as empresas se vêem numa necessária corrida à reestruturação
produtiva, no sentido de enfrentar a competição globalizada imposta por produtos
produzidos a custos mais baixos.
22
2. O papel do Estado no novo contexto
Pode-se dizer que esse movimento de proteção nacional e social contra os efeitos
nefastos do “moinho satânico” atingiu seu auge no pós-guerra, período (1945-1973)
que ficou conhecido como a “era de ouro” (HOBSBAWM, 1995) e foi marcado6 pela
6
Vale lembrar aqui que a “era dourada” teve significados diferentes nos países centrais e periféricos.
Enquanto nos países centrais essa era representou o auge do Welfare State, na Europa, e do liberalismo
keynesiano – o “embedded liberalism” -, nos Estados Unidos, nos países da periferia (particularmente
na América Latina), esse período foi marcado pelo desenvolvimentismo (WALLERSTEIN, 2000).
23
forte presença estatal tanto na esfera econômica (keynesianismo) quanto no âmbito da
proteção social (welfare state).
Sua contribuição foi mostrar que a cidadania não se resume às dimensões civil e
política, mas contém também a social, que faz com que os “direitos sociais”, tais
como os civis e os políticos sejam fundamentais ao “cidadão”. Assim, Marshall
sugere que um indivíduo só pode ser considerado “cidadão” completo se possuir os
três elementos da cidadania. Deste modo, ao analisar a história da consolidação dos
direitos na Inglaterra, entende o welfare state como o momento final do
desenvolvimento da cidadania.
7
As críticas referem-se, por um lado, à visão evolucionária da cidadania de que Marshall lança mão e,
por outro, à tentativa de generalização a partir da análise da experiência inglesa (TURNER, 1993).
Quanto ao “evolucionismo” de Marshall, não estaria claro porque os direitos civis e políticos devem vir
antes dos direitos sociais e, em última instância, pareceria que Marshall dá pouca importância às lutas
sociais na promoção dos direitos de cidadania. Assim, segundo Turner, a trilogia de Marshall acabaria
sugerindo que a transição rumo à cidadania é um processo pacífico e gradual, menosprezando,
portanto, a importância dos movimentos e lutas sociais. Mas Santos (2001) lembra que, embora haja
polêmica em torno dessa questão – em que medida a cidadania social é uma conquista do movimento
operário (TURNER apud SANTOS) ou uma concessão do Estado capitalista (Barbalet apud SANTOS)
– é evidente que, sem as lutas sociais do movimento operário, aquelas conquistas não teriam sido
alcançadas (ou, ainda, aquelas “concessões” não teriam sido feitas).
24
existentes entre Estado, sociedade e economia e, com isso, gerar efeitos sobre a
desigualdade social.
Esping-Andersen (1990) também trabalha com a idéia de que direitos sociais estão
para além da provisão de serviços sociais. A proteção social deve ser analisada a
partir de sua capacidade de moldar as relações de poder existentes na sociedade. Essa
possibilidade é explicada a partir da capacidade de desmercadorização da proteção
social.
25
O segundo modelo é o corporativista, preponderante na Itália, Alemanha, França e
Áustria.
A idéia de proteção é muito forte nesse modelo, porém não para todos. Apenas
algumas categorias ou grupos estão protegidos. O regime acaba sendo muito
segmentado e estratificado, inclusive do ponto de vista da cidadania, pois ela acaba
não dependendo do fato de a pessoa ter nascido no país, mas apenas de sua posição no
mercado de trabalho e na estrutura social8.
8
O caso do welfare state francês foi exemplarmente discutido por Castel (2003) a partir da noção de
“sociedade salarial”, construída a partir da idéia e da realidade do “trabalho protegido”. (CASTEL,
2003, pp. 415-493).
26
consiste, primeiro, na obrigação explícita do aparato estatal de prover
assistência e apoio (...) como direitos garantidos para os cidadãos. Em
segundo lugar, o welfare state é baseado no reconhecimento do papel
formal dos sindicatos tanto em negociações coletivas quanto na formação
de políticas públicas. Esses componentes estruturais do welfare state são
ambos voltados para limitar e mitigar o conflito de classe, para balancear
a relação de poder assimétrica entre trabalho e capital, e, assim, superar
(...) conflitos e contradições que eram as características mais marcantes do
(...) capitalismo liberal (OFFE, 1982, p. 67, tradução livre).
Assim, como lembra Domingues (2003), ainda que o welfare state não tenha superado
a questão da dominação na sociedade capitalista9, a cidadania social atacou os efeitos
da tensão da sociedade capitalista. O welfare state serviu para remediar os danos da
dominação e para promover uma distribuição que pôde reduzir, em certa medida,
através de direitos sociais universalistas, a desigualdade e o privilégio.
(DOMINGUES, 2003, p. 224)
Sabe-se que o Estado de Bem Estar Social teve seu auge nos trinta anos seguintes à
segunda guerra. Em meados dos anos setenta, ele começa a ser alvo de ataques tanto
pela esquerda quanto pela direita.
Por outro lado, o welfare state passou a ser visto como fonte de falsas concepções
sobre as realidades históricas, que prejudicavam a consciência, a organização e a luta
da classe trabalhadora. Ela criaria a imagem de duas esferas independentes entre si: de
um lado, a esfera da produção, do trabalho, da economia e, de outro, uma esfera mais
abstrata ou superficial – a da cidadania, do Estado, dos direitos – que acabaria por
ocultar as relações de classe. Enfim, a esquerda afirmava que a crise do welfare state
revelava, em última instância, a contradição básica da sociedade capitalista entre as
9
Domingues (2003) argumenta que a dominação foi re-introduzida na modernidade pelos direitos de
propriedade, que são cruciais e instrumentais para o capitalismo e para a sociedade de classes.
27
forças produtivas e a permanência de relações de produção de caráter privado
(FLEURY, 1994).
10
Será discutido no próximo capítulo.
11
Faz-se uma analogia entre economia e política – e, conseqüentemente, entre os empreendedores e os
políticos -, pressupondo que os objetivos dos políticos resumem-se simplesmente a ganhar as eleições,
isto é, a conseguir o maior números de votos.
28
Quanto à segunda “ameaça”, Brittan argumenta que ela deriva basicamente do
conflito existente entre os vários sindicatos que lutam, sobretudo, por aumento de
salários. Para Brittan, o efeito direto da ação dos sindicatos é o aumento do
desemprego, e não o da inflação, que seria um efeito indireto. O autor afirma que se
não houver um aumento da base monetária, a ação dos sindicatos gera desemprego12
e, diante desta situação, o governo é obrigado a aumentar seus gastos – e seu déficit
orçamentário –, ou ainda, aumentar a oferta monetária, para combater o desemprego,
gerando assim inflação. Desta maneira, conclui que a existência de fortes sindicatos
cria um impasse para os governos, que têm de escolher entre altas taxas de
desemprego e altas taxas de inflação, ou seja, alternativas difíceis de serem
sustentadas sem descontentamentos numa democracia.
12
Aqui Brittan pressupõe o modelo neoclássico para o mercado de trabalho. Nessa lógica, um aumento
do salário decorrente da pressão exercida pelos sindicatos gera um aumento no preço do fator de
produção « trabalho » e, consequentemente, uma redução da demanda por trabalhadores. É nesse
sentido que ele entende que a ação dos sindicatos gera desemprego.
29
Pode se perceber que Huntington ataca diretamente o Estado de Bem Estar Social,
tratando-o como um excesso de compromissos assumidos pelo governo para com os
diversos segmentos da sociedade e como o causador da ingovernabilidade. Santos
(1988) argumenta que não surpreende que, dentre suas conclusões, Huntington
“sustente que a operação efetiva de um sistema político democrático usualmente
requer certa medida de apatia e de não envolvimento por parte de alguns indivíduos e
grupos.” (SANTOS, 1988, p. 106)
13
Para garantir a governabilidade, passa a se defender uma despolitização dos problemas sociais, de
modo a reduzir o tamanho do Estado – transferindo ao máximo suas atribuições ao “mercado”.
30
nos Estados Unidos, com Ronald Reagan e, a partir daí, um crescente processo de
difusão do ideário neoliberal pelo mundo.
Em suma, o diagnóstico da “nova direita” para a crise dos anos setenta era o de que
ela seria resultado de um excesso de democracia, de Estado, de regulação da
economia e, ainda, de poder de barganha dos sindicatos e dos movimentos operários,
cujas pressões reivindicativas por salários e por aumento dos gastos sociais sobre o
Estado acabavam corroendo as bases de acumulação capitalista. Para “salvar” a
economia, era preciso livrá-la da política.
14
O processo de desenvolvimento econômico realizado na América Latina, nos anos cinqüenta e
sessenta, foi feito via endividamento externo, e, nas palavras de Castro (1985), referindo-se ao Brasil,
em marcha forçada, ou seja, os governos fizeram a escolha de se endividarem naquele momento para,
depois, resolverem o que fazer com a dívida externa resultante. O Brasil entrou em crise no fim dos
anos setenta, com o segundo choque do petróleo (1979), momento no qual sua economia sofreu
drasticamente: por exemplo, houve um aumento da dívida externa em função do aumento das taxas de
juros internacionais e uma drástica redução da entrada de recursos externos no país (decorrente da
perda de confiança na administração da economia brasileira, sobretudo após a moratória mexicana, em
1982).
15
Este conceito tem sido abundantemente utilizado por economistas (ortodoxos) como uma maneira
pejorativa de atacar o desenvolvimentismo. “Populismo econômico” vem sendo associado ao período
desenvolvimentista e, ao ser analisado através de um olhar dos anos noventa - período em que o tema
31
passam a adotar o receituário neoliberal. Primeiramente, houve a experiência da
ditadura de Pinochet, o governo precursor das práticas neoliberais: forte desregulação,
privatização dos bens públicos, repressão sindical, desemprego massivo,
redistribuição de renda em favor dos ricos, etc. (ANDERSON, 1995, p. 19). E, em
seguida, todos os países da região passam a adotar o receituário liberalizante como
condicionante para a renegociação de suas dívidas16:
em voga era o do “ajuste” -, foi caracterizado da seguinte maneira: “um tipo de afrouxamento fiscal
que se define pela prática política de dizer sim às demandas de todos os setores da sociedade à custa do
setor público” (PEREIRA, 1991).
16
Ver essa discussão mais adiante.
17
São recomendados, por exemplo, o corte de custos e de pessoal, o desmonte da estrutura burocrática
tradicional, etc.
32
melhor, isto é, gerir (ANDREWS e KOUZMIN, 1998 apud BORGES,
2000).
Segundo Clarke e Newman (2004, p. 159), a partir da análise do caso inglês18, isso
acaba despolitizando as questões sociais19 e moldando a política real e as escolhas
políticas de acordo com a lógica de imperativos gerencialistas. Ao não conseguir criar
formas institucionais de articulação satisfatória entre Estado e cidadãos, esse novo
tipo de Estado, mais cedo ou mais tarde, acaba criando suas póprias lacunas e
problemas de legitimação, já que não há como “reconciliar as contradições sociais e
conflitos da Inglaterra contemporânea dentro do cálculo gerencialista.” (idem).
18
Não é, contudo, uma peculiaridade da Inglaterra ; as propostas de reforma de Estado segundo os
pressupostos gerencialistas estão presentes em vários países.
19
Clarke e Newman (2004) questionam : “eficiência de quem? Efetividade para quem?”.
33
papel o Estado, e que resultaram, na maior parte dos casos, na privatização das
políticas sociais e na focalização das ações empreendidas pelo Estado tanto em termos
da população beneficiária quanto no que diz respeito ao leque de bens e serviços
providos.
os sintomas de crise [do welfare state] tornaram-se cada vez mais claros
(...). Contudo, e a despeito de percepções bastante difundidas, longe de se
poder falar em mudanças significativas nos países centrais, o grau de
redução dos welfare states foi modesto. Isso fica claro nas tendências do
gasto social (...), que permaneceu essencialmente estável, embora haja
uma quebra em relação ao passado, significando que a fase de
crescimento, que havia durado décadas, foi interrompida. (ESPING-
ANDERSEN, 1995, p. 84)
34
- poderiam também esclarecer as reformas dos welfare states ou ainda “as diferenças
entre as respostas dadas às novas condições econômicas”.
Vianna sugere que a fragilização sofrida pelos atores a partir dos quais foi construído
o welfare state – fragmentando suas organizações e destituindo de “poder as
instâncias de legitimação e efetivação das macropolíticas concertadas” (ibidem, p.
161) – certamente trouxe conseqüências nefastas para a política social (as reformas),
mas não apontaram, entretanto, “nem para a consumação do desmonte nem para a
destruição das bases de apoio do welfare state” (ibidem, p. 162).
Esping-Andersen (1995) ressalta, por sua vez, que a “maior parte dos países limitou
suas intervenções a ajustes marginais, enquanto alguns – principalmente no interior do
grupo de países anglo-saxões liberais – iniciaram programas mais radicais de
reformas que, a longo prazo, podem ter conseqüências profundas.” (ESPING-
ANDERSEN, op. cit., p. 84)
35
Dessa maneira, embora tenham sido implementadas reformas importantes no Reino
Unido - onde, na Europa, o neoliberalismo foi mais visível -, não foi observado um
desmantelamento do welfare state. Diante desse quadro europeu, Esping-Andersen
(1995) argumenta que as resistências às mudanças já eram bastante esperadas:
36
As reformas de primeira geração foram aquelas incluídas no chamado de “Consenso
de Washington” (WILLIAMSON, 1992), cujo objetivo consistiu na proposição de
conjunto de políticas “necessárias” para que a América Latina conseguisse sair da
crise por que passava (estagnação, inflação, dívida externa) e retomar a trajetória do
crescimento.
37
transformação. Assim, esses países seguiram passo a passo a cartilha do “Consenso”,
sempre levando em conta a idéia de que, para que pudessem renegociar suas dívidas,
era indispensável gerar confiança nos órgãos financeiros internacionais, deixando de
lado, portanto, a prática do chamado “populismo econômico”.
No que diz respeito à reforma administrativa, ela também surge como a necessidade
de tornar “o setor público coerente com o capitalismo contemporâneo, que permita
aos governos corrigir as falhas do mercado sem incorrer em falhas20 maiores”
(PEREIRA, 1996, p. 7). A administração pública deveria deixar de ser burocrática e
se tornar gerencial – uma nova forma de administração que se assemelharia à
administração do setor privado -, voltada para a redução de custos e aumento da
eficiência.
38
afirmam que eles se explicam justamente pelo fato de as políticas do “consenso” não
terem sido aplicadas em sua completude. Ou seja, as reformas trariam sim o
desenvolvimento, o problema é que houve algumas lacunas em sua implementação.
Assim, começou-se a sugerir uma “segunda geração” de reformas, que teriam como
objetivo, por um lado, dar continuidade e aprofundar o que já havia sido feito – ou
seja, completar as “reformas de primeira geração” 23 - e, por outro, iniciar outro ciclo
reformista, a “segunda geração”, que se refere, por um lado, à reestruturação
(“desenvolvimento”) institucional, envolvendo o “fortalecimento” de instituições que
garantam as bases para o crescimento voltado para o mercado (WILLIAMSON, 2004,
p. 288) – ou seja, transformar o Estado de modo que ele se torne funcional ao
mercado (GUIMARÃES, 2002) - e, por outro, à ênfase na importância dos
investimentos em educação, incentivando as discussões sobre o papel do capital
humano e o capital social no processo de desenvolvimento econômico, tal como se
discutirá adiante.
23
Para ilustrar sua incompletude, vale destacar uma afirmação de Williamson (2004): “embora muita
privatização tenha ocorrido, permanecem setores – mais notavelmente o bancário, com a existência
continuada de muitos bancos estatais – em que o processo está bastante incompleto.” Embora haja
problemas, o “remédio (...) não é interromper o processo [de privatizações], mas, antes, assegurar que
ele seja cuidadosamente realizado, e que as empresas recentemente privatizadas estejam expostas à
concorrência ou sujeitas a regulamentações adequadas”. (ibidem, p. 10)
24
Os teóricos do neoinstitucionalismo ressaltam a importância das “instituições ” para o funcionamento
da economia, uma vez que existem imperfeições no mercado, o que exige o estabelecimento de regras
que possibilitem, articulem e organizem as transações indiviuais realizadas no mercado. Por exemplo,
NORTH (1990) e seu slogan que afirma que “as instituições importam”. Trata-se do institucionalismo
de viés neoliberal; há outros e diversos neo-institucionalismos contemporâneos – por exemplo, os de
vertente histórica e sociológica. Conferir: Hall e Taylor (1996).
39
coordenar os agentes econômicos, gerar informações relevantes e reduzir incertezas.
(CARVALHO, 2006, p. 203- 211)
É possível perceber esse novo papel do Estado através da análise das propostas de
reforma do Estado do Banco Mundial – sobretudo, os relatórios de 1997 e 2002. Num
“mundo em transformação” (BANCO MUNDIAL, 1997), o Estado precisa adaptar-
se, no sentido de aumentar sua eficiência: “Reconhece-se cada vez mais que um
Estado efetivo – e não um Estado mínimo – é essencial para o desenvolvimento
econômico e social, mais, porém, como um parceiro e facilitador do que como diretor.
Os Estados devem complementar os mercados, e não substituí-los” (idem, p. 18).
Ser efetivo significa que Estado não deve ser mais o promotor direto do
desenvolvimento, este modelo de Estado já seria anacrônico. Ele deve deixar essa
tarefa para os mercados e resumir a sua atuação, de modo a se tornar um catalisador,
facilitador e parceiro dos mercados em tal empreitada. Tem-se a idéia, portanto, de
que o Estado deve ser complementar aos mercados – não seu substituto -, voltando
sua ação para a implantação e adaptação de instituições para que tenham um melhor
desempenho.
40
no que diz respeito ao campo das políticas sociais, percebe-se também que lhe sobra
papel bastante residual.
Desde então, dá-se início a uma luta pela destruição daquilo que foi construído
enquanto proteção social e pela deslegitimação do processo da universalização de
direitos, seja pelas propostas de enxugamento do Estado em seu papel de garantidor
da proteção social, seja pela transformação do próprio entendimento do que é o social.
41
3. Transformações do mundo do trabalho e o surgimento da
nova questão social
Até a metade dos anos setenta, o trabalho era amplamente considerado fonte de valor
e de riqueza social, dada a sua inquestionável centralidade e importância no processo
produtivo. A partir dos anos oitenta, contudo, frente às profundas transformações, já
discutidas, começam a surgir teses que proclamaram o “fim do trabalho” (RIFKIN,
1995) e o “adeus ao proletariado” (GORZ, 1982) e, ainda, questionamentos
enfatizando a desconstrução e transformação do trabalho como peça-chave da
organização social contemporânea (OFFE, 1989).
O argumento genérico sobre esse fim do trabalho foi (e ainda vem sendo) bastante
questionado por vários autores (ANTUNES, 1995, 1996 e 2003; SCHNAPPER, 1997;
CASTEL, 1998a), que sustentam, a partir de argumentos variados, que, por um lado,
seria um contra-senso a negação da importância do trabalho – tanto para a
organização social capitalista quanto para a própria vida das pessoas - e, por outro,
que a categoria trabalho deve continuar sendo objeto central da investigação
sociológica.
Antunes (1995) argumenta, por exemplo, que é impensável falar em “fim do trabalho”
quando se observa o contexto do mundo periférico, onde se encontram dois terços da
população humana que trabalha. Outro exemplo é Robert Castel que, em variados
trabalhos (CASTEL, 1998a, 2003), defende que, por mais que se fale hoje em “fim do
trabalho”, não se pode perder de vista o seu papel de “grande integrador” (BAREL
apud CASTEL, 2003).
Para Castel (2003), o fato de que o trabalho tenha perdido sua onipresença na
organização social não implica nem que ele tenha deixado de ser importante nem que
deva ser deixado de lado enquanto categoria de análise. A tese da liberação pelo não-
trabalho e da exaltação do tempo livre está muito longe de ser efetivada, já que aquele
que não tem trabalho padece, já que está desvinculado dos laços sociais.
Portanto, a categoria “trabalho” não deve sair do foco da análise sociológica, nem
muito menos deixar de ser um tema fundamental da pauta do dia, uma vez que “o
42
trabalho (...) é mais que o trabalho e, portanto, o não-trabalho é mais que o
desemprego, o que não é dizer pouco” (Ibidem, p. 496). Em suma, para Castel,
De fato, a partir dos anos setenta, como resultado das mudanças estruturais e das
transformações no papel do Estado, o mundo do trabalho entra em crise: assiste-se a
profundas transformações na classe trabalhadora, à precarização das condições de sua
existência, ao desemprego de massa e ao enfraquecimento dos sindicatos. Nesse
processo, o trabalho (em sua forma antiga) vai perdendo tanto sua onipresença
(problema estrutural) - enquanto elemento de integração social (MACHADO DA
SILVA, 2002; CASTEL, 2003) - quanto sua força política.
25
Para exemplificá-la: “grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa, entregando
propaganda de novos apartamentos, lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os
lugares”, dentre outros. (OLIVEIRA, 2003, p. 142)
43
sobre o impacto das mudanças na estrutura do mercado de trabalho e suas
conseqüências sociais (MACHADO DA SILVA e CHINELLI, 1997)26, tem sido
considerado como um conceito sem substância analítica e sem força prática
(MACHADO DA SILVA, 2002b).
Antunes (2003) ressalta, ainda, que “não [se] caminha no sentido da eliminação da
classe trabalhadora, e sim da sua precarização, intensificação e utilização de maneira
ainda mais diversificada” (ibidem, p. 191). É nesse sentido que o autor afirma que a
classe trabalhadora se tornou fragmentada, heterogênea e complexificada, mas, a
despeito dessas profundas transformações ocorridas no mundo do trabalho, não é
possível considerar nenhuma possibilidade de eliminação da “classe-que-vive-do-
trabalho”. Ou seja, ao “invés do adeus ao proletariado, temos [hoje] um amplo leque
diferenciado de grupamentos que compõem a ‘classe-que-vive-do-trabalho’”.
(ANTUNES, 1996, p. 282).
26
Machado da Silva e Chinelli (1997) analisam o tema da informalidade a partir de dois grupos de
interpretação presentes no debate sobre o tema: os que abordam seus efeitos de exclusão social e os que
exaltam a formação de novos empreendedores como resultado benéfico da terceirização.
44
O medo da precarização e do desemprego foi analisado também por Dejours (2000),
mas em outra chave. Segundo Dejours, o medo serviria como fonte de estratégias
defensivas (de ordem psicológica) que têm efeitos sobre a esfera da moral e da
política. O autor mostra como a passividade coletiva e a atenuação da indignação
frente às condições de sofrimento no ambiente de trabalho emergem no novo contexto
como a saída encontrada pelos trabalhadores para manterem seus empregos e, ainda,
para simplesmente não enlouquecerem.
Por fim, não se deve descartar também o efeito simbólico produzido pela queda do
muro de Berlim sobre o movimento sindical. A partir do desmoronamento do Leste
Europeu, começa a se propagar a idéia do "fim do socialismo” e do "fim do
marxismo", no interior do mundo do trabalho, gerando-se, assim, desilusão política no
seio da classe operária. Além disso, ainda como conseqüência do fim do chamado
45
"bloco socialista", os países capitalistas centrais passaram a defender um
afrouxamento dos direitos e das conquistas sociais dos trabalhadores, em função da
inexistência do "perigo socialista"; ter-se-ia, com isso, uma acomodação social-
democrática da esquerda e da classe trabalhadora (ANTUNES, 2003, op. cit.).
Tem-se aqui, portanto, a emergência daquilo que veio se chamar a “nova questão
social” (ROSANVALLON, 1995), ou seja, um conjunto de efeitos sociais negativos
decorrentes da globalização e financeirização da economia, da reestruturação da
produção e, ainda, do enfraquecimento do mundo do trabalho, fatores estes que foram
intensificados - sobretudo, na maioria dos países latino-americanos - pela progressiva
adoção de políticas fortemente marcadas pelo predomínio do neoliberalismo.
27
Frente a esse enfraquecimento das formas tradicionais de ação política, Wacquant (2001) chama
atenção para as formas alternativas de manifestação ("violência vinda de baixo"): "Na ausência de um
mecanismo político apto a formular demandas coletivas em uma linguagem compreensível aos
administradores do Estado, o que resta aos jovens urbanos senão tomar as ruas?" (WACQUANT, 2001,
p. 34).
46
Contudo, paradoxalmente, essa “nova questão social” nem sempre é tratada como
“social”. Entender como a nova questão social vem sendo enunciada é fundamental. O
modo pelo qual as políticas voltadas para o tratamento desse novo problema têm sido
formuladas e justificadas também é motivo de questionamento. Porém, antes de lidar
com o tema do atual tratamento e enunciação da “questão social” propriamente dita, é
fundamental compreender minimamente como o capitalismo tem se justificado.
47
Capítulo II – NEOLIBERALISMO, JUSTIFICAÇÃO DO
CAPITALISMO E AS NOVAS REGRAS DO JOGO
Para entender como o social vem sendo interpretado e enunciado, num momento em
que o capitalismo entra numa etapa nova, é importante discorrer, ainda que
brevemente, sobre a maneira como ele próprio – esse “novo” capitalismo - tem se
justificado. Para tanto, discute-se aqui rapidamente o discurso neoliberal – desde
quando se colocava enquanto “utopia” cujo alvo inimigo era a intervenção estatal até
o momento em que consegue chegar ao poder e, paulatinamente, se afirmar enquanto
“ideologia” para o capitalismo contemporâneo. Além disso, discute-se também, a
partir da interpretação de Boltanski (1999), como esse capitalismo vem sendo
justificado no mundo do trabalho. Por fim, destacam-se os debates e discursos
contemporâneos sobre “flexibilidade” e “empregabilidade”, que vêm se constituindo
como as novas “regras do jogo” para os trabalhadores.
48
interventor. Nesse sentido, tal como sintetizam Laclau e Mouffe (2004), o que o
neoliberalismo “põe em questão é o tipo de articulação que conduziu o liberalismo
democrático a justificar a intervenção do Estado para lutar contra as desigualdades, e
a instalação do Welfare State.” (LACLAU e MOUFFE, 2004, p. 216).
49
a interesses que deveriam estar em segundo plano (o público). O Estado deveria ser
reduzido ao mínimo: por um lado, para garantir a liberdade dos indivíduos,
preocupando-se apenas em impedir que alguns indivíduos se imponham sobre outros;
e, por outro lado, para deixar que as questões econômicas sejam resolvidas através da
mão invisível do mercado.
Para sustentar que a noção de “justiça social” é uma fórmula vazia, Hayek (1977)
argumenta:
Para o autor, avaliar algo como justo ou injusto é algo que apenas pode dizer respeito
às ações humanas; apenas os homens podem ser responsabilizados moralmente por
seus atos. O mercado “é o resultado de um processo impessoal e de uma acumulação
28
Albert Hirschman (2001), em seu livro Retóricas de la Intransigência, ressalta três tipos de
argumentos ou teses centrais que estão sempre presentes nas grandes “ondas” do pensamento
conservador, a saber: tese da perversidade, tese da futilidade e tese do risco. “Segundo a tese da
perversidade toda ação deliberada para melhorar algum traço da ordem política, social ou econômico
apenas serve para exacerbar a condição que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as
tentativas de transformação social serão inválidas, que simplesmente não conseguem gerar efeitos.
Finalmente, a tese do risco argumenta que o custo da mudança ou reforma proposta é muito alto, dado
que coloca em perigo algum logro prévio e apreciado.” (HIRSCHMAN, tradução livre, 2001, p. 17-
18)
50
de conseqüências não intencionais. Não há nenhum agente sozinho decidindo qual
deveria ser a parte de cada um. (...) não há no mercado alguém que possa ser acusado
por ter um comportamento injusto” (KLEY, tradução livre, 1994, p. 200). Ademais,
Hayek argumenta que como o funcionamento do mercado não pressupõe um
conhecimento do que a justiça social a priori abrange, ele é imparcial e a distribuição
que dele resulta seria isenta de moralidade, ou seja, não poderia ser considerada nem
justa nem injusta, mas apenas natural.
Por outro lado, acrescenta o autor, tendo em vista que nem todos têm a mesma
opinião sobre o que deve ser feito para se alcançar à justiça social, e já que o mercado
é capaz de resolver as questões de distribuição e, ainda, dado que não é possível haver
um consenso sobre a questão distributiva, qualquer proposta de política redistributiva
tem um caráter autoritário e, dessa forma, nunca poderia ser legitimada nem aceita.
Nos anos sessenta, nos Estados Unidos, outros teóricos contribuíram para o
desenvolvimento das idéias neoliberais. Dentre eles, estava Milton Friedman - figura
central da Escola de Chicago. Seu trabalho buscava basicamente combater a política
do New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt e suas continuidades; a intervenção
– seja por suas políticas keynesianas, seja por seus programas de seguridade social -
era alvo de crítica do autor.
Tal como Hayek, Friedman (FRIEDMAN, 1980; 1984) se considera um liberal. Mas
faz questão de sublinhar que é um liberal no sentido “original” do termo, ou seja,
aquele que enfatiza a liberdade do indivíduo como valor mais importante a ser
defendido e o fim último a ser perseguido. Assim, a proposta de Friedman consiste
num retorno ao liberalismo econômico e político e na negação do que ele chama de
51
“liberalismo moderno”, ou seja, um liberalismo “descaracterizado” pela presença
estatal, configurado nos Estados Unidos, a partir das políticas do New Deal:
Friedman (1984) considera que o governo deve ser um meio através do qual os
indivíduos podem assumir suas responsabilidades, alcançar seus propósitos e
objetivos e, ainda, um instrumento que sirva para que eles protejam e garantam sua
liberdade. O “governo é necessário para preservar nossa liberdade (...); entretanto,
pelo fato de ser concentrado em mãos políticas, ele é também uma ameaça à
liberdade.” (ibidem, p. 12). Coloca-se, assim, a seguinte questão: “o que devemos
fazer para impedir que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein e venha a
destruir justamente a liberdade para cuja proteção nós o estabelecemos?” (idem).
Deste modo, tendo em vista que, segundo o autor, a preservação da liberdade dos
homens deve ser o fim último de qualquer sociedade, ele propõe que o governo seja
limitado às suas funções específicas: “Sua principal função deve ser a de proteger
nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas;
preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados
52
competitivos.” (idem) E, ainda, “arbitrar as divergências em que nos envolvermos e
dar-nos meios para concordar sobre que regras iremos seguir” (FRIEDMAN, 1980, p.
21). Em suma, a presença do governo deveria se resumir ao estabelecimento das
“regras do jogo” e à arbitragem “para interpretar e por em vigor as regras
estabelecidas.” (FRIEDMAN, 1984, p. 23).
Na verdade, Friedman (1984, p. 173) afirma que o “mais desejável” no que diz
respeito à solução dos males sociais seria a caridade privada, determinada pela livre
escolha ou vontade dos indivíduos. Mas, embora a entenda como a mais desejável, ele
lamenta que nem sempre ela é exeqüível, sobretudo em sociedades grandes. Nas
pequenas comunidades, a pressão pública pode ser suficiente para a existência da
caridade privada. Mas, em grandes sociedades, isto não ocorre e a “caridade privada é
insuficiente porque seus benefícios se estendem a pessoas não envolvidas (...)”
(FRIEDMAN, 1984, p. 173). O raciocínio de Friedman (1984) pode ser percebido no
seguinte trecho:
53
pobreza, desde que todos os outros também contribuam. Podemos não
estar dispostos a contribuir com a mesma importância, se não tivermos
certeza disso. (idem).
Assim, diante dessa insuficiência da ação da caridade privada, Friedman (1980; 1984)
percebe que a atuação (residual) do Estado é necessária. Desse modo, sua proposta
divide-se em dois tópicos:
O autor ressalta ainda que sua proposta do “imposto de renda negativo (...) só seria
uma reforma satisfatória do atual sistema de bem-estar social se substituísse o grande
número de outros programas específicos” (FRIEDMAN, 1984, p. 128). As
justificativas que ele dá para o sucesso do “imposto de renda negativo” são que (i)
atacaria diretamente a pobreza, uma vez que a ajuda ao beneficiário seria na forma de
dinheiro; (ii) justamente por ser em forma de dinheiro, o imposto de renda negativo
atuaria de maneira a não prejudicar o funcionamento do mercado; e (iii)
provavelmente ele eliminaria a burocracia que administrava a maioria dos programas
sociais. No momento em que escrevia seu livro, Friedman considerava que “o
lançamento de um programa desses é (...) um sonho utópico”. (FRIEDMAN, 1980, p.
126) Hoje, como se verá adiante, frente às recomendações de “combate à pobreza”
dos organismos internacionais, percebe-se que a utopia de Friedman vem
paulatinamente se tornando realidade.
De modo geral, Friedman defende com firmeza que a questão da proteção social deve
ser retirada do rol de atribuições do Estado, fazendo com que se valorize a
responsabilidade individual e se reduzam os gastos do governo. Ao Estado caberia
apenas compensar os “pobres” com pequenas quantias que aliviassem sua penúria,
durante o período em que esses indivíduos não estejam em condições de garantir sua
própria existência. No lugar de promover uma “seguridade social”, propõe-se que o
Estado ajude com um mínimo apenas alguns indivíduos (mediante comprovação de
sua necessidade). Com isso tudo, percebe-se que Friedman sugere, de um lado, uma
individualização da política social e, de outro - para os que “podem” -, uma
privatização dos mecanismos de proteção social.
54
Outro teórico neoliberal é Robert Nozick (NOZICK, 1991), que dedica seu Anarquia,
Estado e Utopia, escrito em 1974, ao estudo sobre natureza do Estado, suas funções
legítimas e suas justificações, com o objetivo de reforçar argumento contrário à
intervenção estatal, sobretudo no que diz respeito à questão distributiva.
Ele afirma que apenas um “Estado mínimo” – que garanta a lei e a ordem - é
justificável: “O Estado mínimo é o mais extenso que pode se justificar. Qualquer
outro mais amplo viola os direitos da pessoa.” (ibidem, p. 170) Ou seja, as únicas
funções que o Estado deve ter referem-se à proteção da propriedade privada contra a
coerção, roubo, fraude e, ainda, à fiscalização do cumprimento dos contratos. Um
Estado que vá além do mínimo violará os direitos de os indivíduos não serem
forçados a fazerem certas coisas e, portanto, é injustificável. (ibidem, p. 9)
E, assim, sugere que a “visão correta” ou o único princípio de justiça29 que é “neutro”
é aquele previsto por sua “teoria da propriedade”, ou seja, “um princípio de justiça
que descreve (...) o que a justiça nos diz (exige) sobre propriedades.” (ibidem, p. 171).
29
É explícita, em Nozick (1991), a crítica a Uma Teoria da Justiça, escrito em 1971 por John Rawls
(RAWLS, 1993). Em defesa de uma “justiça como equidade”, Rawls estabeleceu dois princípios
básicos de justiça, que foram bem sintetizados na seguinte passagem de O Liberalismo Político
(RAWLS, 2000): “a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de
direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse
projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. b. As
desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas
a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em
segundo, elas devem representar o maior benefício possível dos membros menos privilegiados da
sociedade.” (ibidem, p. 47) Este segundo requisito é definido como o “princípio da diferença”, no qual
se percebe uma ambiguidade: não está nada claro o que Rawls entende por os “menos privilegiados da
sociedade”. A provocação de Perry Anderson (2002) vai nesse sentido: “Seria o princípio da diferença
55
Nesse sentido, para Nozick, só serão justas as propriedades de uma pessoa se forem
observados um dos três “princípios de justiça” previstos pela teoria da propriedade. A
saber: (i) princípio de justiça na aquisição inicial (apropriação de coisas anteriormente
não possuídas); (ii) princípio de justiça nas transferências de propriedade (de uma
pessoa a outra) e (iii) reparação da injustiça na propriedade (seguindo o que dizem os
dois primeiros princípios). Assim, se “as propriedades de cada pessoa são justas,
então o conjunto total (distribuição) das propriedades é justo.” (ibidem, p. 174) Caso
contrário, a distribuição será injusta. Percebe-se, portanto, um ataque frontal a
qualquer tipo de política redistributiva.
É claro que em cada realidade nacional a implementação dessas idéias assumiu uma
forma diferente; mas o fato é que expressões de Margareth Thatcher como “there is no
such thing as community” ou “there is no alternative” ganharam força e
impulsionaram uma retomada generalizada da crença, descrita por Karl Polanyi em
1947, no ímpeto totalizante do mercado e em sua capacidade “auto-regulatória”. É o
uma convocação para uma redistribuição de renda quase socialista (...) Ou seria ele (...) apenas uma
defesa sensata da operação normal do capitalismo (...)? Para entender completamente a profundidade
da indeterminação no âmago da construção de Rawls, basta notar que ela é aplaudida no extremo à
esquerda por John Roemer, e no outro por Friedrich von Hayek à direita, cada um deles afirmando que
sua própria mensagem coincide com a de Rawls.” (ANDERSON, 2002, p. 348)
56
retorno da vontade e da mobilização voltadas para a implementação e expansão
daquilo que ele havia chamado de “moinho satânico”30 (POLANYI, 2000)
30
Processo a partir do qual o mercado foi, paulatinamente, se separando das demais instituições sociais
até se tornar autônomo - “auto-regulável” - e, ao mesmo tempo, foi dominando e incorporando o
trabalho, a terra e o dinheiro à sua lógica, transformando-os em “mercadorias”.
31
Ver mais à frente.
32
Foucault (2004) vê a inserção da idéia de “concorrência” no conceito de “mercado” como algo
característico do neoliberalismo contemporâneo. “Para os neoliberais, o essencial do mercado não
está na troca, nessa espécie de situação primitiva e fictícia com que os economistas liberais do século
XVIII se preocupavam. Está além. (...) [Para os neoliberais,] o essencial do mercado é a concorrência,
ou seja, [o que importa] não é a equivalência, mas, ao contrário, a desigualdade.” (FOUCAULT,
2004, p. 122)
57
Nesse sentido, enfatiza Foucault (2004a), a intervenção governamental própria do
neoliberalismo “não é menos densa, menos freqüente, menos ativa, menos contínua
que num outro sistema.” (FOUCAULT, 2004a, p. 151) O que importa é perceber que
seus objetivos mudaram. Se, com o liberalismo clássico, pregava-se o laissez-faire e,
com o keynesianismo/welfare state, o foco se voltava para a correção dos efeitos
nefastos e destruidores do mercado e do capitalismo sobre a sociedade, agora, com o
neoliberalismo, o objetivo da ação governamental reside numa intervenção sobre a
própria sociedade, de modo a inserir nela os mecanismos competitivos e
concorrenciais inerentes aos fundamentos do mercado, para que, assim, ela possa dele
se aproximar. Percebe-se que essa “novidade” destacada por Foucault reforça o
argumento de que o Estado neoliberal é funcional ao mercado.
Deste modo, o que se procura com isso é a obtenção de uma sociedade submetida à
dinâmica concorrencial, uma generalização da forma “empresa” no interior do corpo e
do tecido social, tendo a concorrência como fundamento. “O homo economicus que se
quer reconstituir não é o homem da troca, não é o homem consumidor, mas sim o
homem empresarial” (ibidem, p. 152). Trata-se de inserir no tecido social a lógica da
diferenciação social, dividindo-o e multiplicando-o em indivíduos a partir do modelo
“empresa”, ou seja, enfatizando seu lado competitivo e empreendedor como novas
necessidades.
58
2. Espírito do capitalismo e as novas regras do jogo
Tal como Marx (2002), Boltanski e Chiapello consideram que, nesse movimento de
ampliação contínua do capital, os dois grupos de personagens principais são: de um
lado, os capitalistas (aqueles encarregados da acumulação e do crescimento do capital
e que tem como objetivo central a “maximização dos lucros”) e, de outro, os
trabalhadores assalariados: aqueles que não detêm capitais e em benefício do qual o
59
sistema não está orientado. Os assalariados tiram sua renda da venda do próprio
trabalho e são, teoricamente, livres para recusarem o trabalho nas condições propostas
pelos capitalistas (como também estes últimos são livres para não ofertarem empregos
às condições demandadas pelo trabalhador). Se, por um lado, é claro que esta relação
é desigual – já que os trabalhadores não podem ficar um período muito longo sem
trabalho -, Boltanski ressalta que existe sempre uma adesão ou engajamento ao
sistema por parte dos trabalhadores.
Contudo, “o capitalismo é (...) um sistema absurdo” (ibidem, p. 41), ele não faz
sentido para ninguém: nem para os trabalhadores nem para os capitalistas. Para os
assalariados, o sistema em si - através de sua simples definição (acumulação de
capital) - não faz sentido, já que eles não detêm a propriedade do resultado de seu
trabalho e não conseguem levar uma vida ativa fora da subordinação. Mas o
capitalismo tampouco tem sentido para os capitalistas. Estes estão encadeados num
processo sem fim e insaciável, totalmente abstrato e dissociado inclusive da satisfação
de suas necessidades de consumo. Assim, para Boltanski e Chiapello, não haveria
sentido no engajamento no processo capitalista para nenhum dos dois protagonistas.
33
Weber (2004) considera o “espírito do capitalismo” como a gênese de um complexo substantivo – o
capitalismo – que, uma vez instalado, não teria mais necessidade do “espírito”. Outro ponto de
divergência em relação a Weber é que Boltanski e Chiapello não têm como objetivo explicar a origem
do espírito do capitalismo, mas sim compreender seus diferentes estados históricos. Assim, tentam
desvincular a categoria “espírito do capitalismo” dos conteúdos substantivos e reconhecer que seu
conteúdo pode variar em diferentes momentos da história dos modos de organização das empresas e
dos processos de extração do lucro capitalista.
60
O “espírito do capitalismo” é definido, então, como um conjunto de crenças
associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar, legitimar e sustentar os
modos de ação e os dispositivos que lhe são coerentes. Essas justificações são
expressas em termos de virtude ou de justiça e possibilitam a realização de práticas e,
mais geralmente, a adesão a um estilo de vida favorável à ordem capitalista. Em
suma, como o capitalismo é uma forma histórica ordenadora de práticas coletivas
desvinculada totalmente da esfera moral, e não se pode encontrar nele mesmo
nenhuma fonte explicativa para os motivos de engajamento dos atores sociais
importantes para sua manutenção e reprodução, ele se apóia em construções de outra
ordem (nas crenças), que não a da busca do lucro para se justificar e poder persistir.
Essa adesão ao espírito pode ser a cada momento, questionada e criticada pelos atores
sociais. Aqui entra em cena outro conceito fundamental do quadro analítico de
Boltanski e Chiapello: o de “crítica”. É partir da idéia de crítica que são teorizadas as
mudanças do espírito, as transformações do capitalismo e, ainda, a legitimação do
espírito num determinado momento.
34
Para explicar como as justificações são construídas, Boltanski lança mão de seu arcabouço teórico
desenvolvido em De La Justification (1991), obra na qual ele constrói a noção de cités (“cidades”). As
“cidades” são modelos teóricos que expressam os variados tipos de convenções gerais orientadas para
um bem comum. Nas situações concretas de disputa, os atores recorrem a esses modelos universais
para construírem seus argumentos e justificações. As cidades são utilizadas em Le Nouvel Esprit du
Capitalisme como pontos de apoio normativos para a construção das justificações. Seis lógicas de
justificação (seis cidades) são identificadas por Boltanski (1999, p. 63) na sociedade contemporânea.
São elas: cidade inspirada, doméstica, do renome, cívica, mercantil, industrial. Em cada momento do
capitalismo, o espírito do capitalismo evoca justificações diferentes que pertencem a cidades diversas.
35
Cada um desses espíritos, quando fazem referência ao bem comum, evoca justificações que se
baseiam nos modelos das diversas “cidades” (cités). O primeiro espírito retirava suas justificações das
cidades doméstica e mercantil. Já o segundo, das cidades industrial e cívica. O “novo espírito do
capitalismo”, por sua vez, para formular suas justificações, se apóia num tipo de cidade que vem se
formando a partir dos anos 90, que foi chamada de “cidade por projetos”.
61
espírito do capitalismo. O primeiro espírito do capitalismo do século XIX, que era
centrado na figura do empreendedor burguês. A segunda caracterização do espírito
tem seu desenvolvimento pleno entre os anos trinta e os anos sessenta, sua figura
central é a organização (e não mais o empreendedor individual) e teve seu
desenvolvimento centrado na produção em massa e marcado pela confiança no
progresso. E, a partir dos anos oitenta, começam ser percebidas grandes
transformações no modo de justificação do capitalismo e a se formar uma nova
configuração ideológica portadora de justificações para o capitalismo, ou seja, um
“novo espírito do capitalismo”.
Como essa literatura não pode ser justificada apenas a partir da orientação de
maximização do lucro, não obteria a adesão necessária se assim o fosse, ela deve
também justificar moralmente a maneira como esse lucro é obtido, de modo que o
engajamento dos trabalhadores no processo capitalista seja mais fácil e, por outro
lado, para que sejam construídos “argumentos para resistir às críticas [direcionadas ao
capitalismo] que não deixam de emergir”37. (ibidem, p. 95).
36
Boltanski e Chiapello (1999) ressaltam que poderiam ter escolhido outro lugar de manifestação
dessa “ideologia dominante” (ibidem, p. 94) – tal como discursos políticos e sindicais, textos
jornalísticos e outros -, mas escolheram a literatura de management em função de seu acesso mais
direto às representações desse novo espírito.
37
Parte-se da idéia de que as crenças associadas ao capitalismo estão sendo submetidas constantemente
a “provas” cotidianas. Se essas crenças são derrubadas, a legitimidade do capitalismo entraria em crise,
sendo necessárias novas formas de justificação.
62
Eles fazem uma comparação dessa literatura com a vigente nos anos sessenta38; e tem-
se, de um lado - pela literatura dos anos sessenta -, um ambiente de “trabalho
protegido”, da “estabilidade”, do “plano de carreira”, e, de outro – a partir da
literatura dos anos noventa -, percebe-se uma excessiva atenção aos temas da
“adaptação”, da “mudança” e da “concorrência”, fazendo da “flexibilidade”,
“criatividade” e “reatividade” as novas palavras de ordem da atualidade.
Eles notam que a grande dimensão sedutora desse novo contexto é o alcance da
“verdadeira autonomia”, fundada sobre um conhecimento de si mesmo, uma liberdade
e um desenvolvimento pessoal. A hipótese de Boltanski (1999, p. 143) é a de que, a
partir dessa nova gramática, vai emergindo um novo “sentido de justiça”, que pode
ser teorizado em termos de “cidade” (cité), segundo a matriz teórica de De La
Justification (BOLTANSKI, 1991). Essa nova “cidade” foi chamada de “cidade por
projetos”39 tendo como “referência o mundo flexível constituído pelos múltiplos
projetos levados pelas pessoas autônomas”. De fato, a novidade do mundo do trabalho
de hoje é que, cada vez mais, as pessoas tendem a não fazer mais carreira profissional,
mas passam de um projeto a outro. A cada projeto conquistado, maiores são as
possibilidades de acesso a novos projetos no futuro e, ainda, de aprendizado e de
enriquecimento das competências e habilidades pessoais (que, por sua vez, são
fundamentais para outros projetos que virão).
A utilização dessa nova gramática, que ressalta as novas promessas do capitalismo (de
realização pessoal, liberdade, excitação, mobilidade, “conectividade social”) e que
fundamenta os dispositivos atuais de justificação do capitalismo, passa a ser cada vez
mais utilizada no cotidiano do mundo do trabalho, incluindo empregadores e
trabalhadores (empregados ou não). Cada um deles passa a mobilizar seus
argumentos/dispositivos no seu dia-a-dia.
38
E percebem que a literatura de management dos anos sessenta acompanhou a passagem da burguesia
patrimonial (centrada na empresa pessoal) à burguesia de dirigentes (assalariados, diplomados, e
integrados às grandes administrações públicas ou privadas) e, nesse sentido, enfatizou a meritocracia e
a valorização do progresso social baseado na empresa e da proteção no trabalho (associada ao estatuto,
à hierarquia e burocracia).
39
A formação e o desenvolvimento dessa nova “cidade” por projetos serve como ponto de apoio
normativo para o “novo espírito do capitalismo”, que passa a justificar o capitalismo a partir dos temas
valorizados no novo contexto: mudança, adaptação, risco, mobilidade, flexibilidade e concorrência.
63
Por exemplo, essa nova gramática pode ser facilmente identificada na declaração do
executivo James Meadows (vice-presidente do Departamento de Recursos Humanos
da AT&T) em entrevista ao Nem York Times, quando, em 1996, dava início do
programa de demissão de 40 mil trabalhadores: “as pessoas devem ver a si mesmas
como trabalhadores autônomos, como vendedores que vêm para esta companhia
vender suas habilidades.” E continua: “Na AT&T temos que promover toda uma
concepção de que a força de trabalho é temporária. Em vez de empregos, as pessoas
têm cada vez mais projetos ou campos de trabalho.” (TILLY e TILLY apud SORJ,
2000).
E, a partir dessa nova gramática descrita por Boltanski, é possível perceber como ela
passa a servir como base para a construção de argumentos utilizados no cotidiano dos
atores sociais, sobretudo no que diz respeito ao tema do desemprego. Esta realidade
social passa a ser reconstruída a partir da nova gramática, formando, aos olhos dos
atores, novas percepções para a questão.
Percebe-se, assim, que, embora em outros termos e a partir de uma matriz teórica
diferente, a discussão de Boltanski (1999) se aproxima e até mesmo reforça aquele
argumento de Foucault (2004a) acerca do projeto neoliberal cujo objetivo é o de
inserir continuamente a lógica concorrencial do mercado em todas as esferas do tecido
social. Nessa nova dinâmica, o indivíduo precisa se afirmar enquanto homem-empresa
e, nesse sentido, é obrigado, em nome de sua sobrevivência e permanência no “jogo”,
a fortalecer constantemente sua “competitividade” e sua condição de “empreendedor”.
64
Diante dessa forma atual de justificação do capitalismo, Boltanski e Chiapello (1999)
se preocupam hoje com o enfraquecimento da crítica contemporânea, “que nunca
pareceu tão desarmada, no último século, quanto nos últimos quinze anos, seja porque
ela manifesta apenas uma indignação sem acompanhar proposições alternativas, seja
porque, mais freqüentemente, ela tem renunciado [a exercer a prática da] denúncia
[frente à realidade contemporânea]” (ibidem, tradução livre, p. 17). No fim das
contas, admite-se, assim, tacitamente, uma postura fatalista, ou seja, a dificuldade em
se denunciar a atual justificação do capitalismo. Como, no esquema analítico de
Boltanski e Chiapello, é a crítica ao “espírito do capitalismo” aquela capaz de fazer
com que o sistema realmente se transforme, é natural que eles se preocupem com a
atual apatia e passividade da crítica - sobretudo se comparada com aquela dos anos
sessenta -, que acabam por naturalizar o mundo social e, assim, neutralizar qualquer
anseio por mudanças e transformações do sistema.
Após uma breve alusão às lógicas de interpretação de mundo que vem justificando o
capitalismo atual, é possível apontar a flexibilidade e a empregabilidade como as
novas “regras do jogo” desse novo capitalismo. Mais especificamente, pode-se
relacionar a forma como o debate contemporâneo sobre questão do desemprego vem
sendo estruturado (recorrendo às temáticas da empregabilidade e a da flexibilidade)
com o modo pelo qual o capitalismo se justifica tal como exposto anteriormente.
Numa chave bastante geral, percebe-se que a flexibilidade aparece como uma
característica fundamental do ambiente de trabalho no novo capitalismo. É vista como
65
a liberdade40 que o indivíduo tem para moldar e guiar sua vida. Ele não estaria mais
preso ou limitado às amarras impostas pela rigidez característica do momento
anterior. No novo contexto flexível, no qual o indivíduo deve ser livre e solto, ele é
obrigado a ser criativo, um homem de intuição, de visão, de contatos, de capacidade
de se reinventar a toda hora, sempre em movimento, para que possa se adaptar ao
novo, ao momentâneo, ao instável, enfim, aos projetos e trabalhos de curto prazo que
aparecem e se lhe impõem como cotidiano.
Assim, a flexibilidade seria uma forte característica desse novo ambiente de liberdade
aparente, o qual esconde, em última instância, novos tipos de imposições, já que
obriga o indivíduo a se moldar e se adaptar permanentemente, de acordo com as
novas situações que precisa enfrentar, num universo profissional muito movimentado
e incerto. A empregabilidade apareceria como o meio pelo qual o indivíduo vai
conseguir tudo isso; ela acaba sendo a capacidade que o indivíduo deve ter para que
possa ser requisitado para os trabalhos e projetos de curto prazo.
Assim, para que o problema do desemprego possa ser remediado, emergem duas
“soluções”: é preciso, por um lado, que o mercado de trabalho seja “flexibilizado” e,
de outro, que os trabalhadores invistam em sua “empregabilidade”.
40
É interessante perceber como Sennet (1999) mostra que, embora a flexibilidade apareça como
liberdade, ela acaba gerando impactos profundos na esfera moral da vida dos indivíduos. Isto porque o
novo ambiente de trabalho moderno (cuja ênfase recai sobre projetos de curto prazo e na flexibilidade),
por um lado, dificulta que as pessoas desenvolvam uma narrativa coerente para suas vidas e, por outro,
impede a formação do caráter (uma vez que o desenvolvimento do caráter depende de virtudes estáveis
- como lealdade, confiança, comprometimento e ajuda mútua – que estão desaparecendo no novo
capitalismo).
66
A atual ênfase na desregulação do mundo do trabalho emerge a partir da defesa
hegemônica da desregulação dos outros mercados. Assim, a volta do diagnóstico
neoclássico41 sobre o trabalho é clara. Para que o “mercado de trabalho” - o qual é
visto como um dos mais imperfeitos - se livrasse de suas “imperfeições”42, deve-se
recorrer à receita flexibilizadora. Esta propõe que se desregulamente o mercado de
trabalho de modo que o trabalho seja mercantilizado43 novamente e se aproxime com
o ideal de mercado que tanto se busca.
O argumento utilizado é que, nesse novo ambiente mais flexível, os capitais teriam
maior liberdade para agir, estariam livres das amarras dos direitos, podendo investir
mais e, portanto, gerar mais empregos. Em realidade, a flexibilidade significa que se
permite ao empresário utilizar a mão-de-obra necessária ao menor custo possível (já
que os encargos, que antes recaíam sobre os empresários, devem agora se voltar sobre
os trabalhadores...).
Gazier (1990) faz uma análise - uma “radiografia” - desse conceito, mostrando que a
evolução de seus significados reflete transformações das concepções de mundo que a
ele estão associadas. Na França dos anos setenta, por exemplo, o conceito de
“empregabilidade” significava a “esperança objetiva ou a probabilidade (...) que uma
pessoa pode ter na busca de um emprego em encontrar um [emprego]” (ibidem, p.
41
Dentre as políticas voltadas para o mercado de trabalho implementadas pelos governos latino-
americanos, como parte das medidas de ajuste das economias, tendem a predominar as políticas de
corte neoliberal que seguem esse diagnóstico neoclássico sobre a desregulação do mercado de trabalho.
42
As “imperfeições” do mercado de trabalho ressaltadas pela teoria neoclássica são justamente aquelas
características que, como nos mostra Castel (2003), fizeram do estatuto do trabalho uma fonte de
proteção : existência de instituições, conflitos coletivos e regulações coletivas de direitos do trabalho e
da proteção social.
43
Aqui “mercantilização” assume exatamente o sentido oposto do de “desmercantilização” ressaltado
por Esping-Andersen (1990), que via na introdução dos direitos sociais (inclusive os vinculados ao
trabalho) modernos a implicação de um afrouxamento do status de mercadoria do indivíduo-
trabalhador.
67
576). A ênfase recaía sobre as condições gerais da economia e da sociedade. Estava
presente, portanto, uma inteligibilidade que associava à empregabilidade uma
causalidade econômica conjuntural (ou seja, tudo dependia do crescimento do
emprego e, logo, da economia). A responsabilidade de gerar um contexto favorável -
de alta “empregabilidade” - dizia respeito ao Estado e ele deveria ser alcançado pela
ação dos economistas no seio do aparelho estatal. É claro que, naquele contexto, em
que havia tendência ao pleno emprego, esse conceito acabava não sendo muito
importante e tampouco muito utilizado, dado que para uma pessoa ser “empregável”
era necessário apenas uma mínima constatação, por meio de um atestado
qualificatório de que pudesse ocupar determinado emprego.
Tudo muda de configuração a partir dos anos oitenta e, sobretudo, dos anos noventa,
quando o problema do desemprego (estrutural, inclusive) se agrava. O conceito de
“empregabilidade” vai perdendo seu significado original e ganha, paulatinamente,
novos contornos.
Gazier (1990, p. 579) alerta que essa perspectiva individualizada encontra seus limites
justamente naquilo que a funda: o fracasso macroeconômico induziu a mobilização da
perspectiva micro, mas acabou perdendo de vista as perspectivas de emprego que a
estrutura econômica é capaz de gerar.
68
(GENTILI, 2001; FRIGOTTO, 2001). Esta teoria começou a ganhar expressão e a ser
sistematizada pela Economia a partir dos anos sessenta, embora muitas de suas idéias
já tivessem sido citadas anteriormente de maneira esporádica. Tentou-se integrar o
conceito de “capital humano” à teoria econômica neoclássica, que vinha sendo
criticada pela sua incapacidade de explicar totalmente as causas do crescimento
econômico e questões relativas à distribuição de renda.
Foucault (2004a) sugere que a teoria do capital humano44 seja entendida a partir de
dois processos: por um lado, um avanço da análise econômica num domínio que era
até então inexplorado e, por outro lado, a partir desse avanço, uma tentativa de
reinterpretação, em termos econômicos, de todo um domínio (o da educação, por
exemplo) que até então podia ser considerado como não sendo econômico.
(FOUCAULT, 2004a, p. 225)
Foucault (2004a) sugere que embora seu objetivo fosse inserir a temática do trabalho
na discussão econômica, os teóricos do capital humano não prestaram – ou não
quiseram prestar - atenção (ou não quiseram mesmo discutir) naquilo que Marx havia
dito em relação ao trabalho, em O Capital (MARX, 2002). Em seus escritos, os
teóricos do capital humano não entendem o “salário” como aquilo que é obtido pelo
trabalhador mediante a venda de sua força de trabalho45 (ou seja, como o “preço”
44
Foucault (2004) entende a teoria do capital humano como elemento próprio da concepção neoliberal
americana e se refere a esses teóricos como os “neoliberais americanos”.
45
Como se sabe, Marx (2002) entendia que o trabalhador vende sua força de trabalho, durante certo
tempo, em troca do salário. Mas o valor desse salário é inferior ao valor do trabalho criado pelo
trabalhador, em função das relações de exploração existentes no sistema capitalista: uma parte do valor
69
desta última), mas sim como “renda”, isto é, como uma “remuneração” do trabalho.
Ou seja, como uma remuneração de um “capital”, como um outro qualquer. É desse
modo que se constrói o entendimento do “trabalho” como “capital humano”.
a maneira pela qual os recursos escassos são alocados em fins que são
concorrentes [dentre os quais se deve escolher] (...) [Assim,] a análise
econômica deve ter como ponto de partida e como quadro geral de
referência o estudo da maneira como os indivíduos fazem a alocação de
seus recursos escassos aos fins que são alternativos. (FOUCAULT, 2004,
p. 228).
Assim, o trabalho passa a ser visto como um tipo de capital que não era levado em
conta pela teoria econômica. E é diante desta “lacuna” que os teóricos do capital
humano se dedicam à inserção da temática do “trabalho” na análise econômica. Essa
abordagem aparece a nível macro e a nível microeconômico.
desse trabalho (mais-valia) é apropriada pelo capitalista (o dono dos meios de produção). A própria
lógica do sistema faz com que o valor daquilo que o trabalhador recebe (salário) seja inferior ao valor
daquilo que ele produz (trabalho abstrato).
70
embora esses autores criticassem a teoria neoclássica46 nessa questão específica (da
lacuna), isto não significa que eles a tenham abandonado; muito pelo contrário,
apenas tentaram complementá-la, sem deixar de lado seus postulados básicos47.
Em suma, o raciocínio básico pode ser assim sintetizado: (i) aumento da educação dos
trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e conhecimentos melhorados, (iii)
quanto maiores as habilidades e conhecimentos, maior a produtividade do
trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando (v) maior competitividade e,
assim, (vi) maiores rendas para o indivíduo. Ou seja, ao optarem em investir em seu
capital humano, os indivíduos se tornam mais aptos para competirem no mercado e,
assim, obterem maiores rendas.
71
“macro”, estabelecer também vínculos entre o desenvolvimento do capital humano
individual e o capital humano social, o conceito de empregabilidade diz respeito
unicamente ao indivíduo.
72
haveria necessidade desse conceito, que não distinguiria coisa alguma.
(CARDOSO, 2003, p. 101)
73
capital pessoal que cada um deve gerar e que é constituído da soma de suas
competências mobilizáveis.” (BOLTANSKI, ibidem, p. 145).
Assim, esse processo de seleção-exclusão – que, aliás, nada tem de “natural”, mas
que, ao contrário, tem sua origem na lógica do atual capitalismo e, segundo Boltanski
(1999), em grande medida, nas novas práticas de gestão das empresas e, ainda, que
tem, como horizonte, o “mercado” como metáfora da ordem social - acaba definindo
os que devem ser expulsos ou precarizados: os menos competentes, os mais frágeis,
os menos maleáveis, os menos adaptáveis, enfim, os “inempregáveis”, nos termos de
Robert Castel (2003).
74
qual deve ser respondido mediante a “previdência”. Assim, a formulação original do
liberalismo implicava a responsabilidade absoluta e exclusiva do próprio individuo.
Pode-se sugerir que emerge uma nova imagem para o trabalhador que vem sendo
construída no próprio mundo do trabalho, resultante, por exemplo, do novo modo de
justificação do capitalismo, tal como discutiu Boltanski (1999). Tendo a obrigação de,
num mundo flexível, ser maleável, adaptável e empregável, a imagem do indivíduo
vai se transformando. Assim, retomando Machado da Silva (2002a), o “novo
trabalhador” vai se tornando um “empresário de si mesmo”. Ele passa a estar
convencido de que suas conquistas – o emprego – e seus fracassos – o desemprego –
dependem exclusivamente de si mesmo. Essa nova auto-imagem do trabalhador, no
fim das contas, acaba ferindo “de morte os valores de solidariedade social tão
dificilmente institucionalizados sob a fórmula ‘trabalho livre, mas protegido’ e torna-
75
se o centro de legitimação ideológica da fragmentação social que, nesta hipótese, se
tornaria irreversível” (ibidem, p. 95).
Ao mesmo tempo, nota-se que aquelas retóricas e discussões sobre o mundo social
pressupõem um padrão teórico de individualidade que atua, por sua vez, no sentido de
reforçar essa imagem que vem sendo construída para o trabalhador. Foucault (2004a)
dizia justamente que o próprio objetivo do neoliberalismo consistia em inserir
mecanismos competitivos e concorrenciais no tecido social, de modo que a sociedade
fosse progressivamente se aproximando da idéia de “mercado”, tão cara aos
neoliberais.
Isso pode ser claramente percebido nas discussões acerca da flexibilidade, do capital
humano e da empregabilidade, uma vez que esses debates pressupõem um padrão
teórico de individualidade: o indivíduo competitivo. Sendo teórico e também
ideológico, a exaltação desse indivíduo competitivo acaba por fundamentar um “dever
ser” e, com isso, reforçar aquela nova imagem que vem sendo construída entre os
trabalhadores contemporâneos.
76
Capítulo III – O DESLOCAMENTO INTERPRETATIVO DA
QUESTÃO SOCIAL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DA
MARGINALIDADE À POBREZA
A propósito, tal centralidade precisa ser enfatizada, uma vez que, como se sabe, a
“questão social” nem sempre foi enunciada a partir do conceito de “pobreza”. A
História mostra que ela já foi tratada de diversas maneiras e que sofreu mutações,
tanto no que diz respeito a seu conteúdo quanto em relação à forma de como é
enunciada. Em cada momento histórico, a questão social teve sua própria significação
social e política e, por conseguinte, se expressou de uma maneira. Nesse sentido, para
cada uma das sucessivas representações sobre o social observadas na história – suas
categorizações, os tratamentos que lhe são concedidos, dentre outros aspectos - é
possível encontrar um específico imaginário de sociedade que a fundamenta.
Embora a expressão “questão social” tenha surgido no século XIX48 com o objetivo
de ressaltar os problemas e disfunções inerentes à sociedade industrial nascente
48
Segundo Castel (2003), ela foi explicitamente problematizada como tal pela primeira vez nos anos
1830, decorrente da tomada de consciência das condições de existência das populações que foram os
agentes e as vítimas da revolução industrial. É o questionamento acerca do “pauperismo”. (CASTEL,
2003, p. 30).
77
(ROSANVALLON, 1995), ela vem sendo apropriada ultimamente por alguns autores
- por exemplo, Castel (2003) –, e assim tendo sua utilização ampliada no tempo e no
espaço: “antes desta ‘invenção do social’49 já havia social”. Para identificá-lo
historicamente e poder entender suas mutações, Castel sugere que a questão social
deva ser definida a partir do eixo da integração:
49
Aqui Castel (2003) faz referência ao livro de Jacques Donzelot – L’Invention du Social -, de 1994, no
qual o autor afirma que o “social” foi inventado a partir da necessidade de tornar governável a
sociedade francesa do pós-1848.
78
político hegemônico ou, ainda, contra-hegemônico. Por exemplo, como se disse, a
“questão social” nem sempre foi expressa a partir de “pobreza”. Ao contrário, em
cada momento específico, ela é enunciada a partir de conceitos ou problemas que, em
última instância, refletem uma “batalha de classificações” (TOPALOV, 1994) entre a
manutenção do status quo e a vontade de transformação da realidade social.
79
Os reformadores sociais (...) procuraram e encontraram na realidade
industrial o objeto que lhes correspondia. Mas, ao mesmo tempo,
implantaram instrumentos de intervenção que procuravam modelar a
realidade a partir do conceito classificatório que haviam forjado. É nessa
dialética das mudanças industriais e das políticas sociais, da experiência
operária e da ação reformadora sobre o povo das cidades, que vai nascer
(...) o desempregado moderno. (TOPALOV, 1990, p. 384-385).
Gautié (1998) argumenta a partir desse mesmo raciocínio: “o desemprego é bem mais
do que o novo nome de uma realidade muito antiga, a falta de trabalho, que teria
adquirido dimensões particularmente importantes com a industrialização. Ele remete,
antes, a uma categoria de ação, elaborada pelos reformadores sociais, e com isso se
coloca inteiramente na perspectiva da intervenção pública.” (GAUTIÉ, ibidem, p. 74).
Himmelfarb (1988) sugere que, até o século XVI, a concepção de pobreza era
fortemente marcada por um pensamento religioso. Assim, a pobreza era vista ou como
uma benção que se buscava devotamente ou como uma desgraça que deveria ser
suportada piedosamente. Esses dois tipos de pobreza eram personificados pelas
figuras do pobre santo – que adotava a pobreza como voto sagrado (para cumprir
melhor a vontade de Deus) – e do pobre ímpio, sem religião, que tinha de tolerar a
pobreza como um fato lamentável em sua vida.
80
Nesse momento, aqueles que não eram pobres tinham o dever sagrado da caridade,
eram obrigados a manter os pobres santos e a aliviar a miséria dos pobres ímpios.
Assim, todos os aspectos da pobreza e da caridade estavam imbuídos de um espírito
religioso e a Igreja constituía um instrumento de melhoria social e de salvação
espiritual. (HIMMELFARB, 1988) E a esmola seria, por sua vez, um meio de
salvação pessoal, fazendo do rico um “funcionário de Deus”. (SASSIER apud
GAUTIÉ, op. cit.).
Embora essa concepção de pobreza não tenha perdido toda sua justificação religiosa,
ela foi paulatinamente deixando de ser pensada a partir de idealizações do pobre, ou
seja, de uma natureza enobrecedora da pobreza. A pobreza vai deixando de ser uma
virtude e passa a ser entendida como uma desgraça a ser suportada piedosamente – o
pobre deveria tolerar a pobreza como um fato lamentável em sua vida
(HIMMELFARB, 1988).
Desse modo, entre o século XVI e o século XVIII, passa a haver dois tipos de
“pobres”: o “bom pobre” e o “mau pobre” e, para cada um desses tipos, cria-se um
tratamento específico. A figura do “bom pobre” referia-se aos indivíduos inválidos, às
crianças e aos velhos – ou seja, àqueles que eram incapazes de trabalhar. Apenas esse
“bom pobre” era “merecedor” da assistência da caridade cristã.
O “mau pobre” era definido como o pobre válido, que podia e deveria trabalhar, mas
que preferia viver de benefícios dos outros. O “mau pobre” foi personificado na figura
do “vagabundo” 50 ou mendigo, ao qual não cabia nem a assistência nem a caridade,
mas a repressão.
50
Castel (2003) interpreta a figura do “vagabundo” em outra chave, a partir do ponto de vista da
integração social. Nesse sentido, ele entende a existência dos “vagabundos” como a primeira evidência
de uma “questão social”. Sugere com isso que, naquele momento, já estava presente a problemática
social da insuficiência de trabalho para todos. Percebe-se que, na chave sugerida por Castel, a
incapacidade de auto-sustento passa a ser interpretada não como uma simples questão do indivíduo, tal
como era pensado na época, mas como um problema da própria sociedade.
81
Assim, como lembra Topalov (1994), a essa estratégia de classificação, os teóricos da
caridade iam definindo também planos de ação, que associavam aos “bons pobres”
um princípio caritativo (assistência aos inválidos, doentes e impotentes) e, aos “maus
pobres”, um princípio repressivo (proibição da mendicância, a expulsão dos
vagabundos, obrigação de trabalhar). É dessa maneira, portanto, que o tratamento da
questão social relacionava-se com ações que oscilavam entre a assistência (ou
caridade) e a repressão ou, ainda, entre a “força” e a “piedade”, tal como sugere a
discussão de Bronislaw Geremek, em La Potence ou la Pitié (GEREMEK, 1987).
Percebe-se, portanto, que o problema social não dizia respeito apenas àqueles que não
tinham trabalho, mas, ao contrário, era um problema vivido também por aqueles que
trabalhavam e, portanto, muito mais amplo que a questão anterior. A novidade do
sistema capitalista consistia em que mesmo aqueles que trabalhavam (e que eram,
portanto, “integrados”) viviam numa condição de miséria: “A era industrial começa: o
pauperismo nasceu”, resumia Émile Laurent (apud HATZFELD, 1971). A mesma
idéia é percebida numa citação inglesa lembrada por Hatzfeld (1971): “Uma
manufatura é uma invenção para fabricar dois artigos: algodão e pobres.” (ibidem, p.
9). Assim, o problema deixa de ser visto como uma desgraça providencial e/ou como
um vício individual e vai passando a ser entendido como fruto da nova dinâmica da
sociedade.
82
Segundo Himmelfarb (1988), a inovação de Engels foi ter se referido à miséria
decorrente da sociedade industrial inglesa através da noção de “proletariado”.
Nesse tratamento, percebe-se, por um lado, uma ênfase na novidade de sua condição:
embora sempre tenha existido “gente pobre e classes trabalhadoras, (...) estes pobres,
estes trabalhadores que estão vivendo nas condições indicadas [anteriormente] (...),
por conseguinte proletários, não existiram sempre” (Engels apud HIMMELFARB, p.
332). A especificidade é clara na seguinte passagem: “A história do proletariado na
Inglaterra começa na segunda metade do século passado [século XVIII] com a
invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a trabalhar o algodão”
(ENGELS, 1975, p. 15).
Mas, por outro lado, nota-se, em Engels (idem) um tratamento do “proletário” não
apenas como uma simples mazela social decorrente da industrialização – para tanto, o
termo “pauperismo” lhe serviria. Ele entende o proletário também como um ator
social e político. Afinal de contas, “o proletariado não é só uma classe que sofre; de
fato, esta situação vergonhosa do proletariado o impulsiona (...) e o faz lutar por sua
emancipação política”. (Engels apud HIMMELFARB, p. 331). E, ainda, nas palavras
de Engels:
83
“Manifesto do Partido Comunista”, de 1848) (MARX e ENGELS, 1998) e no
marxismo.
Asa Briggs ressalta a importância dessa “linguagem de classe” e sugere que ela tenha
representado “uma mudança básica não apenas na maneira como os homens viam a
sociedade, mas [também uma mudança] na própria sociedade” (idem). Ou seja, na
medida em que a percepção social muda, criam-se novas possibilidades para o futuro
da sociedade. Não é à toa, portanto, que a enunciação do social tanto como
“proletariado” quanto como “classe” foi tão fundamental para o rumo da história do
século XX – seja do ponto de vista da construção de regimes comunistas, seja do
ponto de vista da organização política dos trabalhadores, sobretudo em torno dos
sindicatos.
Assim, de modo geral, é possível perceber algumas variações do modo pelo qual a
questão social foi tratada ao longo da história. É evidente que, neste trabalho, não se
tem o objetivo (nem a pretensão) de esgotar essa temática. Mas, trazendo a discussão
para a especificidade do contexto latino-americano, nota-se que aqui também a
questão social nem sempre foi enunciada a partir simplesmente da idéia de “pobreza”.
Ou melhor, embora a idéia de pobreza tenha sempre existido – de fato, ela faz parte da
linguagem da vida cotidiana -, em certos momentos, outros conceitos foram mais
importantes que o de pobreza, quando o objetivo era explicar a questão social.
84
apontar para a especificidade da região no que se refere à enunciação da questão
social e, sobretudo, para o seu deslocamento.
2. Da marginalidade
51
Machado da Silva (1983) sustenta que as várias vertentes da chamada « teoria da marginalidade »
não representaram de fato a adesão a um marco teórico novo – isto é, alternativo à teoria da
modernização. Ao contrário, aplicaram o mesmo esquema analítico utilizado por esta teoria –
sobretudo, o modelo de sociedade dual do funcionalismo -, só que enfatizando as questões mais
problemáticas do desenvolvimento na América Latina.
85
Kowarick (1975) lembra que o processo de modernização pressuposto pela teoria da
modernização implicava:
Domingues e Maneiro (2004) ressaltam que Gino Germani entendia a estrutura social
- mundo “sociocultural” – a partir da idéia de interdependência, salientando que
modificações em alguma das partes da sociedade afetam, embora não de forma
imediata, as outras partes da sociedade e a estrutura social em geral. O processo de
modernização gerava, portanto, assincronias que se expressavam por aquele dualismo
social.
E continua:
86
causa, ou bem como conseqüência indireta, do desenvolvimento de outras
áreas). (ibidem, p. 44)
Assim, “a marginalidade é vista a partir de uma dualidade estrutural que opõe dois
termos ao longo de um contínuo em que um pólo, o marginal, é definido pela
ausência de um conjunto de características existentes no pólo inverso, o integrado.”
(KOWARICK, 1983, p. 48). E a idéia dessa figura do “integrado” é construída a partir
de uma concepção de cultura urbana. Assim, “os centros urbanos passam a constituir
um ambiente social peculiar, marcado por um modo específico de existência. (...) [O]
fenômeno da urbanização supõe uma maneira de viver” (ibidem, p. 50).
87
Como exemplo dessas “novas” teorias estavam: a noção de “cultura da pobreza”52, as
abordagens culturalistas que enfatizavam comportamentos e a “incapacidade” dos
indivíduos em absorver plenamente os padrões culturais da parte moderna da
sociedade e a “teoria da participação” defendida pelo DESAL53 (Centro para el
Desarrollo Econômico y Social de América Latina) – uma discussão que, segundo
Machado (1983, p. 222), “não extravasou o âmbito da perspectiva funcionalista, em
cuja base estava a concepção de uma sociedade dual”.
Jose Nun (1978) explicita inclinação marxista ao expor a proposta de seu trabalho:
“situar teoricamente o tema da marginalidade no nível das relações de produção, com
especial referência ao caso dos países capitalistas da América Latina” (NUN, 1978, p.
75). Seu objetivo específico é “estruturar a noção de massa marginal a partir de uma
crítica à identificação corrente entre as categorias de superpopulação relativa e de
exército industrial de reserva, assinalando as vantagens que derivam destas precisões
52
Conceito elaborado por Oscar Lewis (apud KOWARICK, 1975). A “cultura da pobreza” seria
marcada por “uma falta de participação e integração efetiva dos pobres nas instituições sociais mais
abrangente da sociedade inclusiva” (LEWIS apud KOWARICK, ibidem, p. 34) e representaria um
mundo à parte – uma subcultura. E “no âmbito do indivíduo os principais traços são um forte
sentimento de marginalidade, de desamparo, de dependência e inferioridade.” (idem). Assim, segundo
Kowarick, na noção de “cultura da pobreza”, está presente uma idéia de “marginalidade enquanto
essência”, uma ontologia própria da pobreza que se diferenciava do resto da sociedade.
53
O DESAL entendia a marginalidade como ausência de participação política.
88
teóricas.” (idem). O autor considera fundamental diferenciar esses dois conceitos da
teoria marxista que geralmente são vistos como sinônimos.
Resumidamente, como uma primeira diferenciação, Nun afirma que os dois conceitos
se situam em diferentes níveis de generalidade. Enquanto o exército industrial de
reserva corresponderia à teoria particular do modo de produção capitalista, o conceito
de superpopulação relativa pertenceria à teoria geral do materialismo histórico e
poderia ser usado para qualquer modo de produção. Assim, cada modo de produção
específico teria “suas próprias leis de crescimento da população e da superpopulação”
e determinaria os efeitos ou conseqüências que a existência da população excedente
vai provocar no sistema. Para avaliar e detectar as conseqüências ou os efeitos
produzidos pela superpopulação no sistema, Nun (op. cit) propõe a utilização da idéia
de função: “dados um elemento x e y, a relação entre ambos pode ser funcional,
disfuncional ou afuncional” (ibidem, p. 80).
A relação seria funcional quando a sobrepopulação serve ao sistema, quando ela tem
alguma função no desenvolvimento ou manutenção do mesmo. Seria disfuncional
quando a sobrepopulação é prejudicial ao sistema e a resposta deste último consiste
em eliminar o excedente de população - por exemplo, os povos primitivos em sua fase
coletora-caçadora. E, por fim, seria afuncional quando a sobrepopulação é supérflua e
indiferente ao sistema – por exemplo: os vagabundos medievais. O autor destaca que
o afuncional às vezes pode virar disfuncional, por exemplo, quando a consciência
política da sobrepopulação começa a questionar a dominação vigente.
Essa “função” é desempenhada, segundo Marx (1987), a partir de dois eixos: por um
lado, “grandes massas humanas têm de estar disponíveis para serem lançadas nos
89
pontos decisivos, sem prejudicar a escala de produção nos outros ramos. A
superpopulação fornece-as.” (ibidem, p. 734). Ou seja, esse “exército” deveria estar
disponível para quando o sistema demandasse mais mão-de-obra para a produção.
Por outro, a existência desse “exército” serve para controlar o patamar dos salários
daqueles que estão “na ativa”. Ou seja, regular os salários, não deixando que uma
eventual escassez de mão de obra faça com que os salários aumentem: “Em seu
conjunto, os movimentos gerais dos salários se regulam exclusivamente pela
expansão e contração do exército industrial de reserva, correspondentes às mudanças
periódicas do ciclo industrial.” (ibidem, p. 739)
Para Nun (1978), nem toda população excedente cumpre, na fase monopolista do
capitalismo latino-americano, essas funções de “exército industrial de reserva”. “O
cerne do pensamento [de Nun] orienta-se no sentido de afirmar que, à diferença do
capitalismo competitivo, na fase monopolista a relação entre superpopulação e
processo de acumulação tende a não ser mais ‘funcional’, isto é, a não se configurar
enquanto um exército industrial de reserva. Isto significa que parcelas da população
excedente tornam-se ‘afuncionais’ ou ‘disfuncionais’ para o processo produtivo”
(KOWARICK, 1975, p. 110).
Esse novo conceito implicaria “uma dupla referência ao sistema que, por um lado,
gera este excedente e, por outro, não precisa dele para continuar funcionando” (NUN,
op. cit., p. 100). Nun esclarece que o conceito de massa marginal “se trata de uma
distinção puramente analítica e que essas ‘partes’ só estão separadas no plano
conceitual. Sem prejuízo de que estudos concretos possam determinar quem tem uma
probabilidade maior ou menos de achar emprego (...) aqui se categorizam as relações
entre população excedente e o sistema, e não os agentes ou suportes mesmos dessas
relações.” (idem).
90
Mas o que deve ser enfatizado é que, para Nun, o fenômeno da massa marginal é
decorrente do surgimento do capital monopolista, já que grandes parcelas da
população vão perdendo suas funções que desempenhavam na época do capitalismo
do século XIX – “seu papel de redutor de salários, bem como deixam de servir ao
sistema nos momentos de sua expansão” (KOWARICK, op. cit., p. 111).
Já Kowarick (1975), por sua vez, também adota uma abordagem marxista para a
questão da marginalidade, mas diverge de Nun (1978) e de Quijano (1978) a partir do
questionamento da idéia de “massa marginal” ou “população marginal”, afirmando
que o fato de a população excedente aumentar, no contexto do capitalismo
monopolista, não significa que ela não tenha “funções” para o capital.
54
Kowarick (1975, p. 168) fundamenta sua análise da marginalidade no trabalho de Francisco de
Oliveira (2003), “Crítica da Razão Dualista”, de 1972, para quem a persistência de culturas de
subsistência na economia latino-americana não deveria ser interpretada como vestígios do passado, mas
ao contrário, como sendo funcionais ao sistema capitalista que se desenvolvia. Essa funcionalidade
existia já que aquelas atividades contribuíam: (i) para a redução do custo de reprodução da força de
trabalho nas cidades e, portanto, para o processo de acumulação e (ii) para financiar a acumulação
urbana, já que aquelas culturas de subsistência produziam um excedente que não podia ser reinvestido
em si mesmo. (OLIVEIRA, 2003, p. 129). É nesse sentido, portanto, que Oliveira criticou a
interpretação dualista, propondo que o sistema capitalista brasileiro fosse analisado como um todo.
91
peculiar de inserção nas estruturas produtivas, não-tipicamente capitalista,
mas também não é destituído de importância no processo de acumulação.
Para compreender o seu significado, é necessário analisá-lo à luz da teoria
das classes sociais que implica numa contradição básica e necessária entre
o capital e o trabalho (KOWARICK, op. cit, p. 173).
Mas, a despeito das divergências existentes entre esses autores, o que importa é
perceber que, de modo geral, a marginalidade é, para os marxistas, interpretada e
explicada a partir das relações sociais existentes no modo de produção capitalista; a
partir dessas relações, os autores explicam como a marginalidade é gerada, qual seu
lugar ou, ainda, qual sua função para o sistema capitalista.
92
marginalidade, articulação esta que produz identidade ao menos ao nível da aparência
do fenômeno percebido?” (ibidem, p. 227)
E, de modo geral, a discussão sobre a marginalidade era uma manifestação teórica que
trazia consigo uma crítica social. Segundo Fassin (1996), o uso da noção de
marginalidade não se resumia simplesmente a uma enunciação da questão social, mas
participava de sua denúncia. A “marginalidade (...) [era] um sinal do fracasso do
projeto modernista.” (ibidem, p. 268)
De outro lado, estava a teoria marxista que era mais crítica e pessimista, uma vez que
entendia a marginalidade como um problema gerado pelo próprio funcionamento do
capitalismo na região. Ou seja, o problema estava no próprio sistema - era preciso
reconhecê-lo. Mas, ao mesmo tempo em que era uma visão pessimista em relação ao
sistema, abria espaço para um certo otimismo em relação ao futuro, através da idéia
do conflito revolucionário, decorrente do agravamento e acentuação das contradições
sociais do sistema capitalista na região.
93
De fato, a figura do trabalhador (ou da “classe trabalhadora”) foi, desde princípios do
século XX – ou um pouco mais tarde, dependendo do país -, tradicionalmente um ator
chave nessas sociedades capitalistas que se modernizavam. Segundo Merklen (2005),
os “setores populares se integravam à sociedade através da Nação, adotando a
identidade de um povo trabalhador.” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 120)
Se, nesse contexto, a questão social se expressou e foi entendida a partir da noção de
“marginalidade” - relacionada com interpretações preocupadas com os processos
estruturais que a geravam -, mostrar-se-á posteriormente que, a partir dos anos oitenta,
o conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a
questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, na região, a
partir da idéia da “pobreza”.
Se, ao longo da “era dourada”, a questão social nos países centrais esteve
minimizada55, seja pela realidade da social-democracia – políticas de pleno emprego
associadas ao Estado de Bem Estar Social, no caso dos países da Europa Ocidental56 –
seja “via os efeitos ‘conta-gotas’ do crescimento sustentado do mercado livre nos
Estados Unidos”57 (WACQUANT, 2001, p. 22), na América Latina, durante esse
período, como já se viu, a questão social foi apresentada e discutida a partir da noção
de “marginalidade”.
55
Como entende a “questão social” do ponto de vista da integração, Castel (2003) sugere que, em
certos momentos, ela não está presente em algumas sociedades. Por exemplo, a sociedade até pode ter
muitos pobres, mas se isso não representar uma ameaça à coesão da sociedade como um todo, a
“questão social” não se coloca enquanto tal. Era o caso, por exemplo, da “sociedade salarial” – a
sociedade do welfare state francês.
56
Wacquant (2001) lembra que nesse período, na França, havia uma imagem rósea da “Nova
Sociedade” e afirma, citando Sinfield (apud Wacquant, p. 23), que “no decorrer dos anos 1970 não
houve ‘debate sobre a pobreza na França’, nem mobilização política em torno da questão, nem política
oficial para combatê-la.” A questão social era entendida como resíduo de desigualdades ou como
atrasos passados que poderiam ser resolvidos com as políticas do welfare state.
57
Nos Estados Unidos, a questão social era vista como produto de deficiências individuais, mas se
acreditava que esse problema tendia a retroceder e, inclusive, a desaparecer com a modernização da
nação. (WACQUANT, 2001).
94
Em decorrência daquelas profundas transformações discutidas rapidamente no
primeiro capítulo – reestruturação produtiva, financeirização da economia,
transformação do papel do Estado -, a partir dos anos oitenta, a questão social é
agravada em todas as partes do mundo. Se, para os países centrais, há o surgimento de
uma “nova questão social” (ROSANVALLON, 1995), há, no mundo periférico, seu
aprofundamento e expansão.
Essa novidade da questão social foi comparada, por alguns autores, com a emergência
da questão do “pauperismo” decorrente das mutações que marcaram a sociedade da
nascente revolução industrial. Segundo Paugam (1996, p. 8), cada período de grandes
transformações é marcado pelo nascimento e a difusão de um novo paradigma social.
A revolução industrial e suas conseqüências sobre o social provocaram indignação e
novas indagações nos observadores da época: o “pauperismo” caracterizava a entrada
na sociedade industrial.
Assim, as novas transformações pelas quais passaram as sociedades nos últimos trinta
anos, influenciaram também os modos pelos quais as sociedades se pensam, se
representam, formulam e enunciam os problemas a serem resolvidos. Desta maneira,
com o enfraquecimento do consenso em torno das políticas de bem-estar e de pleno
emprego, a fratura do modelo de sociedade - “a sociedade salarial”, nos termos de
Castel (2003) - da social-democracia e a ascensão do neoliberalismo – e de suas
tentativas em desvalorizar politicamente os problemas relacionados às políticas de
welfare -, a própria auto-imagem das sociedades começa a ser abalada e, com isso,
surgem mudanças no modo pelo qual a questão social é formulada.
95
social ou sobre uma pobreza residual - como era tratado nos prósperos anos dourados
- e se desloca, passando a receber novos tratamentos.
Mas é claro que o social não vem sendo tratado do mesmo modo urbi et orbi. Ao
contrário, em cada lugar, a questão social vem sendo debatida à sua maneira, uma vez
que existe uma variedade na maneira de conceber o mundo social – o que reflete
realidades sociológicas diferentes e, ainda, tradições intelectuais e políticas distintas
(FASSIN, 1996).
Embora o foco deste trabalho seja o atual tratamento dedicado à questão social na
América Latina, abordar-se-á sucintamente o modo como vem se desenvolvendo o
debate em outros contextos. Tomar-se-ão aqui, como exemplos, o enfoque dado à
nova questão social nos Estados Unidos, que parte da idéia de underclass, e o debate
na França, onde ele gira em torno da noção de exclusão. Finalmente, será tratada com
maior atenção a enunciação do social na América Latina, onde vem ganhando
centralidade uma idéia específica de “pobreza”.
É importante ressaltar que o fato de aqui ser apontada apenas uma abordagem para a
questão social (underclass, exclusão ou pobreza) para cada uma dessas realidades
(Estados Unidos, França e América Latina, respectivamente) não significa que sejam
os únicos modos usados para abordá-la, mas apenas que são os mais utilizados em
cada contexto.
Nos trinta anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, a questão social não
representava um grande problema para a sociedade americana. A despeito de ela
sempre ter existido nos Estados Unidos, havia a idéia de que a pobreza existente era
algo residual. O discurso público dominante era o de que a pobreza não tinha um
lugar no imaginário social daquele momento (CASTEL, 1978).
96
disse que não havia absolutamente nenhuma pobreza, (...) [mas a definiu] como um
problema minoritário.” (TRATTNER, op. cit, p. 251) Problema este que seria logo
resolvido, através daquela própria “abundância”. Era simplesmente uma questão de
tempo... O presidente Lyndon Johnson calculava, por exemplo, que – antecipando os
resultados de sua “Guerra à Pobreza”, lançada em 1964 - os Estados Unidos a
eliminariam por volta de 1976 (WACQUANT, 2001, p. 22).
Mas Castel (1978) reparou que não se tratava de uma negação da existência da
miséria, por parte do discurso dominante que exaltava a “sociedade da opulência”. O
fato era que não a entendia enquanto social, ou seja, ela não tinha um “estatuto” na
sociedade americana. Como não era uma questão, não precisava ser problematizada
nem gerava grandes preocupações. Era vista apenas como o inverso, a sombra, um
acidente, enfim, algo exótico, se comparado com a “normalidade” da sociedade
americana.
Essa imagem construída por oposição – e por negação – ao “normal” não existia
apenas enquanto efeito do discurso dominante, mas ela era, sobretudo, efeito do
próprio
Desse modo, nos Estados Unidos, a pobreza apenas assume um caráter “social” no
que diz respeito aos problemas que ela pode gerar para a sociedade; ela não é “social”
em sua origem nem em seu significado, uma vez que diz respeito apenas àquele
indivíduo que é “pobre”. E, nessa lógica de culpabilização da vítima - Blaming the
Victim (Ryan apud Castel, 1978) -, as políticas sociais se resumem a apenas uma
gestão social das deficiências individuais. E é esse, então, o fundamento das políticas
do bem-estar norte-americano, o qual se inscreve no modelo “liberal” (ou residual),
descrito por Esping-Andersen (1990).
Quando os movimentos pelos direitos civis dos anos sessenta ganham força e
mostram que a realidade dos negros não era simplesmente um detalhe ou um resíduo
da sociedade americana, aquela noção idealizada da sociedade americana começa a
97
ser questionada. Passa-se a entender a questão como conseqüência da existência de
uma forte relação entre falta de direitos civis e pobreza (TRATTNER, op. cit, p. 254).
Por outro lado, aquele otimismo em relação à sociedade americana foi questionado
por Gunnar Myrdal (apud WACQUANT, 2001, p. 96), em seu livro Challenge to
Affluence, de 1963, uma referência direta e contrária à idéia de The Affluent Society de
Galbraith. Naquele livro, Myrdal lança mão da noção de “underclass”, referindo-se a
existência de uma camada indivíduos que tendiam a se tornar mão-de-obra
inutilizável - um estrato supérfluo e miserável que era conseqüência dos progressos da
produtividade e da generalização do acesso à formação profissional (idem). Em última
instância, seu objetivo era mostrar que a existência da pobreza não seria absorvida
pelo crescimento econômico da sociedade norte-americana e, assim, sugerir que ela
estava vinculada a questões estruturais.
98
Por influência dos discursos midiáticos, ganhava força um novo conteúdo para a
noção de underclass: as dimensões comportamental e racial começaram a se tornar
cada vez mais dominantes. As novas abordagens para a underclass passam a estar
preocupadas em descrever estilos de vida, valores e “deficiências” comportamentais
de alguns indivíduos. É nesse momento que a underclass foi definida como uma
“coleção de comportamentos anti-sociais” (WACQUANT, 1996, p. 253).
Pierson e Castles (2002) afirmam que, no que diz respeito às críticas ao welfare state
norte-americano, Charles Murray esteve dentre os acadêmicos que sustentaram e
reforçaram as críticas “pela direita”, associando as políticas de welfare com o
aumento da pobreza e da criminalidade. “Murray foi fortemente identificado com a
idéia de que instituições de welfare state tendem a produzir uma ‘underclass’ social
ligada à criminalidade”. (PIERSON e CASTLES, tradução livre, 2002, p. 3)
De fato, Murray (2002) propõe uma leitura peculiar para os resultados da “Guerra à
Pobreza”. Embora os dados oficiais mostrassem que a pobreza tinha diminuído, o
autor argumenta que ela na verdade cresceu a partir do momento em que aumentaram
os gastos do governo. Murray defende que a pobreza não deve ser avaliada pela renda
– como faziam as estatísticas oficiais – mas a partir do conceito de “pobreza latente”.
Este conceito refere-se àquelas pessoas que seriam pobres se não tivessem a ajuda
governamental, na medida em que elas constituiriam uma “população dependente”
dessa renda. E, a partir dessa idéia de pobreza latente, o autor aponta para os efeitos
trágicos das políticas da War on Poverty, tais como os de desestimular as pessoas ao
trabalho, desestruturar as famílias estáveis, estimular atividades ilegais. Para ele, esses
efeitos faziam com que a “pobreza latente” aumentasse, uma cultura da dependência
se desenvolvesse e a underclass se formasse. Em outras palavras, Murray argumenta
que as políticas de War on Poverty tiveram como efeito a formação de uma
underclass.
Assim, aos poucos foi se popularizando a idéia - oriunda da crítica “pela direita” – de
que as políticas de bem-estar para pobres (residuais), ao invés de ajudar a amenizar a
questão da pobreza, haviam intensificado esse problema, já que os programas sociais
implementados teriam supostamente criado dependência em seus beneficiários,
corroído sua vontade de trabalhar, estimulado a desorganização das famílias e,
inclusive, aumentado à propensão à criminalidade.
99
Com isso, segundo Wacquant (WACQUANT, 1996, p. 254), a noção de underclass
passa a representar “a criminalidade violenta, (...) a depravação moral dos pobres (...)
e o peso fiscal julgado intolerável dos programas sociais instaurados sob a pressão dos
movimentos reivindicativos dos anos 1960” (idem) e a referir-se a “uma ladainha de
‘comportamentos’ tidos como contrários à ética americana. Sua localização
geográfica fixou-se no gueto e sua dimensão racial se enrijeceu ao mesmo tempo em
que se eufemizou: o termo condena os negros pobres, sem efetivamente se referir à
sua dimensão cor.” (idem)
Frente à confusão que envolve o debate sobre a underclass, Wacquant (2001) levanta
algumas questões que o ajudam a argumentar que esse termo é uma “palavra
perigosa”. Dentre essas questões, o autor afirma que: (i) a noção de underclass é uma
expressão daquela reviravolta ideológica (à direita) ocorrida nos EUA; (ii) seus
critérios definidores são múltiplos, imprecisos e heterogêneos – essa indeterminação
seria uma das fontes de sua popularidade, já que “permite aos que a invocam
redesenhar à vontade as fronteiras do grupo conforme seus interesses ideológicos”
(ibidem, p. 104) e, ainda, (iii) ao ser focalizada apenas a underclass, a importante
proliferação das populações em abandono (de todas as cores e origens) - resultante da
reestruturação em curso do capitalismo - acaba sendo deixada de lado.
Por fim, o autor conclui que o rótulo de underclass não é capaz de apresentar
100
3.3. O debate francês sobre a exclusão social
A partir dos anos oitenta, o debate francês sobre a “nova questão social” passa a ser
configurado a partir da idéia de precariedade e de “nova pobreza” (PAUGAM, 1991),
e, sobretudo nos anos noventa, em torno da noção de “exclusão”, que se tornou o
centro do debate público sobre a questão social na França. Essa centralidade do termo
“exclusão” é apontada por Serge Paugam:
O termo “exclusão” aparece pela primeira vez no início dos anos setenta com o livro
Les Exclus, de 1974, de René Lenoir, cujo objetivo era o de denunciar a realidade dos
“esquecidos do progresso”: prisioneiros, doentes mentais, alcoólatras, deficientes, etc.
(DONZELOT, 1996, p. 88). Tratava-se de uma “outra França” - outro possível título
para o livro de Lenoir, segundo Paugam (1996) -, na qual eram evidentes os
problemas dos excluídos (les exclus), que, a despeito do caráter “dourado” do período,
não deixavam de existir.
101
deveria ser investigada nos próprios funcionamentos da sociedade francesa
(PAUGAM, 1996). Mas, de todo modo, era uma questão residual.
Paugam (ibidem) explica que o debate na França passa a se organizar em torno desses
‘novos pobres’ e a nova preocupação passa a ser a de como tornar possível a sua (re-)
inserção no sistema econômico, num contexto de desemprego estrutural. Neste
momento, a RMI58 - instituída em 1988 - entra em cena como a política social
destinada a enfrentar – ou melhor, amenizar - o novo problema.
A partir do início dos anos noventa, o debate sobre a RMI e sobre políticas de
inserção se intensifica e, paralelamente, a noção de exclusão social se expande no
debate público e se torna uma noção chave para as reflexões e as polêmicas sobre a
nova malaise social. (DONZELOT, 1996). Durana (2002) também associa a aparição
e o uso generalizado da idéia de “exclusão social” - nos Estados europeus em geral -
ao aumento das políticas assistencialistas concebidas “para prestar ajuda ou proteção a
quem não a obteve por outros modos” (DURANA, 2002, p. 2).
58
A RMI (Revenu Minimum d’Insertion) é uma “renda mínima de inserção” destinada aos residentes
na França cujos rendimentos sejam inferiores a um determinado piso.
102
Donzelot (1996) argumenta que a constante preocupação com a “luta contra
exclusão”, além de referir-se a um novo problema social, serve, sobretudo, para
mascarar uma transformação nas formas de intervenção social. Isto pode ser
percebido inclusive ao se observar a mutação que sofre o próprio significado de
“exclusão”.
Boltanski (1999) ressalta que, no âmbito específico das ciências sociais, a maneira de
articular e formular seus questionamentos também sofreu mutações:
E o autor continua:
103
a literatura abundante acumulada durante os dez últimos anos sobre
organizações e trabalho (...) deixa cada vez mais essa questão na sombra.
Nós assistimos de fato a uma transformação do debate social: estruturado
em torno do tema das desigualdades até fim dos anos 70, ele pouco a
pouco se deslocou para [a temática] (...) da exclusão. (idem).
Essa ausência de uma crítica social mais profunda (como a sugerida pela noção de
“exploração”) no debate francês contemporâneo pode ser percebida na maneira pela
qual a “exclusão” tem sido entendida. Na maior parte das análises, ela é vista como
um estado (dos excluídos), e não como um processo social. O uso da noção de
exclusão acaba sendo frequentemente associado - seja no debate público em geral,
seja no debate acadêmico – a um simples esforço descritivo dos “excluídos”,
procurando traçar suas variadas formas de manifestação.
Segundo Procacci (1996a), a noção de exclusão deve ser criticada porque ao enfatizar
a condição do excluído, ela obscurece o processo social que a gera. Assim, ao mesmo
tempo em que a ênfase recai na análise de trajetórias dos excluídos – isto é,
quantifica-se e descreve-se sua condição -, em vez de identidades coletivas, por
exemplo, toma-se como pressuposta uma sociedade dual (dentro-fora).
Consequentemente, a “exclusão” é entendida simplesmente como aquilo que está “de
fora” – uma realidade aparentemente autônoma -, e não enquanto resultado de um
processo social.
104
suas instituições. E é justamente isso que a “exclusão” ajuda a mascarar. (BALIBAR
apud PROCACCI, 1996a)
Entretanto, ao ser inespecífica, essa noção tem, ao mesmo tempo, mais facilidade de
se generalizar. Ela pode ser utilizada para explicar ou caracterizar situações ou
populações das mais diversas, que muito pouco têm em comum. (PAUGAM, 1996, p.
17) Essa abrangência, generalidade e banalização da exclusão podem ser percebidas
nos textos sobre “exclusão” reunidos no livro L’Exclusion – l’État des Savoirs,
organizado por Serge Paugam, cujo objetivo é reunir trabalhos de áreas variadas que
ajudem a esclarecer o conceito de exclusão – o novo “paradigma societal”. (ibidem, p.
7)
59
Ao lado do objetivo inespecífico de tratar da “exclusão”, sempre há um objetivo central. Paugam
(1996) aponta três grandes orientações ou preocupações teóricas que estão presentes nos artigos do
livro: (i) reprodução das desigualdades; (ii) enfraquecimento dos laços sociais; (iii) atuais limites das
políticas sociais.
105
autores participantes do livro a problematizam ou a rejeitam (rejeição pela ênfase em
sua inespecificidade ou pela recusa de sua utilização).
Frente à generalidade dessa noção, percebe-se que ela acaba servindo para designar
quase tudo, não tendo, portanto, muito valor do ponto de vista das ciências sociais.
Assim, se, por um lado, “exclusão” tenta ser uma noção crítica – na medida em que
procura apontar para os novos contornos das mazelas sociais existentes no capitalismo
contemporâneo -, por outro lado, é falha ou inespecífica no que diz respeito à
denúncia dos processos sociais geradores dessas mesmas mazelas. É o que aponta, por
exemplo, Claude Dubar (autor participante da obra L’Exclusion – l’État des Savoirs),
referindo-se a Jean-Marie Delarue, na seguinte passagem:
Messu (1997) sustenta que aquelas considerações feitas por Loïc Wacquant (1996)
sobre a underclass nos Estados Unidos – apontadas na seção anterior – se aplicam
60
Castel (2003) prefere utilizar o termo “desfiliação”, uma vez que a noção de exclusão: “é estanque.
Designa um estado, ou melhor, estados de privação. Mas a constatação de carências não permite
recuperar os processos que engendram essas situações.” (p. 26) A idéia de “desfiliação”, segundo o
autor, permite que se reconstrua o processo social e remete, ao mesmo tempo, aos desafios da
integração social.
106
“mutatis mutandis, à “exclusão” na França. A underclass, mostra o autor [Wacquant]
retraçando a história tumultuosa da noção, engendra uma grande ‘indeterminação
semântica’” (MESSU, tradução livre, ibidem, p. 159). E, com isso, Messu (ibidem)
sugere que o peso exercido pelo senso comum (influenciado pelo discurso midiático)
sobre as noções de exclusão e de underclass é tal que acaba fazendo delas “pseudo-
conceitos”. Ou seja, são termos que não tem valor cognitivo e que, por isso, devem
ser descartados por uma sociologia que pretenda ser “rigorosa” e que se recuse a se
reduzir a uma “sociologia do senso comum”. (ibidem, p. 161)
Embora o debate sobre a exclusão social tenha nascido na França, a atual utilização
desse conceito não é de exclusividade francesa. O protagonismo das instituições
européias no ressurgimento do debate sobre a nova questão social constitui, segundo
Durana (2002), o antecedente do surgimento e generalização do conceito de exclusão
social nas discussões sobre políticas sociais na Europa como um todo. Não cabe aqui
um estudo pormenorizado sobre a utilização desse conceito nessas instituições, mas
vale a pena apontar e sublinhar a relevância e influência que têm as suas discussões
sobre os debates (acerca da questão social) dentro de cada realidade nacional,
principalmente no âmbito das políticas públicas.
Viu-se também que, a partir dos anos oitenta, há uma preocupação em se explicar e
entender a “novidade” social decorrente daquelas transformações já ressaltadas no
primeiro capítulo. Nos países do centro do sistema, essa novidade se apresenta
enquanto reaparecimento de algo que havia sido, em grande medida, superado pela
realidade das sociais-democracias européias ou, ainda, como o surgimento de um
107
“corpo estranho” que se contrapõe ao padrão de sociabilidade norte-americana. Para
expressá-la, novos termos passam a ser utilizados, tais como “exclusão” e underclass.
Embora a idéia de pobreza tenha uma longa história, não se pode negar que ela tem
conquistado notória centralidade e assumido um conteúdo bastante específico,
sobretudo nos últimos vinte anos. Para desenvolver um pouco essa idéia da
especificidade da atual utilização do conceito de “pobreza”, é de grande utilidade que
se parta da afirmação feita por Koselleck (1992) acerca da novidade dos conceitos: “A
história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são
produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas.”
(KOSELLECK, 1992, p. 140)
Para desenvolver essa idéia, Koselleck (1992) dá o exemplo de societas civilis. Esta
expressão aparece em Cícero como uma tradução para o latim do conceito de
koinonia politike (a Política), uma formulação de Aristóteles. Koselleck afirma que
embora a palavra permaneça a mesma (como tradução daquele conceito), o fato de ela
ser utilizada num quadro histórico totalmente diverso da realidade da pólis grega -
com sua comunidade de cidadãos, etc. – faz com que seu conteúdo se altere
substancialmente, reafirmando, portanto, o caráter único dos conceitos.
A distinção que ele faz entre koinonia politike e societas civilis (a despeito de esta
última ser uma tradução daquela) fica clara na seguinte passagem: “O que portanto é
uma societas civilis depende do momento em que o termo é empregado, se no
108
primeiro ou quarto século depois de Cristo. Isto significa assumir sua variação
temporal, por isso mesmo histórica, donde seu caráter único (einmalig) articulado ao
momento de sua utilização.” (KOSELLECK, 1992, p. 138)
Assim, de uma mesma palavra, um novo conceito pode ser forjado e, portanto, “ele é
único a partir de uma nova situação histórica que não só engendra essa nova
formulação conceitual, como também poderá se tornar através dela inteligível.”
(ibidem, p. 140)
O mesmo pode se afirmar sobre a palavra “pobreza”. Embora essa palavra tenha
sempre existido na história da humanidade, ela hoje assume um conteúdo e um
significado específicos, que dizem respeito ao mundo contemporâneo, no qual o
ideário neoliberal tem se mostrado hegemônico. Assim, se no contexto do
desenvolvimentismo latino-americano a nação era composta por um povo trabalhador
(MERKLEN, 2005) e sua questão social era expressa em termos de “marginalidade” e
o conteúdo dessa idéia estava diretamente relacionado a esse contexto, pode-se dizer
que hoje não o é mais.
109
precarização do emprego –, inclusive, sem se referir às atuais formas de exploração e
de dominação das classes populares. Com isso, eles acabam sendo sintetizados e
tratados pelo termo “pobreza”, cuja “resolução” é entendida simplesmente como uma
redução da quantidade de pobres no mundo.
Loïc Wacquant (2001, p. 10) faz uma distinção entre as noções de “conceito
folclórico” e “conceito analítico” e afirma que os conceitos folclóricos são aqueles
usados pelos administradores públicos, pelas autoridades urbanas, pela população,
etc., enquanto que os conceitos analíticos são aqueles que a pesquisa social deve se
preocupar em construir para desvendar a “maquiagem” da sociedade, para assim
poder compreendê-la. De modo geral, é possível sugerir que a noção de “exclusão”61
estaria mais inserida no debate acadêmico, sobretudo nas ciências sociais, ou seja,
como “conceito analítico”, enquanto que a noção de “pobreza” tem ganhado enorme
centralidade tanto quanto “conceito folclórico”, como quanto “conceito analítico”,
num debate que vem sendo fortemente influenciado por economistas.
110
Diante do aprofundamento dramático da questão social, começam a ser criadas
múltiplas metodologias para definir e mensurar a pobreza e, na medida em que as
políticas de “combate à pobreza” se tornam hegemônicas enquanto proposta de
intervenção sobre o social – como se verá mais à frente -, esses critérios de definição
e mensuração da pobreza se desenvolvem continuamente.
62
Por exemplo: Pobreza no Brasil. Afinal, de que se trata ? , livro de Sônia Rocha (2003) voltado para
a conceituação da pobreza - algo tido como indispensável quando o objetivo é a sua mensuração e a
implementação de políticas focalizadas nos pobres.
111
dimension de la pobreza em América Latina”] com o objetivo de determinar a
amplitude da pobreza na América Latina” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 112)
cujo método se baseava justamente no critério “absoluto” da pobreza. Merklen
destaca a importância desse estudo, enfatizando que ele “influenciou os institutos
públicos de estatísticas de cada país assim como outros numerosos centros de
pesquisa que se voltaram à avaliação da pobreza. De fato, (...) a CEPAL ocupa uma
posição que a permite irradiar [suas idéias] tanto sobre [o meio] acadêmico [quanto]
em direção aos Estados.” (idem).
Essa metodologia que procurar estabelecer ou traçar linhas de pobreza tem sido
utilizada a nível regional - por exemplo, sugerida pela CEPAL (2000) –, a nível
nacional – elaborada e discutida pelos institutos de pesquisa e de estatística de cada
país - e, ainda, a nível internacional - por exemplo, por iniciativa do Banco Mundial,
que em certos momentos sugere que o limite entre a pobreza e a não-pobreza esteja no
limiar de US$1/dia ou US$2/dia, per capita.
63
Desde o início da década de oitenta, Rocha têm sido uma das referências no que diz respeito à
definição de linhas de indigência e de pobreza no Brasil.
112
metade da renda média.” (ibidem: 51) A pobreza relativa “situa o indivíduo na
sociedade (...) seu rendimento é comparado ao dos outros”. (idem)
113
As Necessidades Básicas Insatisfeitas (...) formam a base de um método
de avaliação da pobreza que compara a situação de cada grupo familiar,
quanto a um conjunto de necessidades específicas, com uma série de
normas que expressam o piso de necessidades de cada um, abaixo do qual
o grupo familiar é considerado insatisfeito. Se uma ou várias necessidades
essenciais do grupo familiar não são satisfeitas, a família é considerada
pobre, da mesma forma que todos os seus membros. (SALAMA e
DESTREMAU, op. cit, p. 76)
Sen parte do pressuposto de que existem variações entre os indivíduos no que diz
respeito à conversão na conversão de meios (recursos ou bens primários) em
“liberdade de realizar” (fazer ou alcançar seus objetivos ou fins). Ou seja, o fato de
duas pessoas possuírem os mesmos recursos não significa que necessariamente elas
serão igualmente livres para realizar, dado que cada uma delas irá converter seus
recursos em liberdade de maneiras diferentes – uma podendo ter mais facilidade de
convertê-los que a outra. Deste modo, os recursos (ou bens primários) que uma pessoa
tem – por exemplo, a renda - não são um bom indicador de quanta liberdade de fato
ela consegue desfrutar.
Nesse sentido, percebe-se que “o autor opera o deslocamento do ter para o ser e
fazer.” (HASENBALG, 2003, p. 459) Sen (2001) recomenda que a abordagem da
114
“capacidade para realizar” seja incorporada aos estudos sobre a pobreza – que deve
ser entendida como uma deficiência de capacidades básicas para alcançar certos
níveis minimamente aceitáveis de bem-estar - e aqui reside a inovação prática de seu
trabalho. É um avanço em relação à abordagem da “linha de pobreza” e uma crítica a
ela.
Esta nova concepção de pobreza trazida por Amartya Sen, isto é, a partir de uma
abordagem muito mais ampla do que aquela que a define a partir da renda, teve
conseqüências práticas, por exemplo, quando o PNUD a aproveitou para transformá-
la em base conceitual e metodológica de seus trabalhos sobre o desenvolvimento dos
diversos países. Um exemplo disso foi a criação do IDH (Indicador de
Desenvolvimento Humano), que é uma medida (e não um patamar) das realizações
médias do desenvolvimento humano básico num único índice composto, que engloba:
renda (calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego
da metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade
(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação
entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior).
(PNUD, 2001: 144). O IDH é publicado pelo PNUD anualmente, desde 1990, em seu
“Relatório de Desenvolvimento Humano”.
115
que não devem passar dos 40 anos, enquanto o IPH-2 considera a percentagem de
pessoas que não devem passar dos 60 anos. Esta distinção decorre da idéia de que a
“privação humana varia com as condições sociais e econômicas da comunidade”.
(ibidem, p. 18)
No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, foram lançados os “mapas da
fome” Mapa da Fome I, II e III - pelo IPEA (1993), em 1993, e o “mapa do fim da
fome” (elaborado pela Fundação Getúlio Vargas, em julho de 2001), por exemplo,
tem como objetivo “[avaliar] a extensão da indigência e o custo da sua erradicação a
nível nacional e das unidades da federação na década de 90; (...) apresentação do
sistema de metas de pobreza e do conceito de metas sociais; apresentação (...) dos
índices de pobreza.” (CPS/FGV, 2001, p. 3)
116
a ser resolvida no mundo contemporâneo, ponto que será desenvolvido mais adiante,
no próximo capítulo.
Por agora, o que importa é enfatizar, por um lado, essa atual centralidade da temática
da “pobreza” no tratamento da questão social e, por outro, o deslocamento da
discussão que é percebido de um momento ao outro: da marginalidade à pobreza.
Se, por um lado, é possível dizer que a enunciação se deslocou porque houve grandes
transformações estruturais na sociedade – como sugere a seguinte passagem de Mary
Douglas (1998):
Ou seja, enfatizando a gênese social das categorias à qual Émile Durkheim se referia
(DURKHEIM, 1996; 1999), poderia ser sugerido que, diante de novos problemas, são
necessárias novas maneiras de pensá-los, tratá-los, enunciá-los – para que seu
enfrentamento seja possível.
Mas, por outro lado, é possível afirmar que a transformação da enunciação da questão
social ocorra também pela predominância de certa(s) visão(ões) de mundo – ou
ideologias – que se fazem presentes a cada momento na sociedade. Cada ideologia
tem uma maneira específica de perceber e entender o mundo e, portanto, de entender a
“questão social”. Consequentemente, como se verá mais adiante, é a partir da política
que “questão social” é moldada, enunciada e problematizada.
117
Capítulo IV – A QUESTÃO SOCIAL COMO “POBREZA”
Nesse sentido, por que hoje a questão social tem sido predominantemente tratada a
partir de “pobreza”? Por que, quando se fala hoje em resolver a questão social, se
pensa em “combater a pobreza” ou ainda “reduzir a quantidade de pobres” do mundo?
Num momento em que a crítica se encontra enfraquecida (BOLTANSKI, 1999) –
sobretudo se comparada com aquela forte crítica existente nos anos sessenta – e de
hegemonia do pensamento neoliberal, aquela “batalha de classificações” destacada
por Topalov (1994) parece não ser tão intensa. A luta pela classificação do mundo
parece ter sido facilmente dominada pelos “porta-vozes”64 da globalização: os
organismos internacionais.
Faz-se necessário, portanto, entender melhor como vem se constituindo essa nova
forma de classificação do social. Diante da proliferação das recomendações de
políticas de “combate à pobreza” e dos estudos voltados para a mensuração do
número de pobres, percebe-se que o social vem sendo enunciado a partir da
64
Tomando, por exemplo, o relatório (World Development Report) do Banco Mundial de 1991,
dedicado inteiramente ao tema do “desenvolvimento” - The Challenge of Development -, é possível
perceber claramente esse papel de porta-voz da globalização neoliberal. Além de propor que o Estado
não atrapalhe o “bom” funcionamento dos mercados e que só atue “naquelas áreas que são inadequadas
para o mercado” (WORLD BANK, 1991, p. iii), destaca-se também outra das afirmações/metas
enfatizadas: o “desenvolvimento econômico de sucesso requer a integração dos países na economia
global. Abertura para os fluxos internacionais de bens, serviços, capitais, trabalho, tecnologia e idéias
estimula o crescimento econômico” (idem).
118
“pobreza”. É preciso, portanto, compreender quais são as conceituações e
instrumentos de intervenção que vem sendo propostos como modelo a ser seguido
pelos governos do mundo todo, sobretudo, os dos países periféricos.
Embora o discurso do “combate à pobreza” seja voltado muitas vezes para o “mundo
inteiro”, seus principais receptores são os países periféricos. Isto não quer dizer que
esse discurso não repercuta nos países centrais65, mas é inegável que ele tem maior
influência sobre os periféricos.
65
O debate sobre a “pobreza” é relevante nos países centrais, mas, como já visto no capítulo anterior,
na França ou nos EUA, trata-se da questão social de maneiras diversas: a partir da noção de “exclusão”
e de “underclass”, respectivamente.
119
1. A emergência do discurso internacional sobre a “pobreza”
66
Conferência proposta pelo governo norte-americano, em 1944, e cujo principal objetivo foi organizar
a nova ordem econômica do pós-guerra.
67
A ONU foi fundada após a 2ª Guerra Mundial com o objetivo de manter a paz e a segurança no
mundo. As Nações Unidas são constituídas por seis órgãos principais: a Assembléia Geral, o Conselho
de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de
Justiça e o Secretariado. Ligados à ONU, há organismos especializados que trabalham em áreas tão
diversas como saúde, agricultura, aviação civil, meteorologia e trabalho – por exemplo: a OMS
(Organização Mundial da Saúde) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho).
120
mexicano de 1982” (COELHO, 2004). Nesse sentido, Coelho (2004) ressalta que
esses programas tiveram “uma roupagem inicial de curto prazo” (ibidem, p. 2)
Mas, aos poucos foi se percebendo que essas propostas não eram de curto prazo. Seu
conteúdo se mostrava em total consonância com o receituário do chamado “Consenso
de Washington” e se resumia a recomendações de políticas de ajuste de cunho
neoliberal, cujos eixos principais eram a retração do papel estatal, privatizações,
abertura comercial e desregulamentações. Muitas dessas propostas foram colocadas
em termos condicionalidades (isto é, a adoção de determinadas políticas) em troca da
concessão de empréstimos.
Com a progressiva ampliação de suas funções, o Banco Mundial vai atuando cada
vez mais como órgão político central, como uma espécie de coordenador do processo
global de desenvolvimento. Para tanto, o Banco elabora “documentos políticos, nos
quais se destaca uma considerável produção teórico-conceitual na área da política
econômica e social a qual, certamente, sinaliza a sua relação com as nações-
membros” (FONSECA, 1998).
121
Na prática, portanto, esses organismos não atuaram simplesmente como fornecedores
de uma ajuda momentânea, de curto prazo. Ao contrário, ampliaram suas funções
técnicas e financeiras, assumindo cada vez mais um papel político, mediante a
formulação de políticas globais e setoriais capazes de influenciar a agenda dos países
credenciados para seu financiamento. Eles passaram a atuar, em última instância,
como poderosos propagadores da ideologia legitimadora da globalização neoliberal,
conseguindo interferir na condução das políticas domésticas daqueles países, as quais
representaram, em seu conjunto, uma ampla agenda baseada, nos termos de Stiglitz
(2002b), num “fundamentalismo ideológico de mercado”.
Seria simplificador, entretanto, afirmar que a adoção das políticas de ajuste estrutural
nos países periféricos tenha sido resultante pura e simplesmente de uma imposição
por parte dos organismos internacionais. Se, por um lado, esses países passavam por
dificuldades e precisavam negociar suas dívidas externas – e, nesse sentido,
precisavam obedecer ao que lhes estava sendo proposto -, por outro lado, é preciso
levar em conta também houve uma adesão ao caminho neoliberal por parte dos
governos conservadores latino-americanos. É o que se percebe na afirmação de
Batista (1994) acerca da guinada conservadora:
E o autor continua:
Desse modo, não se pode dizer que a implantação de uma agenda neoliberal nos
países latino-americanos tenha sido pura imposição, mas sim que ela conseguiu
construir uma hegemonia no continente. De qualquer maneira, seja porque precisavam
renegociar suas dívidas externas e tomar novos empréstimos – e, portanto, era preciso
122
“obedecer” às condicionalidades -, seja porque na década de oitenta observou-se um
predomínio do neo-conservadorismo nos governos latino-americanos – ou ainda (o
mais provável) pelos dois motivos -, o fato é que a agenda desses governos esteve
voltada para a implementação do neoliberalismo na região, e, portanto, alinhada com
as recomendações dos organismos internacionais.
Se, nesse período, essas propostas estiveram voltadas para o ajuste estrutural, diante
do agravamento das condições sociais decorrentes das políticas de ajuste (por
exemplo, aumento do desemprego, da informalidade, da precarização do emprego,
redução dos salários), dimensões mais “sociais” ou “humanas” (que tinham
desaparecido da formulação de políticas “de desenvolvimento” - em prol da dimensão
econômica) vão emergindo pouco a pouco. Cling, Razafindrakoto e Roubaud (2003)
ressaltam três motivos para que os organismos internacionais tenham se voltado para
questões daquelas naturezas, lançando estratégias de “luta contra a pobreza”, as quais
vêm, por sua vez, ocupando o centro de suas ações: (i) a constatação dos altos custos
do ajuste, (ii) a proliferação das críticas (internas e externas) ao Consenso de
Washington e à globalização neoliberal e (iii) os questionamentos da legitimidade dos
organismos internacionais.
Ao longo dos anos noventa, várias conferências internacionais das Nações Unidas
contribuíram em seguida à uma tomada de consciência dessa questão. O primeiro
Human Development Report do PNUD aparece em 1990 com a preocupação de tratar
da “dimensão humana do desenvolvimento” (PNUD, 1990) e, nesse mesmo ano, o
123
Banco Mundial dedica inteiramente seu World Development Report ao tema da
pobreza68 (WORLD BANK, 1990).
Ao dizer que se deve ir além, percebe-se que Stiglitz assume que a proposta do
Consenso de Washington já é um começo, embora seja insatisfatória para o
68
Embora o Banco Mundial já tivesse se dedicado antes à temática da pobreza – nos tempos em que
era presidido por Robert McNamara (o que pode ser percebido pelos relatórios de 1978, Prospects for
Growth and Alleviation of Poverty, e o de 1980, Poverty and Human Development) -, o fato de a
instituição ter se dedicado uma década inteira aos programas de estabilização e de ajuste estrutural faz
com que o reaparecimento do tema da pobreza, no relatório de 1990 – Poverty -, possa ser entendido
como uma “novidade”.
124
desenvolvimento da sociedade. Em última instância, Stiglitz acaba não discordando
de suas premissas e acreditando nos benefícios do capitalismo globalizado. Fiori
(2001) argumenta nesse sentido:
125
pelas estruturas sociais da região sob o influxo das políticas neoliberais
durante a década. (SEOANE e TADDEI, 2001, p. 169)
69
A grande conquista desses movimentos parece ser a de tentar recriar a utopia no mundo
contemporâneo. Na medida em que se afirma que “um outro mundo é possível”, é questionada, ou
mesmo derrubada, a tese do “fim da história” dos anos oitenta/noventa e abrem-se novos horizontes
para o mundo social, muito embora não esteja claro de que horizontes se tratam.
70
Em relação ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, por exemplo, Emir Sader (2003) afirma que o
fato de seu Comitê Organizador ter sido composto majoritariamente por organizações não-
governamentais fez com que o caráter do evento fosse o de “espaço de aglutinação da ‘sociedade
civil’”, fato do qual Sader destaca duas problemáticas. Por um lado, ressalta a possibilidade de
“coincidências perigosas do resgate da “sociedade civil” com movimentos neoliberais (...), [as quais,
contudo,] não tiveram até aqui efeitos negativos que desfigurassem o caráter (...) antineoliberal dos
fóruns” (SADER, 2003, p. 86). Por outro lado, Sader afirma que essa opção pela “sociedade civil”
também “deixa de fora os partidos e os governos, ao assumir a oposição sociedade civil/Estado. Esse
aspecto é mais grave, não apenas porque um movimento antineoliberal não pode prescindir de
nenhuma força numa luta ainda tão desigual, mas principalmente porque se abstrai das temáticas do
poder, do Estado, da esfera pública, da direção política e até mesmo, de alguma forma, da luta
ideológica.” (idem). E continua: “esse aspecto termina sendo grave porque, se levado estritamente
adiante, limita a formulação de propostas alternativas ao neoliberalismo. Nesse caso, a busca de
alternativas fica restrita ao marco local (...) sem propostas globais de projetos negadores e superadores
do neoliberalismo como proposta global do capitalismo” (ibidem, p. 87).
71
Reunidos em torno da idéia de que “um outro mundo [ou outra globalização] é possível”.
72
Boltanski (1999, p. 70-71) destaca três possíveis efeitos da crítica sobre o “espírito do capitalismo”:
(i) ela pode deslegitimar o espírito vigente, minando as modalidades de adesão social a ele associadas;
(ii) a crítica força o capitalismo a respondê-la. Para conservar a adesão social, o espírito do capitalismo
126
Por fim, em terceiro lugar, somado àqueles dois fatores já ressaltados – a evidência
das mazelas sociais e a proliferação das críticas - um outro motivo é destacado por
Cling et alli (2003) para que os organismos internacionais tenham se voltado para
questões “mais sociais”. Cling et alli (2003) o entendem como uma “crise de
legitimidade” dos organismos internacionais. Embora o termo seja demasiado forte, e
não pareça ser o caso, é importante perceber que esses organismos passaram por
questionamentos73 de sua legitimidade, o que também contribuiu para uma
“mudança” da retórica internacional.
Outro exemplo para essa mudança de retórica seria também o fato de o FMI ter
mudado a denominação e o enfoque de seus programas:
absorve ou incorpora em si mesmo alguns dos elementos ressaltados (denúncias, valores, etc.) pela
crítica; (iii) a crítica leva a transformações internas no próprio processo de valorização do capital que
demandam outras formas de justificação. O “mundo [fica] momentaneamente desorganizado em
relação aos referentes anteriores e (...) [se torna indecifrável]. (...) a crítica se encontra desarmada
durante um tempo. O velho mundo que denunciava desapareceu, mas ainda não se sabe o que dizer do
novo. A crítica atua como um estimulante para acelerar a transformação dos modos de produção, os
quais entram em tensão com as expectativas dos assalariados formados com a base nos processos
anteriores, o que chamará a uma recomposição ideológica destinada a mostrar que o mundo do trabalho
tem ainda um «sentido»”. (BOLTANSKI, tradução livre, 1999, p. 71)
73
No lugar de “crise”, parece se adequar melhor à situação a idéia de “questionamentos”.
74
Esta frase se encontra escrita na parede da entrada da sede do Banco Mundial, em Washington.
127
(...) [daqueles] países (...), o serviço para o crescimento e a luta contra a
pobreza (SCLP). (FMI, 2001)
Essa “nova agenda” poderia ser interpretada, em certa medida, como uma resposta
dos defensores (e legitimadores) do sistema àquelas críticas, a partir da incorporação
de alguns dos pontos por elas levantados – um dos efeitos da crítica levantados por
Boltanski (1999, p. 71). Ou seja, diante da necessidade de levar em consideração os
efeitos sociais nefastos resultantes da implementação da agenda do ajuste, a retórica
internacional começa a se transformar e passa a levar em consideração o “lado social”
e a centrar-se na questão do “combate à pobreza”.
128
Os organismos internacionais que mais têm se dedicado ao tema da pobreza e do
“combate à pobreza” são o Banco Mundial75 e o PNUD76 (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento). Embora a OIT (Organização Internacional do
Trabalho) não faça do “combate à pobreza” seu principal objetivo ou mesmo sua
raison d’être, ela também tem se dedicado à questão e, portanto, também merece
atenção77.
Para entender como a questão social vem sendo tratada atualmente, é preciso atentar
para o conceito de “pobreza”, como ele vem sendo formulado e mobilizado. Para
tanto, serão analisados os relatórios anuais desses organismos, com destaque para
aqueles que se dedicam especificamente à temática da “pobreza”.
75
“Atualmente, a principal meta do trabalho do Banco Mundial é a redução da pobreza no mundo em
desenvolvimento.” - http://www.obancomundial.org/index.php/content/view/6.html
76
“O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem como mandato central o combate à
pobreza.” - http://www.pnud.org.br/pnud/
77
Num primeiro momento, talvez pudesse se considerar que seria também conveniente examinar a
CEPAL, uma vez que é uma instituição que, desde sua criação, procurou assumir uma postura crítica
em relação ao pensamento dominante e construir uma interpretação alternativa para os problemas e
desafios latino-americanos. Mas, a despeito disso, tal empreitada não se justifica para os propósitos
deste trabalho, uma vez que a CEPAL não tem a temática da “pobreza” no centro de suas preocupações
- só incorpora o discurso do “combate à pobreza” a partir do ano 2000 - e, sobretudo, porque, a
despeito dessa incorporação, percebe-se que não há uma discussão específica sobre o que é a pobreza e
quais são suas causas. Ao contrário, sua preocupação para com a pobreza é mais em descrevê-la - e de
fornecer informações sobre sua realidade (evolução da pobreza, sua distribuição espacial, dentre
outros) (CEPAL, 2004) - do que em trabalhar conceitual e teoricamente a questão. Assim, quando a
CEPAL trata da “pobreza”, ela utiliza definições externas, tal como a de “linha de pobreza” – bastante
presente em seu Panorama Social (CEPAL, 2000; 2004). Desse modo, para evitar repetições
cansativas, a CEPAL não entrará nesta discussão.
129
2. Os discursos dos organismos internacionais: a “pobreza” e suas
causas, segundo o Banco Mundial, o PNUD e a OIT
Com publicação anual, esses relatórios se apresentam como um guia para o mundo no
que diz respeito às questões econômicas, sociais, políticas e ambientais atuais. “Cada
ano o WDR fornece uma análise profunda sobre um aspecto específico do
desenvolvimento. (...) [são abordados] tópicos como o papel do Estado, economias em
transição, trabalho, infra-estrutura, saúde, meio ambiente, e pobreza.”78 Embora cada
relatório se dedique a um tema específico79, os World Development Reports não são
estudos isolados ou independentes; eles dialogam entre si. Cada relatório novo faz
referências às questões discutidas nos anteriores imediatos ou aos relatórios mais
antigos que discutiram o mesmo tema, ressaltando os avanços, as limitações
anteriores, etc.
78
Retirado do site do Banco Mundial: http://www.worldbank.org/
79
Prospects for Growth and Alleviation of Poverty (1978), Structural Change and Development Policy
(1979), Poverty and Human Development (1980), National and International Adjustment (1981),
Agriculture and Economic Development (1982), Management in Development (1983), Population
Change and Development (1984), International Capital and Economic Development (1985), Trade
and Pricing Policies in World Agriculture (1986), Industrialization and Foreign Trade (1987), Public
Finance in Development (1988), Financial Systems and Development (1989), Poverty (1990), The
Challenge of Development (1991), Development and the Environment (1992), Investing in Health
(1993), Infrastructure for Development (1994), Workers in an Integrating World (1995), From Plan to
Market (1996), The State in a Changing World (1997), Knowledge for Development (1998/1999),
Entering the Twentieth Century (1999/2000), Attacking Poverty (2000/2001), Building Institutions for
Markets (2002), Sustainable Development in a Dynamic World (2003), Making Services Work for
Poor People (2004), A Better Investment Climate for Everyone (2005), Equity and Development
(2006), Development and the Next Generation (2007), Agriculture for Development (2008).
130
dialogarem uns com os outros, esses relatórios parecem ter também, em seu conjunto,
a pretensão de formar um grande modelo teórico a ser recomendado como referência
normativa para o mundo inteiro. No que diz respeito ao tema da “pobreza”, os World
Development Reports (os “Relatórios sobre Desenvolvimento Mundial”) que se
dedicaram a esse tema específico foram o de 1990 - A Pobreza - e o de 2000-2001 – A
Luta contra a Pobreza.
131
sem condições de viver minimamente bem. Percebe-se, portanto, que a definição de
pobreza é, em 1990, baseada em critérios monetários (renda).
Assim, um dos lados da pobreza caracteriza-se por estar aquém de um padrão de vida
mínimo (traduzido por um valor monetário exato). Percebe-se que, quando se define e
se ressalta a pobreza como o fato de estar abaixo de um determinado valor, estão
presentes duas preocupações centrais: por um lado, a de distinguir ou separar com
exatidão quem é pobre de quem é não-pobre e, por outro, a de contar o número exato
de pobres. Esses objetivos podem ser claramente percebidos quando, mais à frente,
forem analisadas as recomendações de estratégias para “combater” a pobreza.
No que diz respeito à questão (ii) ressaltada anteriormente - o que se entende por
“incapacidade”? -, ou seja, o “outro lado” do que é pobreza, é possível afirmar que ela
remete àquilo que o Banco Mundial ressalta como causas da pobreza. Pode-se afirmar
que a renda insuficiente do pobre é explicada a partir de duas noções que se
relacionam entre si: falta de “ativos” (assets) e falta de oportunidades.
132
existência ou falta de oportunidades é vinculada diretamente à carência de “ativos”.
Assim, possuir ou não ativos afeta diretamente as “oportunidades” dos indivíduos.
Contudo, esse fato de “possuir ou não ativos” não é explicado: ou a pessoa tem ativos,
ou ela não tem. Talvez, o pressuposto seja de que o indivíduo optou ou decidiu por
não investir, por exemplo, em seu “capital humano” - tal como afirma a teoria do
capital humano, por exemplo: Schultz (1973) -, porém isso não está claro no relatório.
Mas, de qualquer forma, essa questão não é discutida, não há um porquê exterior ao
indivíduo.
Esses ativos podem ser de vários tipos, e os dois “ativos” mais importantes para a
criação de oportunidades para os pobres são: “capital humano” (para o pobre urbano)
e o acesso à “terra” (ao pobre rural). Entretanto, como se ressaltou anteriormente, não
há um significado explícito para oportunidades. A partir do que o Banco Mundial
coloca enquanto meios para aumentá-las, é possível entender um pouco mais o que
vem a ser “oportunidades”.
No caso das oportunidades ampliadas pela terra, no mundo rural, a idéia é simples, já
que oportunidades representariam as possibilidades de plantio, seja para consumo
próprio (satisfazendo as necessidades de nutrição), seja para venda da produção, e
assim, aumentando suas rendas. Com mais rendas, o pobre poderia ultrapassar a
“linha da pobreza” e ser considerado um não-pobre.
133
Como foi visto no segundo capítulo, a “teoria do capital humano” – que tem como
referência Theodore Schultz (SCHULTZ, 1973) - afirma que as diferenças de rendas
entre os indivíduos são influenciadas pelo capital humano (principalmente educação)
que cada um investe em si mesmo. E seu raciocínio básico pode ser assim sintetizado:
(i) aumento da educação dos trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e
conhecimentos melhorados, (iii) quanto maiores as habilidades e conhecimentos,
maior a produtividade do trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando
maior competitividade e, assim, maiores rendas para o indivíduo.
Desse modo, embora o Banco Mundial (1990) não defina muito bem as
oportunidades, parece estar subentendido que são oportunidades no “mercado” de
trabalho. Com mais educação, os indivíduos pobres passam a ser mais produtivos, a
ter maior poder para escolher alternativas para suas vidas e, assim, ter “maiores
chances” de renda; tudo isso porque estariam mais aptos para competir no mercado.
Ou seja, uma das grandes causas enfatizadas para a pobreza é o fato de que os
“pobres” não conseguem competir. Seria por isso que apresentam dificuldades de
obterem rendas. No fim das contas, o que se pressupõe é que se, por um lado, as
oportunidades podem ser geradas pelo crescimento econômico (alcançado a partir do
aprofundamento e aceleração da inserção da economia na globalização), por outro,
elas são criadas pelo próprio indivíduo através de seus “ativos” - seu “capital
humano”, por exemplo.
134
2.1.2. O Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 2000/2001: A Luta
contra a Pobreza
Ou seja, a despeito de o relatório levar em conta certas privações múltiplas, para dizer
quem é pobre e “medir” a pobreza (e dizer quem é “pobre” e quem é “não-pobre”),
continua utilizando os indicadores monetários – aqueles mesmos de 1990 -, quais
sejam: linha de pobreza – “instrumento essencial no desenvolvimento de medidas de
pobreza”: um dólar por dia - e hiato de pobreza (poverty gap). (ibidem, p. 18)
Para dar conta das outras dimensões, são indicados, paralelamente, critérios (índices)
de avaliação dos níveis de saúde e educação; e é ressaltada a dificuldade de se medir
135
os dois elementos novos: a vulnerabilidade e a falta de voz e de poder dos pobres.
Quanto à “vulnerabilidade”, que é entendida como a taxa de entrada e saída da
pobreza, ressalta-se a dificuldade de se mensurar um conceito “dinâmico”; já no que
diz respeito aos meios de avaliação da falta de voz e de poder dos pobres, são
propostos métodos participativos, pesquisas de opinião, levantamento de variáveis
qualitativas.
Diante de tal constatação, logo vem a seguinte indagação: já que a pobreza é tão
dolorosa, por que os pobres “permanecem na pobreza”? (idem) Ou seja, por que eles
não procuram sair da pobreza? Para analisar a questão, duas perspectivas são
ressaltadas: (i) a partir das realidades, experiências e pontos de vista dos pobres; e (ii)
a partir de um ponto de vista institucional, centrando a atenção nas instituições
informais e formais da sociedade com as quais interagem as pessoas pobres.
136
Do ponto de vista das realidades dos pobres, uma das conclusões desse estudo foi que
“a pobreza tem várias dimensões” (NARAYAN, 2000, p. 4) que estão
interconectadas. Dentre as definições de pobreza dadas pelas pessoas que se
encontram nessa situação prevalecem seis dimensões:
Já do ponto de vista institucional, o livro destaca que o Estado tem sido ineficaz em
chegar aos pobres; a função que as Ongs cumprem na vida dos pobres é limitada e os
pobres dependem fundamentalmente de suas próprias redes informais; e o tecido
social — o único “seguro” das pessoas pobres — está se desmanchando. (ibidem, p.
5-7)
Partindo das considerações feitas nesse estudo, o Banco Mundial (2000, op. cit., p.
34) resume as diversas dimensões da pobreza nos três tópicos já ressaltados: (i) falta
de renda e recursos para atender necessidades básicas (incluindo níveis de educação e
saúde); (ii) falta de voz e de poder nas instituições estatais e na sociedade; (iii)
vulnerabilidade a choques adversos, combinada com uma incapacidade de enfrentá-
los.
80
No original, em inglês: assets (ativos).
137
recursos humanos, como a capacidade de trabalho básicos, as aptidões e
a boa saúde; recursos naturais, como a terra; recursos físicos, como o
acesso à infra-estrutura; recursos financeiros, como a poupança e o
acesso a crédito; recursos sociais, como as redes de contatos e obrigações
recíprocas a que se possa recorrer em tempos de necessidade, e a
influência política sobre os recursos. (idem, grifos no original)
Por outro lado, (ii), centrando a atenção nas instituições – e, sobretudo, nas limitações
que elas criam para a realidade dos pobres: o acesso aos recursos e os seus
rendimentos (ou produtividade) dependem de como elas atuam. As instituições podem
impor “uma pesada carga aos pobres, impedindo que eles aproveitem novas
oportunidades econômicas e se dediquem a atividades que transcendam sua zona de
segurança imediata” (ibidem, p. 36). Abusos de poder das instituições “dificultam sua
participação nos assuntos públicos e a expressão de seus interesses. Além disso,
instituições estatais irresponsáveis e insensíveis são uma das causas da expansão
relativamente lenta dos recursos humanos dos pobres”. (idem).
138
oportunidades que podem ser ampliadas tanto pelos indivíduos – aumentando a
produtividade de seus ativos – quanto pelo próprio mercado, através do crescimento
econômico.
Como novidades, são ressaltadas novas dimensões tanto do ponto de vista dos
“ativos” – por exemplo, inclui-se no rol dos “recursos” a discussão sobre o “capital
social” - quanto da pobreza propriamente dita. O novo relatório entende essa última
como multidimensional e, além das econômicas, leva em conta também dimensões
políticas, institucionais e sociais, como a “falta de voz” (voicelessness) e “falta de
poder” (powerlessness) – as quais impediriam que os pobres exercessem influência
sobre as instituições estatais e que participassem politicamente - e, ainda, a dimensão
da “vulnerabilidade”.
81
Muitas vezes o termo empowerment tem sido traduzido como “empoderamento”. Palavra esta que
não faz parte contudo da língua portuguesa, segundo dicionários como Aurélio e Houaiss.
139
Por fim, no que diz respeito à “vulnerabilidade”, o Banco Mundial (2000) faz algumas
considerações:
Embora o recurso à teoria de Amartya Sen no Banco Mundial (2000) não seja tão
explícito quanto nos relatórios do PNUD, como se verá adiante, a ampliação da
agenda da pobreza, a partir do relatório de 2000/2001, está diretamente relacionada
com a incorporação no tratamento da pobreza, ainda que um tanto frouxa, das idéias
daquele autor. Seria possível afirmar que tal incorporação é frouxa na medida em que:
(i) o autor é pouco citado – apenas quatro vezes ao longo do relatório; (ii) a
incorporação de suas idéias não explicita seu arcabouço teórico e (iii) ocorre
140
simplesmente a partir da utilização da noção de “capacidades”82. Parece, contudo, ser
importante destacar essa incorporação, ainda que frouxa, na medida em que (i) a
pobreza como “privação de capacidades”83 é ressaltada como uma “novidade” ou
“avanço” e que (ii) a carência de “recursos” (dos mais variados tipos) por parte dos
indivíduos e, ainda, o ambiente institucional aparecem enquanto limitações nas
“capacidades” dos indivíduos:
Por terem suas capacidades limitadas por aquelas duas perspectivas, os pobres “vivem
sem a liberdade fundamental de ação e escolha que os que estão em melhor situação
dão por certo”. (ibidem, grifo meu, p. 1)
Pode-se perceber que parte da problemática sobre a pobreza exposta anteriormente diz
respeito ao indivíduo pobre e essa abordagem baseia-se em sua carência de recursos
(assets). Segundo Narayan (2000), os próprios
pobres quase nunca falam das rendas, mas sim se referem repetidamente
aos ativos que consideram importantes. A carteira de ativos que
administram é diversa: ativos físicos, humanos, sociais e ecológicos.
(NARAYAN, 2000, p. 49)
Esta afirmação aparece, em The Voice of the Poor, logo após a citação de quatro
depoimentos de “pobres” tomados como exemplos para ilustrar como o tema dos
“ativos” é crucial para eles. Contudo, nenhum desses depoimentos é colocado em
termos de “ativos”.
141
problemática pobreza é, portanto, bastante reveladora. Tem-se por pressuposto que,
tal como uma empresa, esse indivíduo deveria possuir ativos, cujos “rendimentos” (ou
produtividade) são fundamentais para a sua existência. Ele é considerado “pobre”
porque carece desses ativos e, portanto, não consegue nem criar “oportunidades” para
si, nem gerar “segurança” para enfrentar os “riscos”. Por mais que esses ativos
ressaltados possam ser “humanos” ou “sociais”, sua associação a idéias e objetivos
essencialmente econômicos é evidente.
84
Aqui se analisa o relatório de 2000-2001, mas a discussão sobre “capital social” no Banco Mundial
começou em 1996, a partir da Social Capital Initiative (disponível na internet
http://www.worldbank.org/ ) cujos trabalhos tiveram como objetivo “contribuir tanto para um
entendimento conceitual do capital social quanto para a sua mensuração” (WORLD BANK, 1998, p. 7)
e buscaram, em geral, testar duas hipóteses: (i) que a presença do capital social melhora a eficácia dos
programas de desenvolvimento; (ii) que através das intervenções externas - do próprio Banco Mundial,
por exemplo - é possível estimular o acúmulo de “capital social”.
85
Vale notar que não há referências a Pierre Bourdieu, muito embora este autor tenha sido um dos
pioneiros no tratamento do tema do “capital social”, entendendo-o - juntamente com o “capital
econômico” e o “capital simbólico” - a partir da lógica da reprodução das relações de classe. Ele
define “capital social” como “o conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de
uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de mútuo conhecimento e
reconhecimento; ou, em outros termos, ao pertencimento a um grupo, como conjunto de agentes que
não são apenas dotados de propriedades comuns (...), mas que são também unidos pelas relações
142
Neste ponto, a aproximação com Coleman (2000) é evidente, uma vez que este último
afirma que, embora o “capital social”, ao contrário das outras formas de “capital”,
“não [esteja] (...) alojado nem nos próprios atores nem nos instrumentos físicos de
produção” (COLEMAN, tradução livre, 2000, p. 16) – mas, ao contrário, seja
“inerente à estrutura das relações entre os atores e dentre os atores” (idem, grifo meu)
–, é possível entendê-lo a partir do ponto de vista dos próprios indivíduos, ou seja,
enquanto “recursos para as pessoas” (idem, grifo meu).
permanentes e úteis.” (BOURDIEU, 1980, p. 2). E afirma que o “volume de capital social que um
agente particular possui depende da extensão da rede de relações que pode efetivamente mobilizar e do
volume do capital (econômico, cultural e simbólico) que possui cada um daqueles indivíduos aos quais
o agente está ligado.” (idem) Embora Bourdieu também trate da importância do “capital social”
enquanto recursos para o indivíduo, é importante ressaltar que ele considera este indivíduo situado num
contexto de uma estrutura social fundamentada em classes. Além disso, como lembra Swain (2003), é
importante perceber também que o autor se refere ao “capital” numa sociedade capitalista. Nesse
sentido, segundo Bourdieu, apenas a burguesia possui “capital social” (SWAIN, ibidem, p. 189).
Assim, a análise do capital social em Bourdieu pressupõe questões que estão ausentes tanto nos
teóricos do “capital social” quanto no próprio Banco Mundial, tais como uma sociedade baseada em
classes, as relações e a desigualdade existentes entre essas classes.
143
Tal como afirma Coleman (2000), embora o “capital social” seja uma forma de capital
menos tangível que o “capital humano” – já que ele existe nas relações entre as
pessoas -, ele deve ser considerado um facilitador da atividade produtiva. Dessa
forma, o que importa, em última instância, é o quanto de “capital social” o indivíduo
possui (ou ainda, quanto de capital social existe nas relações sociais em que tal
indivíduo se insere), de modo que lhe seja útil e produtivo e que, assim, faça jus ao
estatuto de “capital”: “redes sociais e organizações sociais são ativos claramente
essenciais na carteira de recursos a que recorrem os pobres para manejar riscos e
oportunidades.” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 133).
As implicações do capital social para o pobre são analisadas, por exemplo, por
Collier86 (1998). Procurando adequar a discussão sobre “capital social” a uma
perspectiva mais econômica, o autor explica porque o “capital social” deve ser
entendido tanto como “social” quanto como “capital”: (i) é ‘social’ porque ele “gera
externalidades emergentes da interação social. Tanto a iniciação quanto suas
conseqüências geram efeitos que não estão internalizados na decisão de cálculo de
cada agente.” (ibidem, p. viii); (ii) “capital social é ‘capital’ “apenas se seus efeitos
persistirem. [Essa] persistência pode se dar tanto porque a interação social ela mesma
86
Paul Collier foi diretor do Grupo de Pesquisas sobre Desenvolvimento (Development Research
Group) do Banco Mundial entre 1998 e 2003.
144
tem alguma característica que a torna persistente, ou porque os efeitos são capazes de
fazer durar a interação que os causa.” (idem)
Assim, as implicações do capital social sobre o pobre são articuladas pelo autor como
variações a partir de uma tipologia da teoria dos jogos. Não cabe aqui maior digressão
sobre cada uma dessas variações, mas apenas apontar para o fato de que a pobreza
vem sendo entendida e discutida também à luz da teoria dos jogos. A idéia de “pobre”
vai se aproximando, portanto, de um indivíduo racional-maximizador em condições
adversas para “jogar”.
De modo geral, pode-se perceber que, embora o conceito de “capital social” possa ser
associado a discussões sobre sociabilidade, civismo e política – como é o caso de
Putnam (1996), por exemplo – e a utilização desse conceito pelo Banco Mundial na
discussão sobre a pobreza possa representar uma “novidade” (quando se compara com
o relatório anterior), suas limitações e implicações são evidentes. Ao entender o
“capital social” enquanto recursos disponíveis para o indivíduo, essas discussões
mostram estar na maior parte das vezes associadas e reduzidas apenas a objetivos
econômicos – sendo explicadas a partir de um ponto de vista instrumental.
É nesse sentido que, no relatório, a carência desses recursos - dos mais variados tipos,
incluindo, “capital humano” e “capital social” - por parte dos indivíduos aparece
relacionada a limitações em suas “capacidades”, aproximando-se do sentido atribuído
145
por SEN (2000): “todas essas formas de privação restringem severamente o que
Amartya Sen chama de ‘capacidades inerentes à pessoa, ou seja, as liberdades
substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere’” (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 15)
146
aos recursos, às oportunidades e ao empowerment dos pobres – contribuindo para a
sua falta de voz (voicelessness) e de poder (powerlessness). Em última instância, são
percebidas como limitadoras das capacidades dos indivíduos. A partir da questão
“como tornar as instituições do Estado mais sensíveis aos pobres” (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 103), prescrevem-se inúmeras “recomendações” de mudança
para as instituições estatais que muito têm a ver com as diretrizes do Banco Mundial
sobre a reforma do Estado (por exemplo, os relatórios de 1997 e de 2002). A questão
do melhoramento das instituições estatais diz claramente respeito ao enxugamento do
Estado, reduzindo-o à função de facilitador dos mercados.
Assim, mais parece que esse discurso do “combate à pobreza” diz respeito à tentativa
de transformação do Estado do que à questão social propriamente dita. De todo modo,
não cabe ainda entrar numa discussão sobre o que é recomendado para tornar o Estado
mais “sensível” aos pobres, mas vale destacar que as propostas consistem, por
exemplo, em reduzir o tamanho da administração pública, concentrando a ação
pública sobre os “mais pobres”, privatizar empresas públicas, descentralizar
(reduzindo o poder do Estado e transferindo-o para as esferas locais) e, ainda,
construir “coalizões em prol dos pobres” (ibidem, p. 113) em torno da “política de
redução da pobreza”.
Organizando e resumindo o que o Banco Mundial (2000) diz sobre a conexão entre as
instituições estatais e a “pobreza”, poderia se afirmar que: (i) elas são vistas como
“ineficientes” porque não conseguem atuar sobre as “oportunidades” dos pobres; é
por isso que elas devem se adequar ou se retrair87, dando espaço e/ou criando as
condições necessárias para o “bom” funcionamento dos mercados; (ii) elas também
são ineficazes porque não conseguem atuar sobre os “recursos” dos pobres – por
exemplo, seu “capital humano” -; é por isso que os esforços da atuação pública devem
se concentrar ou “focalizar” (e, assim, ser mais “sensíveis”) em promover educação e
saúde básicas para eles; e, ainda, (iii) elas são irresponsáveis e abusam de poder
porque inibem o empowerment (a voz e o poder) dos pobres – para estimulá-lo, é
87
Como foi visto no primeiro capítulo, o Banco Mundial (1997; 2002) sugere que o Estado tenha um
tamanho “moderado”, que se reduza (atuando apenas em setores que não interessem ao setor privado) e
que fortaleça suas instituições (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 64), tornando-as favoráveis (funcionais)
ao “bom” funcionamento dos mercados - atuando nos casos em que esses últimos apresentem
“imperfeições”. Assim, o Estado deve ser “eficiente”: um catalisador, facilitador e encorajador dos
negócios privados, isto é, dos mercados. (BANCO MUNDIAL, 1997). E as instituições (BANCO
MUNDIAL, 2002) devem ser “eficazes”, garantindo o marco legal (direitos de propriedade, garantia do
cumprimento dos contratos, etc.) “necessário” para o “bom” funcionamento dos mercados.
147
preciso descentralizar (isto é, transferir formalmente o poder do Estado para os
centros locais de decisão), garantir liberdades políticas e o “bom funcionamento” dos
processos democráticos, tudo isso visando garantir a “participação” dos “pobres”.
Mas é importante ressaltar que esta “participação” nada tem a ver com a construção
de vontades ou identidades coletivas – inseridas num Estado-nação -, mas
simplesmente com uma idéia de participação local da população previamente definida
como pobre88.
É por aí, portanto, que a problemática das instituições - enquanto motivo para a
“perpetuação das condições de pobreza” (NARAYAN, 2000, p. 11) - é entendida
como limitação das “capacidades humanas” dos indivíduos.
No mesmo ano em que o Banco Mundial publica seu World Development Report
sobre a pobreza (BANCO MUNDIAL, 1990), o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) divulga o seu Human Development Report, o primeiro de
uma série cujo objetivo consistiu em trazer o tema do “desenvolvimento humano”
para o centro da discussão sobre o desenvolvimento e em enfatizar a importância
dessa nova abordagem. Desde então, o Human Development Report tem sido
publicado anualmente e procurado direcionar o debate sobre o “desenvolvimento
humano”, através da discussão de temas89 diversos. Sua “questão central tem sido
88
Por exemplo, a própria experiência do projeto Voices of the poor (NARAYAN, 2000) – baseada no
método participativo de avaliação da pobreza (isto é, a pobreza segundo os pobres) - é entendida como
um exercício de participação, na medida em que implicaria em empowerment aos “pobres”. Diante
disto, duas considerações: por um lado, percebe-se que o significado de “participação” para o Banco
Mundial é bastante amplo (que pode significar quase qualquer coisa) e, por outro, ressalta-se, mais uma
vez (por exemplo, tal como no caso de “criação” de “capital social”), a importância da intervenção
externa - dos organismos internacionais – enquanto elemento de estímulo à participação ou à
democracia.
89
Os temas dos Human Development Reports foram: Concept and Measurement of Human
Development (1990); Financing Human Development (1991); Global Dimensions of Human
Development (1992); People's Participation (1993); New dimensions of Human Security (1994);
Gender and Human Development (1995); Economic Growth and Human Development (1996); Human
Development to Erradicate Poverty (1997); Consumption for Human Development (1998);
Globalization with a Human Face (1999); Human Rights and Human Development (2000); Making
New Technologies Work for Human Development (2001); Deepening Democracy in a Fragmented
World (2002); Millennium Development Goals: A Compact among Nations to End Human Poverty
(2003); Cultural Liberty in Today's Diverse World (2004); International Cooperation at a Crossroads:
Aid, Trade and Security in an Unequal World (2005); Beyond Scarcity: Power, Poverty and the Global
Water Crisis (2006).
148
sempre as pessoas como objetivo do desenvolvimento e a sua capacitação enquanto
participantes no processo de desenvolvimento.” (PNUD, 1999, p. 18)
Se, como já foi visto, a incorporação das idéias de Sen pelo Banco Mundial (2000) se
dá de uma maneira um tanto frouxa, o mesmo não pode ser dito em relação ao modo
como o PNUD mobiliza a teoria do economista laureado pelo Nobel91. Como
Amartya Sen fez parte do “painel de consultores” na elaboração de vários dos Human
Development Reports, seria de esperar a presença de suas idéias nesses documentos.
Mas a seguir mostrar-se-á como essas idéias são centrais e fundamentais para toda
essa argumentação, sobretudo no que diz respeito à construção da noção de
“desenvolvimento humano” e ao tratamento da questão da pobreza.
90
Em 1987, Frances Stewart e Richard Jolly participaram - juntamente com Giovanni Andrea Cornia –
da publicação da UNICEF “Adjustment with a Human Face”, já mencionada anteriormente.
91
Amartya Sen ganhou o Nobel de Economia em 1998.
149
2.2.1. Amartya Sen e a noção de “desenvolvimento humano”
Amartya Sen (2000) lida com a idéia de “desenvolvimento” dentro desta última
perspectiva (DOMINGUES, 2003) - e contra o “economicismo” da primeira
perspectiva -, através de sua noção de “desenvolvimento como liberdade”.
O autor (ibidem, p. 94) quer situar a discussão para além da questão da “utilidade”
(como para os utilitaristas) e da questão “bens primários” - como em Rawls (1993).
Assim, propõe a dimensão das “capacidades” – as liberdades substantivas – “de
escolher uma vida que se tem razão para valorizar” como a abordagem mais
apropriada para discutir temas como desenvolvimento, bem-estar, justiça, igualdade,
etc.
150
esvazie. Defender simplesmente “igualdade”, não quer dizer muita coisa; para Sen, é
necessário que se especifique de que igualdade se está falando, é preciso responder à
questão central para o autor: “igualdade de que?”.
A partir desta questão, escolhe-se uma “variável focal” para a análise da igualdade.
Além de ter como objetivo problematizar a avaliação da igualdade, no livro
Desigualdade Reexaminada, Sen se propõe a mostrar, explicar e justificar qual é a
melhor “variável focal” – é neste momento, então, que o autor vai defender sua
“abordagem das capacidades”.
Antes de discutir sua proposta de “variável focal”, Sen (2001) ressalta que é
fundamental que se distinga entre os conceitos de “realização” e de “liberdade para
realizar”. Para o autor, a realização refere-se ao que uma pessoa conseguiu fazer ou
alcançar; enquanto que a liberdade para realizar diz respeito à oportunidade que tem
para fazer ou alcançar aquilo a que ela dá valor.
Para discutir sua abordagem das capacidades, Sen começa pela noção de
“funcionamentos”. O conceito de “funcionamentos” serve para dar conta da
pluralidade existente na sociedade no que diz respeito aos objetivos de vida de cada
pessoa. Segundo o autor, tal conceito “reflete as várias coisas que uma pessoa pode
considerar valioso fazer ou ter” (ibidem, p. 95). A potencialidade de esses
funcionamentos serem efetivados refere-se ao conceito de “capacidade de realizar
funcionamentos” – ou simplesmente “capacidades” (capabilities) -, que representa a
liberdade que cada pessoa tem de escolher a vida que deseja ter. Ou seja, a
151
“capacidade de realizar funcionamentos” significa a liberdade da pessoa para
concretizar de fato seu bem-estar. Em outras palavras, as “capacidades” são
“combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela [a
pessoa]. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de
realizar combinações alternativas de funcionamentos.”
Percebe-se, então, que o conceito de “capacidades” é usado pelo autor para poder dar
conta dessas idéias de liberdade e agência das pessoas, uma vez que ele representa um
conjunto de possibilidades (ou potencialidades; isto é, ainda não realizadas) de
funcionamentos e reflete, em última instância, a liberdade da pessoa de levar a vida
que valoriza.
Assim, “liberdade” de modo geral significa, para Sen (2000), a capacidade da pessoa
se realizar como agente, isto é, poder agir de acordo com suas próprias vontades e
escolhas. Antes de discutir melhor como a liberdade e desenvolvimento estão
vinculados nos trabalhos de Sen, é importante ressaltar que o autor faz uma distinção
entre dois tipos de liberdades, que, em última instância, refere-se a uma indicação dos
dois lados da liberdade: como fim e como meio.
152
meio da promoção dessas liberdades distintas mas inter-relacionadas. (...)
Na visão do ‘desenvolvimento como liberdade’, as liberdades
instrumentais ligam-se umas às outras e contribuem para o aumento da
liberdade humana em geral. (SEN, 2000, p. 25)
Desse modo, “as liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento,
mas também os meios principais.” (idem) A “liberdade” significa tanto a capacidade
da pessoa de se realizar como agente, isto é, de poder agir de acordo com suas
próprias vontades e escolhas (as “liberdades substantivas”) quanto os meios (as
“liberdades instrumentais”) pelos quais aquela “condição de agente” é ampliada ou
expandida.
153
um leque mais variado de opções que considerem merecer a pena.
(PNUD, 1996, p. 49)
A incorporação das idéias de Sen (2000; 2001) é, portanto, bastante clara no PNUD.
Seus relatórios estão permeados pelas noções de funcionamentos, capacidades
humanas, oportunidades, escolhas, liberdades, as quais parecem estar todas
articuladas por intermédio das idéias do autor. Sua influência é evidente na discussão
do PNUD sobre “desenvolvimento humano”. Este último tem como finalidade o bem-
estar humano e é definido como “um processo de alargamento das escolhas das
pessoas” (UNDP, 1990, p. 10). E esse processo de "alargamento das escolhas das
pessoas é alcançado através da expansão das capacidades humanas e dos
funcionamentos." (UNDP, 1998, p. 17).
E, assim, argumenta-se que “este modo de olhar para o desenvolvimento difere das
abordagens convencionais do crescimento econômico, formação de capital humano, o
desenvolvimento dos recursos humanos, bem estar humano ou necessidades humanas
básicas.” (ibidem, p. 11). A grande diferença ou novidade trazida pela idéia de
“desenvolvimento humano” seria, em comparação92 com esses outros tipos de
abordagens, o fato de que enquanto estes últimos ressaltam e apontam para questões
relacionadas apenas a meios, a abordagem do “desenvolvimento humano” – tal como
a “abordagem das capacidades” de Amartya Sen (2000; 2001) – aponta, sobretudo,
para fins. Ou seja, para a ampliação das escolhas, oportunidades e liberdades de cada
pessoa como um fim si mesmas, e não como simples instrumento ou meio para outro
objetivo qualquer (econômico, por exemplo).
92
Sen (1997) fez comparação semelhante, contrastando o conceito de “capital humano” com o de
“capacidade humana”. Para ele, o conceito de capital humano é mais limitado já que apenas concebe as
qualidades humanas em relação com o crescimento econômico, enquanto que o conceito de
capacidades dá ênfase à expansão da liberdade humana para levar o tipo de vida que as pessoas
valorizam. Ou seja, o “capital humano” é um conceito instrumental, enquanto o conceito de
“capacidades” implica num fim em si mesmo, já que se refere à “condição de agente” do indivíduo.
154
A abordagem das “capacidades” não visa prescrever nem fixar uma agenda ou uma
lista de capacidades a priori importantes a serem alcançadas, já que isso depende,
segundo Sen (2000; 2001) de valores pessoais: cada pessoa quer realizar
“funcionamentos” diferentes. Isso faz com que essa abordagem pressuponha certo
grau de pluralismo, já que considera que as pessoas têm valores diferentes.
Amartya Sen tem sido alvo de críticas, tanto no que diz respeito a problemas e
limitações de sua teoria (DOMINGUES, 2003) quanto às dificuldades de
operacionalização da abordagem das capacidades (CLARK, 2006; ALKIRE, 2002).
Assim, com essa fragmentação da idéia de liberdade proposta por Sen, a questão da
dominação não é problematizada, abrindo espaço para que ela perdure no mundo
social. Domingues chega à conclusão de que a proposta de Sen representa um recuo
em relação à social-democracia. Embora esta última não tenha conseguido superar a
155
dominação capitalista, o Welfare State serviu para remediar seus efeitos e, em grande
medida, atacou a desigualdade decorrente da sociedade de classes através dos direitos
sociais. Nas discussões de Sen não se encontra nada disso, ele apenas “contenta-se
com medidas discretas que não requerem direitos universais” (ibidem, p. 225) e uma
“eqüidade” nas capacidades de indivíduos que não parecem estar inseridos em
relações sociais em que estão presentes o poder e a dominação.
156
(calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego da
metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade
(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação
entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior)
(PNUD, 2001, p. 144).
O PNUD argumenta que embora o IDH não seja capaz de traduzir a complexidade do
conceito de “desenvolvimento humano”, ele é um indicador mais completo que o PIB,
capaz de melhor avaliar e comparar a realidade – o “progresso nacional” (PNUD,
1994, p. 91) - dos diferentes países, incorporando questões “mais humanas” à sua
mensuração93.
93
A cada ano, o PNUD faz, em seus relatórios, uma revisão do IDH e eventuais “correções,
melhoramentos e ajustamentos resultantes quer da evidência das suas deficiências quer da aceitação de
críticas e sugestões feitas por acadêmicos e políticos” (PNUD, 1994, p. 90) para, assim, melhorar a
mensuração do desenvolvimento humano.
157
2.2.2. Pobreza e “desenvolvimento humano”
Em 1997, o PNUD dedica seu relatório anual ao tema do combate à pobreza - sob o
título “Desenvolvimento Humano para Erradicar a Pobreza”. Este relatório tem como
objetivo entender e analisar esse “desafio mundial numa perspectiva de
desenvolvimento humano. Não focaliza apenas a privação de rendimento, mas a
pobreza numa perspectiva de desenvolvimento humano – a pobreza como uma
negação de escolhas e oportunidades para viver uma vida aceitável.” (PNUD, 1997, p.
2).
94
The World Summit for Social Development – cf. http://www.un.org/esa/socdev/wssd/
95
O relatório do PNUD de 1994 (PNUD, 1994) fixou, como um de seus objetivos, o de sugerir uma
proposta concreta de agenda para essa Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social.
96
Concepção de pobreza mais comum definida a partir de critérios monetários. Uma pessoa é pobre se,
e só se, seu nível de rendimento se situa abaixo da linha de pobreza definida.
97
A pobreza é vista como privação de condições materiais para uma satisfação minimamente aceitável
das necessidades humanas. Este conceito de privação vai além da falta de rendimento privado – uma
vez que considera as “necessidades básicas insatisfeitas”, mas se limita a uma avaliação do bem-estar
material da pessoa.
158
muitas dimensões” (PNUD, 1997, p. 15) e afirmando que ela precisa ser entendida a
partir de sua concepção de “desenvolvimento humano”.
98
É importante perceber a dupla finalidade de “medir”: não apenas para “fornecer informação mas
[para] (...) também ser utilizada na política” (PNUD, 1997, p. 17).
99
A escolha desses elementos é “feita procurando equilibrar, por um lado, as considerações sobre a
relevância e, por outro, a disponibilidade e qualidade dos dados.” (PNUD, 1997, p. 19)
100
Não cabe explicar aqui os procedimentos matemáticos da construção do IPH, em termos de
ponderação e agregação. Tudo isto é detalhado na nota técnica 1 do relatório (PNUD, 1997, p. 118).
159
desenvolvimento” – e IPH-2 - para medi-la nos países industrializados. Cada índice é
formado por variáveis com pesos diferentes, de acordo com o grupo de países a que se
refere, procurando refletir as diferentes realidades dos dois grupos de países.
O PNUD chama a atenção para o fato de que, na construção do IPH, não estão
presentes medidas de rendimentos, ou seja, diferentemente do IDH, o Índice de
Pobreza Humana não inclui uma dimensão “monetária”. O PNUD justifica essa
escolha afirmando que é difícil estabelecer um mesmo limiar de pobreza (linha) que
possa ser utilizado por diferentes países. Assim, justifica-se afirmando: “uma
possibilidade mais pragmática é a de ser menos ambicioso e centrar a privação
material na fome e subnutrição, e não no rendimento.” (ibidem, p. 19)
Em última instância, parece que o novo conceito proposto pelo PNUD - a "pobreza
humana" - e seu indicador (IPH) buscam servir de base para um entendimento mais
“humano” sobre o que é a pobreza e propor um modo de “medir” quanta pobreza há
num país.
160
“funcionamentos”] que uma pessoa pode ou não desenvolver, dadas as
oportunidades que têm. (PNUD, grifo meu, 1997, p. 16)
101
Ver exemplos mais à frente.
161
uma naturalização da globalização, na medida em que ela é entendida como o novo (e
único) caminho pelo qual o desenvolvimento virá. Contudo, nesse novo contexto, há
os que conseguem ter “condição de agência” e conseguem atuar livremente e se
beneficiar do novo contexto – os “vencedores do mercado” (ibidem, p. vi) – e há
também os “perdedores”, sem “capacidades” de agir: os pobres.
Assim, argumenta o PNUD (2003), embora uma visão muito otimista da globalização
deva ser relativizada – uma vez que se revelou inadequada para milhões de pessoas
pobres -, é preciso reconhecer o mérito da globalização para grande parte do mundo
(PNUD, 2003, p. 16). “Apesar dos protestos contra a globalização nos últimos anos,
as forças do mercado mundial contribuíram para o crescimento econômico - e para a
redução da pobreza” (idem) - em vários países em desenvolvimento. Se o
desenvolvimento econômico deixou a desejar – e não trouxe o progresso esperado -,
isso se deve, argumenta o PNUD, a dois fatores (que serviriam como exemplos
daqueles “constrangimentos sociais” ressaltados como causas da “privação de
capacidades”).
Por um lado, devido à “má governança” – ou seja, onde os “governos são corruptos,
incompetentes ou irresponsáveis perante cidadãos as economias nacionais vacilam”
(idem) –. Ou seja, a discussão se assemelha àquela proposta pelo Banco Mundial
acerca das instituições, sobretudo, as estatais, que são apresentadas como um
empecilho ou limitação às “capacidades” dos indivíduos.
162
Por outro lado, em função de uma insuficiência de investimentos dos governos em
educação e saúde. Neste ponto, é importante ressaltar como o argumento é baseado
numa interpretação de saúde e educação enquanto “capital humano”: como
conseqüência dessa falta de investimentos, “o crescimento econômico acabará por se
extinguir por causa do número insuficiente de operários saudáveis e qualificados.”
(idem) Nota-se também, nessa discussão, uma proximidade àquela sugerida pelo
Banco Mundial acerca dos “recursos” dos indivíduos como criadores ou alargadores
das “capacidades” individuais.
102
Em 2000, ocorre, em Genebra, uma continuação da conferencia de 1995: o Social Summit +5 cujos
objetivos foram o de rever o que se alcançou até então e o de criar compromissos em torno de novas
iniciativas. Em setembro do mesmo ano, ocorre a “Cúpula do Milênio”, em Nova Iorque, na qual foram
acordados os oito “objetivos do milênio”, dentre os quais está o combate à pobreza (até 2015, ter
reduzido a pobreza à metade, em comparação com a pobreza de 1990). Em 2005, realizou-se a Cúpula
do Milênio + 5, com o objetivo de avaliar o progresso das metas da Declaração do Milênio da ONU,
aprovada na Cúpula do Milênio em 2000.
163
2.3. Organização Internacional do Trabalho (OIT)
103
Quando declarava que a "pobreza constitui um perigo à prosperidade em todo lugar". Cf.:
www.ilo.org .
164
como um objetivo explícito, mas sim como um resultado que se confia
que deriva da aplicação de políticas macroeconômicas fundadas. (...) a
chave consiste em garantir que tal crescimento seja equilibrado e propicie
o emprego de mão de obra, isto é, que dê lugar à criação de tantos postos
de trabalho decente quanto seja possível. Podemos alcançar este objetivo
geral? Não podemos, devemos. Voltemos a dirigir nosso olhar ao
investimento e à iniciativa empresarial, o emprego, a geração de renda e o
trabalho decente para todos. (OIT, tradução livre, 2006)
Assim, embora a OIT trate do tema da erradicação da pobreza, ela o discute dentro de
sua temática central, indicando que, para enfrentar a questão do trabalho, é preciso
“mudar o paradigma” da política pública, incluindo e difundindo a noção de “trabalho
decente” como seu objetivo central.
A discussão sobre a pobreza aparece na OIT de duas formas : (i) em certos momentos,
recorre-se àquelas conceitualizações feitas pelos outros organismos, ora segundo o
Banco Mundial104, ora seguindo a noção elaborada pelo PNUD105 ; (ii) em outros
momentos, aparece a figura do “trabalhador pobre”, sem se discutir muito, entretanto,
quem são os pobres, as causas da “pobreza”, etc. Mas, embora não haja uma discussão
específica sobre as “causas” da pobreza na OIT (2003), é possível perceber que, em
última instância, considera-se que “os pobres não são os causadores da pobreza. A
pobreza é resultado de falhas estruturais e de sistemas econômicos e sociais
ineficazes. É o fruto de uma resposta política inadequada, de políticas muito pouco
imaginativas e de um apoio internacional insuficiente.” (OIT, 2003, p. 2). Ou seja, a
pobreza é função da insuficiência de “trabalho decente” no mundo.
Dos fundamentos do “trabalho decente”, os que parecem ser mais peculiares à OIT e,
também, estar em oposição àquelas outras abordagens presentes nos discursos
internacionais sobre a pobreza são as idéias de direitos, centralidade do emprego e
proteção social. Contudo, quando se busca entender melhor de que se tratam essas
dimensões do “trabalho decente”, percebe-se que o discurso da OIT não é tão
alternativo assim.
104
Para tratar da quantidade de “trabalhadores pobres” que há no mundo, por exemplo, a OIT utiliza a
abordagem da pobreza monetária utilizada pelo Banco Mundial, como se percebe na nota a seguir:
“utilizamos (…) a expressão extrema pobreza/pobreza extrema dos trabalhadores como sinônimo do
nível de pobreza geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 1 dólar (…), e a
expressão pobreza moderada/ pobreza moderada dos trabalhadores quando se trata do nível de pobreza
geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 2 dólares.” (OIT, 2004, p. 25) Mas,
de toda maneira, a questão da definição e conceituação da pobreza propriamente dita não aparece em
seus relatórios.
105
Em outros momentos, a OIT enfatiza o caráter multidimensional da pobreza, recorrendo às
formulações do PNUD.
165
No que diz respeito aos “direitos do trabalho”, eles estão relacionados com a questão
da liberdade no âmbito do trabalho, tais como a liberdade de associação, a luta contra
a discriminação, o combate ao trabalho forçado e ao trabalho infantil, dentre outros.
Embora sejam temas de grande relevância, os “direitos do trabalho” ressaltados não
têm a ver com direitos sociais – os quais remetem à idéia de “trabalho protegido” -,
mas a direitos civis e políticos do trabalhador.
A questão do “emprego” é discutida, por sua vez, nos World Employment Reports106,
uma série de relatórios da OIT dedicados a essa temática. No relatório de 2004-2005,
Empleo, Productividad y Reducción de la Pobreza, propõe que a relação entre
emprego e pobreza seja examinada a partir da “produtividade”.
106
World Employment Report 1995/96; World Employment Report 1996/97: National Policies in a
Global Context; World Employment Report 1998/99: Employability in the Global Economy. How
training matters; World Employment Report 2001: Life at Work in the Information Economy; World
Employment Report 2004-05: Employment, Productivity and Poverty Reduction.
107
Esta passagem reflete bem essa crença: “As pessoas se beneficiam da redução dos custos graças aos
aumentos da produtividade obtidos em outro setor da economia, embora esses aumentos provoquem
uma perda de postos de trabalho no setor no qual se produziram. Os efeitos do crescimento da
produtividade e, determinado setor da economia dependem da existência de «mecanismos de
compensação » mediante os quais a economia se ajusta.” (OIT, 2005, p. 8)
166
economia. Dessa maneira, o aumento da produtividade (tanto dos próprios
trabalhadores quanto do processo produtivo) seria um caminho para se combater a
pobreza (o “trabalhador pobre” e o “desempregado”).
No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é
explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua
produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de
modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, afirma-se
é preciso estimular a produtividade da economia (tanto com “capital humano”, quanto
com produtividade para criar mais empregos na economia como um todo).
Por fim, quanto à “proteção social” como elemento central do “trabalho decente”, a
OIT refere-se a “direitos sociais básicos” – tal como assistência médica e educação
básicas -, mas sem se aprofundar muito na questão.
167
Capítulo V – DAS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS ÀS
RECOMENDAÇÕES PARA O “COMBATE À POBREZA”
A questão social a partir dos anos noventa começou a ser tratada predominantemente
sob a noção de “pobreza”, cujo debate esteve centrado em grande parte nas
formulações dos organismos internacionais. O quadro abaixo busca sintetizar as
análises dos significados e causas para o termo “pobreza”, tal como indicado no
capítulo anterior.
168
que ele seja “produtivo”. Percebe-se, portanto, que o quadro anterior refere-se à
dimensão descritiva, isto é, ao diagnóstico que vem sendo feito sobre a questão social.
Tal como sugere Topalov (2004), a ação ou a política pública não resulta da
existência ‘objetiva de um problema’, mas do seu enunciado. Assim, uma vez
diagnosticado o problema em termos de “pobreza”, os organismos internacionais
propõem maneiras de lidar com ele, indicando-lhe “soluções”. É aqui que entram,
portanto, as estratégias de “combate à pobreza” – as recomendações de políticas para
“resolver” aquilo que é visto como a grande malaise contemporânea. A seguir,
analisar-se-á o que é sugerido por cada organismo para que seja possível tal
empreitada.
169
o uso “eficiente” dos ativos que o pobre detém; (b) ampliar o acesso dos pobres aos
ativos; (c) investir nas pessoas (aumentar o capital humano dos pobres).
Se, por um lado, o Banco Mundial aparentemente rompe um tabu e passa a falar em
“reforma agrária”, por outro lado, ao se apropriar dessa expressão, retira o conteúdo
historicamente construído pelos movimentos sociais, ou seja, pela política, e passa a
propagar pelo mundo todo a sua própria versão de “reforma agrária” – “que é
basicamente a abordagem neoliberal do mercado aplicada à terra” (ROSSET, 2004, p.
16). O Banco Mundial se livra, assim, facilmente da noção tradicional de reforma
agrária - ou seja, como sinônimo de expropriação –, afirmando simplesmente que
“não é politicamente possível no contexto atual, porque as elites econômicas resistem
e ocorrem muitos conflitos” (ibidem, p. 22). Ou, ainda, nas palavras do próprio Banco
Mundial (1990): “realidades políticas proíbem reformas que desviem muito do status
quo” (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 64). Conseqüentemente, a partir de
uma afirmação como esta - que proclama a impossibilidade de transformações do
mundo como ele é e que, aliás, se encaixa bem naqueles três tipos de argumentos da
retórica reacionária destacados por Albert Hirschman (HIRSCHMAN, 2001) - o
170
Banco Mundial propõe uma “reforma agrária” cuja realização se daria através da
criação e/ou ampliação do “mercado de terras”. Desse modo, para que os pobres
tenham acesso às terras, seria preciso que se criasse um mercado de terras, de modo
que as transferências para os pobres pudessem ocorrer. Nesse sentido, aquelas
políticas que visam criar oportunidades para os pobres rurais (WORLD BANK, op.
cit., p. 64) através do acesso ao “ativo” terra acabam servindo e atuando como passos
em direção da construção ou aprofundamento de um “mercado de terras”. Percebe-se
aqui que por mais que o Banco Mundial esteja preocupado com a pobreza rural, a
política para superá-la coincide com os propósitos neoliberais de inserir em todas as
instâncias do mundo social a dinâmica própria ao sistema mercado.
Por fim, a questão (c) diz respeito ao “investimento nas pessoas”. “Há uma evidência
esmagadora de que o capital humano é uma das chaves para a redução da pobreza”
(ibidem, p. 79) Os pobres – sobretudo os urbanos – são vistos como carentes de
“capital humano”. Ou seja, eles não têm “oportunidades” porque lhes falta um “ativo”
fundamental que é o “capital humano” – educação, saúde e nutrição; mas é dada
ênfase especial à educação. A influência da “teoria do capital humano” é bastante
clara na argumentação exposta no relatório de 1990.
Se a resolução da falta do ativo “terra” é proposta pelo Banco Mundial (ibidem, p. 64)
a partir do desenvolvimento de um “mercado de terras”, no caso do aumento do
“capital humano” dos pobres são propostas reformas nos sistemas de saúde e de
educação no sentido da retração da provisão estatal, voltando-se apenas para os
serviços básicos.
171
pobre são também as mais básicas: expandir e melhorar a educação
primária e a atenção primária em saúde. (idem)
Defende-se uma reforma nesses setores para que se “liberem” recursos – ou seja, uma
focalização - que possam ser usados na expansão e melhoria dos serviços básicos e na
promoção de um melhor acesso para o pobre. Sugerem-se, portanto, mudanças na
alocação dos recursos – dos serviços de maior complexidade e de alto nível para os de
saúde básica e educação primária. Afirma-se que recomendar essas mudanças não
significa negar a importância dos serviços de alto nível:
Assim, propõem-se duas linhas de ação: por um lado, deslocar recursos dos serviços
de alto nível para serviços básicos (atenção primária de saúde e educação básica) e,
por outro, introduzir taxas para aqueles que podem pagar (por exemplo, pela educação
superior) - o que arrecadaria recursos para melhorar os serviços para os pobres. Em
suma, nota-se, nesse ponto, mais uma proposta de enxugamento do Estado e de
estímulos ao mercado (setor privado) – seja de saúde, seja educacional.
172
existirem”. Ou seja, afirma-se que o crescimento deve ser alcançado com a
continuidade das medidas e reformas, dando ênfase, portanto, aos ditames da
globalização neoliberalizante.
No que se refere a “tornar os mercados favoráveis aos pobres”, a ênfase recai sobre as
reformas que favoreçam os mercados, já que “mercados em bom funcionamento são
importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para os pobres”
(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 61). Ressalta-se, entretanto, que as reformas nem
sempre geram, no curto prazo, benefícios para todos. Do “impacto das reformas de
mercado (...): há ganhadores e perdedores, e estes últimos podem incluir os pobres”
no curto prazo (ibidem, p. 38). Argumenta-se que “esses custos não negam os
benefícios das reformas” (ibidem, p. 66). Assim, insiste-se em que é preciso
implementar rapidamente as reformas pró-mercado para que cheguem logo os
benefícios para os pobres e, enquanto elas não se completam, seus “efeitos adversos
(...) sobre os pobres podem ser compensados por ações (...) como as redes de
segurança para aliviar os custos da transição.” (ibidem, p. 38).
108
Reformas que dizem respeito ao fortalecimento institucional, recomendadas sobretudo nos relatórios
que dizem respeito ao Estado (1997, 2002), as quais foram discutidas brevemente no primeiro capítulo.
109
Estabilização de preços, equilíbrio fiscal, abertura comercial e financeira, por exemplo. Este ponto
foi também discutido no primeiro capítulo.
110
Em 2006, o bengalês Muhammad Yunus recebeu o prêmio Nobel da Paz. É conhecido como “o
banqueiro dos pobres” e considerado o grande idealizador do microcrédito destinado aos pobres de
Bangladesh.
173
Por fim, no que diz respeito à ampliação dos ativos dos pobres (c), sugere-se que isso
deve ser feito a partir de três eixos. Primeiro, a utilização do poder do Estado para
redistribuir recursos (ibidem, p. 81) – isto é, focalizar e orientar a despesa pública para
os pobres.
Ou seja, partindo da premissa de que o Estado não pode alterar seu padrão de gastos,
recomenda-se que os focalize nos pobres, deixando que as demandas dos não-pobres
sejam satisfeitas pela iniciativa privada, isto é, pelos mercados. Assim, caberia ao
Estado direcionar sua ação aos pobres, no sentido de simplesmente aumentar seus
“ativos”, através, por exemplo, da educação e saúde – entendidas enquanto “capital
humano”. Aumentando o capital humano dos pobres, suas “oportunidades” também
seriam expandidas.
174
1.2. Incentivo ao empowerment
Por outro lado, no que diz respeito às propostas de empowerment no âmbito social,
enfatiza-se que é preciso remover as barreiras e fortalecer o capital social dos pobres.
175
pobres (...) e as oportunidades e os recursos de que necessitam para
promover seus interesses. (ibidem, p. 121).
Afirma-se que as “barreiras sociais podem assumir muitas formas. (...) [Tais como]
barreiras resultantes da desigualdade entre os sexos, da estratificação social e da
fragmentação social.” (idem) Essas barreiras restringem "a mobilidade ascensional,
limitando a capacidade de participar nas oportunidades econômicas, beneficiar-se do
crescimento econômico e contribuir para o desenvolvimento.” (ibidem, p. 136) Assim,
segundo o Banco Mundial (2000), é “importante assegurar a igualdade na lei e na
atuação das instituições do Estado. Além disso, pode haver necessidade de políticas
de ação afirmativa para reduzir as desvantagens cumulativas das práticas
discriminatórias.” (idem)
Assim, dentre os objetivos das propostas de empowerment no âmbito social estão: (i)
a promoção da equidade entre homens e mulheres; (ii) a superação das barreiras
sociais que impedem a ascensão social dos pobres - barreiras estas que podem ser
fruto da discriminação (racial, étnica, de gênero, etc.), contra a qual podem ser
estabelecidas políticas de “ação afirmativa” que servem “para compensar as
incapacidades resultantes de uma prolongada discriminação” (ibidem, p. 130); (iii) o
reforço do “capital social”, ou seja, apoiar as redes sociais de pessoas pobres -
aumentar suas “capacidades”, melhorando a eficácia dos projetos e programas dos
organismos internacionais de combate à pobreza.
Pode-se perceber que, em nome da expansão das “capacidades” humanas dos pobres,
as estratégias de empowerment estão vinculadas, por um lado, a reformas e
transformações nas instituições estatais e, por outro, às propostas referentes às
instituições sociais – seja removendo as “barreiras sociais” (discriminação, por
exemplo), seja estimulando “capital social”, isto é, reforçando um instrumento (meio)
para que os pobres saiam da pobreza.
Por fim, a terceira estratégia de luta contra a pobreza proposta pelo Banco Mundial
consiste na promoção da segurança (security) dos pobres, voltada para o combate da
vulnerabilidade, de modo que os pobres consigam enfrentar os riscos que estão
176
sempre presentes em suas vidas. Viu-se, no capítulo anterior, que a “vulnerabilidade”
é problematizada a partir de duas questões. Por um lado, ressalta-se a dotação
insuficiente de “ativos” (físicos, humanos e sociais) que o indivíduo possui. Assim,
seus baixos níveis de “ativos” fazem com que o pobre seja incapaz de reduzir os
riscos e enfrentar os “choques”, deixando-o numa situação de vulnerabilidade. Por
outro lado, destaca-se o problema institucional – a “incapacidade”, “ineficiência”,
dentre outros problemas das instituições estatais, que não ajudam os pobres no
“manejo” e enfrentamento dos riscos.
Paralelamente, como estratégia específica para reduzi-la, afirma-se que o Estado deve
intervir “para melhorar a gestão dos riscos” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 151), ou
seja, promover uma segurança para os pobres.
Contudo, quando os esquemas informais de seguro não funcionam, devem ser criados
“mecanismos formais” - uma rede de segurança social - para o manejo dos riscos
111
Segundo o Banco Mundial (2000, p. 140), são os riscos que afetam o indivíduo ou a família, ou seja,
são os que ocorrem em nível “micro” – decorrentes de doença, velhice, morte.
112
São riscos que afetam grupos de famílias ou comunidades (nível “meso”) – tais como chuvas,
epidemias - ou, ainda, regiões ou países (“macro”) – como terremotos, inundações, seca.
177
(tanto “idiosincrásicos” como “covariantes”), de modo a garantir o bem-estar das
pessoas. Numa situação como esta, afirma-se que Estado e mercado precisam atuar:
Assim, a partir dessa discussão dos “princípios gerais da gestão dos riscos” (ibidem, p.
153), cria-se um modelo, no qual são delineados papéis específicos e diferentes para
Estado e mercado (setor privado) e onde inicia e termina, respectivamente, o papel de
cada um.
113
Por exemplo, como criar um “seguro” privado contra terremotos e inundações?
178
podem ajudar as famílias pobres a nivelar o consumo durante um choque
adverso. (...) Mas os programas de microfinanciamento fazem mais do que
ajudar as famílias a enfrentar os choques: podem também proporcionar
capital para criar ou expandir microempresas. Assim, o
microfinanciamento a ajuda as famílias a diversificar suas fontes de renda
e reduzir sua vulnerabilidade a choques de renda. (ibidem, p. 162)
Dessas propostas, percebe-se que é recomendado que o mercado (setor privado) atue
oferecendo “seguros” para aqueles que podem comprá-los. O Estado teria o papel de,
por um lado, oferecer a segurança para enfrentar os riscos do tipo “covariantes” e, por
outro, ajudar os pobres a manejarem seus riscos “idiosincrásicos”, através de
instrumentos específicos tais como os ressaltados: seguro-saúde, programas de micro-
financiamento e transferências monetárias, por exemplo. Em suma, propõe-se uma
expansão do setor privado, uma intervenção do Estado em campos pouco lucrativos e
também em políticas assistenciais focalizadas nos pobres.
179
2. Segundo o PNUD
180
Esse “investimento” nas capacidades das pessoas aparece a partir de duas dimensões:
(i) a libertação dos pobres de privações (ii) o empowerment, referido à dimensão da
participação dos pobres em decisões que afetam suas vidas.
Até aqui, percebe-se que é recomendado que os “pobres” (previamente definidos, por
exemplo, os “abaixo da linha”) se organizem em função do fato de serem “pobres”, ou
de se situarem “na pobreza”, com o objetivo de “sair da pobreza”, já que “os pobres
181
são o melhor recurso que se pode mobilizar na luta contra a pobreza” (PNUD, 2000,
p. 74).
Tal como o Banco Mundial114, o PNUD também ressalta como importante estímulo à
participação dos pobres a criação de fóruns de discussão sobre a “guerra contra a
pobreza”. Nessas reuniões públicas, os pobres se engajariam descrevendo suas
condições de vida e contando suas experiências na “pobreza”. Assim, o empowerment
– ou o “aumento do poder dos pobres” - acaba sendo um fim e um meio do combate à
pobreza. Fazer com que os pobres “participem” é um objetivo da empreitada, mas
também a maneira através da qual ela se realizará. É, em última instância, um dos
lados da tão almejada “expansão das capacidades dos indivíduos – expansão que
envolve o alargamento das escolhas e, portanto, um aumento da liberdade”. (PNUD,
1996, p. 55)
114
O Banco Mundial ressalta a experiência do projeto The Voices of the Poor.
115
Por exemplo, ver Stoppino (2000).
182
2.2. Um Estado capacitador, responsável e ativo
Juntamente com a “capacitação” dos pobres, reformas nas instituições do Estado são
sugeridas como estratégias de luta contra a pobreza. Segundo o PNUD, o Estado é,
muitas vezes, ineficiente, irresponsável e “incapacitador”, agindo contra os interesses
dos pobres. As medidas propostas referem-se: a uma retração do papel do Estado –
como é o caso da defesa do mercado/iniciativa privada e da descentralização –; a uma
transformação de seu papel – por exemplo, a ênfase na regulação -; e, ainda, a uma
concentração ou direcionamento – isto é, focalização - de sua atuação e recursos para
os pobres. No que diz respeito a sua retração, é enfatizado um papel “capacitador”
para o Estado. Há forte recomendação de incentivo aos mercados e ao papel da
iniciativa privada:
Outra discussão acerca da retração do Estado bastante presente no PNUD diz respeito
à descentralização (PNUD, 2003, p. 134). Entendida como a transposição da
autoridade política da administração central aos níveis locais e destes para a
comunidade, que passa a se co-responsabilizar pela gestão (e, em alguns casos,
também pelo financiamento) das políticas públicas, o papel da descentralização no
“combate à pobreza” é fortemente enfatizado. Afirma-se que ela contribui para
melhorar a situação dos mais pobres, pois “aumenta a participação popular nos
183
processos de tomada de decisão, uma vez que aproxima o governo das pessoas”
(ibidem, p. 135). Esse processo é entendido como imprescindível para a promoção da
democracia, das liberdades e das capacidades dos indivíduos. Entretanto, trata-se,
também, da transferência de atribuições e responsabilidades do Estado para a
comunidade, como é o caso típico da gestão e do financiamento de alguns programas
de saúde nos países africanos.
As indicações referentes ao papel do Estado enquanto regulador são inerentes, por sua
vez, à transformação de sua atuação. A questão da regulação está diretamente
relacionada àquela do estímulo à concorrência de mercado. Ao mesmo tempo em que
se recomenda que o Estado se retire e diminua sua atuação enquanto produtor ou
empresário, de modo que a iniciativa privada entre em ação, sugere-se que, para que a
concorrência seja garantida, é necessário que o Estado atue como regulador. Isto é o
que o PNUD entende por “reforçar o Estado” (PNUD, 2003, p. 119): “A capacidade
reguladora nos países em desenvolvimento tem que ser desenvolvida e melhorada, de
modo que a provisão pública e privada funcione para todos os serviços e utilizadores.”
(idem).
Ainda no que diz respeito ao Estado, estão presentes nos relatórios do PNUD (2000;
2003) recomendações de concentração ou direcionamento de sua atuação, esforços e
recursos para os pobres: “Uma boa parte do êxito dos programas nacionais contra a
pobreza descansa na ‘orientação’ de seus benefícios para os pobres.” (PNUD, 2000, p.
84).
184
Se os pobres carecem de poder, é improvável que lhes cheguem os
benefícios dos programas contra a pobreza, ou que lhes cheguem com
efeito duradouro. A orientação efetiva dos benefícios é o resultado da
capacitação dos beneficiários, e não o inverso. Provavelmente a própria
palavra orientação enfraqueça a compreensão do problema: é melhor falar
em termos gerais sobre concentração dos recursos para a redução da
pobreza. (idem)
O primeiro passo desse método seria determinar quais são as regiões mais pobres,
coletar dados e elaborar “mapas geográficos da pobreza”, de modo a identificar as
regiões mais pobres e orientar-lhes especificamente as intervenções prioritárias.
No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, alguns mapeamentos foram feitos
especificamente para a fome. Em 1993, foram lançados os “mapas da fome” - Mapa
da Fome I, II e III -, pelo IPEA (1993), e, mais tarde, o “Mapa do Fim da Fome I”
(CPS/FGV, 2001) e o “Mapa do Fim da Fome II” (CPS/FGV, 2004), ambos
elaborados pela Fundação Getúlio Vargas.
185
Assim, visando o “desenvolvimento dos recursos humanos”, recomenda-se a
“promoção do investimento em serviços sociais básicos, como a educação e a atenção
médica básicas, a nutrição, a água e o saneamento, e a saúde reprodutiva.” (ibidem, p.
91) Mas a sugestão limita-se a serviços básicos. O PNUD argumenta que para os
serviços não-básicos, há, desde os anos noventa, uma tendência no sentido de uma
forte expansão da iniciativa privada ou ainda, dependendo do caso, das parcerias
público-privado para sua provisão. (PNUD, 2003, p. 111)
Por fim, quanto ao Estado, o PNUD afirma que ele deve ser responsável para com os
pobres, no sentido de estar sempre empenhado na luta contra a pobreza, no aumento
das capacidades dos indivíduos, na criação de um ambiente propício à participação e
às parcerias para a erradicação da pobreza.
116
Segundo o PNUD, “uma instituição de microfinanciamento tem um funcionamento sustentável
quando pode cobrir todos os gastos de funcionamento, e é sustentável desde o ponto de vista financeiro
quando pode cobrir todos os gastos de capital.” (PNUD, 2000, p. 92)
117
É destacado o exemplo das licenças concedidas a essas instituições de microfinanciamento. Com as
licenças, elas conseguem obter mais facilmente empréstimos no mercado de capitais, tornando mais
provável sua sustentalibidade enquanto instituição tanto do ponto de vista financeiro, quanto do de seu
funcionamento.
186
2.3. Um crescimento econômico a favor dos pobres
Com isso, conclui-se que o crescimento econômico não garante que os países em
desenvolvimento consigam reduzir a pobreza. Para tanto, são necessários esforços do
setor público - investimentos em “desenvolvimento humano”. E as políticas voltadas
para o “crescimento favorável aos pobres” devem procurar “reduzir desigualdades e
aumentar as capacidades humanas”. (PNUD, 1999, p. 94)
187
capacidades humanas através da educação e garantir o acesso às pessoas pobres. A
educação foi considerada (...) o fator mais importante para a explicação das
disparidades de rendimentos e a dispersão salarial entre níveis de qualificação tornou-
se significativa.”; (iii) tornar acessíveis mais ativos financeiros (exemplo, o
microcrédito) e recursos produtivos (como o acesso à terra) aos pobres; (iv)
transferências de rendimento e perseguir programas contra a pobreza para os mais
pobres – um mecanismo bastante enfatizado são os programas de transferência de
renda. Em suma, são políticas que buscam ampliar as oportunidades e as capacidades
dos mais pobres.
188
conseguinte, a essa perspectiva. Para que a globalização seja justa é preciso que ela
amplie as oportunidades (promova a “equidade”) e para que ela se torne humana é
necessário que ela dê atenção aos pobres (dotando-os de capacidades humanas).
Nota-se, ainda, que a argumentação do PNUD é circular: para que a pobreza seja
combatida é preciso uma globalização que promova o “desenvolvimento humano” e
para promover este último é preciso que o processo de globalização combata a
pobreza (crie oportunidades e capacite as pessoas pobres).
Por fim, outro ponto frequente em vários relatórios que tratam do combate à pobreza
(PNUD, 1997; 1999; 2003) diz respeito ao estímulo à formação de parcerias em torno
daquele objetivo. “Todos os agentes da sociedade precisam se juntar numa parceria
com vista a abordar a pobreza humana em todas as suas facetas.” (PNUD, 1997, p.
95)
Essa defesa de que é necessária a reunião de forças para uma mobilização política
contra a pobreza: (i) enfraquece aquele argumento do PNUD de que o empowerment
dos pobres consegue por si só promover a “redução da pobreza”; (ii) parece ser um
artifício utilizado para dar um tom “progressista” às políticas de combate à pobreza e
mais “humano” às políticas da própria globalização liberalizante e (iii) serve como um
recurso para a reafirmação da retórica internacional.
189
para se combater a pobreza, é preciso que se forme um consenso em torno de políticas
"em favor dos pobres" é fundamental.
Por fim, percebe-se que essa necessidade de reunir forças em torno do “combate à
pobreza” aponta e serve também para um reforço justificativo da importância do papel
dos organismos internacionais na nova empreitada do milênio. Atualmente, dizer que
é preciso buscar consenso em torno daquele objetivo acaba sendo afirmar que as
forças políticas nacionais precisam se alinhar ao que prescreve o discurso
internacional.
190
3. Segundo a OIT
Já se viu que a OIT sugere que é preciso “superar a pobreza mediante o trabalho”
(OIT, 2005). Mais especificamente, defende-se a perspectiva do “trabalho decente”
(OIT, 2003) e produtivo (OIT, 2005). Assim, para propor o que fazer, parte-se dos
objetivos considerados por esse enfoque, a saber: (i) promover e cumprir os princípios
e direitos fundamentais no trabalho; (ii) gerar maiores oportunidades para que
mulheres e homens possam ter empregos produtivos e maiores rendas; (iii) promover
a proteção social; (iv) fortalecer o diálogo social. Para tanto, a OIT (2003) defende
que uma política de redução e erradicação da pobreza requer uma expansão das
oportunidades do trabalho decente e produtivo, uma estratégia de crescimento a favor
dos pobres e, ainda, uma melhora da “governança” do mercado de trabalho.
191
As mudanças na tecnologia e na organização do trabalho (...) resultaram
numa mudança na natureza da demanda por qualificação. O caráter
mutante das novas tecnologias requer trabalhadores que possam aprender
e se adaptar a essas mudanças rapidamente e eficientemente. (ILO, 1998,
p. 46)
Desse modo, no novo contexto a demanda por trabalho exige que os trabalhadores
estejam investindo permanentemente em sua qualificação (e treinamento) e formação
profissional, de modo que mantenham e sempre renovem sua “empregabilidade”. A
ênfase na importância e na necessidade de políticas de desenvolvimento de recursos
humanos enquanto estratégia para enfrentar a atual situação de declínio do emprego e
de rápida globalização é assim justificada.
Embora o tema do “combate à pobreza” ainda não apareça no relatório de 1998 (OIT,
1998), é importante perceber que a “minimização dos custos sociais” da globalização
é proposta a partir do aumento do capital humano.
192
suas ocupações.” (OIT, 2005, p. 1) Assim, a OIT defende que o aumento da
produtividade - tanto dos próprios trabalhadores quanto do processo produtivo118 –
deve ser visto como um caminho para se combater a pobreza (o “trabalhador pobre” e
o pobre desempregado).
No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é
explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua
produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de
modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, a OIT
(2005) afirma que é preciso estimular a produtividade da economia - tanto com
“capital humano”, tornando o pobre mais competitivo e mais empregável, quanto com
inovações tecnológicas, criando novos empregos na economia como um todo.
Em suma, percebe-se que as temáticas abordadas pela OIT (1998; 2003; 2005)
referem-se, em última instância, a uma discussão sobre o papel do “capital humano”
no combate à pobreza: é preciso aumentá-lo para que o pobre possa competir e, assim,
aumentar sua renda e sair da pobreza. Ao lado das propostas de aumento da
empregabilidade, da qualificação e da produtividade do trabalhador, são
recomendadas também outras políticas voltadas para a promoção do “trabalho decente
e produtivo”. É o que se discute a seguir.
118
Tal como já observado no capítulo anterior, embora a OIT (2005) reconheça a polêmica existente
em torno da questão da produtividade – o fato de ela poder destruir empregos, já que o progresso
tecnológico permite que as empresas produzam mais com menos trabalhadores – ela defende que, para
a macroeconomia em geral, num mundo globalizado, ela gera benefícios – já que a tecnologia cria
igualmente novos produtos e novos processos, cujo resultado é a expansão dos mercados e a aparição
de novas oportunidades de emprego. Segundo a OIT, do ponto de vista da macroeconomia em geral, há
uma “destruição criativa de emprego”. (OIT, 2005, p. 81)
193
pobreza; (iv) promoção da proteção social; (v) combate ao trabalho infantil; e (vi)
superação da discriminação.
Além dessa importância para o pequeno empreendedor, a OIT (ibidem, p. 56) ressalta
que o micro-financiamento reforça o conceito de “trabalho decente” em três sentidos:
(i) com os investimentos feitos nas pequenas empresas, é facilitada a criação de novos
postos de trabalho; (ii) com a poupança, seguros e a possibilidade de empréstimos de
urgência, se estabilizam as rendas e reduz-se a vulnerabilidade dos pobres, ou seja,
sua “segurança” é reforçada (não se menciona, contudo, que, em algum momento, os
pobres terão de honrar os compromissos financeiros assumidos nesses momentos de
194
urgência); (iii) estímulo ao sentido de responsabilidade nos pobres, reforçando seu
capital social, capacitando essas pessoas.
“Para uma família pobre, a condição sine qua non para participar produtivamente na
sociedade e na economia consiste em dispor de renda básica, de uma assistência
médica elementar e de vagas nas escolas para seus filhos.” (ibidem, p. 12). Assim, a
garantia de nível de renda básica e a promoção da proteção social são exigências
básicas para superação da pobreza.
A OIT lembra que, embora sua importância seja patente, grande parte da população
pobre está à margem de qualquer tipo de proteção. Em junho de 2001, chegou-se a
“um novo consenso sobre a seguridade social na 89ª reunião da Conferência
Internacional do Trabalho.” Decidiu-se que é preciso “máxima prioridade às políticas
e iniciativas que levem seguridade àquelas pessoas que não estão cobertas pelos
sistemas vigentes”. (OIT, 2003, p. 60)
Além de ser condição básica para a vida dos pobres, a OIT ressalta o papel funcional
que a seguridade social pode ter: ela “pode elevar a produtividade e facilitar um
desenvolvimento econômico e social sustentável. (...) facilita as mudanças estruturais
e tecnológicas que requerem uma força de trabalho adaptável e móvel. (...) Os
sistemas desenhados com acerto melhoram o rendimento econômico e, desta maneira,
contribuem à vantagem comparativa dos países nos mercados mundiais.” (ibidem, p.
61).
A OIT propõe uma estratégia de expansão gradual dos sistemas, mas aponta, ao
mesmo tempo, para a necessidade de se preocupar com a questão dos gastos em
proteção social e a análise dos resultados, de modo a adequar essas políticas aos
limites fiscais e financeiros. Assim, para a OIT, a expansão da proteção social deve
195
depender e ser limitada por questões fiscais e financeiras: “a extensão aos mais pobres
da seguridade social exigirá uma combinação integrada de regimes que possam se
ampliar progressivamente, ao compasso do aumento da capacidade administrativa e
dos recursos econômicos do país.” (ibidem, p. 63)
Por fim, os dois últimos campos apontados pela OIT para a luta contra a pobreza – o
combate ao trabalho infantil e a superação da discriminação – dizem respeito aos
princípios e direitos fundamentais que devem estar presentes no “trabalho decente”.
Segundo a OIT (2003, p.11), o trabalho infantil é, ao mesmo tempo, uma causa e um
sintoma da pobreza. Assim, “o combate ao trabalho infantil está intrinsecamente
ligado às estratégias de redução da pobreza.” (ibidem, p. 67) A erradicação do
trabalho infantil requer uma estratégia integrada que leve em conta questões de
gênero, que se centre na família, e que procure retirar as crianças do trabalho,
levando-as à escola e, por outro lado, oferecendo trabalho aos pais que estiverem
desempregados. Assim, além de impedir que as crianças trabalhem – reafirmando o
direito fundamental da criança de estar fora do trabalho -, OIT procura também
promover o desenvolvimento de alternativas adequadas de educação para crianças, o
acesso a rendas e proteção para seus pais, vinculando, assim, o combate ao trabalho
infantil às estratégias já mencionadas para a superação da pobreza.
Já no que diz respeito à discriminação, a OIT sustenta que ela se relaciona com a
pobreza de duas maneiras. Por um lado, existe uma discriminação da sociedade contra
a própria pobreza. Com freqüência, a sociedade “não trata num plano de igualdade as
pessoas que vivem na pobreza.” (OIT, 2003, p. 71) Para justificar essa afirmação,
recorre ao estudo financiado pelo Banco Mundial The Voices of the Poor, no qual um
pobre argumenta que: “a pobreza é uma humilhação e provoca a sensação de não
sermos independentes e de ter que aceitar grosserias, insultos e a indiferença quando
buscamos ajuda” (NARAYAN apud OIT, 2003, p. 71)
196
casta, origem étnica, cor da pele, religião, sexo, orientação sexual, estado de saúde e
deficiência.” (idem)
A OIT afirma que o ponto de partida para todas as suas atividades destinadas a
superar a discriminação consiste na afirmação do direito à igualdade de oportunidades
e de trato no emprego. Mas lembra que a “chave para o êxito de um enfoque inclusivo
da promoção da igualdade no mercado de trabalho é a participação ativa dos
sindicatos, as organizações de empregados e outros interessados na luta contra a
discriminação e a proposição de soluções construtivas” (idem) que busquem melhorar
as oportunidades de emprego para mulheres, negros, dentre outros.
Pelo que já foi visto, percebe-se que, para a OIT, a erradicação da pobreza deve ser
alcançada através de um crescimento a favor dos pobres, que, por sua vez, significa a
promoção de “trabalho decente”, a partir daquelas estratégias mencionadas na seção
anterior. Contudo, ela argumenta que, para garantir um crescimento a favor dos
pobres, mudanças institucionais são necessárias.
Construindo seu argumento a partir das idéias de Douglass North (1990), a OIT
afirma que as instituições são importantes para os resultados da economia e, ainda,
197
que muitas das regras podem (e precisam) ser transformadas. Assim, para gerar e
manter um crescimento a favor dos pobres, é preciso que cada vez mais se discuta a
governança, isto é, “a influência reguladora das instituições, normas e medidas que
determinam o funcionamento da economia e da sociedade”. (OIT, 2003, p. 78)
Esse novo marco para as instituições é, segundo a OIT, elemento crucial para a
erradicação da pobreza. A necessidade de melhorar a “governança" do mercado de
trabalho - garantindo o cumprimento de certos princípios básicos - é justificada de
duas maneiras. Por um lado, porque o mercado de trabalho não é como os outros
mercados. Sua peculiaridade se dá pelo fato de afetar as pessoas. Por outro lado,
ressalta-se uma instrumentalidade para a garantia dessas normas básicas: a sensação
de estar sendo tratada com justiça repercute no seu rendimento. A equidade
“percebida” (e não tanto a equidade “real”) é fator fundamental na criação de
condições de trabalho que estimulem os trabalhadores, de modo que sua
produtividade seja aumentada. (ibidem, p. 78)
Dentre os princípios básicos que devem estar presentes no mercado de trabalho, são
ressaltados os seguintes direitos fundamentais: a) a liberdade de associação e a
liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a
eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição
efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de
emprego e ocupação. (ibidem, p. 79) Nota-se, dessa forma, que embora sejam
198
destacados alguns dos direitos civis e políticos importantes da tradição da luta sindical
no contexto do capitalismo, não são ressaltados os direitos sociais - conquistas estas
fundamentais para a proteção do trabalho.
4. Comentários adicionais.
199
as do quadro 2, tem-se um quadro mais abrangente, que possibilita uma comparação
entre as abordagens dos três organismos.
Pobreza
Definição monetária "Pobreza humana" -
(linha de pobreza) privação de capacidades Trabalhador pobre
(1990) e “pobreza humanas
multidimensional”
(2000)
Causas da pobreza
Falta de recursos Má governança, falta de
("ativos") e de Falta de "trabalho
oportunidades e fatores
oportunidades e, ainda, decente"
pessoais.
limitações geradas pelas
instituições.
- aumentar o
“capital humano”
- Promoção das - Capacitar os pobres
do trabalhador e a
“oportunidades”
- Reformar o Estado produtividade da
- Incentivo ao economia
- Crescimento econô-
Recomendações para o empowerment mico pró-pobre - expandir as
“combate à pobreza” - Promoção da segurança oportunidades de
- Reunir novas forças
trabalho decente e
- Promover uma produtivo
globalização “mais
- boa governança
humana”
do mercado de
trabalho
200
pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do incentivo
à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando esses
objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) a “oportunidades”
necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.
201
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez construída a “questão social” como categoria sociológica e assim definida,
Castel (2003) se permite fazer uma releitura da história a partir da idéia de
“metamorfoses da questão social”, ou seja, como uma “dialética do mesmo e do
diferente”, mostrando que em toda sociedade há uma questão social, que deve ser
entendida enquanto uma produção social cuja origem reside nas estruturas básicas da
sociedade, na organização do trabalho e no sistema de valores dominantes a partir dos
quais se atribui dignidade ou indignidade social. (CASTEL, 1996)
Sugeriu-se que a reaparição da questão social (no caso europeu) e/ou o seu
aprofundamento (nos países periféricos) podem ser entendidos a partir daquelas
transformações mundiais recentes analisadas no primeiro capítulo. Embora seja
possível, numa chave sociológica, interpretar essa nova “questão social” a partir do
processo social que a gera – tal como sugere Castel (2003) -, quando se observa como
ela vem sendo enunciada – especialmente no âmbito das políticas públicas – percebe-
se que o “nome” nem sempre diz respeito à “coisa”, o que evidencia o lado político do
problema. Nesse sentido, para elucidar a atual formulação da questão social,
argumentou-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo
contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Discutiu-se esta temática no
segundo capítulo, analisando-se rapidamente o discurso neoliberal (como utopia e
como ideologia) e, paralelamente, discorreu-se sobre a justificação do capitalismo no
mundo do trabalho (BOLTANSKI, 1999). Ainda como elementos do novo conjunto
ideológico, destacaram-se os debates e discursos contemporâneos sobre flexibilidade
e empregabilidade, que vêm se constituindo nas novas regras do jogo do mundo do
trabalho.
202
Procurou-se esclarecer melhor a separação entre o “nome” e a “coisa” no terceiro
capítulo. Considerou-se como “coisa” o conceito de Castel (2003) de “questão social”
- conceito que traz consigo a idéia de mutações ou metamorfoses - e como “nome”
tomaram-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada ou “enunciada”
ao longo do tempo. Apontou-se, assim, para um deslocamento interpretativo da
questão social no contexto latino-americano: se, no contexto do desenvolvimentismo,
ela era tratada enquanto “marginalidade” – a partir de interpretações preocupadas com
os processos estruturais que a geravam -, viu-se que, a partir dos anos oitenta, o
conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a
questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a
partir da idéia da “pobreza”. No quarto capítulo sugeriu-se que para entender melhor a
centralidade, especificidade e significado da questão social enquanto “pobreza”, é
preciso tomar como material empírico os relatórios dos organismos internacionais que
tratam dessa temática - Banco Mundial, PNUD e OIT - e que têm se dedicado – tal
como foi visto no quinto capítulo - à formulação de recomendações de políticas. Uma
vez analisados esses relatórios e ressaltadas as suas especificidades, é preciso fazer
agora algumas considerações a partir de seus traços comuns.
203
A idéia é a de que, embora a pobreza seja um problema em si mesmo e tenha sempre
existido, agora, no século XXI, chegou o momento de entendê-la melhor e de
enfrentá-la. Assim, para expandir um pouco o entendimento sobre a pobreza e não
limitar a discussão a questões monetárias e de identificação da pobreza, propõe-se que
suas causas sejam entendidas.
Mas, na medida em que a OIT (2003; 2005) aborda o tema do “trabalho decente” e da
pobreza enfatizando principalmente lado “produtivo” do trabalho, há um reforço da
idéia de que o problema é dos próprios indivíduos (falta de empregabilidade, de
capital humano, de capacitação adequada, etc.), mantendo encobertas, portanto, as
relações e causalidades de caráter mais social ou estrutural. E, além disso, ao lançar
mão em vários momentos das abordagens dos outros organismos (linha de pobreza,
capacidades, etc.), há também na OIT o pressuposto de naturalização do problema.
Nesse sentido, a pobreza, de modo geral, não é entendida como o fruto do sistema
social, ou seja, como uma “questão social”. Ao contrário, o próprio modo pelo qual
ela é tratada acaba escondendo que o problema é social. Há, dessa forma, uma
204
semelhança com tratamento dado à “questão social” pela “Guerra à Pobreza” nos
Estados Unidos dos anos setenta (CASTEL, 1978).
Segundo Castel (1978), o problema na época não era visto como “social”, mas
consistia na simples existência dos “pobres”, através da lógica de culpabilização da
vítima (blame the victim). Ou seja, a “pobreza” era vista como algo natural (um
problema em “si mesmo”) e observada a partir dos “sintomas” da questão social
(ibidem, p. 57).
Hoje, além de serem ressaltados os “sintomas” - por exemplo, a partir do estudo The
Voices of the Poor (NARAYAN, 2000) -, são apontadas “causas” para a pobreza, as
quais, além de se identificarem por “problemas” dos indivíduos, envolvem as
deficiências das instituições que criam entraves ou barreiras limitadores das
capacidades dos indivíduos. Desta maneira, a pobreza acaba sendo tratada de modo
descontextualizado ou, ainda, des-historicizado: o conjunto daqueles indivíduos que
estão “abaixo da linha” e que se encontram em tal situação devido a uma falta de
recursos ou ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de “capacidades” (PNUD, 1990;
1997), ou ainda, de trabalho decente (leia-se: produtivo) – sobretudo, por carência de
“capital humano” ou empregabilidade (OIT, 1998; 2003; 2005).
205
instituições estatais, que são ineficazes, ineficientes, enfim, que precisam ser
“reformadas”).
No que diz respeito aos próprios indivíduos, percebe-se que a ênfase na carência de
ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de capacidades humanas (PNUD, 1997; BANCO
MUNDIAL, 2000), ou ainda, de capital humano (OIT, 2003; 2005), denota, por sua
vez, um tratamento do pobre como, no limite, um “não-indivíduo”. Ele aparece como
alguém que precisa se desenvolver mais, se capacitar, se equipar e, ainda, se organizar
com outros “pobres”, em busca de mais “voz”, com o fim último de “sair da pobreza”.
Desta maneira, nota-se que está sempre presente nas argumentações sobre a pobreza
um indivíduo teórico - ou um “não-indivíduo” -, e não um indivíduo real. Por mais
que haja o esforço em mostrar que os estudos sobre “pobreza” são bastante “reais”, já
que eles vão ao campo – por exemplo, em The Voices of the Poor – perguntar às
pessoas que vivem na “pobreza” quais são suas reais problemáticas e “realidades”,
percebe-se que a avaliação de suas causas e a formulação de seu conceito são feitas a
priori, ou seja, a partir de um modelo teórico para o indivíduo, que, por contraste,
torna o “pobre” um não-indivíduo ou um indivíduo incompleto. Isto é percebido no
modo como as respostas ou declarações dadas pelos “pobres” sobre a “pobreza” no
referido estudo são sempre encaixadas em uma daquelas problemáticas: ou o
problema é a carência de “ativos” ou ele reside nas “instituições”.
Assim, pelo que foi visto, a figura do “pobre” é construída pela negação. O pobre é o
não-empregável, o não-competitivo, o não-produtivo, ou seja, ele acaba sendo o
inverso daqueles padrões de individualidade tratados no segundo capítulo, que, em
última instância, são convergentes. O pobre é o inverso do individuo teórico
competitivo, enfim, daquele homem-empresa - o novo homo economicus do
neoliberalismo - descrito por Foucault (FOUCAULT, 2004a), ou, ainda, do
“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002a).
Por mais contraditório que possa parecer, percebe-se uma naturalização e uma
individualização no tratamento de algo que é essencialmente social. Os “pobres” ou a
“pobreza” não são definidos nem pelos processos que os geram nem por aquilo que
são, mas por sua negatividade. É possível imaginar sem dificuldades, portanto, que
essa nova abordagem para a questão social traz consigo uma série de pressupostos e
implicações que merecem análise mais detida.
206
2. A construção da “pobreza” como conceito
O que se pretende sugerir aqui é que, diante do aprofundamento da questão social, que
se torna cada vez mais evidente, os neoliberais não conseguem dar conta dessa
realidade simplesmente a partir da idéia do indivíduo competitivo ou do “empresário
de si mesmo”. Para tanto, eles lançam mão de um novo conceito que está relacionado
com esse tipo de indivíduo, entendido justamente como o seu inverso: os pobres ou a
pobreza (como o conjunto ou somatório de pobres).
Embora a “pobreza” seja uma palavra antiga que sempre foi usada enquanto categoria
de percepção social, é possível sugerir, diante do conteúdo específico que vem
assumindo, que ela seja “nova” enquanto conceito - no sentido destacado por
207
Koselleck119 (1992). Assim, pode-se dizer que a pobreza como “conceito” tem
aparecido – sobretudo, nos discursos dos organismos internacionais - como se
referindo àquele indivíduo que ainda está incompleto, que precisa se “equipar” com
recursos ou ativos, enfim, se capacitar, aumentar sua empregabilidade, de modo que
consiga competir e, assim, ultrapassar a fronteira da linha da pobreza. Ou seja, esse
“pobre” aparece como o reverso do indivíduo competitivo neoliberal.
Assim, a pobreza deixa de ser uma simples categoria de percepção social e passa a ser
construída enquanto conceito, o qual, por sua vez, ajuda a recortar a realidade de uma
maneira diferente, contribuindo assim para o reforço de uma visão de mundo
específica: a neoliberal. O conceito de “pobreza” atua, portanto, como um elemento
importante do modelo proposto.
Neste sentido, discorda-se aqui do que argumentou Øyen (1996), num dos artigos da
coletânea Poverty: A Global Review. O autor sugeriu que falta uma filosofia às atuais
medidas e discussões sobre a pobreza e, por isso, o paradigma da pobreza não chega a
lugar algum (ØYEN, 1996, p. 3). Ao contrário, entende-se nesta tese que o tratamento
das mazelas sociais contemporâneas a partir do conceito de “pobreza” – e, por
conseguinte, as propostas para enfrentá-las -, por mais que se esforce em assumir um
caráter puramente “técnico”, pressupõe, sim, uma filosofia ou uma visão de mundo
social específica e que, justamente por isso, traz consigo algumas implicações. Ou
seja, é justamente a partir de uma determinada filosofia (visão de mundo) que a
questão da pobreza e as recomendações para enfrentá-la são estruturadas120.
119
Sobre a novidade dos conceitos, Koselleck (1992) sugere que: a “história dos conceitos mostra que
novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas
possam ser as mesmas.” (KOSELLECK, 1992, p. 140) Assim, ele pondera que a utilização de uma
mesma palavra - em contextos variados, e, consequentemente, com significados e conteúdos diversos -
pode representar a utilização de conceitos diferentes, ou seja, “novos conceitos”.
120
Lessa (1998) sustenta que todo paradigma de teoria política é dotado de duas dimensões analíticas
obrigatórias: (i) a dimensão descritiva; (ii) a dimensão normativa. Em relação à “dimensão descritiva”,
Lessa a considera “o domínio dos diagnósticos de diferentes states of affairs, através da descoberta do
que se toma como as suas propriedades básicas” (LESSA, 1998, p. 29). Quanto à dimensão normativa,
sugere que ela se refere “a que alternativas devem ser construídas para tais contextos. O leque de
possibilidades dessa segundo dimensão inclui: a manutenção do referido state of affairs; a eliminação
de fontes potenciais de desestabilização, ou a construção de um modelo alternativo.” (idem) Trazendo
as considerações de Lessa para a presente discussão, percebe-se, portanto, que, a partir de uma visão de
mundo específica, são destacadas as dimensões: descritiva (a “pobreza”) e normativa (o “combate à
pobreza”).
208
Assim, a partir das análises dos organismos internacionais, percebe-se que, embora
cada um construa sua argumentação de uma maneira e apresente suas peculiaridades,
eles guardam afinidades no que diz respeito: (i) a uma concepção do “pobre” como
um indivíduo incompleto ou, ainda, um não-indivíduo; e (ii) ao “que fazer” (as
propostas de políticas e instrumentos de intervenção).
Viu-se que, quanto ao que fazer, suas estratégias comuns referem-se às temáticas da
capacitação dos pobres, do assistencialismo e focalização dos recursos públicos nos
que comprovam ser pobres (crescimento “pró-pobre”), do incentivo à transformação
do pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do
incentivo à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando
esses objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) as “oportunidades”
necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.
Assim, nessa perspectiva a ordem social básica é o mercado. Visto como o grande
mecanismo de integração, o mercado estabelece que todos os indivíduos devem seguir
sua lógica concorrencial. Aqueles que conseguem competir, ou seja, atuar livremente
nessa arena do mercado, são considerados indivíduos completos considerados
autônomos. Aqueles que não conseguem acompanhar essa engrenagem - ou seja, os
pobres - precisam de ajuda. Seja através de uma assistência “momentânea”, seja por
ações que os transformem em indivíduos por inteiro: capacitação para poderem
competir e microcrédito para abrirem seus próprios empreendimentos. Percebe-se,
portanto, que ao lado da naturalização da “pobreza”, há também uma naturalização do
próprio “mercado”, que é pressuposto como o fundamento da ordem social.
O Estado deve, por sua vez, se retirar em algumas áreas, abrindo espaço para a
iniciativa privada (expandindo o “mercado”), concentrar seus esforços nas áreas onde
o capital privado não tem interesse e, ainda, fortalecer suas instituições de modo que o
mercado funcione melhor. Além disso, deve “enxugar” suas instituições para que, de
um lado, não atrapalhem as ações dos indivíduos e, por outro, concentre suas ações
naqueles que se mostram incapazes. Assim, compete ao Estado dar assistência aos
pobres, focalizar seus recursos e suas ações sobre os pobres, voltando-se para o
objetivo de capacitá-los, ou seja, dar-lhes condições de se tornarem exemplares do
indivíduo competitivo: mais ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), mais capacidades
(BANCO MUNDIAL, 2000; PNUD, 1997), mais empregabilidade e “capital
209
humano” (OIT, 1998; 2003) aos pobres, de modo que possam competir e que, assim,
suas “oportunidades” sejam expandidas.
Uma vez sugerido que a atual utilização do conceito de “pobreza” pressupõe uma
visão de mundo específica, e que dela faz parte, pode-se identificar uma íntima
relação do discurso do “combate à pobreza” com o poder, tal como ressaltava
Foucault (2004b). Para o autor, os discursos não são neutros; ao contrário, eles são
justamente lugares onde a política exerce um de seus maiores poderes. E, dessa
maneira, o “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar.” (ibidem, p. 10) O discurso é, portanto, segundo Foucault, um instrumento
de poder na luta pela imposição de sentido no mundo social.
Entendido dessa maneira, duas considerações podem ser feitas acerca do discurso do
“combate à pobreza”. Em primeiro lugar, tal como argumenta Mestrum (2002), ele é
um discurso de “legitimação” da globalização neoliberal. Ele funciona como um
guarda-chuva atrás do qual se escondem e se reforçam as reformas de que a
globalização (neoliberalizante) necessita. (MESTRUM, 2002, p. 78)
210
De fato, pelas recomendações de políticas anteriormente analisadas, percebe-se que o
“combate à pobreza” aparece como um pretexto para outras recomendações das mais
diversas naturezas (a transformação do papel do Estado, privatização, o estímulo à
abertura dos mercados, a ampliação da área de atuação do capital privado, a
focalização das políticas sociais) que coincidem realmente com a agenda neoliberal e
que, de modo geral, são mais polêmicas. Afinal de contas, é muito mais fácil e
“justificável” ser favorável ao “combate à pobreza” do que defender aquelas outras
políticas.
211
(BOLTANSKI, 1999) ou, ainda, não tão articulada e estruturada quanto nos anos
sessenta, por exemplo, vai se abrindo espaço para que os discursos quase religiosos
dos organismos internacionais - que “ensinam” o que o mundo todo deve fazer –
consigam se disseminar amplamente, ganhando uma adesão cada vez maior,
inclusive, de vozes tradicionalmente ligadas à crítica - como partidos de esquerda,
movimentos sociais, dentre outros.
Assim, tal como os próprios organismos propõem, vem sendo formado um amplo
consenso que estabelece que os “pobres” precisam de políticas de “combate à
pobreza” – simplesmente isso. Ao fazer daquelas recomendações - que são,
entretanto, políticas das mais variadas naturezas - a grande necessidade dos “pobres”,
tomam-se silenciosamente medidas que visam muito mais destruir o que foi
conquistado pela realidade do welfare state (e do que poderia, por hipótese, ser
conquistado se este ainda fosse visto enquanto horizonte paradigmático), do que
resolver de fato a “questão social”.
Diante disto, não parece estranho, portanto, que, em nome da luta contra a pobreza,
conceitos que outrora eram de suma importância – tais como cidadãos, direitos
universalizados, classes sociais – estejam hoje enfraquecidos. São conceitos que se
busca desmoralizar e que têm sido associados a coisas do “passado” ou a “privilégios”
que merecem ser destruídos.
No que diz respeito à proteção social na América Latina, nota-se que também houve
uma transformação. Se antes a ênfase recaía sobre os “trabalhadores” (MERKLEN,
2005, p. 116), ou ainda, sobre os “cidadãos”, ambos detentores de direitos sociais,
212
hoje o alvo central da política social – agora, “focalizada” - passa a ser os “pobres”.
Criam-se, assim, as bases para que os sistemas de proteção social sejam questionados
e criticados por não constituírem o melhor modo de “combater a pobreza”. E emerge,
assim, a polêmica “focalização x universalização” das políticas sociais, sugerindo que
aqueles que defendem a “focalização” lutam realmente os interesses dos “pobres” e
buscam a “justiça social”, enquanto os que defendem a “universalização” apenas estão
preocupados em manter os “privilégios” de “alguns”.
Nota-se, por fim, que o dever ser contemporâneo da política social inscrito nas
recomendações de “combate à pobreza” sugere que seu eixo se desloque da noção de
direitos e passe para as esferas das capacitações, compensações e caridades. Diante
disto, torna-se evidente que um novo (e perigoso) registro epistêmico vem sendo
usado e difundido no tratamento e entendimento do mundo social.
4. Comentário final
Frente ao objetivo ressaltado por Topalov (1994) para as ciências sociais, esta tese
teve como objetivo central o de desnaturalizar o tratamento da questão social baseado
na temática da “pobreza”, procurando propor um entendimento para seus significados
e suas implicações.
121
Que enfatizem o lado “social” e “político” da questão – seja iluminando suas problemáticas mais
estruturais, seja – tal como propõe Domingues (2003) - se preocupando com o tema da “dominação”.
213
disso, argumentou Habermas, a classe trabalhadora estaria deixando de ser o lócus da
construção das utopias, que estariam se esgotando.
122
Essa história mostra que os welfares states foram resultantes da política, num contexto em que a
democracia liberal não conseguia mais dar conta das reivindicações das classes operárias. Ou seja,
quando as tensões entre as classes sociais se acirraram e passaram a ameaçar a ordem social, o
princípio de proteção social (POLANYI, 2000) - “coletivista” e intervencionista – foi acionado, com o
objetivo de preservar a coesão social. Ou, ainda, tal como mostrou Marshall (1967), para lidar com o
acirramento da questão das classes, incluiu-se o elemento “social” na cidadania.
123
Nem que seja no “papel”, como é o caso da Constituição Brasileira de 1988.
214
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