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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ

A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal

Rio de Janeiro
2008
VIVIAN DOMÍNGUEZ UGÁ

A questão social como “pobreza”: crítica à conceituação neoliberal

Tese apresentada ao Instituto


Universitário de Pesquisas do
Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do
título de Doutora em Ciências
Humanas: Ciência Política.

Banca Examinadora:

Cesar Guimarães (orientador)


Luiz Antonio Machado da Silva
Maria Lúcia Werneck Vianna
Renato Boschi (presidente)
Silvia Gerschman

Rio de Janeiro
2008
Para Fábio
RESUMO

O objetivo desta tese consiste em discutir o tratamento atual da “questão social” como
“pobreza”. Aponta-se para a emergência do conceito de “pobreza” como um novo
eixo de sua enunciação na América Latina. Procura-se questionar e desconstruir essa
formulação, argumentando que, por mais que seja apresentada em caráter puramente
“técnico”, sua construção pressupõe uma visão específica para o mundo social e se
associa a um projeto político. Para tanto, tomam-se por objeto empírico os relatórios
dos organismos internacionais que tratam da temática da pobreza e suas causas e que
vem se dedicando à formulação de recomendações de políticas para combatê-la:
Banco Mundial, PNUD e OIT. Discutem-se criticamente as prováveis implicações do
tratamento da questão social como “pobreza”, tais como: a naturalização e a
individualização de um problema que é essencialmente social; a construção de um
conceito que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos marcos
neoliberais; e o reforço de um discurso de poder voltado para a legitimação do projeto
neoliberal-globalizante dos organismos internacionais e para o desmonte do mundo
social que foi construído ao longo da “era dourada”.

Palavras-chave: questão social, pobreza, neoliberalismo, organismos internacionais.


ABSTRACT

This thesis aims to debate the current treatment of the “social question” as “poverty”,
pointing to the emergence of the concept of poverty as the new axis of the “social
question” enunciation in Latin America. Our goal is both to question and deconstruct
such formulation by arguing that, although this view is presented in a purely
“technical” manner, its construction not only assumes a specific assessment of the
social world, but is also associated to a political agenda. To achieve this task,
international agencies’ reports concerning poverty from World Bank, UNDP and ILO
have been taken as empirical source. Those agencies have been working on the
poverty issue and its causes and also on the design of public policy prescriptions to
overcome it.. Finally, the expected implications of the treatment of the “social
question” as “poverty” are critically discussed, such as the naturalization and
individualization of a issue that is essentially social; the construction of a concept that
helps to design the social reality from the neoliberal outlook; and the strengthening of
a discourse of power that is employed both to legitimate the neoliberal-globalized
agenda and to dismantle the social world that had been built during the “golden age”.

Key-words: social question, poverty, neoliberalism, international agencies.


AGRADECIMENTOS

Expresso aqui meus agradecimentos àqueles que foram muito importantes nesse longo
processo de elaboração da tese.

À Capes, pelos apoios financeiros concedidos - bolsa de doutorado e bolsa sanduiche


(PDEE) -, sem os quais não teria sido possível ter me dedicado com exclusividade a
meus estudos.

A César Guimarães, cujo pensamento crítico sempre me inspirou e me estimulou


muito, um obrigado especial por sua leitura atenta da tese e pelos comentários e
sugestões feitos ao longo desses anos todos de orientação.

Aos professores que participaram da banca examinadora – Luiz Antonio Machado,


Maria Lucia Werneck Vianna, Renato Boschi e Silvia Gerschman -, agradeço as
observações, críticas e os comentários relevantes feitos no dia da defesa, os quais
tentarei, na medida do possível, incorporar em reflexões e estudos futuros.

Agradeço ao IUPERJ, que, ao longo desses quase sete anos, proporcionou-me um


ambiente muito rico de reflexão, debate intelectual e constante aprendizado. Foi um
prazer imenso ter podido desfrutar da excelência de seu corpo docente. Agradeço
especialmente aos professores Luiz Antonio Machado, Renato Boschi, Marcus
Figueiredo, Maria Regina Soares de Lima, pela leitura crítica de partes da tese e os
importantes comentários feitos tanto na defesa de projeto quanto em seminários de
projeto e de tese. Foi muito bom também contar com o apoio, competência e simpatia
dos funcionários da casa; um obrigado especial para Lia, Valéria, Simone, Caroline,
Ângela, Bia e Solange. Agradeço também aos colegas iuperjianos com os quais tive o
prazer de compartilhar momentos de aprendizado, reflexão e discussão.

Sou muitíssimo grata aos professores da EHESS. A Denis Merklen agradeço por sua
orientação, seus comentários críticos e construtivos, suas sugestões de leituras e a
grande atenção que me concedeu no período em que estive em Paris. A Monique de
Saint Martin agradeço a disponibilidade, enorme atenção e presteza em todos os
momentos que precisei. E a Robert Castel, pela leitura atenciosa que fez de meu
trabalho e pelo prazer de ter podido assistir seus seminários ministrados juntamente
com Denis Merklen.
Agradeço com muito carinho à minha tia Inés Menendez, quem me possibilitou um
encontro apaixonante com o idioma francês. Sem sua dedicação e paciência, com
certeza teriam surgido enormes barreiras às minhas leituras e, principalmente, à minha
ida à França. Merci beaucoup, Tinés!!

Aos amigos que me ajudaram diretamente na tese, agradeço a: Pedro Miranda e


Patricia Calazans pelo material bibliográfico que me emprestaram; Bruno Carvalho,
pelas sugestões de leituras para a tese; e Luanda Antunes, pela revisão cuidadosa do
inglês de meu abstract.

Às amigas iuperjianas Cristina Buarque e Thais Mantovani, pelo companheirismo ao


longo do doutorado e, sobretudo, nos momentos de angústia da fase de redação da
tese.

Aos amigos Laura Pelajo, Pedro Miranda, Esther Dweck, Mauricio Metri, Bruno
Carvalho, Flavio Encarnação, Luanda Antunes e Gabriel Rached, por nossa amizade
permeada de momentos sempre divertidos, interessantes e construtivos. Com certeza,
todos - cada um à sua maneira - foram muito importantes para este trabalho.

Agradeço aos meus amigos “parisienses”, Pedro Velloso, Magali Bueno, Célia
Abicalil e Paula Marcelino, com os quais construí uma bonita relação, que contribuiu
para que meu séjour tenha sido maravilhoso e muito aconchegante.

À minha família – Alicia, Pablo, Inés e Luna – que sempre me deu muita força e que,
com muito carinho, entenderam a importância desta fase em minha vida. À minha
mãe, um obrigado especial, por seu contínuo apoio, incentivo e, é claro, por sua
enorme paciência.

Um agradecimento muito especial ao Fábio, quem mais uma vez - com muito amor,
carinho, companheirismo, grande paciência e compreensão - estimulou enormemente
o meu trabalho e abrandou consideravelmente essa árdua e longa fase pela qual acabo
de passar.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

1. Apresentação 11

2. Arranjo Expositivo 13

CAPITULO I – TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS RECENTES E O SURGIMENTO


DA “NOVA QUESTÃO SOCIAL” 16

1. O processo de reestruturação econômica e social 16


1.1. A financeirização da economia 16
1.2. A reestruturação produtiva 18

2. O papel do Estado no novo contexto 23


2.1. Do Estado na “era dourada” às suas críticas 23
2.2. Europa: o desmonte dos welfares states? 34
2.3. América Latina: críticas ao Estado desenvolvimentista e as propostas para um novo tipo
de Estado 36

3. Transformações do mundo do trabalho e o surgimento da nova questão social 42

CAPITULO II – NEOLIBERALISMO, JUSTIFICAÇÃO DO CAPITALISMO E AS


NOVAS REGRAS DO JOGO 48

1. Da utopia neoliberal ao neoliberalismo como ideologia. 48


1.1. A utopia neoliberal 48
1.2. O neoliberalismo como ideologia 56

2. Espírito do capitalismo e as novas regras do jogo 59


2.1. O novo espírito do capitalismo. 59
2.2. As novas “regras do jogo”: flexibilidade e empregabilidade 65

CAPITULO III – O DESLOCAMENTO INTERPRETATIVO DA QUESTÃO SOCIAL


NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DA MARGINALIDADE À POBREZA 77

1. A questão social e sua enunciação 77

2. Da marginalidade 85
3. A enunciação contemporânea da questão social 94
3.1. Algumas considerações sobre a “nova questão social” 94
3.2. Os Estados Unidos e o debate sobre a underclass 96
3.3. O debate francês sobre a exclusão social 101
3.4. América Latina: o discurso sobre a “pobreza” 107

CAPITULO IV – A QUESTÃO SOCIAL COMO “POBREZA” 118

1. A emergência do discurso internacional sobre a “pobreza” 120

2. Os discursos dos organismos internacionais: a “pobreza” e suas causas, segundo o Banco


Mundial, o PNUD e a OIT 130
2.1. Banco Mundial 130
2.1.1. Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 1990: A Pobreza 131
2.1.2. O Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 2000/2001: A Luta contra a Pobreza
135
2.1.2.1. Pobreza como “privação das capacidades”: a presença das idéias de Amartya
Sen 140
2.1.2.2. Indivíduo, “recursos” e limitações das “capacidades” 141
2.1.2.3. Instituições e limitações das “capacidades” 146
2.2. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) 148
2.2.1. Amartya Sen e a noção de “desenvolvimento humano” 150
2.2.2. Pobreza e “desenvolvimento humano” 158
2.3. Organização Internacional do Trabalho (OIT) 164

CAPITULO V – DAS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS ÀS RECOMENDAÇÕES PARA O


“COMBATE À POBREZA” 168

1. Segundo o Banco Mundial 169


1.1. Promoção das “oportunidades” 169
1.2. Incentivo ao empowerment 175
1.3. Promoção da segurança 176

2. Segundo o PNUD 180


2.1. Aos “pobres”, mais “capacidades” 180
2.2. Um Estado capacitador, responsável e ativo 183
2.3. Um crescimento econômico a favor dos pobres 187
2.4. Uma gestão “mais humana” da globalização 188
2.5. Reunião de forças no combate à “pobreza humana” 189

3. Segundo a OIT 191


3.1. Empregabilidade, formação profissional e aumento da produtividade 191
3.2. Estratégias específicas para a promoção do “trabalho decente” e “produtivo” 193
3.3. Crescimento a favor dos pobres e a “boa governança” do mercado de trabalho 197

4. Comentários adicionais. 199


CONSIDERAÇÕES FINAIS 202

1. Naturalização e individualização no tratamento da questão social 203

2. A construção da “pobreza” como conceito 207

3. Discurso e disputa política 210

4. Comentário final 213

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 215


Os que tentam corrigir os costumes de nossa
época, com idéias em voga, só corrigem a
aparência viciada das coisas, mas não o fundo
delas, o qual talvez se agrave ainda. E acho a
agravação possível, porque é fácil aceitar
alguém as reformas exteriores e arbitrárias,
menos custosas e de vantagens mais tangíveis,
que as interiores, satisfazendo assim os vícios
essenciais sem maiores riscos.
(MICHEL DE MONTAIGNE)

Estranhem o que não for estranho


Tomem por inexplicável o habitual
Sintam-se perplexos ante o cotidiano
Tratem de achar um remédio para o abuso
Mas não esqueçam
de que o abuso é sempre a regra
(BERTOLT BRECHT)
INTRODUÇÃO

1. Apresentação

A história dos últimos trinta anos é a de um mundo que sofreu profundas


transformações cujos efeitos envolveram a totalidade das relações sociais. Como fruto
da reestruturação produtiva, da financeirização da economia, das mudanças do papel
do Estado e também do enfraquecimento social e político do mundo do trabalho,
houve um agravamento das condições sociais em escala planetária. Se, para o caso
europeu, isto vem sendo interpretado como o surgimento de uma nova questão social
(ROSANVALLON, 1995; CASTEL, 2003), no caso latino-americano, pode ser
entendido como o seu aprofundamento.

A despeito da existência de vasta bibliografia que discute esse agravamento das


condições sociais como decorrente aquelas transformações mundiais, o tratamento, a
interpretação e a enunciação da questão social e também a proposição de políticas
para solucioná-la nem sempre consideram fatores sociais e estruturais como seus
causadores.

Diante da proliferação das recomendações de políticas de “combate à pobreza” dos


organismos internacionais e dos estudos voltados para a mensuração do número de
pobres, assiste-se, desde os últimos quinze anos, a uma emergência e centralidade da
“pobreza” como uma nova forma de classificação e eixo de enunciação da questão
social, sobretudo no contexto latino-americano. Nesse sentido, o objetivo desta tese é
procurar entender seus significados e implicações. Assim, procura-se responder, por
que, ao contrário de outros momentos, a questão social vem sendo tratada
predominantemente a partir da idéia de “pobreza”? Por que, quando hoje se propõem
soluções para a questão social, pensa-se em “combater a pobreza” ou ainda “reduzir a
quantidade de pobres” do mundo?

Sabe-se que, na linguagem ordinária, a “pobreza” é termo de uso comum – como um


modo de percepção da realidade social - e de longa data. Contudo, o que se quer
propor aqui é que a atual utilização do termo “pobreza” - no campo da enunciação da
questão social e das políticas públicas que buscam resolvê-la - é algo que merece
atenção, já que, envolve não apenas uma maneira de descrição ou percepção para o

11
social, mas, sobretudo, a construção de um conceito que ajuda a recortar e interpretar
a realidade e, ainda, incidir sobre ela.

Para Topalov (1994), um dos grandes objetivos das ciências sociais consiste em
procurar fornecer meios de deslegitimação de prescrições fundadas sobre afirmações
“de fato” e, portanto, em questionar as categorias de descrição do mundo que, em
dado momento, se colocam como evidência. Diante disto, a proposta desta tese reside
em desconstruir essa nova forma de enunciação para a questão social - a partir do
conceito de pobreza -, problematizando-a, desnaturalizando-a e associando-a a um
projeto político e a uma visão de mundo específicos.

Nesse sentido, discorda-se fortemente da afirmação de Øyen (1996) de que faltaria


uma filosofia às atuais medidas e discussões sobre a pobreza e, por isso, o paradigma
da pobreza não chega a lugar algum (ØYEN, 1996, p. 3). Ao contrário, procurar-se-á
mostrar, nesta tese, que o atual tratamento da questão social a partir de “pobreza” -
por mais que se esforce em assumir um caráter puramente “técnico” -, pressupõe sim
uma filosofia ou visão de mundo social próprias e que, justamente em função disso,
traz consigo implicações. É preciso, portanto, questionar e desconstruir aquele tipo de
interpretação para a questão social.

Pode-se dizer que esta tese situa-se na fronteira entre duas áreas das Ciências Sociais:
a Sociologia e a Ciência Política, já que, por um lado, trabalha-se com conceitos
próprios da primeira, sobretudo o de “questão social” (CASTEL, 2003) e, por outro,
considera-se que : (i) sua enunciação (ou tratamento) devem ser pensados a partir da
política, dado que se tratam de resultados de uma disputa política em torno da
definição de sentido sobre o mundo social; e (ii) as recomendações de políticas para
“resolver” a questão social tem mais a ver com a luta política pela destruição da
ordem social construída ao longo da chamada “era dourada” (HOBSBAWM, 1995)
do que com a questão social propriamente dita.

12
2. Arranjo Expositivo

A discussão será desenvolvida em cinco capítulos. No primeiro capítulo, procura-se


tratar das transformações mundiais recentes, interpretando-as como ponto de partida
para o entendimento do surgimento de uma nova questão social. Sugere-se que a
reaparição desta última – no caso europeu – e/ou o seu aprofundamento – nos países
periféricos - devam ser interpretados a partir das mudanças observadas no último
quarto do século passado, ou seja, a partir do processo de reestruturação produtiva, de
financeirização da economia, da transformação do papel do Estado e, ainda, do
enfraquecimento do mundo do trabalho - seja do ponto de vista sociológico
(afrouxamento da condição salarial – desemprego estrutural, precarização do
emprego, etc.), seja do ponto de vista político (enfraquecimento do mundo do trabalho
enquanto lócus da crítica ao capitalismo).

Embora, numa análise sociológica, seja possível interpretar essa nova questão social
enquanto como produto da própria dinâmica social – tal como sugere Castel (2003) -,
quando se observa como ela vem sendo enunciada e interpretada – sobretudo, no
âmbito das políticas públicas – nota-se que nem sempre o “nome” diz respeito à
“coisa”, o que torna evidente o perfil político do problema a ser discutido.

Assim, para compreender como a questão social vem sendo enunciada e interpretada,
reconhece-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo
contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Deste modo, no segundo capítulo,
analisa-se rapidamente o discurso neoliberal – desde quando se colocava como
“utopia”, cujo alvo inimigo era a intervenção estatal, até o momento em que consegue
chegar ao poder e, paulatinamente, afirmar-se como “ideologia” do capitalismo
globalizado.

Ainda no mesmo capítulo, discorre-se, paralelamente, sobre a interpretação de


Boltanski (1999) acerca de como o capitalismo vem sendo justificado no mundo do
trabalho. E, ainda, como elementos importantes desse novo conjunto ideológico, são
destacados os debates e discursos contemporâneos sobre flexibilidade e
empregabilidade, que vêm se apresentando como as novas “regras do jogo” do mundo
do trabalho. Como decorrente de tudo isso, discute-se a formação de um novo caráter

13
da individualidade especificamente contemporânea: o trabalhador enquanto
“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002) e como indivíduo teórico
competitivo. Essas novas figuras ajudam a pensar, posteriormente, o modo como a
questão social vem sendo problematizada.

No terceiro capítulo, aquela separação entre o “nome” e a “coisa” fica bem mais clara.
Considera-se como “coisa” o conceito de “questão social” formulado por Castel
(2003) - conceito este que traz consigo a idéia de suas próprias metamorfoses - e
como “nome” tomam-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada – ou
“enunciada” - ao longo do tempo. Desta maneira, aponta-se, mais especificamente,
para um deslocamento interpretativo da questão social no contexto latino-americano.
Se, no contexto do desenvolvimentismo, ela era tratada a partir da idéia de
“marginalidade” – vinculada a interpretações preocupadas com os processos
estruturais que a geravam -, nota-se que, a partir dos anos oitenta, o conceito de
marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a questão
social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a partir da
idéia da “pobreza”. Mostra-se também, como contraponto, como a nova questão
social vem sendo debatida no contexto francês (como “exclusão”) e no norte-
americano (como underclass).

No quarto capítulo sugere-se que para entender melhor a centralidade, especificidade


e significado da questão social como “pobreza”, é preciso analisar os discursos e
relatórios dos organismos internacionais que tratam da temática da pobreza e suas
causas - Banco Mundial, PNUD e OIT - e que vem se dedicando à formulação de
recomendações de políticas para combatê-la – temática discutida no quinto capítulo.
Uma vez analisados, ao longo do quarto e quinto capítulos, os relatórios desses
organismos internacionais e ressaltadas as suas especificidades são feitas algumas
considerações a partir dos traços comuns que os três organismos compartilham.

A partir disso, conclui-se que o tratamento da questão social como “pobreza” traz
consigo algumas implicações. De maneira bastante resumida, podem-se ressaltar as
seguintes: (i) esse tratamento resume-se a uma abordagem individualizante e des-
historicizada, enfraquecendo perspectivas sociológicas baseadas em explicações que
enfatizem os caracteres social e político da questão (ii) vai sendo construído um
conceito (“pobreza”) que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos
marcos neoliberais; (iii) reforça-se um discurso de poder cujo objetivo fundamenta-se

14
na busca pela legitimação do projeto neoliberal-globalizante dos organismos
internacionais e, em última instância, pelo desmonte do mundo social que foi
construído ao longo da “era dourada”.

15
Capítulo I – TRANSFORMAÇÕES MUNDIAIS RECENTES E O
SURGIMENTO DA “NOVA QUESTÃO SOCIAL”

1. O processo de reestruturação econômica e social

A partir de meados dos anos setenta, observam-se transformações profundas na


economia política do capitalismo. É o começo de uma nova etapa: de um lado, tem-se
um novo tipo de acumulação capitalista – que se torna visível com o aprofundamento
do processo de financeirização da economia - e, de outro, frente ao esgotamento do
modelo fordista, tem-se uma reestruturação produtiva, marcada pelo início de um
novo paradigma de organização da produção.

Ambas as transformações tiveram influência no caráter “estrutural” do desemprego,


ressaltado, por exemplo, por Hobsbawm: “o crescente desemprego dessas décadas não
foi simplesmente cíclico, mas estrutural. Os empregos perdidos nos maus tempos não
retornariam quando os tempos melhoravam: não voltariam jamais.” (HOBSBAWM,
1995, p. 403).

1.1. A financeirização da economia

As transformações que dizem respeito ao processo de financeirização da economia


foram amplamente discutidas por vários autores e são percebidas e conceituadas de
diversos modos: como a “revolução financeira global” (ARRIGHI, 1996), como
“globalização financeira” (AGLIETTA et alli, 1990), como a “financeirização global”
(BRAGA, 1997), como a hegemonia do capital financeiro na “mundialização do
capital” contemporânea (CHESNAIS, 1996), dentre outros.

Para além de suas diferenças, se tomados em conjunto, nota-se que todos esses
autores estão tratando de um mesmo fenômeno, que veio a ser chamado de
globalização financeira, cujas origens “remontam aos anos 60, ao início do processo
de desregulação financeira que começou com a criação do euromercado de dólares e
deu seu segundo passo com o fim do sistema de paridade cambial acordado em
Bretton Woods” (FIORI, 2001, p. 97).

16
A esse desmoronamento da ordem monetária internacional estabelecida em Bretton
Woods somou-se o choque do petróleo, em 1973, como mais um fator para a crise,
cujos impactos também foram bastante fortes para o contexto econômico da época;
isto gerou um aumento abrupto dos preços desse recurso energético em escala mundial e
causou forte recessão mundial, combinando baixas taxas de crescimento com altos
índices de inflação. Com a queda da rentabilidade do capital investido na indústria, a
partir dos anos setenta, os capitais industriais passam a buscar novas formas de
valorização: sobretudo, as financeiras.

Desde então, diante da possibilidade de se expandir nessa esfera financeira, o


capitalismo teve sua lógica de expansão alterada. Assim, a globalização resulta “de
dois movimentos básicos: no plano doméstico, da progressiva liberalização
financeira, e, no plano internacional, da crescente mobilidade de capitais”
(CARNEIRO, 2002). Segundo Fiori (2001), a expansão da globalização

só ocorreu nos anos 80 e foi obra das políticas desregulacionistas iniciadas


pelos governos anglo-saxões, que se universalizaram, nos países centrais,
por meio do efeito em cadeia – ‘desregulação competitiva’ – provocado
pela competição entre os Estados pelo capital financeiro
internacionalizado; e, nos países periféricos, como decorrência de sua
“crise externa” e como imposição das políticas de ajuste patrocinadas
pelos seus credores e governos dos países centrais. (FIORI, ibidem, p. 98)

E é nesse contexto que os operadores financeiros experimentam uma liberdade de


ação que não sentiam desde a crise de 1929 (CHESNAIS, 1996). Contudo, dizer que o
capitalismo contemporâneo é fortemente marcado pela lógica financeira não é nada
trivial. Isto significa que seu padrão de geração de riquezas e de acumulação se
transformou e que sua dinâmica agora ocorre também no processo de acumulação D-
D’, e não apenas em D-M-D’ (ARRIGHI, 1996).

Para desenvolver esse argumento, Arrighi (1996) utiliza a formulação de Karl Marx
(2002), em O Capital: D-M-D’, em que D significa capital-dinheiro (liquidez,
flexibilidade e liberdade de escolha); M é o capital-mercadoria (ou seja, aquele
investido numa certa combinação de insumos, para obtenção de lucro); e, por fim, D’,
que é o dinheiro obtido no final do empreendimento, representa a ampliação da
liquidez, da flexibilidade e da liberdade de escolha e é o resultado da reprodução do
capital. A atividade financeira seria, então, expressa por D-D’, onde D se transforma
diretamente em D’, sem passar pelo setor produtivo.

17
Tem-se, assim, um “dinheiro produtor de dinheiro, a forma mais absurda do capital”.
(HILFERDING apud BRAGA, 1997, p. 197). O capital financeiro portanto
“representa ‘a forma mais alienada, mais fetichizada da relação capitalista’, a forma
D-D’" (MARX apud CHESNAIS, 1996, p. 246). Assim, diante da possibilidade de se
expandir no âmbito financeiro (D-D’), a acumulação de capital se desloca da esfera da
produção para a esfera financeira (rentista).

É evidente que, esse novo movimento do capital, cuja valorização não tem mais a
necessidade de passar pela esfera produtiva, traduziu-se em criação de limitações ao
desenvolvimento em bases produtivas, gerando, é claro, desemprego. Embora as
mazelas da financeirização pudessem ser remediadas ou revertidas através da política,
tudo fica mais difícil num momento em há um reforço da hegemonia do capital
financeiro e de seu discurso liberal-globalizante.

Ao lado do processo de financeirização, o problema do desemprego estrutural foi


também reforçado pelo fenômeno da reestruturação produtiva, que será o tema da
próxima seção.

1.2. A reestruturação produtiva

Tal como o processo de financeirização, o de reestruturação produtiva tem sua origem


na crise dos países capitalistas centrais, no pós-1973. Após um longo período de
prosperidade econômica, durante o auge do fordismo, a depressão dos anos setenta e a
revolução tecnológica acabaram por impulsionar e possibilitar a criação de novos
métodos de organização da produção e da força de trabalho. Esse momento de
inflexão é marcado pela passagem do modelo fordista para o “regime de acumulação
flexível” (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1995).

O regime fordista1, que representava o motor de desenvolvimento econômico dos


países que a ele aderiram, perdurou até meados dos anos setenta, quando, após anos
de crescimento, seus limites (mercados saturados) se tornam evidentes.

1
O regime de acumulação fordista atingira sua maturidade no pós-1945, embora tenha sido
simbolicamente inaugurado por Henry Ford, em 1914, quando introduziu o sistema de linha de
montagem, em busca da contínua redução do tempo de fabricação dos veículos, tornando o processo
mais simples e eficiente e, os produtos, as ferramentas e as peças, mais padronizados. A grande

18
Antunes (1999) avalia a crise do fordismo como uma “expressão fenomênica” da crise
estrutural do capitalismo cujos traços foram evidenciados nesse período. Nesse
quadro, chama a atenção para: queda da taxa de lucro (em função do aumento dos
salários na “Era Dourada”); incapacidade do fordismo em responder à crescente
retração do consumo; hipertrofia da esfera financeira2 (ibidem, p. 30), além da crise
do petróleo que passa a ser o estopim e o marco simbólico do fim de uma era.

Simultaneamente a esta crise estrutural, uma revolução tecnológica se encontrava em


curso. Castells (2000) observa a reestruturação produtiva como conseqüência da
revolução tecnológica, que é definida por ele como o advento do paradigma da
tecnologia da informação3. Certamente, sua análise vai muito além da compreensão
da reestruturação produtiva a partir do desenvolvimento de tecnologias de
informação, já que procura explicar suas conseqüências transformadoras sobre a
organização social4.

Propiciadas pelo surgimento e difusão de novas tecnologias, transformações


estruturais passam a ser freqüentes nas estratégias dos agentes do setor produtivo:
automação, alteração do padrão tecnológico, reestruturação da produção e da
organização do trabalho e deslocalização do processo produtivo.

Assim, como resposta ao novo contexto, iniciava-se, desse modo, a passagem para um
novo regime de acumulação. Esse novo “modelo” tem sido caracterizado por

novidade desse modelo de produção se baseava em sua visão de que produção em massa significava
consumo em massa, o qual era possibilitado pelos baixos preços dos produtos, pelos maiores salários
dos trabalhadores e pela existência de uma enorme demanda reprimida. Era nessas inovações que se
percebia o caráter estruturante do fordismo, já que, junto ao Estado interventor e de bem-estar,
conseguiu transformar profundamente a sociedade do pós-guerra. Essa capacidade de transformação
social e cultural do fordismo foi analisada por Gramsci (2001), que ressaltou: “a racionalização
determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de
processo produtivo” (idem, p. 248). Assim, a partir da centralidade da nova forma do processo de
trabalho, ele percebe uma nova forma da vida moderna e compreende que, como ressalta Finelli
(1997), analisando Gramsci, há uma “produção de toda uma organização social, em seu nexo articulado
de plano material, plano relacional-social e plano ideológico-simbólico, a partir da centralidade da
fábrica”.
2
Como foi visto na seção anterior.
3
Ou “informacionalismo” - conjunto convergente de tecnologias em microeletrônica, computação,
telecomunicações/radiodifusão e optoeletrônica.
4
Como ressalta Cardoso, no prefácio de A sociedade em rede, Castells encontra “no paradigma
tecnológico baseado na informação os princípios organizadores de um novo ‘modo de
desenvolvimento’, que não se substitui ao modo de produção capitalista, mas lhe dá nova face e
contribui de forma decisiva para definir os traços distintivos das sociedades do final do século XX. A
análise se desdobra na identificação de uma nova estrutura social, marcada pela presença e o
funcionamento de um sistema de redes interligadas” (p. II).

19
“acumulação flexível” (HARVEY, 1992; ANTUNES, 1995), ou por “toyotismo”
(ANTUNES, 1995) – o modelo japonês. Não cabe aqui um estudo pormenorizado
desses novos modelos5, mas simplesmente ressaltar aspectos mais gerais da
reestruturação produtiva, tal como a questão da flexibilização.

Para Castells (2000), o sistema flexível decorrente do advento do


“informacionalismo” surgiu como uma resposta para enfrentamento da rigidez
característica do modelo anterior, que se mostrava obsoleta frente ao novo ritmo de
transformação tecnológica. As novas tecnologias permitiram, por um lado, a
“transformação das linhas de montagem típicas da grande empresa em unidades de
produção de fácil programação” (CASTELLS, 2000, p. 176), tornando-as mais
flexíveis e possibilitando o atendimento das variações do mercado e das
transformações tecnológicas.

Por outro lado, as inovações tecnológicas propiciaram a formação de redes de


empresas, que, de modo geral, procuram ser

capazes de gerar conhecimentos e processar informações com eficiência;


adaptar-se à geometria variável da economia global; ser flexível o
suficiente para transformar seus meios tão rapidamente quanto mudam os
objetivos sob o impacto da rápida transformação cultural, tecnológica e
institucional; e inovar, já que a inovação torna-se a principal arma
competitiva. (ibidem, p. 192).

Boltanski (1999), por sua vez, ressalta como um dos eixos principais da
transformação das estratégias das empresas a flexibilização, que pode ser dividida em
flexibilização interna e externa. Ele entende a primeira como a transformação
profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência,
autocontrole, desenvolvimento da autonomia) e destaca como flexibilização externa a
transformação do tecido produtivo, que passa a estar assentado numa organização do
trabalho dita “em rede”.

As transformações tecnológicas e a reestruturação produtiva tiveram profundas


conseqüências sobre o mundo do trabalho. A substituição dos homens por tecnologia -
máquinas muito mais eficientes – não foi compensada por uma criação de empregos
satisfatória. Nas palavras de Hobsbawm: “a produção agora dispensava visivelmente

5
Para tanto, ver Antunes (1995) ou Harvey (1992).

20
seres humanos mais rapidamente do que a economia (...) gerava novos empregos para
eles.” (HOBSBAWM, 1995, p. 404)

Castells (2000) reconhece que durante processo de transição para a sociedade


informacional e uma economia global assiste-se ao problema do desemprego e o da
deterioração das condições de trabalho e de vida para os trabalhadores. E considera
ainda que, “sob o paradigma informacional, os tipos de emprego mudam em
quantidade, qualidade e natureza do trabalho executado.” (ibidem, p. 284). Nesse
sentido, além de gerar desemprego e precarização do trabalho, o novo sistema
produtivo começa a requerer um novo tipo de força de trabalho. Os indivíduos
passam, portanto, a ter a obrigação de se adaptarem às novas exigências.

A hipótese de Castells é a de que a transformação mais importante ocorrida no mundo


do trabalho foi o processo de individualização do trabalho: a “nova organização social
e econômica baseada nas tecnologias da informação visa à administração
descentralizadora, trabalho individualizante e mercados personalizados e com isso
segmenta o trabalho e fragmenta as sociedades.” (ibidem, p. 285) Para o autor, a
flexibilidade extrema proporcionada pela tecnologia acaba por impor condições
produzindo uma individualização da relação entre trabalhador e empresa e uma
individualização do trabalho em si.

Em suma, esse processo de individualização do trabalho é entendido como o


“processo pelo qual a contribuição da mão-de-obra ao processo produtivo é definida
de forma específica para cada trabalhador e em razão de cada uma de suas
contribuições, seja na forma de trabalho autônomo, seja como mão-de-obra
assalariada contratada individualmente e com base em um mercado amplamente
desregulamentado.” (CASTELLS, 1999, p. 97).

Assim, ao contrário do que Marx (2002) havia percebido em O Capital - que, com o
desenvolvimento do capitalismo, o trabalho se tornava cada vez mais coletivo -,
Castells (2000) afirma que, no capitalismo contemporâneo, o trabalho tende a ser cada
vez mais individual, o que acaba por desorganizar estruturalmente a classe
trabalhadora.

Além disso, tendo como resultados para o mundo do trabalho o desemprego e


precarização do emprego, a reestruturação produtiva é entendida por Boltanski (1999,
p. 356) como fonte para a dessindicalização.

21
Ademais, outro fator que contribui para a perda de poder de barganha dos
trabalhadores é a flexibilização geográfica da produção ou a “deslocalização do
processo produtivo”. Possibilitada pelas inovações tecnológicas e adequada à lógica
da competição de livre comércio mundial, essa deslocalização da produção se dá em
termos, por um lado, da possibilidade de se fragmentar o processo produtivo,
realizando suas variadas etapas em distintos países – especialmente naqueles em que
as condições lhes sejam mais favoráveis, isto é, baixos salários, mão-de-obra barata,
subsídios, isenções fiscais. Por outro, ocorre através da transferência direta do
processo produtivo para países nos quais os custos de produção – sobretudo, o da mão
de obra – são menores.

Assim, assiste-se hoje, por exemplo, ao deslocamento das plantas produtivas dos
Estados Unidos para o México, da Europa Ocidental para o Leste Europeu, do Japão
para a Índia e China, sempre em busca dos menores custos de produção. Nesse
sentido, por um lado, os trabalhadores dos países do centro do sistema, tendo seu
poder de barganha reduzido, se vêem obrigados a diminuir suas reivindicações e, por
outro, esses países começam a alinhar suas legislações trabalhistas e de proteção
social àquelas do Estado onde lhes forem mais favoráveis - leia-se: onde a proteção
for menor (CHESNAIS, 1996, p. 306).

Paralelamente, nos países periféricos, para fazer frente às exigências da abertura das
fronteiras comerciais, as empresas se vêem numa necessária corrida à reestruturação
produtiva, no sentido de enfrentar a competição globalizada imposta por produtos
produzidos a custos mais baixos.

De modo geral, como resultado dessa profunda reorganização da vida econômica, há


uma tendência à globalização do desemprego e da precarização, ou seja, um
enfraquecimento do mundo do trabalho, afetando tanto países mais desenvolvidos
quanto os periféricos.

22
2. O papel do Estado no novo contexto

2.1. Do Estado na “era dourada” às suas críticas

A discussão sobre surgimento da tendência intervencionista observada em grande


parte do século XX está presente em A Grande Transformação, escrita por Polanyi
em 1947. O autor a interpreta como resultante de um movimento de “auto-proteção”
de uma sociedade que precisava de alternativas aos efeitos perversos da economia de
mercado. Ele procurou mostrar como a crise da civilização liberal, que teve seu auge
no século XIX, explica-se a partir do próprio esforço utópico do liberalismo em tentar
estabelecer um sistema de mercado auto-regulador.

Polanyi argumenta que, ao procurar moldar a sociedade à sua imagem (tentando


transformar o homem e a natureza em mercadorias), a economia de mercado acabou
destruindo o tecido social, não sendo capaz de criar modos alternativos de reconstruí-
lo. Com isso, colocou-se em marcha o que ele chama de “contra-movimento”
(POLANYI, 2000, p. 161) de resistência da própria sociedade - um “princípio de
proteção social” (ibidem, p. 164) – com o objetivo de frear os mecanismos de
mercado destruidores do tecido social.

Assim, quanto mais o princípio do liberalismo econômico – que utopicamente visava


estabelecer um mercado “auto-regulável” - se expandia e as tensões entre as classes
sociais se acirravam (ibidem, p. 165) e ameaçavam a ordem social vigente, tanto mais
o princípio de proteção social - “coletivista” e intervencionista – ia sendo acionado,
com o objetivo de preservar a coesão social.

Pode-se dizer que esse movimento de proteção nacional e social contra os efeitos
nefastos do “moinho satânico” atingiu seu auge no pós-guerra, período (1945-1973)
que ficou conhecido como a “era de ouro” (HOBSBAWM, 1995) e foi marcado6 pela

6
Vale lembrar aqui que a “era dourada” teve significados diferentes nos países centrais e periféricos.
Enquanto nos países centrais essa era representou o auge do Welfare State, na Europa, e do liberalismo
keynesiano – o “embedded liberalism” -, nos Estados Unidos, nos países da periferia (particularmente
na América Latina), esse período foi marcado pelo desenvolvimentismo (WALLERSTEIN, 2000).

23
forte presença estatal tanto na esfera econômica (keynesianismo) quanto no âmbito da
proteção social (welfare state).

Dentre os estudos sobre o welfare state que surgiram no pós-guerra, hoje


considerados clássicos (PIERSON e CASTLES, 2002), está o de T. H. Marshall
(1950), que discutiu a questão do welfare state a partir da história do desenvolvimento
da cidadania. Marshall analisa a formação da cidadania como um desenvolvimento
dos direitos civis, políticos e sociais, que foram conquistados, respectivamente, nos
séculos XVII, XVIII e XIX.

Sua contribuição foi mostrar que a cidadania não se resume às dimensões civil e
política, mas contém também a social, que faz com que os “direitos sociais”, tais
como os civis e os políticos sejam fundamentais ao “cidadão”. Assim, Marshall
sugere que um indivíduo só pode ser considerado “cidadão” completo se possuir os
três elementos da cidadania. Deste modo, ao analisar a história da consolidação dos
direitos na Inglaterra, entende o welfare state como o momento final do
desenvolvimento da cidadania.

A despeito das críticas7, a contribuição de Marshall é de grande importância, já que,


por um lado, afirma que a cidadania é universal – ela diz respeito a todos os membros
da comunidade -, o que faz com que todos os indivíduos tenham o mesmo status. Por
outro, enfatiza o elemento “social” como parte constitutiva da cidadania e, portanto, a
sua recíproca: a ausência de direitos sociais significa incompletude da cidadania. E
aprofunda: ao perceber que a cidadania social como algo que vai além da provisão de
políticas sociais, Marshall sustenta que, embora ela não interfira na estrutura de
classes existente na sociedade capitalista, a cidadania consegue alterar as relações

7
As críticas referem-se, por um lado, à visão evolucionária da cidadania de que Marshall lança mão e,
por outro, à tentativa de generalização a partir da análise da experiência inglesa (TURNER, 1993).
Quanto ao “evolucionismo” de Marshall, não estaria claro porque os direitos civis e políticos devem vir
antes dos direitos sociais e, em última instância, pareceria que Marshall dá pouca importância às lutas
sociais na promoção dos direitos de cidadania. Assim, segundo Turner, a trilogia de Marshall acabaria
sugerindo que a transição rumo à cidadania é um processo pacífico e gradual, menosprezando,
portanto, a importância dos movimentos e lutas sociais. Mas Santos (2001) lembra que, embora haja
polêmica em torno dessa questão – em que medida a cidadania social é uma conquista do movimento
operário (TURNER apud SANTOS) ou uma concessão do Estado capitalista (Barbalet apud SANTOS)
– é evidente que, sem as lutas sociais do movimento operário, aquelas conquistas não teriam sido
alcançadas (ou, ainda, aquelas “concessões” não teriam sido feitas).

24
existentes entre Estado, sociedade e economia e, com isso, gerar efeitos sobre a
desigualdade social.

Esping-Andersen (1990) também trabalha com a idéia de que direitos sociais estão
para além da provisão de serviços sociais. A proteção social deve ser analisada a
partir de sua capacidade de moldar as relações de poder existentes na sociedade. Essa
possibilidade é explicada a partir da capacidade de desmercadorização da proteção
social.

Para Ensping-Andersen, o conceito de desmercadorização refere-se à capacidade que


a cidadania social tem de, ao garantir direitos sociais aos cidadãos, reduzir o grau de
dependência desses indivíduos em relação ao mercado – e também, em última
instância, em relação ao empregador. Assim, a introdução de direitos sociais implica
no afrouxamento do status de mercadoria que o indivíduo tem na sociedade
capitalista. A desmercadorização ocorre plenamente quando a prestação de um
serviço social é vista como um direito adquirido (que não depende da relação do
indivíduo com o mercado) e, portanto, quando implica um certo grau de emancipação
do indivíduo, que passa a ser menos dependente do mercado.

Esping Andersen (1990) se propõe a analisar diferentes tipos diversos de welfare


state, definidos a partir dos diferentes graus de desmercadorização que conseguem
produzir. O autor descreve três modelos diferentes: o liberal (ou residual), o
corporativo e o social-democrata.

Ele postula que, no modelo liberal, o mercado é o mecanismo central de promoção


dos serviços sociais. O papel do Estado é resumido à concessão de benefícios e
programas direcionados apenas àqueles que comprovam ser pobres. Assim, é um
modelo residual e seletivo de intervenção, em que os benefícios são modestos e sua
clientela é essencialmente de baixa renda. Na medida em que o mercado é a
instituição central do modelo, os serviços oferecidos são mercadorias que as pessoas
compram. Só são atendidos pelo Estado aqueles que comprovam não ter condições de
adquirir esses serviços por conta própria. Fica claro, portanto, que esse modelo tem
um efeito de desmercadorização mínimo, uma vez que sua capacidade de transformar
mercadorias em direitos é muito baixa. Ele é característico dos Estados Unidos, por
exemplo.

25
O segundo modelo é o corporativista, preponderante na Itália, Alemanha, França e
Áustria.

Nestes welfare states (...), a obsessão liberal com a mercadorização e a


eficiência do mercado nunca foi marcante e, por isso, a concessão de
direitos sociais não chegou a ser uma questão seriamente controvertida. O
que predominava era a preservação das diferenças de status; os direitos,
portanto, estavam ligados à classe e ao status. (ibidem, p. 27)

A idéia de proteção é muito forte nesse modelo, porém não para todos. Apenas
algumas categorias ou grupos estão protegidos. O regime acaba sendo muito
segmentado e estratificado, inclusive do ponto de vista da cidadania, pois ela acaba
não dependendo do fato de a pessoa ter nascido no país, mas apenas de sua posição no
mercado de trabalho e na estrutura social8.

Por fim, o modelo “social-democrata” é o que tenta promover a igualdade com os


melhores padrões de qualidade, e não uma igualdade de necessidades mínimas. Seus
programas são altamente desmercadorizantes e universalistas. Este modelo tenta
excluir o mercado e constrói uma solidariedade universal em favor do welfare state,
em que “todos se beneficiam; todos são dependentes; e supostamente todos se
sentirão obrigados a pagar” (ibidem, p. 28). Assim, engendra-se, na sociedade, uma
expectativa de ganho igual para todos, que é obtida através de uma coalizão política,
ou seja, um compromisso, em função de uma determinada realidade política. Esse
modelo é exemplificado pelos países escandinavos.

A partir de Polanyi (1947), Marshall (1950) e Esping-Andersen (1990) é possível


perceber que a mais forte característica do welfare state é sua capacidade de
domesticar o poder destrutivo do mercado e do capitalismo, uma vez que, ao
promover a cidadania social, inscreve os indivíduos na categoria “cidadãos”, em um
sistema de direitos sociais, e, assim, consegue alterar, de forma duradoura, a relação
existente entre o Estado, o mercado e a sociedade.

Em suma, o welfare state, nas palavras de Offe (1982):

serviu como a principal fórmula de paz das democracias capitalistas


durante o período seguinte à segunda guerra mundial. Esta fórmula de paz

8
O caso do welfare state francês foi exemplarmente discutido por Castel (2003) a partir da noção de
“sociedade salarial”, construída a partir da idéia e da realidade do “trabalho protegido”. (CASTEL,
2003, pp. 415-493).

26
consiste, primeiro, na obrigação explícita do aparato estatal de prover
assistência e apoio (...) como direitos garantidos para os cidadãos. Em
segundo lugar, o welfare state é baseado no reconhecimento do papel
formal dos sindicatos tanto em negociações coletivas quanto na formação
de políticas públicas. Esses componentes estruturais do welfare state são
ambos voltados para limitar e mitigar o conflito de classe, para balancear
a relação de poder assimétrica entre trabalho e capital, e, assim, superar
(...) conflitos e contradições que eram as características mais marcantes do
(...) capitalismo liberal (OFFE, 1982, p. 67, tradução livre).

Assim, como lembra Domingues (2003), ainda que o welfare state não tenha superado
a questão da dominação na sociedade capitalista9, a cidadania social atacou os efeitos
da tensão da sociedade capitalista. O welfare state serviu para remediar os danos da
dominação e para promover uma distribuição que pôde reduzir, em certa medida,
através de direitos sociais universalistas, a desigualdade e o privilégio.
(DOMINGUES, 2003, p. 224)

Sabe-se que o Estado de Bem Estar Social teve seu auge nos trinta anos seguintes à
segunda guerra. Em meados dos anos setenta, ele começa a ser alvo de ataques tanto
pela esquerda quanto pela direita.

Resumidamente, segundo Offe (1982), a crítica a partir da esquerda denunciava que a


estrutura do welfare state havia alterado muito pouco a distribuição de renda entre as
classes do capital e do trabalho. Argumentava que o mecanismo de redistribuição só
funcionava entre as diferentes frações da classe trabalhadora. Nesse sentido, não
eliminava as causas das contingências e necessidades individuais, mas apenas atuava
sobre algumas das conseqüências de seus eventos; consistia numa intervenção post
facto.

Por outro lado, o welfare state passou a ser visto como fonte de falsas concepções
sobre as realidades históricas, que prejudicavam a consciência, a organização e a luta
da classe trabalhadora. Ela criaria a imagem de duas esferas independentes entre si: de
um lado, a esfera da produção, do trabalho, da economia e, de outro, uma esfera mais
abstrata ou superficial – a da cidadania, do Estado, dos direitos – que acabaria por
ocultar as relações de classe. Enfim, a esquerda afirmava que a crise do welfare state
revelava, em última instância, a contradição básica da sociedade capitalista entre as

9
Domingues (2003) argumenta que a dominação foi re-introduzida na modernidade pelos direitos de
propriedade, que são cruciais e instrumentais para o capitalismo e para a sociedade de classes.

27
forças produtivas e a permanência de relações de produção de caráter privado
(FLEURY, 1994).

Já as críticas oriundas da direita representaram a defesa de um retorno das idéias do


laissez-faire – através do “neoliberalismo” 10 - que diagnosticavam a crise como uma
conseqüência do excesso da presença estatal que, por um lado, desincentivaria o
investimento, em função das altas taxas de arrecadação, dos crescentes salários e
encargos trabalhistas e, por outro, estimularia uma excessiva geração de expectativas
(BRITTAN, 1975) para as demandas sociais, causando, conseqüentemente, uma
“ingovernabilidade” (HUNTINGTON et alli, 1975).

Samuel Brittan - teórico inglês com proximidade à Margareth Thatcher – ressaltava,


em The Economic Contradictions of Democracy (BRITTAN, 1975), que as
democracias apresentam duas ameaças internas, que colocam em risco a efetividade
da governabilidade: (i) a excessiva geração de expectativas e (ii) uma busca da
satisfação dos interesses dos diversos “grupos” (leia-se: sindicatos) no mercado que
gera efeitos perturbadores ao sistema democrático.

A partir de uma visão schumpeteriana de política, ou seja, interpretando a democracia


como um mercado político11, Brittan entende a primeira “ameaça” - a geração
excessiva de expectativas - como um problema decorrente da falta de consciência, por
parte dos eleitores, de quanto o orçamento do governo é limitado. Dessa maneira, os
eleitores esperaram demais da ação governamental, como se fosse possível realizar as
vontades e os interesses de cada um: tendem “a elogiar ou a culpar os governos por
coisas que estão fora de seu controle”. (ibidem, p. 139) Por outro lado, como o
resultado do “mercado político” depende da capacidade dos candidatos de
conseguirem votos, acaba sendo para eles irresistível estimular a formação de
expectativas falsas entre o eleitorado. Assim, o problema da “governabilidade” do
sistema democrático torna-se evidente quando o eleitorado percebe que suas
expectativas não serão correspondidas. Tal situação aumenta as chances, segundo
Brittan, de que se gere um clima de grande instabilidade social.

10
Será discutido no próximo capítulo.
11
Faz-se uma analogia entre economia e política – e, conseqüentemente, entre os empreendedores e os
políticos -, pressupondo que os objetivos dos políticos resumem-se simplesmente a ganhar as eleições,
isto é, a conseguir o maior números de votos.

28
Quanto à segunda “ameaça”, Brittan argumenta que ela deriva basicamente do
conflito existente entre os vários sindicatos que lutam, sobretudo, por aumento de
salários. Para Brittan, o efeito direto da ação dos sindicatos é o aumento do
desemprego, e não o da inflação, que seria um efeito indireto. O autor afirma que se
não houver um aumento da base monetária, a ação dos sindicatos gera desemprego12
e, diante desta situação, o governo é obrigado a aumentar seus gastos – e seu déficit
orçamentário –, ou ainda, aumentar a oferta monetária, para combater o desemprego,
gerando assim inflação. Desta maneira, conclui que a existência de fortes sindicatos
cria um impasse para os governos, que têm de escolher entre altas taxas de
desemprego e altas taxas de inflação, ou seja, alternativas difíceis de serem
sustentadas sem descontentamentos numa democracia.

Percebe-se que, para Brittan, a origem das duas contradições da democracia


ressaltadas está no próprio processo de democratização representado pela conquista da
cidadania social, quando a questão da igualdade deixou de ser restrita à garantia de
liberdades, e passou a significar também a garantia de uma mínima igualdade
econômica-social. Nessa crítica à democracia própria da “era dourada”, cuja novidade
consistiu na incorporação do tema da questão distributiva na esfera pública, o autor
ressalta que (a) “não há razão para supor que alguma redução na ‘desigualdade’ (...)
proveria uma base consensual para a estrutura social ou econômica” (ibidem, p. 158) e
(b) essa tentativa de se estabelecer uma política de distribuição de renda e de redução
da desigualdade só faria aprofundar o conflito social, em vez de amenizá-lo (ibidem,
p. 159).

Já para Huntington et alli (1975), em The Crisis of Democracy, o processo de


democratização da sociedade americana, nos anos sessenta, é visto como um processo
de explosão das demandas sociais sobre o governo, sobrecarregando a agenda pública.
Essa saturação geraria um declínio da capacidade de governabilidade nas democracias
dos países avançados. Assim, problemas de governabilidade do sistema emergiriam
quando não fosse mais possível satisfazer as demandas, gerando-se, portanto, uma
perda de legitimidade do governo.

12
Aqui Brittan pressupõe o modelo neoclássico para o mercado de trabalho. Nessa lógica, um aumento
do salário decorrente da pressão exercida pelos sindicatos gera um aumento no preço do fator de
produção « trabalho » e, consequentemente, uma redução da demanda por trabalhadores. É nesse
sentido que ele entende que a ação dos sindicatos gera desemprego.

29
Pode se perceber que Huntington ataca diretamente o Estado de Bem Estar Social,
tratando-o como um excesso de compromissos assumidos pelo governo para com os
diversos segmentos da sociedade e como o causador da ingovernabilidade. Santos
(1988) argumenta que não surpreende que, dentre suas conclusões, Huntington
“sustente que a operação efetiva de um sistema político democrático usualmente
requer certa medida de apatia e de não envolvimento por parte de alguns indivíduos e
grupos.” (SANTOS, 1988, p. 106)

Diante do diagnóstico da explosão das demandas, ele propõe uma “moderação na


democracia” (HUNTINGTON et alli, 1975, p. 113), que serviria para conter13 as
demandas excessivas dos diversos setores da sociedade, assim se ampliando as
condições de governabilidade. Esse argumento também se insere na defesa da
redução do Estado. Com o tempo, o termo governabilidade progressivamente ganhou
força, e passou a ser visto como um valor em si mesmo, que todo governo deveria
estar preocupado em atingir.

Tal como Gramsci havia observado, em seus “Cadernos do Cárcere”, em momentos


de crise, são criados “terrenos favoráveis à disseminação de certas maneiras de
pensar, e certos modos de colocar e de resolver os problemas” (Gramsci apud
CLARKE e NEWMAN, 2004, p. 1). Esses modos de pensar oriundos de um neo-
conservadorismo neoliberal conseguiram fazer valer seus argumentos e se afirmar
como a forma hegemônica de fundamentar as críticas ao welfare state e de propor
soluções e alternativas a ele. As “novas” idéias e propostas liberalizantes só começam
a se difundir pelo mundo, a partir do final dos anos setenta e, sobretudo, após a queda
do muro de Berlim e do fim da União Soviética – momento em que se proclamava o
“Fim da História” (FUKUYAMA, 1992).

O resultado da propagação dessas idéias foi uma desvalorização generalizada do


modo de intervenção estatal característico da “era dourada”. Aos poucos, foram
conseguindo conquistar o senso comum com sua retórica e seus argumentos,
alcançando o governo no final dos anos setenta. Em 1979, na Inglaterra, assiste-se à
chegada do discurso neoliberal à realidade política com Margaret Thatcher, em 1980,

13
Para garantir a governabilidade, passa a se defender uma despolitização dos problemas sociais, de
modo a reduzir o tamanho do Estado – transferindo ao máximo suas atribuições ao “mercado”.

30
nos Estados Unidos, com Ronald Reagan e, a partir daí, um crescente processo de
difusão do ideário neoliberal pelo mundo.

Em suma, o diagnóstico da “nova direita” para a crise dos anos setenta era o de que
ela seria resultado de um excesso de democracia, de Estado, de regulação da
economia e, ainda, de poder de barganha dos sindicatos e dos movimentos operários,
cujas pressões reivindicativas por salários e por aumento dos gastos sociais sobre o
Estado acabavam corroendo as bases de acumulação capitalista. Para “salvar” a
economia, era preciso livrá-la da política.

A solução prescrita consistia em que o Estado deveria conter os já enfraquecidos


sindicatos, promover a estabilidade monetária e, ainda, reduzir seu papel interventor
na economia (desregulamentação, privatização e abertura comercial), diminuir o
montante de seus gastos sociais e flexibilizar o mercado de trabalho.

De modo geral, podem-se encontrar semelhanças entre os diagnósticos (e propostas)


apresentados pela “nova direita” para explicar (e solucionar) a pretensa crise do
Estado dos países latino-americanos e dos países centrais, já que o argumento central
foi o de que o problema estava em seu tamanho excessivo.

Contudo, enquanto para os países centrais a questão se centrava em um Estado


demasiadamente permeado e acessível às reivindicações sindicais, para os países
periféricos, o problema apontado era que o Estado era “gastador”, em função do
endividamento estatal financiador do desenvolvimentismo14.

Assim, na América Latina, a difusão do neoliberalismo se manifestou como uma


crítica ao Estado desenvolvimentista e atuou em busca de seu desmonte. Assim, as
pretensões desenvolvimentistas passaram a ser fortemente criticadas e consideradas
15
“populismo econômico” (PEREIRA, 1991) , nos países latino-americanos, que

14
O processo de desenvolvimento econômico realizado na América Latina, nos anos cinqüenta e
sessenta, foi feito via endividamento externo, e, nas palavras de Castro (1985), referindo-se ao Brasil,
em marcha forçada, ou seja, os governos fizeram a escolha de se endividarem naquele momento para,
depois, resolverem o que fazer com a dívida externa resultante. O Brasil entrou em crise no fim dos
anos setenta, com o segundo choque do petróleo (1979), momento no qual sua economia sofreu
drasticamente: por exemplo, houve um aumento da dívida externa em função do aumento das taxas de
juros internacionais e uma drástica redução da entrada de recursos externos no país (decorrente da
perda de confiança na administração da economia brasileira, sobretudo após a moratória mexicana, em
1982).
15
Este conceito tem sido abundantemente utilizado por economistas (ortodoxos) como uma maneira
pejorativa de atacar o desenvolvimentismo. “Populismo econômico” vem sendo associado ao período
desenvolvimentista e, ao ser analisado através de um olhar dos anos noventa - período em que o tema

31
passam a adotar o receituário neoliberal. Primeiramente, houve a experiência da
ditadura de Pinochet, o governo precursor das práticas neoliberais: forte desregulação,
privatização dos bens públicos, repressão sindical, desemprego massivo,
redistribuição de renda em favor dos ricos, etc. (ANDERSON, 1995, p. 19). E, em
seguida, todos os países da região passam a adotar o receituário liberalizante como
condicionante para a renegociação de suas dívidas16:

O fardo do serviço da dívida e os planos de ajuste estrutural impostos pelo


FMI e pelo Banco Mundial deram o quadro de um conjunto de medidas,
impondo aos países devedores o pagamento dos juros da dívida e a
reorientação de sua política econômica (CHESNAIS, 1996, p. 220).

Embora as idéias vindas da “nova direita” tenham influenciado muito os rumos da


política e das propostas de transformação do Estado, elas não foram as únicas a
sugerirem mudanças. A reconstrução do Estado foi influenciada por dois tipos de
ideologias: tanto por aquelas idéias liberalizantes da “nova direita” quanto pela
ideologia do gerencialismo (managerialism). (CLARKE e NEWMAN, 2004, p. 34)

O gerencialismo é um conjunto de teorias da administração que criticavam o Estado


do ponto de vista da organização da administração pública, afirmando a existência de
um esgotamento do modelo burocrático weberiano. Defendiam a idéia de que
reformas no Estado são necessárias, sobretudo aquelas cujas propostas estão voltadas
para uma transformação do modelo de gestão pública, de modo a assemelhar muitos
de seus traços às características próprias do setor privado. De modo geral, como
alternativa ao modelo já “obsoleto”, seu objetivo principal era introduzir uma
disciplina mais rigorosa no setor público, para que seus serviços fossem mais
eficientes, menos custosos e, assim, os gastos públicos se reduzissem. A proposta se
resumia na criação de condições propícias para uma gestão eficiente do Estado, e é
teorizada a partir dos pressupostos de funcionamento do setor privado17.

Seus proponentes tendem a endeusar os grandes executivos privados e a


apresentar como vilões burocratas públicos, políticos e sindicatos. De
acordo com esta perspectiva, o problema do Estado reduz-se a criar
condições para que os administradores possam fazer aquilo que sabem

em voga era o do “ajuste” -, foi caracterizado da seguinte maneira: “um tipo de afrouxamento fiscal
que se define pela prática política de dizer sim às demandas de todos os setores da sociedade à custa do
setor público” (PEREIRA, 1991).
16
Ver essa discussão mais adiante.
17
São recomendados, por exemplo, o corte de custos e de pessoal, o desmonte da estrutura burocrática
tradicional, etc.

32
melhor, isto é, gerir (ANDREWS e KOUZMIN, 1998 apud BORGES,
2000).

Percebe-se que a principal proposta do gerencialismo consiste em inserir a lógica da


empresa na própria estrutura estatal. Com isso, promove-se uma despolitização do
Estado. Se, por um lado, o welfare state reconhecia os conflitos e contradições sociais
e políticas existentes no mundo social, o Estado pressuposto pelo gerencialismo os
interpreta como "problemas a serem administrados". Conflitos e contradições sociais
passam a ser avaliados em termos de eficiência, efetividade e desempenho.

Segundo Clarke e Newman (2004, p. 159), a partir da análise do caso inglês18, isso
acaba despolitizando as questões sociais19 e moldando a política real e as escolhas
políticas de acordo com a lógica de imperativos gerencialistas. Ao não conseguir criar
formas institucionais de articulação satisfatória entre Estado e cidadãos, esse novo
tipo de Estado, mais cedo ou mais tarde, acaba criando suas póprias lacunas e
problemas de legitimação, já que não há como “reconciliar as contradições sociais e
conflitos da Inglaterra contemporânea dentro do cálculo gerencialista.” (idem).

Embora a partir dos anos oitenta tenham ocorrido mudanças institucionais e


organizacionais no seio do aparelho estatal no mundo todo, o diagnóstico da crise do
Estado e o discurso da necessidade de sua transformação se manifestaram de formas e
intensidades diferentes em cada país. De um modo geral, é possível perceber que, nos
países centrais, o diagnóstico centrava-se nas excessivas permeabilidade e
acessibilidade do Estado às reivindicações sindicais e, em última instância, à política.
Já para os países periféricos, o problema apontado era que o Estado era “gastador”,
“populista”, já que, dos anos trinta aos anos setenta, atuou como “Estado
desenvolvimentista” e expandiu o sistema de proteção social.

As conseqüências decorrentes das críticas ao Estado de Bem Estar assumiram formas


diferentes: enquanto na Europa os debates sobre essa questão resultaram na
introdução de reformas que não alteraram a essência dos sistemas de proteção social e
os direitos a eles associados, na América Latina, muito em função das pressões
exercidas pelos organismos internacionais sobre os países endividados, observaram-se
reformas muito mais radicais, sob a égide da pretensa “necessidade” da retração do

18
Não é, contudo, uma peculiaridade da Inglaterra ; as propostas de reforma de Estado segundo os
pressupostos gerencialistas estão presentes em vários países.
19
Clarke e Newman (2004) questionam : “eficiência de quem? Efetividade para quem?”.

33
papel o Estado, e que resultaram, na maior parte dos casos, na privatização das
políticas sociais e na focalização das ações empreendidas pelo Estado tanto em termos
da população beneficiária quanto no que diz respeito ao leque de bens e serviços
providos.

2.2. Europa: o desmonte dos welfares states?

Pierson (1996) aponta que uma combinação de fatores – as transformações


econômicas, a guinada da política à direita e os altos custos associados à maturação
dos welfare states – estimulou a emergência de grandes debates, nos quais o tema da
redução do Estado entra em cena. Contudo, embora as transformações geradas pela
reestruturação produtiva, globalização e financeirização da economia tenham gerado
adversidades para a realidade dos welfares states – provocando questionamentos e
reformas -, elas não implicaram no desmonte dos welfares states no contexto europeu
(VIANNA, 1997). Vianna (1998) argumenta que embora tenha havido mudanças nos

mecanismos de funcionamento do aparelho estatal [não se alterou] a sua


dimensão pública. Cidadãos, na Europa, continuam plenos cidadãos, a
despeito de (alguns) mais pauperizados, da privatização dos serviços
telefônicos, de maior seletividade no acesso dos hospitais públicos.
(VIANNA, 1998, p. 12)

Esping-Andersen (1995) faz avaliação semelhante:

os sintomas de crise [do welfare state] tornaram-se cada vez mais claros
(...). Contudo, e a despeito de percepções bastante difundidas, longe de se
poder falar em mudanças significativas nos países centrais, o grau de
redução dos welfare states foi modesto. Isso fica claro nas tendências do
gasto social (...), que permaneceu essencialmente estável, embora haja
uma quebra em relação ao passado, significando que a fase de
crescimento, que havia durado décadas, foi interrompida. (ESPING-
ANDERSEN, 1995, p. 84)

Como não há evidências convincentes de que qualquer desmonte tenha ocorrido em


países do Ocidente desenvolvido, Vianna (1997) defende que é preciso romper com a
idéia de que a crise do welfare state seja conseqüência necessária da globalização. Ela
adverte e enfatiza que, se assim for entendida, essa “suposta crise do welfare state se
torna irremediável, implicando, no limite, uma tendência ao seu desmonte.”
(VIANNA, 1997, p. 157) Assim como o nascimento e a expansão dos welfare states
podem ser bem explicados por fatores políticos, estes – e não argumentos econômicos

34
- poderiam também esclarecer as reformas dos welfare states ou ainda “as diferenças
entre as respostas dadas às novas condições econômicas”.

Vianna sugere que a fragilização sofrida pelos atores a partir dos quais foi construído
o welfare state – fragmentando suas organizações e destituindo de “poder as
instâncias de legitimação e efetivação das macropolíticas concertadas” (ibidem, p.
161) – certamente trouxe conseqüências nefastas para a política social (as reformas),
mas não apontaram, entretanto, “nem para a consumação do desmonte nem para a
destruição das bases de apoio do welfare state” (ibidem, p. 162).

Esping-Andersen (1995) ressalta, por sua vez, que a “maior parte dos países limitou
suas intervenções a ajustes marginais, enquanto alguns – principalmente no interior do
grupo de países anglo-saxões liberais – iniciaram programas mais radicais de
reformas que, a longo prazo, podem ter conseqüências profundas.” (ESPING-
ANDERSEN, op. cit., p. 84)

Houve diferentes respostas (reformas superficiais ou profundas) às transformações


econômicas e sociais por parte dos diferentes países. Dos países da Europa Ocidental,
o que mais seguiu a “rota neoliberal” foi o Reino Unido, adotando “deliberadamente
estratégias de desregulamentação orientadas para o mercado (...) [, que apresentou]
transformações radicais nos regimes (...) [uma vez que foi um] welfare state pioneiro
e com um forte compromisso com o pleno emprego.” (ESPING-ANDERSEN, op. cit.,
p. 90) A mudança foi percebida nas “políticas de liberalização [que se] associaram
(...) a um notável enfraquecimento das organizações coletivas, tais como sindicatos”,
cujo objetivo era “enfrentar o declínio econômico e o desemprego (...) com uma maior
flexibilidade do mercado de trabalho e dos salários, por meio da carga de encargos
sociais e de impostos, e da depreciação do salário mínimo” (ibidem, p. 91)

Além disso, a partir do marco proposto pelo gerencialismo (managerialism), foram


realizadas reformas predominantemente voltadas para a gestão do sistema de proteção
social, mas não para o seu desmantelamento. Como já observado, o gerencialismo
norteou as reformas do Estado com o objetivo de implantar no setor público os
imperativos de funcionamento do setor privado. Foram recomendadas, portanto,
medidas que visavam aumentar a eficiência da gestão pública e reduzir/cortar os
custos.

35
Dessa maneira, embora tenham sido implementadas reformas importantes no Reino
Unido - onde, na Europa, o neoliberalismo foi mais visível -, não foi observado um
desmantelamento do welfare state. Diante desse quadro europeu, Esping-Andersen
(1995) argumenta que as resistências às mudanças já eram bastante esperadas:

políticas estabelecidas há muito tempo se institucionalizam e criam grupos


interessados na sua perpetuação. Assim, sistemas de seguridade social não
se prestam facilmente a reformas radicais, e, quando estas se realizam,
tendem a ser negociadas e consensuais. (ibidem, p. 104)

De fato, não é nada fácil remover ou destruir um sistema garantidor de direitos.


Entretanto, embora a maioria dos países da Europa Ocidental tenha realizado reformas
marginais sem desmantelar seus sistemas de proteção social, no que diz respeito aos
países periféricos, “os sinais de mudança do sistema são mais evidentes: de um lado, a
ativa privatização na Europa central e oriental e na América Latina; e de outro, a
construção de embrionários welfare states no Leste Asiático.” (ESPING-
ANDERSEN, op. cit., p. 84)

2.3. América Latina: críticas ao Estado desenvolvimentista e as propostas


para um novo tipo de Estado

Nos países latino-americanos, “a segunda metade dos anos 1980 correspondeu ao


aprofundamento da globalização, impondo o esgotamento da via da industrialização
por substituição de importações e a busca de novas formas de inserção no mercado
internacional. Ao mesmo tempo, observou-se a difusão da agenda neoliberal de ajuste,
preconizando o refluxo do Estado e a primazia do mercado.” (DINIZ, 2000)

Nesse novo contexto, a tese do desenvolvimento vinculado diretamente à ação ativa


do Estado começa a ser fortemente depreciada. Além dos argumentos contra a
proteção social, essas críticas incidiram sobre o “Estado desenvolvimentista”. Ao
mesmo tempo em que os argumentos pró-mercado ganham força, vão surgindo
propostas de um novo desenho para Estado, formuladas com o objetivo de reconstruí-
lo de acordo com as novas “exigências” do mundo globalizado. Essas recomendações
de reformas aos países periféricos foram amplamente difundidas nos anos noventa em
dois momentos: reformas de primeira e de segunda geração.

36
As reformas de primeira geração foram aquelas incluídas no chamado de “Consenso
de Washington” (WILLIAMSON, 1992), cujo objetivo consistiu na proposição de
conjunto de políticas “necessárias” para que a América Latina conseguisse sair da
crise por que passava (estagnação, inflação, dívida externa) e retomar a trajetória do
crescimento.

Williamson (1992; 1993) destaca dez propostas do receituário do “Consenso de


Washington”: (1) disciplina fiscal, ou seja, redução dos gastos públicos, na tentativa
de manter um superávit orçamentário; (2) prioridades de gasto público – reduzir o
papel do Estado na economia, redirecionando o gasto para as áreas desinteressantes
para o investimento privado – geralmente, bens públicos; (3) reforma tributária,
tornando a tributação menos progressiva; (4) liberalização financeira, cujo objetivo
máximo é deixar que a taxa de juros seja determinada pelo mercado; (5) manter a taxa
de câmbio estável; (6) liberalização comercial; (7) abolição das barreiras à entrada de
investimentos externos diretos no país; (8) privatização das empresas estatais; (9)
abolição das regras que impedem a entrada de novas firmas do setor e (10) o sistema
legal deve assegurar direitos de propriedade.

Esse conjunto de políticas dizia respeito, em suma, à tentativa de inserção das


economias nacionais no processo de internacionalização do capital e ao início do
processo de reforma do Estado, que procuravam reduzir o seu tamanho e reconstruir
sua estrutura administrativa. Assim, por um lado, o Estado cedeu espaço ao mercado,
foi, progressivamente, deixando de lado seu papel de “Estado empresário” e
assumindo uma forma mais “enxuta” e o papel de “Estado regulador”. Por outro,
começou a ser reformado administrativamente, de modo a estabelecer, no setor
público, uma “administração pública gerencial”, com o objetivo de alcançar a
chamada “boa governança”.

As medidas de redução do tamanho do Estado estão inseridas na lista das propostas do


“Consenso”, dentre as quais, destacam-se o ajuste fiscal e o processo de privatizações,
que foram realizados a partir do argumento de que serviriam para proporcionar a
“saúde financeira” do Estado.

Esse conjunto de reformas acabou sendo apresentado, pelos organismos


internacionais, como um condicionante para as renegociações da dívida latino-
americana e como o caminho para a adequação necessária no novo mundo em

37
transformação. Assim, esses países seguiram passo a passo a cartilha do “Consenso”,
sempre levando em conta a idéia de que, para que pudessem renegociar suas dívidas,
era indispensável gerar confiança nos órgãos financeiros internacionais, deixando de
lado, portanto, a prática do chamado “populismo econômico”.

No que diz respeito à reforma administrativa, ela também surge como a necessidade
de tornar “o setor público coerente com o capitalismo contemporâneo, que permita
aos governos corrigir as falhas do mercado sem incorrer em falhas20 maiores”
(PEREIRA, 1996, p. 7). A administração pública deveria deixar de ser burocrática e
se tornar gerencial – uma nova forma de administração que se assemelharia à
administração do setor privado -, voltada para a redução de custos e aumento da
eficiência.

Depois de mais de uma década desse conjunto de políticas voltadas para o


enxugamento do Estado e para a liberalização da economia terem sido implementadas
na América Latina, a “primeira geração” de reformas se mostrou incapaz de criar as
condições para o desenvolvimento da região; muito pelo contrário, verificou-se que
seus resultados econômicos e sociais na região foram, de modo geral, traumáticos:
desemprego, vulnerabilidade econômica, desintegração social, diminuição da
qualidade de vida, maior concentração da renda, etc.

A despeito do contexto desastroso resultante das “reformas”, é curioso perceber como


21
a “comunidade epistêmica” (HAAS, 1992) internacional hegemônica22 - defensora
das idéias difundidas a partir do “consenso de Washington” – e os organismos
internacionais interpretam aqueles resultados. Ao invés de assumirem que os
resultados negativos foram frutos das políticas liberalizantes e reformadoras pró-
mercado implementadas ao longo dos anos noventa nos países da América Latina,
20
São as chamadas « falhas de governo », tais como o problema de rent-seeking.
21
Haas (1992) entende “comunidades epistêmicas” como redes de conhecimento baseadas em
“expertos” que compartilham uma mesma episteme (visão de mundo). Tendo sua competência
reconhecida e seu conhecimento valorizado e difundido socialmente, elas são capazes de moldar o
debate público e, ainda, de influenciar as tomadas de decisão em questões variadas da política pública.
Para Haas, os membros dessas comunidades “podem influenciar interesses do Estado seja
identificando-os diretamente aos decisores, seja iluminando as dimensões relevantes de uma temática a
partir das quais os decisores podem então deduzir seus interesses” (HAAS, 1992, p. 4)
22
Por exemplo, os autores cujos trabalhos estão na coletânea organizada por Williamson e Kuczynski:
“Depois do Consenso de Washington – Retomando o crescimento e a reforma na América Latina”,
2004.

38
afirmam que eles se explicam justamente pelo fato de as políticas do “consenso” não
terem sido aplicadas em sua completude. Ou seja, as reformas trariam sim o
desenvolvimento, o problema é que houve algumas lacunas em sua implementação.

Assim, começou-se a sugerir uma “segunda geração” de reformas, que teriam como
objetivo, por um lado, dar continuidade e aprofundar o que já havia sido feito – ou
seja, completar as “reformas de primeira geração” 23 - e, por outro, iniciar outro ciclo
reformista, a “segunda geração”, que se refere, por um lado, à reestruturação
(“desenvolvimento”) institucional, envolvendo o “fortalecimento” de instituições que
garantam as bases para o crescimento voltado para o mercado (WILLIAMSON, 2004,
p. 288) – ou seja, transformar o Estado de modo que ele se torne funcional ao
mercado (GUIMARÃES, 2002) - e, por outro, à ênfase na importância dos
investimentos em educação, incentivando as discussões sobre o papel do capital
humano e o capital social no processo de desenvolvimento econômico, tal como se
discutirá adiante.

Fundamentando-se nos teóricos do neoinstitucionalismo24, as propostas de reformas


institucionais sugeriam, resumidamente, que os Estados latino-americanos fossem,
progressivamente, deixando de lado seu papel ativo no desenvolvimento nacional e se
“enxugassem” de modo a assumir um papel funcional - de facilitador - ao
desempenho dos mercados.

Essa funcionalidade do Estado em relação ao mercado é o ponto normativo essencial


da teoria neoinstitucionalista, segundo a qual o Estado deve adequar suas atribuições
de modo a satisfazer as necessidades do mercado, tais como: reduzir custos de
transação, ocupar-se da existência de externalidades, definir direitos de propriedade,

23
Para ilustrar sua incompletude, vale destacar uma afirmação de Williamson (2004): “embora muita
privatização tenha ocorrido, permanecem setores – mais notavelmente o bancário, com a existência
continuada de muitos bancos estatais – em que o processo está bastante incompleto.” Embora haja
problemas, o “remédio (...) não é interromper o processo [de privatizações], mas, antes, assegurar que
ele seja cuidadosamente realizado, e que as empresas recentemente privatizadas estejam expostas à
concorrência ou sujeitas a regulamentações adequadas”. (ibidem, p. 10)
24
Os teóricos do neoinstitucionalismo ressaltam a importância das “instituições ” para o funcionamento
da economia, uma vez que existem imperfeições no mercado, o que exige o estabelecimento de regras
que possibilitem, articulem e organizem as transações indiviuais realizadas no mercado. Por exemplo,
NORTH (1990) e seu slogan que afirma que “as instituições importam”. Trata-se do institucionalismo
de viés neoliberal; há outros e diversos neo-institucionalismos contemporâneos – por exemplo, os de
vertente histórica e sociológica. Conferir: Hall e Taylor (1996).

39
coordenar os agentes econômicos, gerar informações relevantes e reduzir incertezas.
(CARVALHO, 2006, p. 203- 211)

É possível perceber esse novo papel do Estado através da análise das propostas de
reforma do Estado do Banco Mundial – sobretudo, os relatórios de 1997 e 2002. Num
“mundo em transformação” (BANCO MUNDIAL, 1997), o Estado precisa adaptar-
se, no sentido de aumentar sua eficiência: “Reconhece-se cada vez mais que um
Estado efetivo – e não um Estado mínimo – é essencial para o desenvolvimento
econômico e social, mais, porém, como um parceiro e facilitador do que como diretor.
Os Estados devem complementar os mercados, e não substituí-los” (idem, p. 18).

Ser efetivo significa que Estado não deve ser mais o promotor direto do
desenvolvimento, este modelo de Estado já seria anacrônico. Ele deve deixar essa
tarefa para os mercados e resumir a sua atuação, de modo a se tornar um catalisador,
facilitador e parceiro dos mercados em tal empreitada. Tem-se a idéia, portanto, de
que o Estado deve ser complementar aos mercados – não seu substituto -, voltando
sua ação para a implantação e adaptação de instituições para que tenham um melhor
desempenho.

O Estado deve deixar de lado seu papel intervencionista e de provedor de bem-estar,


para preocupar-se apenas com seu caráter funcional, voltando-se basicamente para a
promoção do “bom” funcionamento do mercado: “instituições são criadas para,
servem funcionalmente ao mercado” (GUIMARÃES, 2002, p. 14)

O relatório de 2002 vai também na mesma direção: “é necessário um Estado forte e


capaz para apoiar os mercados” (WORLD BANK, 2002, p. 5), e, para isso, afirma que
é necessário que se criem instituições efetivas e sugere o modo de garanti-lo.

Obviamente, essa redução do papel do Estado a um mero complemento dos mercados,


criador de enabling environments para o setor privado, também teve implicações
sobre o campo social, sobretudo no que diz respeito aos obstáculos criados à
consolidação e à ampliação do sistema de proteção social nos países latino-
americanos.

Se, de acordo com as recomendações de reformas, o Estado ainda conserva algum


papel (funcional) no âmbito econômico – complementar e estimular os mercados –,

40
no que diz respeito ao campo das políticas sociais, percebe-se também que lhe sobra
papel bastante residual.

Embora, nos países latino-americanos, não tenha sido observada a completude do


processo de instauração e de consolidação dos welfare states – tal como ocorrido nos
países europeus -, Laurell (2002) lembra que:

há entretanto uma série de elementos relacionados ao conteúdo e à


amplitude de suas políticas sociais que permitem considerar a maioria dos
Estados latino-americanos como Estados de bem-estar antes da aplicação
das políticas neoliberais. Entre esses elementos, está o fato de que muitos
deles reconhecem na sua legislação o conceito de direitos sociais, e
escolheram o seguro ou a seguridade social públicos como forma
institucional de garantir assistência médica; aposentadoria; auxílios à
perda da renda por acidente, doença ou maternidade; e, em muitos casos,
programas de habitação, de subvenções familiares e de lazer. (...) Por
outro lado, na grande maioria dos países, o Estado é o principal
responsável pela educação em todos os níveis (LAURELL, 2002, p. 160).

Assim, se para o “Estado de Bem Estar” a política social é entendida como


garantidora dos direitos de cidadania e, numa interpretação keynesiana, um estímulo
ao desempenho macroeconômico, a partir do início dessa era das reformas, tal política
começa a ser vista como fonte geradora de gastos públicos e, entende-se que ela deve
ser “enxugada” e se moldar a um novo formato: compensatória e focalizada do ponto
de vista do público-alvo (pobres), e residual no que diz respeito aos produtos/serviços
oferecidos.

Desde então, dá-se início a uma luta pela destruição daquilo que foi construído
enquanto proteção social e pela deslegitimação do processo da universalização de
direitos, seja pelas propostas de enxugamento do Estado em seu papel de garantidor
da proteção social, seja pela transformação do próprio entendimento do que é o social.

41
3. Transformações do mundo do trabalho e o surgimento da
nova questão social

Até a metade dos anos setenta, o trabalho era amplamente considerado fonte de valor
e de riqueza social, dada a sua inquestionável centralidade e importância no processo
produtivo. A partir dos anos oitenta, contudo, frente às profundas transformações, já
discutidas, começam a surgir teses que proclamaram o “fim do trabalho” (RIFKIN,
1995) e o “adeus ao proletariado” (GORZ, 1982) e, ainda, questionamentos
enfatizando a desconstrução e transformação do trabalho como peça-chave da
organização social contemporânea (OFFE, 1989).

O argumento genérico sobre esse fim do trabalho foi (e ainda vem sendo) bastante
questionado por vários autores (ANTUNES, 1995, 1996 e 2003; SCHNAPPER, 1997;
CASTEL, 1998a), que sustentam, a partir de argumentos variados, que, por um lado,
seria um contra-senso a negação da importância do trabalho – tanto para a
organização social capitalista quanto para a própria vida das pessoas - e, por outro,
que a categoria trabalho deve continuar sendo objeto central da investigação
sociológica.

Antunes (1995) argumenta, por exemplo, que é impensável falar em “fim do trabalho”
quando se observa o contexto do mundo periférico, onde se encontram dois terços da
população humana que trabalha. Outro exemplo é Robert Castel que, em variados
trabalhos (CASTEL, 1998a, 2003), defende que, por mais que se fale hoje em “fim do
trabalho”, não se pode perder de vista o seu papel de “grande integrador” (BAREL
apud CASTEL, 2003).

Para Castel (2003), o fato de que o trabalho tenha perdido sua onipresença na
organização social não implica nem que ele tenha deixado de ser importante nem que
deva ser deixado de lado enquanto categoria de análise. A tese da liberação pelo não-
trabalho e da exaltação do tempo livre está muito longe de ser efetivada, já que aquele
que não tem trabalho padece, já que está desvinculado dos laços sociais.

Portanto, a categoria “trabalho” não deve sair do foco da análise sociológica, nem
muito menos deixar de ser um tema fundamental da pauta do dia, uma vez que “o

42
trabalho (...) é mais que o trabalho e, portanto, o não-trabalho é mais que o
desemprego, o que não é dizer pouco” (Ibidem, p. 496). Em suma, para Castel,

a renúncia a fazer do trabalho um objetivo estratégico fundamental


constitui um duplo erro. Um erro de análise que desconhece (...) o lugar
central que o trabalho continua a ocupar na vida das pessoas. Mas
constitui também um erro prático e político, pois implica desconhecer a
importância fundamental do mercado (...) e as ameaças que ele faz à
coesão da sociedade. Em outras palavras, deixar de fazer do trabalho uma
questão central é inclinar-se diante do mercado e deixar-lhe o campo livre.
(CASTEL, 1998b , p. 158).

A questão que urge, portanto, é a de entender e procurar alternativas à problemática


do trabalho e não a de decretar o fim de sua centralidade. Contudo, reconhecer a
problemática do “trabalho” como questão sociológica fundamental não significa
desconsiderar que o mundo do trabalho sofreu profundas e drásticas transformações.
É evidente que, hoje, o mundo do trabalho não é mais o mesmo.

De fato, a partir dos anos setenta, como resultado das mudanças estruturais e das
transformações no papel do Estado, o mundo do trabalho entra em crise: assiste-se a
profundas transformações na classe trabalhadora, à precarização das condições de sua
existência, ao desemprego de massa e ao enfraquecimento dos sindicatos. Nesse
processo, o trabalho (em sua forma antiga) vai perdendo tanto sua onipresença
(problema estrutural) - enquanto elemento de integração social (MACHADO DA
SILVA, 2002; CASTEL, 2003) - quanto sua força política.

Antunes (2003) destaca algumas conseqüências das transformações estruturais que


afetaram a classe trabalhadora, alterando seu perfil: (i) diminuição do operariado
manual, fabril, concentrado - típico do fordismo; (ii) aumento acentuado das inúmeras
formas de subproletarização do trabalho parcial, temporário, sub-contratado,
terceirizado; (iii) expansão do "setor de serviços"; (iv) um processo de desemprego
estrutural em níveis explosivos que, ao lado do trabalho precarizado, atinge algo em
torno de um terço da força humana mundial que trabalha. Oliveira (2003) ressalta,
ainda, que há hoje uma forte presença da idéia de “ocupação” 25 no lugar da noção de
“emprego”. Ademais, há também o tema da informalidade, que embora tenha
aparecido com grande freqüência como o elemento-chave de inúmeras interpretações

25
Para exemplificá-la: “grupos de jovens nos cruzamentos vendendo qualquer coisa, entregando
propaganda de novos apartamentos, lavando-sujando vidros de carros, ambulantes por todos os
lugares”, dentre outros. (OLIVEIRA, 2003, p. 142)

43
sobre o impacto das mudanças na estrutura do mercado de trabalho e suas
conseqüências sociais (MACHADO DA SILVA e CHINELLI, 1997)26, tem sido
considerado como um conceito sem substância analítica e sem força prática
(MACHADO DA SILVA, 2002b).

Antunes (2003) ressalta, ainda, que “não [se] caminha no sentido da eliminação da
classe trabalhadora, e sim da sua precarização, intensificação e utilização de maneira
ainda mais diversificada” (ibidem, p. 191). É nesse sentido que o autor afirma que a
classe trabalhadora se tornou fragmentada, heterogênea e complexificada, mas, a
despeito dessas profundas transformações ocorridas no mundo do trabalho, não é
possível considerar nenhuma possibilidade de eliminação da “classe-que-vive-do-
trabalho”. Ou seja, ao “invés do adeus ao proletariado, temos [hoje] um amplo leque
diferenciado de grupamentos que compõem a ‘classe-que-vive-do-trabalho’”.
(ANTUNES, 1996, p. 282).

Diante deste contexto de transformações do mundo salarial, assiste-se também, do


ponto de vista político, a uma tendência ao declínio do sindicalismo e ao
enfraquecimento dos sindicatos, se comparados com sua atuação e força na “era
dourada”.

Em primeiro lugar, com a heterogeneização da classe trabalhadora, os sindicatos


começam a ter dificuldades em representá-la. É como se, diante das transformações
estruturais, o mundo da representação existente não conseguisse dar mais conta da
expressão política de seus atores; ou seja, as dificuldades enfrentadas pelos sindicatos
seriam a tradução, no mundo representativo, da nova era em que entra o capitalismo
(ROSANVALLON, 1998, p. 5).

Em segundo lugar, os problemas objetivos e subjetivos - por exemplo, o fator medo -


da precarização dos empregos e do aumento do desemprego tiveram por efeito
fragilizar e enfraquecer a combatividade dos trabalhadores, desencorajando-os do
sindicalismo e diminuindo sua propensão a se sindicalizar (BOLTANSKI, 1999, p.
356; BALAZS e PIALOUX, 1996).

26
Machado da Silva e Chinelli (1997) analisam o tema da informalidade a partir de dois grupos de
interpretação presentes no debate sobre o tema: os que abordam seus efeitos de exclusão social e os que
exaltam a formação de novos empreendedores como resultado benéfico da terceirização.

44
O medo da precarização e do desemprego foi analisado também por Dejours (2000),
mas em outra chave. Segundo Dejours, o medo serviria como fonte de estratégias
defensivas (de ordem psicológica) que têm efeitos sobre a esfera da moral e da
política. O autor mostra como a passividade coletiva e a atenuação da indignação
frente às condições de sofrimento no ambiente de trabalho emergem no novo contexto
como a saída encontrada pelos trabalhadores para manterem seus empregos e, ainda,
para simplesmente não enlouquecerem.

Desse modo, com o objetivo de continuarem inseridos, os trabalhadores se tornam


(inconscientemente) indiferentes em relação aos problemas sociais, e acabam
reforçando a perversidade do sistema. Assim, paradoxalmente, precarizam, em última
instância, não só o emprego, mas toda sua condição existencial, através da
banalização e desdramatização do mal e, ainda, da conseqüente diminuição das
reações de indignação e de mobilização coletiva que possam emergir contra a
injustiça do sistema (DEJOURS, 2000).

Assim, frente à precarização das condições de existência dos trabalhadores, ao


esgotamento das chances de promoção social - individual e coletiva – e ao
esvaziamento da esperança de mudança política, há um enfraquecimento da
organização dos trabalhadores, impedindo a “reprodução das antigas formas de visão
política que contribuíam largamente para unificar as [suas] reivindicações” (BALAZS
e PIALOUX, 1996, p. 4). Em outras palavras, há uma “crise da herança operária” que
expressa uma crise da militância, a desvalorização simbólica do operariado e a sua
desilusão política (ibidem).

Em terceiro lugar, a disseminação do ideário neoliberal também contribuiu para o


enfraquecimento do sindicalismo. Os ataques e repressões ao movimento sindical -
somados à tendência de retração do tamanho do Estado e às suas propostas de
flexibilização e de re-mercadorização dos trabalhadores - tiveram conseqüências
destrutivas para o mundo sindical.

Por fim, não se deve descartar também o efeito simbólico produzido pela queda do
muro de Berlim sobre o movimento sindical. A partir do desmoronamento do Leste
Europeu, começa a se propagar a idéia do "fim do socialismo” e do "fim do
marxismo", no interior do mundo do trabalho, gerando-se, assim, desilusão política no
seio da classe operária. Além disso, ainda como conseqüência do fim do chamado

45
"bloco socialista", os países capitalistas centrais passaram a defender um
afrouxamento dos direitos e das conquistas sociais dos trabalhadores, em função da
inexistência do "perigo socialista"; ter-se-ia, com isso, uma acomodação social-
democrática da esquerda e da classe trabalhadora (ANTUNES, 2003, op. cit.).

Como conseqüência desse conjunto de transformações tem-se, por um lado (político),


um enfraquecimento da crítica ao capitalismo, decorrente principalmente do
enfraquecimento das “defesas” do mundo do trabalho (BOLTANSKI, 1999), e,
consequentemente, um declínio dos meios formais de pressão sobre o Estado,
juntamente com a decomposição dos mecanismos tradicionais de representação
política dos trabalhadores27 (WACQUANT, 2001).

Por outro lado (sociológico), tem-se um enfraquecimento ou mesmo desconstrução da


condição salarial, que é resumido por Castel (1998b) em torno de três constatações
principais: (i) “processo de desestabilização dos estáveis”; (ii) instalação da
precariedade no mundo do trabalho; (iii) geração de excessos ou “supranumerários”.
A primeira refere-se à “situação dos trabalhadores que ocupavam uma posição sólida
na divisão clássica do trabalho (...) e que se encontram hoje expulsos dos circuitos
produtivos. (...) A segunda diz respeito à instalação da precariedade, ou seja, às
alternâncias de períodos de desemprego, de trabalho temporário, de ‘pequenos
trabalhos’” (ibidem, p. 152). A terceira refere-se a uma contínua produção de “inúteis
para o mundo”, ou seja, pessoas que, tal como os vagabundos da sociedade pré-
industrial, “não encontram seu lugar na sociedade” (idem).

Tem-se aqui, portanto, a emergência daquilo que veio se chamar a “nova questão
social” (ROSANVALLON, 1995), ou seja, um conjunto de efeitos sociais negativos
decorrentes da globalização e financeirização da economia, da reestruturação da
produção e, ainda, do enfraquecimento do mundo do trabalho, fatores estes que foram
intensificados - sobretudo, na maioria dos países latino-americanos - pela progressiva
adoção de políticas fortemente marcadas pelo predomínio do neoliberalismo.

27
Frente a esse enfraquecimento das formas tradicionais de ação política, Wacquant (2001) chama
atenção para as formas alternativas de manifestação ("violência vinda de baixo"): "Na ausência de um
mecanismo político apto a formular demandas coletivas em uma linguagem compreensível aos
administradores do Estado, o que resta aos jovens urbanos senão tomar as ruas?" (WACQUANT, 2001,
p. 34).

46
Contudo, paradoxalmente, essa “nova questão social” nem sempre é tratada como
“social”. Entender como a nova questão social vem sendo enunciada é fundamental. O
modo pelo qual as políticas voltadas para o tratamento desse novo problema têm sido
formuladas e justificadas também é motivo de questionamento. Porém, antes de lidar
com o tema do atual tratamento e enunciação da “questão social” propriamente dita, é
fundamental compreender minimamente como o capitalismo tem se justificado.

47
Capítulo II – NEOLIBERALISMO, JUSTIFICAÇÃO DO
CAPITALISMO E AS NOVAS REGRAS DO JOGO

Para entender como o social vem sendo interpretado e enunciado, num momento em
que o capitalismo entra numa etapa nova, é importante discorrer, ainda que
brevemente, sobre a maneira como ele próprio – esse “novo” capitalismo - tem se
justificado. Para tanto, discute-se aqui rapidamente o discurso neoliberal – desde
quando se colocava enquanto “utopia” cujo alvo inimigo era a intervenção estatal até
o momento em que consegue chegar ao poder e, paulatinamente, se afirmar enquanto
“ideologia” para o capitalismo contemporâneo. Além disso, discute-se também, a
partir da interpretação de Boltanski (1999), como esse capitalismo vem sendo
justificado no mundo do trabalho. Por fim, destacam-se os debates e discursos
contemporâneos sobre “flexibilidade” e “empregabilidade”, que vêm se constituindo
como as novas “regras do jogo” para os trabalhadores.

1. Da utopia neoliberal ao neoliberalismo como ideologia.

1.1. A utopia neoliberal

Não se deve entender o neoliberalismo simplesmente como um retorno das idéias do


liberalismo econômico e político clássico. Embora se percebam traços de
continuidades – sobretudo no que diz respeito à crítica aos excessos do governo
(FOUCAULT, 2004a) e à defesa da liberdade individual -, é fundamental que se
considere o contexto em que cada um se engendrou e se desenvolveu. Assim,
enquanto o liberalismo clássico se voltava, de modo geral, à crítica aos esquemas de
dominação e aos excessos característicos do absolutismo, em nome de um sistema
preocupado com o respeito aos sujeitos de direito e com a liberdade de iniciativa dos
indivíduos, o chamado neoliberalismo é construído a partir do contexto de intervenção
estatal.

Rosanvallon (1992, p. 59) propõe o entendimento do neoliberalismo como uma


“crítica da crítica da economia de mercado”, ou seja, uma crítica ao Estado

48
interventor. Nesse sentido, tal como sintetizam Laclau e Mouffe (2004), o que o
neoliberalismo “põe em questão é o tipo de articulação que conduziu o liberalismo
democrático a justificar a intervenção do Estado para lutar contra as desigualdades, e
a instalação do Welfare State.” (LACLAU e MOUFFE, 2004, p. 216).

Na medida em que as idéias neoliberais nascem num contexto em que o capitalismo


havia sido “domesticado” pela atuação do Estado e se voltam contra ele, é possível
entendê-las enquanto “utopia”, tal como define Mannheim (1976). Ou seja, como um
tipo de “pensar” que busca a destruição e transformação de uma dada condição da
sociedade e que, por isso, ressalta os elementos da situação que tendem a negá-la.
(MANNHEIM, 1976, p. 67) Desta forma, enquanto “utopia”, o neoliberalismo nasce
voltado para criticar a intervenção estatal e propor um modelo alternativo para a
sociedade. O Caminho da Servidão (HAYEK, 1944), de Friedrich Hayek, marca sua
inauguração e é considerado o manifesto do neoliberalismo.

O argumento central de Hayek (1977) voltado para a crítica à intervenção estatal e às


políticas de bem-estar consiste em mostrar que a idéia de “justiça social” (ou “justiça
distributiva”) carece de sentido. Seu ponto de partida é a defesa da liberdade dos
indivíduos, vista como um valor fundamental que deve estar acima de qualquer outro
valor e, portanto, ser garantida e ampliada ao máximo - até o ponto em que não
prejudique a liberdade dos demais indivíduos.

Do ponto de vista político, a liberdade individual para Hayek é uma liberdade


negativa, ou seja, é entendida como a ausência de obstáculos ou males que atrapalhem
as ações humanas. Por outro lado, defende a liberdade econômica sustentada por
Adam Smith, cujo ponto de partida é idéia da “mão invisível” do mercado como
regulador social (SMITH, 1983). Assim, conclui que, ao agirem espontaneamente no
mercado, seguindo seus próprios interesses, os indivíduos acabam, sem perceber,
produzindo o melhor resultado possível para a sociedade como um todo. É como se o
mercado organizasse de tal modo a economia que nenhum resultado melhor do que
aquele obtido através da espontaneidade da livre atuação dos indivíduos fosse
possível. Assim, a ordem social desejada por Hayek é aquela que segue os
movimentos e mecanismos do mercado.

Desse modo, um Estado intervencionista ou planejador fere, segundo Hayek, a ordem


natural do mundo social (que é reduzido ao mercado) e submete a liberdade individual

49
a interesses que deveriam estar em segundo plano (o público). O Estado deveria ser
reduzido ao mínimo: por um lado, para garantir a liberdade dos indivíduos,
preocupando-se apenas em impedir que alguns indivíduos se imponham sobre outros;
e, por outro lado, para deixar que as questões econômicas sejam resolvidas através da
mão invisível do mercado.

Hayek defende a idéia de que as instituições do welfare state são essencialmente


irreconciliáveis com a ordem social fundamentada no valor da liberdade humana. O
argumento é defendido em O Caminho da Servidão como um alerta para os perigos
trazidos pela intervenção estatal, ou seja, a partir do que Hirschman (2001) chamou de
a tese conservadora do “risco”28. Resumindo,

a estrutura básica do argumento se baseava no seguinte raciocínio: i) as


pessoas não conseguem entrar em acordo a não ser em algumas poucas
tarefas comuns; ii) para ser democrático o governo tem de ser consensual;
iii) o governo democrático só é possível portanto quando o governo
confina suas atividades às poucas sobre as que as pessoas conseguem
chegar a um acordo, e iv) daí que quando o Estado aspira empreender
importantes funções adicionais, encontrará que apenas consegue fazê-lo
por coerção, e tanto a liberdade quanto a democracia serão destruídas (...)
Em outras palavras, [para Hayek], a propensão à ‘servidão’ de qualquer
país é uma função direta (...) do tamanho do governo. (HIRSCHMAN,
tradução livre, 2001, p. 129).

Para sustentar que a noção de “justiça social” é uma fórmula vazia, Hayek (1977)
argumenta:

o conceito carece de aplicação aos resultados de uma economia de


mercado: não pode haver justiça distributiva onde ninguém distribui nada.
A justiça apenas tem sentido como norma da conduta humana, e nenhuma
norma concebível para a conduta dos indivíduos que se proporcionam
mutuamente bens e serviços numa economia de mercado seria capaz de
produzir uma redistribuição que pudesse ser qualificada sem absurdo de
justa ou injusta. (HAYEK, 1977, p. 39)

Para o autor, avaliar algo como justo ou injusto é algo que apenas pode dizer respeito
às ações humanas; apenas os homens podem ser responsabilizados moralmente por
seus atos. O mercado “é o resultado de um processo impessoal e de uma acumulação
28
Albert Hirschman (2001), em seu livro Retóricas de la Intransigência, ressalta três tipos de
argumentos ou teses centrais que estão sempre presentes nas grandes “ondas” do pensamento
conservador, a saber: tese da perversidade, tese da futilidade e tese do risco. “Segundo a tese da
perversidade toda ação deliberada para melhorar algum traço da ordem política, social ou econômico
apenas serve para exacerbar a condição que se deseja remediar. A tese da futilidade sustenta que as
tentativas de transformação social serão inválidas, que simplesmente não conseguem gerar efeitos.
Finalmente, a tese do risco argumenta que o custo da mudança ou reforma proposta é muito alto, dado
que coloca em perigo algum logro prévio e apreciado.” (HIRSCHMAN, tradução livre, 2001, p. 17-
18)

50
de conseqüências não intencionais. Não há nenhum agente sozinho decidindo qual
deveria ser a parte de cada um. (...) não há no mercado alguém que possa ser acusado
por ter um comportamento injusto” (KLEY, tradução livre, 1994, p. 200). Ademais,
Hayek argumenta que como o funcionamento do mercado não pressupõe um
conhecimento do que a justiça social a priori abrange, ele é imparcial e a distribuição
que dele resulta seria isenta de moralidade, ou seja, não poderia ser considerada nem
justa nem injusta, mas apenas natural.

Assim, ao considerar a ordem espontânea do mercado e a distribuição dela decorrente


como naturais, ele afirma que são isentas de valor e, por conseguinte, não existem
falhas morais no sistema. É por isso que considerava que o debate da justiça social tal
como era posto – avaliação dos males sociais como resultantes da sociedade ou do
funcionamento do mercado - era fruto de um erro intelectual. Apenas os indivíduos
podem, para Hayek (1977), ser julgados moralmente e, por conseguinte, ser
responsabilizados. Se alguém está desempregado ou é miserável não pode ser visto
como culpa do sistema, mas sim de sua falta de destreza, esforço ou, ainda, sorte. A
responsabilidade é, portanto, individual, e não social.

Por outro lado, acrescenta o autor, tendo em vista que nem todos têm a mesma
opinião sobre o que deve ser feito para se alcançar à justiça social, e já que o mercado
é capaz de resolver as questões de distribuição e, ainda, dado que não é possível haver
um consenso sobre a questão distributiva, qualquer proposta de política redistributiva
tem um caráter autoritário e, dessa forma, nunca poderia ser legitimada nem aceita.

Nos anos sessenta, nos Estados Unidos, outros teóricos contribuíram para o
desenvolvimento das idéias neoliberais. Dentre eles, estava Milton Friedman - figura
central da Escola de Chicago. Seu trabalho buscava basicamente combater a política
do New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt e suas continuidades; a intervenção
– seja por suas políticas keynesianas, seja por seus programas de seguridade social -
era alvo de crítica do autor.

Tal como Hayek, Friedman (FRIEDMAN, 1980; 1984) se considera um liberal. Mas
faz questão de sublinhar que é um liberal no sentido “original” do termo, ou seja,
aquele que enfatiza a liberdade do indivíduo como valor mais importante a ser
defendido e o fim último a ser perseguido. Assim, a proposta de Friedman consiste
num retorno ao liberalismo econômico e político e na negação do que ele chama de

51
“liberalismo moderno”, ou seja, um liberalismo “descaracterizado” pela presença
estatal, configurado nos Estados Unidos, a partir das políticas do New Deal:

Ao desenvolver-se em fins do século XVIII e princípios do século XIX, o


movimento intelectual que tomou o nome de liberalismo enfatizava a
liberdade como o objetivo último e o indivíduo como a entidade principal
da sociedade. (...) A partir do fim do século XIX e, especialmente, depois
de 1930, nos Estados Unidos, o termo liberalismo passou a ser associado a
pontos de vista bem diferentes (...). As palavras-chave eram (...) bem-estar
e igualdade, em vez de liberdade. O liberal do século XIX considerava a
extensão da liberdade como o meio mais efetivo de promover o bem-estar
e a igualdade; o liberal do século XX considera o bem-estar e a igualdade
ou como pré-requisitos ou como alternativas para a liberdade.
(FRIEDMAN, 1984, p. 14).

Em Capitalismo e Liberdade (1984), a tese central sugere que a questão da liberdade


política está diretamente vinculada ao modo como a economia se organiza. Assim,
Friedman defende que só o capitalismo competitivo, organizado através do livre
funcionamento do mercado, é capaz, por um lado, de promover a liberdade econômica
e, por outro, de alcançar a liberdade política dos indivíduos. Tema correlato a esse diz
respeito, em repúdio à intervenção estatal, “ao papel que o governo deve desempenhar
numa sociedade dedicada à liberdade e contando principalmente com o mercado para
organizar sua atividade econômica.” (FRIEDMAN, 1984, p. 13) Nessa discussão,
argumenta-se que é preciso restringir o papel do Estado/governo a objetivos limitados,
de modo que não prejudique ou cerceie – mas proteja - as liberdades dos indivíduos.

Friedman (1984) considera que o governo deve ser um meio através do qual os
indivíduos podem assumir suas responsabilidades, alcançar seus propósitos e
objetivos e, ainda, um instrumento que sirva para que eles protejam e garantam sua
liberdade. O “governo é necessário para preservar nossa liberdade (...); entretanto,
pelo fato de ser concentrado em mãos políticas, ele é também uma ameaça à
liberdade.” (ibidem, p. 12). Coloca-se, assim, a seguinte questão: “o que devemos
fazer para impedir que o governo, que criamos, se torne um Frankenstein e venha a
destruir justamente a liberdade para cuja proteção nós o estabelecemos?” (idem).

Deste modo, tendo em vista que, segundo o autor, a preservação da liberdade dos
homens deve ser o fim último de qualquer sociedade, ele propõe que o governo seja
limitado às suas funções específicas: “Sua principal função deve ser a de proteger
nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas;
preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados

52
competitivos.” (idem) E, ainda, “arbitrar as divergências em que nos envolvermos e
dar-nos meios para concordar sobre que regras iremos seguir” (FRIEDMAN, 1980, p.
21). Em suma, a presença do governo deveria se resumir ao estabelecimento das
“regras do jogo” e à arbitragem “para interpretar e por em vigor as regras
estabelecidas.” (FRIEDMAN, 1984, p. 23).

A expansão do mercado e retração do Estado é assim justificada: “O que o mercado


faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios
políticos – e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem que participar
diretamente do jogo.” (idem) Para Friedman (1984), apenas o capitalismo
competitivo, organizado pela lógica do livre mercado, e a existência de um governo
limitado que se ocupe somente das funções já ressaltadas são capazes de promover a
liberdade plena do indivíduo.

Em conseqüência deste tipo de raciocínio – no qual o governo é bastante limitado –, o


autor critica severamente os programas de bem-estar, cujo problema residia “no fato
de se querer, com meios ruins [intervenção estatal], alcançar objetivos bons [bem-
estar].” (FRIEDMAN, 1980, p. 104). Afirma que “a maioria dos (...) programas de
bem-estar jamais deveria ter sido lançada” (ibidem, p. 125). Assim, o tipo de política
social proposta deve, por um lado, operar através do mercado e, por outro, ser de
caráter residual - isto é, sua ação é destinada apenas àqueles indivíduos que
comprovam ser pobres.

Na verdade, Friedman (1984, p. 173) afirma que o “mais desejável” no que diz
respeito à solução dos males sociais seria a caridade privada, determinada pela livre
escolha ou vontade dos indivíduos. Mas, embora a entenda como a mais desejável, ele
lamenta que nem sempre ela é exeqüível, sobretudo em sociedades grandes. Nas
pequenas comunidades, a pressão pública pode ser suficiente para a existência da
caridade privada. Mas, em grandes sociedades, isto não ocorre e a “caridade privada é
insuficiente porque seus benefícios se estendem a pessoas não envolvidas (...)”
(FRIEDMAN, 1984, p. 173). O raciocínio de Friedman (1984) pode ser percebido no
seguinte trecho:

Fico angustiado com o espetáculo da pobreza, e sou beneficiado com o


alívio de tal situação. Mas sou igualmente beneficiado, quer seja eu quer
seja outra pessoa que contribua para tal alívio. Portanto, os benefícios da
caridade de outras pessoas estendem-se a mim. Colocando a questão de
outra forma, nós todos estamos dispostos a contribuir para minorar a

53
pobreza, desde que todos os outros também contribuam. Podemos não
estar dispostos a contribuir com a mesma importância, se não tivermos
certeza disso. (idem).

Assim, diante dessa insuficiência da ação da caridade privada, Friedman (1980; 1984)
percebe que a atuação (residual) do Estado é necessária. Desse modo, sua proposta
divide-se em dois tópicos:

em primeiro lugar, a reforma do atual sistema de bem-estar social


mediante a substituição da mixórdia de programas existentes por um
único, global, de suplementação em dinheiro da renda – um imposto de
renda negativo vinculado ao imposto de renda positivo; em segundo,
desenfatizar a Previdência Social enquanto se atendem aos atuais
compromissos e, aos poucos, exigir do público que tome suas próprias
providências para a aposentadoria. (ibidem, p. 126).

O autor ressalta ainda que sua proposta do “imposto de renda negativo (...) só seria
uma reforma satisfatória do atual sistema de bem-estar social se substituísse o grande
número de outros programas específicos” (FRIEDMAN, 1984, p. 128). As
justificativas que ele dá para o sucesso do “imposto de renda negativo” são que (i)
atacaria diretamente a pobreza, uma vez que a ajuda ao beneficiário seria na forma de
dinheiro; (ii) justamente por ser em forma de dinheiro, o imposto de renda negativo
atuaria de maneira a não prejudicar o funcionamento do mercado; e (iii)
provavelmente ele eliminaria a burocracia que administrava a maioria dos programas
sociais. No momento em que escrevia seu livro, Friedman considerava que “o
lançamento de um programa desses é (...) um sonho utópico”. (FRIEDMAN, 1980, p.
126) Hoje, como se verá adiante, frente às recomendações de “combate à pobreza”
dos organismos internacionais, percebe-se que a utopia de Friedman vem
paulatinamente se tornando realidade.

De modo geral, Friedman defende com firmeza que a questão da proteção social deve
ser retirada do rol de atribuições do Estado, fazendo com que se valorize a
responsabilidade individual e se reduzam os gastos do governo. Ao Estado caberia
apenas compensar os “pobres” com pequenas quantias que aliviassem sua penúria,
durante o período em que esses indivíduos não estejam em condições de garantir sua
própria existência. No lugar de promover uma “seguridade social”, propõe-se que o
Estado ajude com um mínimo apenas alguns indivíduos (mediante comprovação de
sua necessidade). Com isso tudo, percebe-se que Friedman sugere, de um lado, uma
individualização da política social e, de outro - para os que “podem” -, uma
privatização dos mecanismos de proteção social.

54
Outro teórico neoliberal é Robert Nozick (NOZICK, 1991), que dedica seu Anarquia,
Estado e Utopia, escrito em 1974, ao estudo sobre natureza do Estado, suas funções
legítimas e suas justificações, com o objetivo de reforçar argumento contrário à
intervenção estatal, sobretudo no que diz respeito à questão distributiva.

Ele afirma que apenas um “Estado mínimo” – que garanta a lei e a ordem - é
justificável: “O Estado mínimo é o mais extenso que pode se justificar. Qualquer
outro mais amplo viola os direitos da pessoa.” (ibidem, p. 170) Ou seja, as únicas
funções que o Estado deve ter referem-se à proteção da propriedade privada contra a
coerção, roubo, fraude e, ainda, à fiscalização do cumprimento dos contratos. Um
Estado que vá além do mínimo violará os direitos de os indivíduos não serem
forçados a fazerem certas coisas e, portanto, é injustificável. (ibidem, p. 9)

Nessa proposta, a questão distributiva também é considerada um excesso. E Nozick


(1991) argumenta que ela é destituída de sentido, uma vez que a única função do
Estado compatível com a liberdade dos indivíduos – e, portanto, “justificável” - é a da
proteção àquilo que lhes pertence.

Contra a chamada “justiça distributiva”, ele argumenta:

A expressão “justiça distributiva” não é neutra. (...) Não há distribuição


central, nenhuma pessoa ou grupo que tenha o direito de controlar todos
os recursos, decidindo em conjunto como devem ser repartidos. (...) Na
sociedade livre, pessoas diferentes podem controlar recursos diferentes e
novos títulos de propriedade surgem das trocas e ações voluntárias de
pessoas. Não há essa de distribuir (...) O resultado total é produto de
muitas decisões individuais que os diferentes indivíduos envolvidos têm o
direito de tomar. (NOZICK, 1991, p. 170-171)

E, assim, sugere que a “visão correta” ou o único princípio de justiça29 que é “neutro”
é aquele previsto por sua “teoria da propriedade”, ou seja, “um princípio de justiça
que descreve (...) o que a justiça nos diz (exige) sobre propriedades.” (ibidem, p. 171).

29
É explícita, em Nozick (1991), a crítica a Uma Teoria da Justiça, escrito em 1971 por John Rawls
(RAWLS, 1993). Em defesa de uma “justiça como equidade”, Rawls estabeleceu dois princípios
básicos de justiça, que foram bem sintetizados na seguinte passagem de O Liberalismo Político
(RAWLS, 2000): “a. Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de
direitos e liberdades básicas iguais para todos, projeto este compatível com todos os demais; e, nesse
projeto, as liberdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equitativo garantido. b. As
desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estar vinculadas
a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades; e, em
segundo, elas devem representar o maior benefício possível dos membros menos privilegiados da
sociedade.” (ibidem, p. 47) Este segundo requisito é definido como o “princípio da diferença”, no qual
se percebe uma ambiguidade: não está nada claro o que Rawls entende por os “menos privilegiados da
sociedade”. A provocação de Perry Anderson (2002) vai nesse sentido: “Seria o princípio da diferença

55
Nesse sentido, para Nozick, só serão justas as propriedades de uma pessoa se forem
observados um dos três “princípios de justiça” previstos pela teoria da propriedade. A
saber: (i) princípio de justiça na aquisição inicial (apropriação de coisas anteriormente
não possuídas); (ii) princípio de justiça nas transferências de propriedade (de uma
pessoa a outra) e (iii) reparação da injustiça na propriedade (seguindo o que dizem os
dois primeiros princípios). Assim, se “as propriedades de cada pessoa são justas,
então o conjunto total (distribuição) das propriedades é justo.” (ibidem, p. 174) Caso
contrário, a distribuição será injusta. Percebe-se, portanto, um ataque frontal a
qualquer tipo de política redistributiva.

O mais importante a ser destacado no pensamento dos autores neoliberais indicados


aqui é a defesa da redução do Estado – conservando, entretanto, seu papel de
garantidor da propriedade privada e do cumprimento dos contratos -, em oposição à
intervenção estatal, e da idéia do “mercado” como o melhor organizador das relações
sociais e o único capaz de promover a plena liberdade do indivíduo.

1.2. O neoliberalismo como ideologia

Com a chegada do pensamento neo-conservador ao poder, com Margareth Thatcher,


na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, as idéias neoliberais ganham
espaço e, a partir então, vão sendo difundidas pelo mundo todo e dá-se início a uma
era de reformas voltadas para transformar o mundo social, econômico e político aos
moldes daqueles pressupostos teóricos.

É claro que em cada realidade nacional a implementação dessas idéias assumiu uma
forma diferente; mas o fato é que expressões de Margareth Thatcher como “there is no
such thing as community” ou “there is no alternative” ganharam força e
impulsionaram uma retomada generalizada da crença, descrita por Karl Polanyi em
1947, no ímpeto totalizante do mercado e em sua capacidade “auto-regulatória”. É o

uma convocação para uma redistribuição de renda quase socialista (...) Ou seria ele (...) apenas uma
defesa sensata da operação normal do capitalismo (...)? Para entender completamente a profundidade
da indeterminação no âmago da construção de Rawls, basta notar que ela é aplaudida no extremo à
esquerda por John Roemer, e no outro por Friedrich von Hayek à direita, cada um deles afirmando que
sua própria mensagem coincide com a de Rawls.” (ANDERSON, 2002, p. 348)

56
retorno da vontade e da mobilização voltadas para a implementação e expansão
daquilo que ele havia chamado de “moinho satânico”30 (POLANYI, 2000)

Com isso - somado ao fim da guerra fria e ao enfraquecimento das utopias de


esquerda e da “crítica”31 (BOLTANSKI, 1999) -, o neoliberalismo vai se afirmando
enquanto “ideologia”, tal como conceituada por Mannheim (1976), ou seja, um tipo
de pensamento que serve como meio de legitimação para o (novo) status quo e que
contribui, assim, para a sua manutenção. Uma vez tornado ideologia, há uma
constante reafirmação de seus valores, pressupostos, enfim, de sua visão de mundo –
propagando-se a partir do mainstream acadêmico (norte-americano, sobretudo) e dos
organismos internacionais para o resto do mundo.

Assim, enquanto ideologia, o neoliberalismo se impõe como o caminho necessário e


como o projeto de reorganização social a ser seguido. Quanto a este último ponto,
Foucault (2004a) argumenta que a especificidade do neoliberalismo contemporâneo
refere-se à concepção sobre a arte de governar. Ao contrário do liberalismo clássico,
os neoliberais não apostam no laissez-faire, mas num tipo de intervenção cujo objeto
é a própria sociedade.

As idéias de mercado, competição, concorrência32 são trazidas para o centro da ação


governamental enquanto modelo a ser seguido e implementado. Assim, na verdade, o
neoliberalismo não é um simples um retorno da crença no livre funcionamento do
mercado, mas uma nova mobilização (inclusive do próprio Estado) cujo objetivo é
fazer com que a idéia de mercado se torne possível. Para tanto, a ação governamental
passa a intervir sobre a própria sociedade com a tarefa de tornar possível o
funcionamento dos mecanismos concorrenciais próprios do mercado.

30
Processo a partir do qual o mercado foi, paulatinamente, se separando das demais instituições sociais
até se tornar autônomo - “auto-regulável” - e, ao mesmo tempo, foi dominando e incorporando o
trabalho, a terra e o dinheiro à sua lógica, transformando-os em “mercadorias”.
31
Ver mais à frente.
32
Foucault (2004) vê a inserção da idéia de “concorrência” no conceito de “mercado” como algo
característico do neoliberalismo contemporâneo. “Para os neoliberais, o essencial do mercado não
está na troca, nessa espécie de situação primitiva e fictícia com que os economistas liberais do século
XVIII se preocupavam. Está além. (...) [Para os neoliberais,] o essencial do mercado é a concorrência,
ou seja, [o que importa] não é a equivalência, mas, ao contrário, a desigualdade.” (FOUCAULT,
2004, p. 122)

57
Nesse sentido, enfatiza Foucault (2004a), a intervenção governamental própria do
neoliberalismo “não é menos densa, menos freqüente, menos ativa, menos contínua
que num outro sistema.” (FOUCAULT, 2004a, p. 151) O que importa é perceber que
seus objetivos mudaram. Se, com o liberalismo clássico, pregava-se o laissez-faire e,
com o keynesianismo/welfare state, o foco se voltava para a correção dos efeitos
nefastos e destruidores do mercado e do capitalismo sobre a sociedade, agora, com o
neoliberalismo, o objetivo da ação governamental reside numa intervenção sobre a
própria sociedade, de modo a inserir nela os mecanismos competitivos e
concorrenciais inerentes aos fundamentos do mercado, para que, assim, ela possa dele
se aproximar. Percebe-se que essa “novidade” destacada por Foucault reforça o
argumento de que o Estado neoliberal é funcional ao mercado.

Deste modo, o que se procura com isso é a obtenção de uma sociedade submetida à
dinâmica concorrencial, uma generalização da forma “empresa” no interior do corpo e
do tecido social, tendo a concorrência como fundamento. “O homo economicus que se
quer reconstituir não é o homem da troca, não é o homem consumidor, mas sim o
homem empresarial” (ibidem, p. 152). Trata-se de inserir no tecido social a lógica da
diferenciação social, dividindo-o e multiplicando-o em indivíduos a partir do modelo
“empresa”, ou seja, enfatizando seu lado competitivo e empreendedor como novas
necessidades.

Tudo isso pode ser percebido a partir do contínuo esforço do neoliberalismo,


enquanto a nova ideologia, em moldar o mundo à imagem do “mercado”, em lutar,
por um lado, pela diminuição do tamanho do Estado (privatizações, corte dos gastos,
focalização de políticas, etc.) e transformação de seu papel - objetiva-se agora um
formato para o Estado que seja funcional ao mercado - e, por outro, em destruir
aquele mundo social edificado na “era dourada”, inserindo mecanismos
individualizantes e concorrenciais no corpo do tecido social.

58
2. Espírito do capitalismo e as novas regras do jogo

No âmbito específico do mundo do trabalho, a inserção da lógica empresarial,


concorrencial e competitiva é perceptível também pelo modo pelo qual o capitalismo
tem se justificado e pela difusão dos debates e discursos da “flexibilidade” e da
“empregabilidade” como a construção de novas regras do jogo para a realidade dos
trabalhadores.

2.1. O novo espírito do capitalismo.

Para entender a atual justificação do capitalismo, é importante acompanhar, além da


trajetória das idéias do neoliberalismo, a discussão específica de Boltanski e Chiapello
(1999) sobre a questão em Le Nouvel Esprit du Capitalisme. A proposta fundamental
do livro é a elaboração de um quadro teórico geral que possibilite compreender a
maneira pela qual se modificaram as ideologias associadas às atividades econômicas,
e, assim, entender as mudanças ideológicas que acompanharam as transformações do
capitalismo no último quartel do século XX.

Antes de desenvolver o quadro teórico, os autores explicitam um ponto fundamental:


o que entendem por capitalismo. Para Boltanski e Chiapello, o capitalismo tem uma
definição bastante sucinta. É utilizada uma fórmula mínima, decorrente das múltiplas
caracterizações já realizadas sobre o capitalismo, que enfatiza sua característica
essencial: a exigência de acumulação ilimitada do capital por meios formalmente
pacíficos. Ou seja, o capitalismo é definido a partir do contínuo movimento do capital
cujos objetivos consistem na obtenção de lucros e na geração de mais capital. Esse
processo confere ao capitalismo “uma dinâmica e uma força de transformação que
fascinaram todos seus observadores, mesmo os mais hostis.” (ibidem, p. 37)

Tal como Marx (2002), Boltanski e Chiapello consideram que, nesse movimento de
ampliação contínua do capital, os dois grupos de personagens principais são: de um
lado, os capitalistas (aqueles encarregados da acumulação e do crescimento do capital
e que tem como objetivo central a “maximização dos lucros”) e, de outro, os
trabalhadores assalariados: aqueles que não detêm capitais e em benefício do qual o

59
sistema não está orientado. Os assalariados tiram sua renda da venda do próprio
trabalho e são, teoricamente, livres para recusarem o trabalho nas condições propostas
pelos capitalistas (como também estes últimos são livres para não ofertarem empregos
às condições demandadas pelo trabalhador). Se, por um lado, é claro que esta relação
é desigual – já que os trabalhadores não podem ficar um período muito longo sem
trabalho -, Boltanski ressalta que existe sempre uma adesão ou engajamento ao
sistema por parte dos trabalhadores.

Contudo, “o capitalismo é (...) um sistema absurdo” (ibidem, p. 41), ele não faz
sentido para ninguém: nem para os trabalhadores nem para os capitalistas. Para os
assalariados, o sistema em si - através de sua simples definição (acumulação de
capital) - não faz sentido, já que eles não detêm a propriedade do resultado de seu
trabalho e não conseguem levar uma vida ativa fora da subordinação. Mas o
capitalismo tampouco tem sentido para os capitalistas. Estes estão encadeados num
processo sem fim e insaciável, totalmente abstrato e dissociado inclusive da satisfação
de suas necessidades de consumo. Assim, para Boltanski e Chiapello, não haveria
sentido no engajamento no processo capitalista para nenhum dos dois protagonistas.

Mas, ao mesmo tempo, a acumulação capitalista necessita a adesão ou engajamento


de um número muito grande de pessoas para poder se realizar. Os autores
argumentam que, nas práticas sociais concretas, o engajamento das pessoas acontece
e, portanto, precisa ser explicado. Boltanski e Chiapello (1999) explicam tal adesão a
partir da idéia de “espírito do capitalismo”: a ideologia que justifica o engajamento
das pessoas no capitalismo.

Embora partam de uma noção de “espírito do capitalismo” diferente da de Max


Weber33 (2004), há, no argumento, uma recuperação da idéia weberiana segundo a
qual as pessoas aderem ao capitalismo por estímulos morais, que são interiorizados e
justificados e que são externos à lógica capitalista, dado que os motivos dessa adesão
não podem ser encontrados nela.

33
Weber (2004) considera o “espírito do capitalismo” como a gênese de um complexo substantivo – o
capitalismo – que, uma vez instalado, não teria mais necessidade do “espírito”. Outro ponto de
divergência em relação a Weber é que Boltanski e Chiapello não têm como objetivo explicar a origem
do espírito do capitalismo, mas sim compreender seus diferentes estados históricos. Assim, tentam
desvincular a categoria “espírito do capitalismo” dos conteúdos substantivos e reconhecer que seu
conteúdo pode variar em diferentes momentos da história dos modos de organização das empresas e
dos processos de extração do lucro capitalista.

60
O “espírito do capitalismo” é definido, então, como um conjunto de crenças
associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar, legitimar e sustentar os
modos de ação e os dispositivos que lhe são coerentes. Essas justificações são
expressas em termos de virtude ou de justiça e possibilitam a realização de práticas e,
mais geralmente, a adesão a um estilo de vida favorável à ordem capitalista. Em
suma, como o capitalismo é uma forma histórica ordenadora de práticas coletivas
desvinculada totalmente da esfera moral, e não se pode encontrar nele mesmo
nenhuma fonte explicativa para os motivos de engajamento dos atores sociais
importantes para sua manutenção e reprodução, ele se apóia em construções de outra
ordem (nas crenças), que não a da busca do lucro para se justificar e poder persistir.

Em cada momento histórico, o espírito de que carece o processo de acumulação está


impregnado de produções culturais que lhes são contemporâneas. Como, segundo os
autores, a ideologia vem “de fora” do capitalismo, a adesão dos atores sociais ao
capitalismo é, na verdade, uma adesão ao espírito, uma vez que o capitalismo não tem
sentido e, por isso, não é capaz de se justificar34.

Essa adesão ao espírito pode ser a cada momento, questionada e criticada pelos atores
sociais. Aqui entra em cena outro conceito fundamental do quadro analítico de
Boltanski e Chiapello: o de “crítica”. É partir da idéia de crítica que são teorizadas as
mudanças do espírito, as transformações do capitalismo e, ainda, a legitimação do
espírito num determinado momento.

É a partir desse quadro geral - cujos componentes centrais são as definições de


“capitalismo”, “espírito do capitalismo” e “crítica” -, que a história de capitalismo é
teorizada. São destacados três estados históricos35 (BOLTANSKI, 1999, p. 54) do

34
Para explicar como as justificações são construídas, Boltanski lança mão de seu arcabouço teórico
desenvolvido em De La Justification (1991), obra na qual ele constrói a noção de cités (“cidades”). As
“cidades” são modelos teóricos que expressam os variados tipos de convenções gerais orientadas para
um bem comum. Nas situações concretas de disputa, os atores recorrem a esses modelos universais
para construírem seus argumentos e justificações. As cidades são utilizadas em Le Nouvel Esprit du
Capitalisme como pontos de apoio normativos para a construção das justificações. Seis lógicas de
justificação (seis cidades) são identificadas por Boltanski (1999, p. 63) na sociedade contemporânea.
São elas: cidade inspirada, doméstica, do renome, cívica, mercantil, industrial. Em cada momento do
capitalismo, o espírito do capitalismo evoca justificações diferentes que pertencem a cidades diversas.

35
Cada um desses espíritos, quando fazem referência ao bem comum, evoca justificações que se
baseiam nos modelos das diversas “cidades” (cités). O primeiro espírito retirava suas justificações das
cidades doméstica e mercantil. Já o segundo, das cidades industrial e cívica. O “novo espírito do
capitalismo”, por sua vez, para formular suas justificações, se apóia num tipo de cidade que vem se
formando a partir dos anos 90, que foi chamada de “cidade por projetos”.

61
espírito do capitalismo. O primeiro espírito do capitalismo do século XIX, que era
centrado na figura do empreendedor burguês. A segunda caracterização do espírito
tem seu desenvolvimento pleno entre os anos trinta e os anos sessenta, sua figura
central é a organização (e não mais o empreendedor individual) e teve seu
desenvolvimento centrado na produção em massa e marcado pela confiança no
progresso. E, a partir dos anos oitenta, começam ser percebidas grandes
transformações no modo de justificação do capitalismo e a se formar uma nova
configuração ideológica portadora de justificações para o capitalismo, ou seja, um
“novo espírito do capitalismo”.

Os autores utilizam a literatura de management (sobre gestão) voltada para os


executivos (cadres) como fonte de normatividade para esse novo espírito. Essa
literatura tem como objetivo oferecer aos executivos as informações sobre as últimas
inovações em termos de gestão de empresas e de direção. E ela é tomada pelos autores
como principal lugar de inscrição e manifestação do novo espírito do capitalismo36.

Como essa literatura não pode ser justificada apenas a partir da orientação de
maximização do lucro, não obteria a adesão necessária se assim o fosse, ela deve
também justificar moralmente a maneira como esse lucro é obtido, de modo que o
engajamento dos trabalhadores no processo capitalista seja mais fácil e, por outro
lado, para que sejam construídos “argumentos para resistir às críticas [direcionadas ao
capitalismo] que não deixam de emergir”37. (ibidem, p. 95).

Para entender melhor o “novo espírito” do capitalismo que estaria surgindo, os


autores lançam mão da análise de textos voltados aos gestores, produzidos nos anos
noventa, que propõem - para enfrentar o jogo capitalista no novo contexto
mundializado - um conjunto de inovações gerenciais articuladas em torno de algumas
idéias-chave: empresas “magras” (lean production), trabalhando em rede e o trabalho
organizado por projetos.

36
Boltanski e Chiapello (1999) ressaltam que poderiam ter escolhido outro lugar de manifestação
dessa “ideologia dominante” (ibidem, p. 94) – tal como discursos políticos e sindicais, textos
jornalísticos e outros -, mas escolheram a literatura de management em função de seu acesso mais
direto às representações desse novo espírito.
37
Parte-se da idéia de que as crenças associadas ao capitalismo estão sendo submetidas constantemente
a “provas” cotidianas. Se essas crenças são derrubadas, a legitimidade do capitalismo entraria em crise,
sendo necessárias novas formas de justificação.

62
Eles fazem uma comparação dessa literatura com a vigente nos anos sessenta38; e tem-
se, de um lado - pela literatura dos anos sessenta -, um ambiente de “trabalho
protegido”, da “estabilidade”, do “plano de carreira”, e, de outro – a partir da
literatura dos anos noventa -, percebe-se uma excessiva atenção aos temas da
“adaptação”, da “mudança” e da “concorrência”, fazendo da “flexibilidade”,
“criatividade” e “reatividade” as novas palavras de ordem da atualidade.

Eles notam que a grande dimensão sedutora desse novo contexto é o alcance da
“verdadeira autonomia”, fundada sobre um conhecimento de si mesmo, uma liberdade
e um desenvolvimento pessoal. A hipótese de Boltanski (1999, p. 143) é a de que, a
partir dessa nova gramática, vai emergindo um novo “sentido de justiça”, que pode
ser teorizado em termos de “cidade” (cité), segundo a matriz teórica de De La
Justification (BOLTANSKI, 1991). Essa nova “cidade” foi chamada de “cidade por
projetos”39 tendo como “referência o mundo flexível constituído pelos múltiplos
projetos levados pelas pessoas autônomas”. De fato, a novidade do mundo do trabalho
de hoje é que, cada vez mais, as pessoas tendem a não fazer mais carreira profissional,
mas passam de um projeto a outro. A cada projeto conquistado, maiores são as
possibilidades de acesso a novos projetos no futuro e, ainda, de aprendizado e de
enriquecimento das competências e habilidades pessoais (que, por sua vez, são
fundamentais para outros projetos que virão).

A utilização dessa nova gramática, que ressalta as novas promessas do capitalismo (de
realização pessoal, liberdade, excitação, mobilidade, “conectividade social”) e que
fundamenta os dispositivos atuais de justificação do capitalismo, passa a ser cada vez
mais utilizada no cotidiano do mundo do trabalho, incluindo empregadores e
trabalhadores (empregados ou não). Cada um deles passa a mobilizar seus
argumentos/dispositivos no seu dia-a-dia.

38
E percebem que a literatura de management dos anos sessenta acompanhou a passagem da burguesia
patrimonial (centrada na empresa pessoal) à burguesia de dirigentes (assalariados, diplomados, e
integrados às grandes administrações públicas ou privadas) e, nesse sentido, enfatizou a meritocracia e
a valorização do progresso social baseado na empresa e da proteção no trabalho (associada ao estatuto,
à hierarquia e burocracia).

39
A formação e o desenvolvimento dessa nova “cidade” por projetos serve como ponto de apoio
normativo para o “novo espírito do capitalismo”, que passa a justificar o capitalismo a partir dos temas
valorizados no novo contexto: mudança, adaptação, risco, mobilidade, flexibilidade e concorrência.

63
Por exemplo, essa nova gramática pode ser facilmente identificada na declaração do
executivo James Meadows (vice-presidente do Departamento de Recursos Humanos
da AT&T) em entrevista ao Nem York Times, quando, em 1996, dava início do
programa de demissão de 40 mil trabalhadores: “as pessoas devem ver a si mesmas
como trabalhadores autônomos, como vendedores que vêm para esta companhia
vender suas habilidades.” E continua: “Na AT&T temos que promover toda uma
concepção de que a força de trabalho é temporária. Em vez de empregos, as pessoas
têm cada vez mais projetos ou campos de trabalho.” (TILLY e TILLY apud SORJ,
2000).

Consequentemente, o trabalho na empresa vai se transferindo “do emprego


assalariado [e protegido] típico para outras formas de contratos de prestação de
serviços que, no limite, tenderiam a transações individuais.” (SORJ, ibidem, p. 32).

E, a partir dessa nova gramática descrita por Boltanski, é possível perceber como ela
passa a servir como base para a construção de argumentos utilizados no cotidiano dos
atores sociais, sobretudo no que diz respeito ao tema do desemprego. Esta realidade
social passa a ser reconstruída a partir da nova gramática, formando, aos olhos dos
atores, novas percepções para a questão.

Tanto para os empresários/capitalistas quanto para os trabalhadores, os “novos


tempos” exigem que estes últimos se adaptem, invistam em si mesmos, sejam
autônomos, dinâmicos, criativos e “livres”. Ou seja, por um lado, eles constituem os
novos self made men que se realizam profissionalmente pelas habilidades que
possuem e pelo número de projetos que conseguem acumular e, ainda, por estarem
“bem” relacionados e conectados nas redes. Mas, por outro, se eles não conseguirem
ou não quiserem nada daquilo, sua situação de desemprego já estará explicada...

Percebe-se, assim, que, embora em outros termos e a partir de uma matriz teórica
diferente, a discussão de Boltanski (1999) se aproxima e até mesmo reforça aquele
argumento de Foucault (2004a) acerca do projeto neoliberal cujo objetivo é o de
inserir continuamente a lógica concorrencial do mercado em todas as esferas do tecido
social. Nessa nova dinâmica, o indivíduo precisa se afirmar enquanto homem-empresa
e, nesse sentido, é obrigado, em nome de sua sobrevivência e permanência no “jogo”,
a fortalecer constantemente sua “competitividade” e sua condição de “empreendedor”.

64
Diante dessa forma atual de justificação do capitalismo, Boltanski e Chiapello (1999)
se preocupam hoje com o enfraquecimento da crítica contemporânea, “que nunca
pareceu tão desarmada, no último século, quanto nos últimos quinze anos, seja porque
ela manifesta apenas uma indignação sem acompanhar proposições alternativas, seja
porque, mais freqüentemente, ela tem renunciado [a exercer a prática da] denúncia
[frente à realidade contemporânea]” (ibidem, tradução livre, p. 17). No fim das
contas, admite-se, assim, tacitamente, uma postura fatalista, ou seja, a dificuldade em
se denunciar a atual justificação do capitalismo. Como, no esquema analítico de
Boltanski e Chiapello, é a crítica ao “espírito do capitalismo” aquela capaz de fazer
com que o sistema realmente se transforme, é natural que eles se preocupem com a
atual apatia e passividade da crítica - sobretudo se comparada com aquela dos anos
sessenta -, que acabam por naturalizar o mundo social e, assim, neutralizar qualquer
anseio por mudanças e transformações do sistema.

Na próxima seção, serão discutidos os debates contemporâneos sobre


empregabilidade e flexibilidade. A hipótese que aqui se levanta diz respeito à
possibilidade de identificação de uma linha de raciocínio comum entre os debates
anteriores e as temáticas sobre a justificação do capitalismo –a partir tanto da
primazia do mercado como modelo para a ordem social quanto da nova lógica de
justificação do funcionamento social inscrita na “cidade por projetos”, descrita por
Boltanski e Chiapello (1999).

2.2. As novas “regras do jogo”: flexibilidade e empregabilidade

Após uma breve alusão às lógicas de interpretação de mundo que vem justificando o
capitalismo atual, é possível apontar a flexibilidade e a empregabilidade como as
novas “regras do jogo” desse novo capitalismo. Mais especificamente, pode-se
relacionar a forma como o debate contemporâneo sobre questão do desemprego vem
sendo estruturado (recorrendo às temáticas da empregabilidade e a da flexibilidade)
com o modo pelo qual o capitalismo se justifica tal como exposto anteriormente.

Numa chave bastante geral, percebe-se que a flexibilidade aparece como uma
característica fundamental do ambiente de trabalho no novo capitalismo. É vista como

65
a liberdade40 que o indivíduo tem para moldar e guiar sua vida. Ele não estaria mais
preso ou limitado às amarras impostas pela rigidez característica do momento
anterior. No novo contexto flexível, no qual o indivíduo deve ser livre e solto, ele é
obrigado a ser criativo, um homem de intuição, de visão, de contatos, de capacidade
de se reinventar a toda hora, sempre em movimento, para que possa se adaptar ao
novo, ao momentâneo, ao instável, enfim, aos projetos e trabalhos de curto prazo que
aparecem e se lhe impõem como cotidiano.

Assim, a flexibilidade seria uma forte característica desse novo ambiente de liberdade
aparente, o qual esconde, em última instância, novos tipos de imposições, já que
obriga o indivíduo a se moldar e se adaptar permanentemente, de acordo com as
novas situações que precisa enfrentar, num universo profissional muito movimentado
e incerto. A empregabilidade apareceria como o meio pelo qual o indivíduo vai
conseguir tudo isso; ela acaba sendo a capacidade que o indivíduo deve ter para que
possa ser requisitado para os trabalhos e projetos de curto prazo.

Por outro lado, num sentido mais específico, os temas da flexibilidade e da


empregabilidade são mobilizados também nas discussões sobre o problema do
desemprego.

Segundo Cardoso (2003), o desemprego como mazela decorrente da reestruturação


tem sido visto, pelo mainstream ortodoxo, como um mal já esperado.

Primeiro, porque os sistemas nacionais de relações de trabalho estariam


caducos, pejados de legislação rígida que não permitiria ao capital a
mobilidade necessária para fazer frente ao aumento da competitividade
global. Em segundo lugar, por culpa, teimosia ou irracionalidade dos
trabalhadores, que se recusam à melhoria de sua ‘empregabilidade’
(CARDOSO, 2003, p. 88).

Assim, para que o problema do desemprego possa ser remediado, emergem duas
“soluções”: é preciso, por um lado, que o mercado de trabalho seja “flexibilizado” e,
de outro, que os trabalhadores invistam em sua “empregabilidade”.

40
É interessante perceber como Sennet (1999) mostra que, embora a flexibilidade apareça como
liberdade, ela acaba gerando impactos profundos na esfera moral da vida dos indivíduos. Isto porque o
novo ambiente de trabalho moderno (cuja ênfase recai sobre projetos de curto prazo e na flexibilidade),
por um lado, dificulta que as pessoas desenvolvam uma narrativa coerente para suas vidas e, por outro,
impede a formação do caráter (uma vez que o desenvolvimento do caráter depende de virtudes estáveis
- como lealdade, confiança, comprometimento e ajuda mútua – que estão desaparecendo no novo
capitalismo).

66
A atual ênfase na desregulação do mundo do trabalho emerge a partir da defesa
hegemônica da desregulação dos outros mercados. Assim, a volta do diagnóstico
neoclássico41 sobre o trabalho é clara. Para que o “mercado de trabalho” - o qual é
visto como um dos mais imperfeitos - se livrasse de suas “imperfeições”42, deve-se
recorrer à receita flexibilizadora. Esta propõe que se desregulamente o mercado de
trabalho de modo que o trabalho seja mercantilizado43 novamente e se aproxime com
o ideal de mercado que tanto se busca.

Em suma, o conceito de “flexibilidade” pressupõe que há, na desregulamentação, o


caminho para a eliminação das “falhas de mercado” presentes no mercado de
trabalho, o que levaria ao equilíbrio deste “mercado” e, assim, a um caminho para a
solução do problema do desemprego.

O argumento utilizado é que, nesse novo ambiente mais flexível, os capitais teriam
maior liberdade para agir, estariam livres das amarras dos direitos, podendo investir
mais e, portanto, gerar mais empregos. Em realidade, a flexibilidade significa que se
permite ao empresário utilizar a mão-de-obra necessária ao menor custo possível (já
que os encargos, que antes recaíam sobre os empresários, devem agora se voltar sobre
os trabalhadores...).

Do outro lado da moeda (CARDOSO, 2003), aparece a idéia de “empregabilidade”.


Embora este conceito não seja novo, atualmente vem ganhando centralidade no debate
contemporâneo e assumindo um significado distinto do original.

Gazier (1990) faz uma análise - uma “radiografia” - desse conceito, mostrando que a
evolução de seus significados reflete transformações das concepções de mundo que a
ele estão associadas. Na França dos anos setenta, por exemplo, o conceito de
“empregabilidade” significava a “esperança objetiva ou a probabilidade (...) que uma
pessoa pode ter na busca de um emprego em encontrar um [emprego]” (ibidem, p.

41
Dentre as políticas voltadas para o mercado de trabalho implementadas pelos governos latino-
americanos, como parte das medidas de ajuste das economias, tendem a predominar as políticas de
corte neoliberal que seguem esse diagnóstico neoclássico sobre a desregulação do mercado de trabalho.
42
As “imperfeições” do mercado de trabalho ressaltadas pela teoria neoclássica são justamente aquelas
características que, como nos mostra Castel (2003), fizeram do estatuto do trabalho uma fonte de
proteção : existência de instituições, conflitos coletivos e regulações coletivas de direitos do trabalho e
da proteção social.
43
Aqui “mercantilização” assume exatamente o sentido oposto do de “desmercantilização” ressaltado
por Esping-Andersen (1990), que via na introdução dos direitos sociais (inclusive os vinculados ao
trabalho) modernos a implicação de um afrouxamento do status de mercadoria do indivíduo-
trabalhador.

67
576). A ênfase recaía sobre as condições gerais da economia e da sociedade. Estava
presente, portanto, uma inteligibilidade que associava à empregabilidade uma
causalidade econômica conjuntural (ou seja, tudo dependia do crescimento do
emprego e, logo, da economia). A responsabilidade de gerar um contexto favorável -
de alta “empregabilidade” - dizia respeito ao Estado e ele deveria ser alcançado pela
ação dos economistas no seio do aparelho estatal. É claro que, naquele contexto, em
que havia tendência ao pleno emprego, esse conceito acabava não sendo muito
importante e tampouco muito utilizado, dado que para uma pessoa ser “empregável”
era necessário apenas uma mínima constatação, por meio de um atestado
qualificatório de que pudesse ocupar determinado emprego.

Tudo muda de configuração a partir dos anos oitenta e, sobretudo, dos anos noventa,
quando o problema do desemprego (estrutural, inclusive) se agrava. O conceito de
“empregabilidade” vai perdendo seu significado original e ganha, paulatinamente,
novos contornos.

Deixando de lado as especificidades da evolução desse conceito na França, em linhas


gerais, percebe-se que o diagnóstico passa a ser progressivamente individualizado. O
foco passa a ser a “empregabilidade” das pessoas – e não uma empregabilidade
gerada pelo contexto - e a nova exigência passa a ser a mobilização dos
desempregados, buscando melhorar e dinamizar seus atributos pessoais.

Gazier (1990, p. 579) alerta que essa perspectiva individualizada encontra seus limites
justamente naquilo que a funda: o fracasso macroeconômico induziu a mobilização da
perspectiva micro, mas acabou perdendo de vista as perspectivas de emprego que a
estrutura econômica é capaz de gerar.

Assim, com a análise da empregabilidade voltada para as características individuais


de cada um, o olhar em direção ao problema do desemprego deixa de levar em conta a
estrutura social e econômica e passa a jogar a responsabilidade de “ter um emprego”
sobre o indivíduo. Ou seja, a responsabilidade pela inserção profissional dos
indivíduos se transfere do estrutural – ou dos formuladores de políticas de geração de
emprego - para o individual – do trabalhador, que se vê obrigado a entrar num
processo permanente de busca pelo aumento de sua empregabilidade.

Esse atual significado do conceito de “empregabilidade” vem sendo considerado


como uma reedição dos pressupostos fundamentais da teoria do capital humano

68
(GENTILI, 2001; FRIGOTTO, 2001). Esta teoria começou a ganhar expressão e a ser
sistematizada pela Economia a partir dos anos sessenta, embora muitas de suas idéias
já tivessem sido citadas anteriormente de maneira esporádica. Tentou-se integrar o
conceito de “capital humano” à teoria econômica neoclássica, que vinha sendo
criticada pela sua incapacidade de explicar totalmente as causas do crescimento
econômico e questões relativas à distribuição de renda.

Foucault (2004a) sugere que a teoria do capital humano44 seja entendida a partir de
dois processos: por um lado, um avanço da análise econômica num domínio que era
até então inexplorado e, por outro lado, a partir desse avanço, uma tentativa de
reinterpretação, em termos econômicos, de todo um domínio (o da educação, por
exemplo) que até então podia ser considerado como não sendo econômico.
(FOUCAULT, 2004a, p. 225)

Dentre os teóricos principais da teoria do capital humano estão Theodore Schultz


(1973), Gary Becker (1993), Jacob Mincer (1974), dentre outros. Eles sugerem que a
teoria econômica neoclássica não vinha conseguindo explicar inteiramente o
desempenho das economias observado na “era de ouro” através de explicações
tradicionais, baseadas na questão da acumulação de capital físico e no avanço
tecnológico. Os autores procuraram preencher tal “lacuna” teórica tanto a nível macro
quanto a nível microeconômico. A idéia central da teoria do capital humano é tratar o
trabalho dos indivíduos como uma forma de capital e, por conseguinte, entender sua
escolaridade como resultado de uma decisão deliberada de “investimento” (aumento
de seu capital humano).

Foucault (2004a) sugere que embora seu objetivo fosse inserir a temática do trabalho
na discussão econômica, os teóricos do capital humano não prestaram – ou não
quiseram prestar - atenção (ou não quiseram mesmo discutir) naquilo que Marx havia
dito em relação ao trabalho, em O Capital (MARX, 2002). Em seus escritos, os
teóricos do capital humano não entendem o “salário” como aquilo que é obtido pelo
trabalhador mediante a venda de sua força de trabalho45 (ou seja, como o “preço”

44
Foucault (2004) entende a teoria do capital humano como elemento próprio da concepção neoliberal
americana e se refere a esses teóricos como os “neoliberais americanos”.

45
Como se sabe, Marx (2002) entendia que o trabalhador vende sua força de trabalho, durante certo
tempo, em troca do salário. Mas o valor desse salário é inferior ao valor do trabalho criado pelo
trabalhador, em função das relações de exploração existentes no sistema capitalista: uma parte do valor

69
desta última), mas sim como “renda”, isto é, como uma “remuneração” do trabalho.
Ou seja, como uma remuneração de um “capital”, como um outro qualquer. É desse
modo que se constrói o entendimento do “trabalho” como “capital humano”.

Nota-se, portanto, que os teóricos do capital humano naturalizam o sistema capitalista


e não entendem a economia como um sistema social, mas como:

a maneira pela qual os recursos escassos são alocados em fins que são
concorrentes [dentre os quais se deve escolher] (...) [Assim,] a análise
econômica deve ter como ponto de partida e como quadro geral de
referência o estudo da maneira como os indivíduos fazem a alocação de
seus recursos escassos aos fins que são alternativos. (FOUCAULT, 2004,
p. 228).

Em última instância, cabe à economia estudar o comportamento humano e analisar a


racionalidade interna a esse comportamento. Foucault conclui que, com isso, a
economia vai deixando de ser uma análise dos processos, e se transforma na análise
de uma atividade: da racionalidade interna ou da programação estratégica dos
indivíduos. Nesse sentido, a análise do “trabalho” passa a ser o entendimento de como
aquele que trabalha utiliza os recursos que dispõe. Para esse tipo de teoria, é preciso,
portanto, colocar-se do ponto de vista do trabalhador e entender sua racionalidade
estratégica enquanto agente econômico ativo. E, nesse sentido, “do ponto de vista do
trabalhador, o salário não é o preço de venda de sua força de trabalho, é uma renda.
(...) Por conseqüência, se se admite que o salário é uma renda, o salário é então a
renda de um capital.” (ibidem, p. 230) E o “trabalho” é, por sua vez, um capital: o
“capital humano”.

Assim, o trabalho passa a ser visto como um tipo de capital que não era levado em
conta pela teoria econômica. E é diante desta “lacuna” que os teóricos do capital
humano se dedicam à inserção da temática do “trabalho” na análise econômica. Essa
abordagem aparece a nível macro e a nível microeconômico.

Do ponto de vista “micro”, associavam um aumento do capital humano da força


trabalhadora à garantia de emprego ou a aumentos na renda e, do outro, no plano
macro, apontavam o aumento da educação (resultante do somatório das escolhas
individuais) como um possível elemento causal para o crescimento econômico. Mas,

desse trabalho (mais-valia) é apropriada pelo capitalista (o dono dos meios de produção). A própria
lógica do sistema faz com que o valor daquilo que o trabalhador recebe (salário) seja inferior ao valor
daquilo que ele produz (trabalho abstrato).

70
embora esses autores criticassem a teoria neoclássica46 nessa questão específica (da
lacuna), isto não significa que eles a tenham abandonado; muito pelo contrário,
apenas tentaram complementá-la, sem deixar de lado seus postulados básicos47.

Para elucidar os fatores não-explicados do crescimento econômico e entender as


diferenças de rendas existentes entre os indivíduos, a teoria do capital humano afirma
que essas questões dependem do “capital humano” que cada indivíduo escolhe
investir em si mesmo.

Nas palavras de Theodore Schultz:

apesar do fato de que os homens adquirem habilidade e conhecimento


úteis seja algo evidente, não é evidente entretanto que habilidade e
conhecimentos sejam uma forma de capital, que esse capital seja em
grande parte um produto do investimento deliberado, que nas sociedades
ocidentais cresceu num ritmo muito mais rápido que o capital
convencional (não humano), e que seu crescimento pode ser o traço mais
característico do sistema econômico. Se observou amplamente que os
incrementos da produção nacional têm sido relacionados em grande
medida com os incrementos da terra, horas de trabalho e capital físico
reproduzível. Mas o investimento em capital humano é provavelmente a
principal explicação dessa diferença. (SCHULTZ, op. cit , p.31)

Em suma, o raciocínio básico pode ser assim sintetizado: (i) aumento da educação dos
trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e conhecimentos melhorados, (iii)
quanto maiores as habilidades e conhecimentos, maior a produtividade do
trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando (v) maior competitividade e,
assim, (vi) maiores rendas para o indivíduo. Ou seja, ao optarem em investir em seu
capital humano, os indivíduos se tornam mais aptos para competirem no mercado e,
assim, obterem maiores rendas.

Quanto ao conceito de “empregabilidade”, Gentili (1999) ressalta que, além de partir


dos mesmos pressupostos (individualistas) da teoria do capital humano, sua invocação
acaba recorrendo a uma concepção mais individualista ainda que a teoria do capital
humano, uma vez que, enquanto esta última procurava, em suas abordagens mais
46
A teoria neoclássica tem como ponto de partida o estudo de unidades isoladas (consumidores e
firmas), cujo comportamento segue a lógica racional do homo economicus, que relaciona
racionalmente suas preferências com os preços dos bens, de modo a atingir sempre a melhor escolha
possível. A partir dessa análise atomizada, agregam-se os comportamentos individuais de
consumidores e produtores e obtém-se um resultado para a economia como um todo: o ponto de
equilíbrio do mercado, onde oferta e demanda se satisfazem uma à outra.
47
Aliás, para resolverem teoricamente as questões e chegarem àquelas conclusões, utilizam a premissa
do bom funcionamento do mercado.

71
“macro”, estabelecer também vínculos entre o desenvolvimento do capital humano
individual e o capital humano social, o conceito de empregabilidade diz respeito
unicamente ao indivíduo.

Desta maneira, o conceito de “empregabilidade” aparece como uma continuação de


um lado da interpretação proposta pela teoria do capital humano: aquele que enfatiza
o nível microeconômico e que diz respeito ao capital humano como aumento das
chances de obtenção de emprego em decorrência de um aumento do investimento em
educação realizado pelo indivíduo.

Em outras palavras, a educação deixa de ser chamada à promoção do


desenvolvimento econômico (conforme formulava a teoria do capital humano) e passa
a estar voltada ao aumento da empregabilidade, ou seja, das chances individuais de
inserção no mercado de trabalho. E, pior ainda: ao tomar o aumento da
“empregabilidade” como seu novo objetivo, a educação vai progressivamente
deixando de lado seu papel integrador. Há uma “desintegração da promessa
integradora” da escola (GENTILI, 2001). A lógica atual seria estritamente privada e
guiada pela ênfase nas capacidades e competências que cada pessoa deve adquirir no
mercado educacional para atingir uma melhor posição no mercado de trabalho.
Enfraquecida a promessa de pleno emprego, o indivíduo passa a ter de definir suas
próprias opções e escolhas que permitam conquistar uma posição mais competitiva no
mercado de trabalho. (GENTILI, ibidem, p. 81). A nova promessa da educação se
resumiria a simplesmente gerar “empregabilidade” nos indivíduos.

E, tal como o “capital humano”, “a noção de empregabilidade remete a ativos, àquilo


que o trabalhador tem a oferecer no mercado de trabalho de tal maneira a tornar-se
atraente para os empregadores”. (CARDOSO, 2003, p. 100)

Segundo a rationale desta noção de empregabilidade, isto é, analisando-a


por dentro e a partir de seus pressupostos, dizer de alguém que ele ou ela
não é empregável é dizer que não há no mundo empregadores dispostos a
dar-lhe um lugar na estrutura de produção ou distribuição de mercadorias
e serviços. Como o empregador é agente racional e seu empreendimento
uma empresa racionalmente gerenciada, não é de se esperar que crie
postos de trabalho impossíveis de ser ocupados. Se só existem postos que
podem ser ocupados, um indivíduo qualquer só não é empregável porque
outro o é, quer dizer, porque há pessoas com as habilidades requeridas
pelos postos de trabalho disponíveis (...). A empregabilidade como
conceito geral, pois, assenta-se sobre a desigualdade efetiva de
distribuição de recursos ou ativos empregáveis entre os indivíduos
trabalhadores. Ela pressupõe a desigualdade de oportunidades de acesso a
postos de trabalho já que, se todos fossem igualmente empregáveis, e não

72
haveria necessidade desse conceito, que não distinguiria coisa alguma.
(CARDOSO, 2003, p. 101)

Esse conceito contribui para aquele objetivo do neoliberalismo contemporâneo a que


se referia Foucault (2004a), isto é, o de generalizar e difundir as formas “empresa” no
interior do corpo social (FOUCAULT, 2004a, p. 154), fazendo do modelo econômico
(modelo da competição ou concorrência) uma arquitetura para as relações sociais, um
modelo de existência, de forma de relação do indivíduo com ele mesmo e dele com
seu entorno. (ibidem, p. 247)

Já no que diz respeito à dimensão simbólica da categoria “empregabilidade” que


interfere sobre a formação da auto-imagem e da visão de mundo dos trabalhadores,
Machado (2002a) ressalta:

Como categoria ideológica, a empregabilidade carrega um ideal de


mobilidade técnica representado pela proposta de substituir a
especialização por uma polivalência que torne o trabalhador apto ao
desempenho de ocupações com conteúdos diferenciados, caminhando
junto com a defesa da competitividade, da autonomia profissional e da
independência pessoal. Resumindo e simplificando, projeta-se a imagem
do “novo trabalhador” como um ser que substitui a carreira em um
emprego assalariado de longo prazo pelo desenvolvimento individual
através da venda de sua força de trabalho em uma série de ocupações
contingentes e de conteúdos diferenciados, obtidas através da
demonstração pública da disposição e competência para atividades e
condições de trabalho em constante mudança, isto é, como empresário de
si mesmo (Machado, 1998; Hirata, 1997; Spink, 1997; Frigotto, 1998;
Souza, Santana e Deluiz, 1999). Mais do que segmentada, a estrutura do
mercado torna-se individualizada; mais do que de conhecimento
fragmentado e objetivado, a mobilização do trabalho depende do
deslocamento e/ou combinação entre conteúdos, sempre contingente e
dependente das disposições subjetivas de cada trabalhador (ibidem, p. 94).

Se, por um lado, o conceito de empregabilidade pressupõe um ambiente de mercado


no qual os indivíduos possam competir por empregos, mediante os ativos de
empregabilidade que possuem, por outro, esse conceito parece ser totalmente
adaptável (e pode funcionar, inclusive, como noção chave) para o novo contexto do
mundo do trabalho, esquematizado por Boltanski (1999), no qual o padrão não é mais
o trabalho protegido nem a carreira profissional do trabalhador, mas sim sua busca
incessante por “projetos” de trabalho.

Assim, em outras palavras, empregabilidade nada mais é que “a capacidade de que as


pessoas devem ser dotadas para que possam ser chamadas nos projetos. A passagem
de um projeto a outro é a ocasião de aumentar sua empregabilidade. Esta aqui é o

73
capital pessoal que cada um deve gerar e que é constituído da soma de suas
competências mobilizáveis.” (BOLTANSKI, ibidem, p. 145).

Nesse momento, os conceitos de “flexibilidade” (se esta for aplicada ao indivíduo, no


sentido de estar “livre” de seus direitos, de seu emprego, de tudo que seja “fixo”) e de
“empregabilidade” se unem e se acoplam num sentido de adaptabilidade para o
indivíduo, moldando um novo modo de ser e de dever ser para o trabalhador.

É nesse sentido, portanto, que flexibilidade e empregabilidade se tornam os novos


imperativos, que emergem do contexto de predomínio da retórica neoliberal. Diante
dessas novas “regras do jogo”, às quais todos os membros da sociedade devem se
conformar, percebe-se, por um lado, o estabelecimento de critérios para um processo
de seleção de quem entra e quem sai do mundo do trabalho e, por outro, a emergência
de um novo tipo de individualidade, a partir daquelas novas retóricas sobre o mundo
social.

Assim, esse processo de seleção-exclusão – que, aliás, nada tem de “natural”, mas
que, ao contrário, tem sua origem na lógica do atual capitalismo e, segundo Boltanski
(1999), em grande medida, nas novas práticas de gestão das empresas e, ainda, que
tem, como horizonte, o “mercado” como metáfora da ordem social - acaba definindo
os que devem ser expulsos ou precarizados: os menos competentes, os mais frágeis,
os menos maleáveis, os menos adaptáveis, enfim, os “inempregáveis”, nos termos de
Robert Castel (2003).

A responsabilidade nesse novo darwinismo social recai justamente sobre os


indivíduos, já que, nesse processo de seleção aparentemente “natural”, as
oportunidades de emprego são criadas “justificadamente” para os mais aptos,
enquanto que, para menos competitivos, imputam-lhe a responsabilidade por terem
empregos precarizados ou, ainda, serem expulsos do processo.

Cabe aqui uma comparação com o significado que a noção de “responsabilidade”


assumiu em outros momentos. Domingues (2000), mobilizando autores como
François Ewald, lembra como a categoria responsabilidade era tratada pelo
liberalismo clássico: ela se apoiava sobre os ombros do indivíduo. Não que o
liberalismo desconhecesse a “precariedade”, a “instabilidade”, a “incerteza” como
características da vida social, mas conquistar a segurança consistia numa “exigência
da liberdade”. Por isso, a conquista da segurança é antes um dever que um direito, o

74
qual deve ser respondido mediante a “previdência”. Assim, a formulação original do
liberalismo implicava a responsabilidade absoluta e exclusiva do próprio individuo.

Domingues (2000) contrasta a noção de responsabilidade liberal com a vigente na era


dourada.

Na medida em que a equação liberal mostrou-se cada vez mais


problemática e a emergência do movimento operário pôs na ordem do dia
novas formas de solidariedade social (afinal cristalizadas na cidadania
social garantida estatalmente) a responsabilidade assumiu um novo
caráter. Agora surgia claramente a conexão entre sociedade e
responsabilidade, uma vez que nem os indivíduos eram tão livres assim,
nem se podia atribuir tanta responsabilidade (...) a ele no que tange às
agruras que eram muitas vezes obrigados a suportar na vida.
(DOMINGUES, ibidem, p. 77-78)

Assim, nesse momento, o Estado era o responsável pelo bem-estar da comunidade.


Hoje, percebe-se que os discursos do “neo”-darwinismo social buscam legitimar o
retorno da responsabilidade ao indivíduo, postulando que ele deve ser o responsável
pela sua inserção (ou não) no mundo do trabalho – que é determinada, por sua vez,
pela posse (ou não) das características exigidas pelo modelo de competição do
mercado.

Já no que diz respeito ao novo tipo de individualidade, é possível abordá-lo a partir de


duas chaves que se complementam. Ele pode ser observado tanto como resultante da
geração de uma nova imagem para o trabalhador – que se processa no próprio mundo
do trabalho - quanto como um novo padrão teórico de individualidade que emerge
daquelas retóricas e discussões já referidas.

Pode-se sugerir que emerge uma nova imagem para o trabalhador que vem sendo
construída no próprio mundo do trabalho, resultante, por exemplo, do novo modo de
justificação do capitalismo, tal como discutiu Boltanski (1999). Tendo a obrigação de,
num mundo flexível, ser maleável, adaptável e empregável, a imagem do indivíduo
vai se transformando. Assim, retomando Machado da Silva (2002a), o “novo
trabalhador” vai se tornando um “empresário de si mesmo”. Ele passa a estar
convencido de que suas conquistas – o emprego – e seus fracassos – o desemprego –
dependem exclusivamente de si mesmo. Essa nova auto-imagem do trabalhador, no
fim das contas, acaba ferindo “de morte os valores de solidariedade social tão
dificilmente institucionalizados sob a fórmula ‘trabalho livre, mas protegido’ e torna-

75
se o centro de legitimação ideológica da fragmentação social que, nesta hipótese, se
tornaria irreversível” (ibidem, p. 95).

Ao mesmo tempo, nota-se que aquelas retóricas e discussões sobre o mundo social
pressupõem um padrão teórico de individualidade que atua, por sua vez, no sentido de
reforçar essa imagem que vem sendo construída para o trabalhador. Foucault (2004a)
dizia justamente que o próprio objetivo do neoliberalismo consistia em inserir
mecanismos competitivos e concorrenciais no tecido social, de modo que a sociedade
fosse progressivamente se aproximando da idéia de “mercado”, tão cara aos
neoliberais.

Isso pode ser claramente percebido nas discussões acerca da flexibilidade, do capital
humano e da empregabilidade, uma vez que esses debates pressupõem um padrão
teórico de individualidade: o indivíduo competitivo. Sendo teórico e também
ideológico, a exaltação desse indivíduo competitivo acaba por fundamentar um “dever
ser” e, com isso, reforçar aquela nova imagem que vem sendo construída entre os
trabalhadores contemporâneos.

Esse novo tipo de individualidade do trabalhador – como “empresário de si mesmo”


ou como um indivíduo teórico “competitivo” – é de fundamental importância para
este trabalho, cujo objetivo é tentar mostrar, mais à frente, que o atual significado do
conceito de “pobreza” vem se afirmando justamente como o inverso desse modelo de
individualidade contemporânea.

76
Capítulo III – O DESLOCAMENTO INTERPRETATIVO DA
QUESTÃO SOCIAL NO CONTEXTO LATINO-AMERICANO: DA
MARGINALIDADE À POBREZA

1. A questão social e sua enunciação

O objetivo deste capítulo é apontar para um deslocamento interpretativo da “questão


social” no contexto latino-americano. Se, no contexto do desenvolvimentismo, ela era
tratada enquanto “marginalidade” – a partir de interpretações preocupadas com os
processos estruturais que a geravam -, a partir dos anos oitenta, o conceito de
marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a questão
social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a partir da
idéia da “pobreza”. Como contraponto, mostrar-se-á como a nova questão social vem
sendo debatida também no contexto francês (como “exclusão”) e norte-americano
(como underclass).

Se é verdade que a palavra “pobreza” é de uso comum e de longa data, sobretudo na


linguagem ordinária, não se pode negar, entretanto, que hoje esse termo tem assumido
um conteúdo bastante específico e ganhado notória centralidade.

A propósito, tal centralidade precisa ser enfatizada, uma vez que, como se sabe, a
“questão social” nem sempre foi enunciada a partir do conceito de “pobreza”. A
História mostra que ela já foi tratada de diversas maneiras e que sofreu mutações,
tanto no que diz respeito a seu conteúdo quanto em relação à forma de como é
enunciada. Em cada momento histórico, a questão social teve sua própria significação
social e política e, por conseguinte, se expressou de uma maneira. Nesse sentido, para
cada uma das sucessivas representações sobre o social observadas na história – suas
categorizações, os tratamentos que lhe são concedidos, dentre outros aspectos - é
possível encontrar um específico imaginário de sociedade que a fundamenta.

Embora a expressão “questão social” tenha surgido no século XIX48 com o objetivo
de ressaltar os problemas e disfunções inerentes à sociedade industrial nascente

48
Segundo Castel (2003), ela foi explicitamente problematizada como tal pela primeira vez nos anos
1830, decorrente da tomada de consciência das condições de existência das populações que foram os
agentes e as vítimas da revolução industrial. É o questionamento acerca do “pauperismo”. (CASTEL,
2003, p. 30).

77
(ROSANVALLON, 1995), ela vem sendo apropriada ultimamente por alguns autores
- por exemplo, Castel (2003) –, e assim tendo sua utilização ampliada no tempo e no
espaço: “antes desta ‘invenção do social’49 já havia social”. Para identificá-lo
historicamente e poder entender suas mutações, Castel sugere que a questão social
deva ser definida a partir do eixo da integração:

A questão social é uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade


experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua
fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma
sociedade (...) existir como um conjunto ligado por relações de
interdependência. (ibidem, p. 30).

Cada sociedade possui uma dinâmica específica de integração e a questão social é


resultante dessa lógica e determinada, segundo o autor, por seus pontos de ruptura.
Assim, segundo Castel (ibidem), embora em cada estrutura social e em cada momento
histórico específico, os conteúdos concretos da questão social sejam distintos e
específicos, é possível, por um lado, estabelecer homologias entre as questões sociais
e, por outro, comparar os processos que as produzem – os quais são também
“homólogos em sua dinâmica e diferentes em suas manifestações” (ibidem, p. 28). É
partir disso que ele ressalta a capacidade do conceito de “questão social” trazer
consigo suas próprias metamorfoses. Ou seja,

‘Metamorfoses’, dialética do mesmo e do diferente: evidenciar as


transformações históricas desse modelo, sublinhar o que suas principais
cristalizações comportam, ao mesmo tempo, de novo e de permanente,
ainda que sob formas que não as tornam imediatamente reconhecíveis.
(CASTEL, 2003, p. 27)

Essa seria uma possibilidade, portanto, de se analisar as transformações do social


enquanto “realidade” social. Entretanto, no que diz respeito à enunciação ou à
conceituação da questão social, não se pode dizer nem que elas sejam reflexo direto
da “realidade”, nem que sempre digam respeito a problematizações sobre a integração
social.

Ao contrário, a relação entre o nome e a coisa não é direta. Diversas vezes, a


enunciação evidencia muito menos os processos que produzem a questão social que as
representações e/ou discursos acerca da sociedade que são propostos pelo pensamento

49
Aqui Castel (2003) faz referência ao livro de Jacques Donzelot – L’Invention du Social -, de 1994, no
qual o autor afirma que o “social” foi inventado a partir da necessidade de tornar governável a
sociedade francesa do pós-1848.

78
político hegemônico ou, ainda, contra-hegemônico. Por exemplo, como se disse, a
“questão social” nem sempre foi expressa a partir de “pobreza”. Ao contrário, em
cada momento específico, ela é enunciada a partir de conceitos ou problemas que, em
última instância, refletem uma “batalha de classificações” (TOPALOV, 1994) entre a
manutenção do status quo e a vontade de transformação da realidade social.

Segundo Himmelfarb (1988), a linguagem e a percepção da realidade têm grande


correspondência com o esforço dos contemporâneos que conscientemente tentam
manter ou transformar a realidade e que, para tanto, deliberadamente forjam teorias e
políticas. Assim, em determinado momento, o fato uma de determinada linguagem
prevalecer - se sobrepondo às outras possíveis -, diz bastante sobre como se dá o jogo
entre hegemonia e contra-hegemonia, ou entre “ideologia” e “utopia” (MANNHEIM,
1976) ou, ainda - no caso do específico do capitalismo - entre “justificação” (“espírito
do capitalismo”) e “crítica” (BOLTANSKI, 1999).

Nesse sentido, é interessante analisar, sobretudo, os momentos de inflexão em que a


enunciação do social se transforma, a partir dos quais é possível perceber também
mudanças no entendimento sobre o mundo social.

Topalov (1994) afirma que, embora as operações de classificação se apresentem como


um enunciado verdadeiro, elas sempre dizem respeito a uma determinada ordem
cognitiva. Enunciar “os problemas, estabelecer as causalidades, classificar as
populações e prescrever soluções são momentos inseparáveis de um mesmo discurso”
(ibidem, p. 192). E, seria possível complementar: são inseparáveis também de um
mesmo modo de entender o mundo social.

É a partir dessa idéia que Topalov (1994) se propõe a analisar o “nascimento” do


“desemprego”, e destaca a importância do papel dos reformadores franceses da virada
do século XX na construção do “desemprego” enquanto categoria de descrição do
mundo - como expressão da questão social. O autor afirma que, longe de ser uma
descoberta - fruto de uma tomada de consciência de uma nova realidade -, o conceito
de “desemprego” foi “inventado”, foi um produto de uma elaboração teórica e
resultado de uma “batalha de classificações”, resultante dos sucessivos afrontamentos
entre os distintos “produtores de saber”.

Topalov (1990) argumenta que o conceito moderno de desemprego preexistiu à


realidade que ele iria prescrever:

79
Os reformadores sociais (...) procuraram e encontraram na realidade
industrial o objeto que lhes correspondia. Mas, ao mesmo tempo,
implantaram instrumentos de intervenção que procuravam modelar a
realidade a partir do conceito classificatório que haviam forjado. É nessa
dialética das mudanças industriais e das políticas sociais, da experiência
operária e da ação reformadora sobre o povo das cidades, que vai nascer
(...) o desempregado moderno. (TOPALOV, 1990, p. 384-385).

Gautié (1998) argumenta a partir desse mesmo raciocínio: “o desemprego é bem mais
do que o novo nome de uma realidade muito antiga, a falta de trabalho, que teria
adquirido dimensões particularmente importantes com a industrialização. Ele remete,
antes, a uma categoria de ação, elaborada pelos reformadores sociais, e com isso se
coloca inteiramente na perspectiva da intervenção pública.” (GAUTIÉ, ibidem, p. 74).

Antes da construção do desemprego enquanto categoria para descrever o social, é


possível distinguir nas sociedades européias, segundo Gautié (1998), duas
problematizações distintas para questão social:

A primeira, que se estende, grosso modo, do século XIV ao fim do século


XVIII, é a da pobreza nas sociedades pré-industriais. A segunda, que
domina o século XIX, é a do pauperismo associado à industrialização. Foi
para tentar responder ao desafio que este último lança à ordem social que
‘foi inventado o desemprego’ na virada do século. (GAUTIÉ, 1998, p.
69).

Assim, a questão social nas sociedades pré-industriais européias foi expressa, de


modo geral, a partir da idéia do “pobre”, que remetia ao lugar que esse personagem
ocupava na sociedade. Gautié (1998) lembra que a “ordem social organiza-se, na
época, em torno da casa senhorial e da paróquia, e tem, portanto, uma inscrição no
espaço muito forte. A integração social faz-se segundo uma dimensão vertical – a
sociedade das ordens (...) – e horizontal – a comunidade local dos paroquianos.”
(idem). Os pobres dessa época eram aqueles que não se inscreviam em nenhuma
profissão (corporações) e nem possuíam vínculos geográficos.

Himmelfarb (1988) sugere que, até o século XVI, a concepção de pobreza era
fortemente marcada por um pensamento religioso. Assim, a pobreza era vista ou como
uma benção que se buscava devotamente ou como uma desgraça que deveria ser
suportada piedosamente. Esses dois tipos de pobreza eram personificados pelas
figuras do pobre santo – que adotava a pobreza como voto sagrado (para cumprir
melhor a vontade de Deus) – e do pobre ímpio, sem religião, que tinha de tolerar a
pobreza como um fato lamentável em sua vida.

80
Nesse momento, aqueles que não eram pobres tinham o dever sagrado da caridade,
eram obrigados a manter os pobres santos e a aliviar a miséria dos pobres ímpios.
Assim, todos os aspectos da pobreza e da caridade estavam imbuídos de um espírito
religioso e a Igreja constituía um instrumento de melhoria social e de salvação
espiritual. (HIMMELFARB, 1988) E a esmola seria, por sua vez, um meio de
salvação pessoal, fazendo do rico um “funcionário de Deus”. (SASSIER apud
GAUTIÉ, op. cit.).

Embora essa concepção de pobreza não tenha perdido toda sua justificação religiosa,
ela foi paulatinamente deixando de ser pensada a partir de idealizações do pobre, ou
seja, de uma natureza enobrecedora da pobreza. A pobreza vai deixando de ser uma
virtude e passa a ser entendida como uma desgraça a ser suportada piedosamente – o
pobre deveria tolerar a pobreza como um fato lamentável em sua vida
(HIMMELFARB, 1988).

A partir do século XVI, com a progressiva secularização da concepção de pobreza,


vai emergindo uma dificuldade conceitual: a de distinguir entre os verdadeiros e os
falsos pobres. Essa distinção se traduzia na preocupação em diferenciar aqueles que
deveriam ser socorridos daqueles que não deveriam receber nenhuma ajuda, uma vez
que eram vistos como aproveitadores de seus próximos.

Desse modo, entre o século XVI e o século XVIII, passa a haver dois tipos de
“pobres”: o “bom pobre” e o “mau pobre” e, para cada um desses tipos, cria-se um
tratamento específico. A figura do “bom pobre” referia-se aos indivíduos inválidos, às
crianças e aos velhos – ou seja, àqueles que eram incapazes de trabalhar. Apenas esse
“bom pobre” era “merecedor” da assistência da caridade cristã.

O “mau pobre” era definido como o pobre válido, que podia e deveria trabalhar, mas
que preferia viver de benefícios dos outros. O “mau pobre” foi personificado na figura
do “vagabundo” 50 ou mendigo, ao qual não cabia nem a assistência nem a caridade,
mas a repressão.

50
Castel (2003) interpreta a figura do “vagabundo” em outra chave, a partir do ponto de vista da
integração social. Nesse sentido, ele entende a existência dos “vagabundos” como a primeira evidência
de uma “questão social”. Sugere com isso que, naquele momento, já estava presente a problemática
social da insuficiência de trabalho para todos. Percebe-se que, na chave sugerida por Castel, a
incapacidade de auto-sustento passa a ser interpretada não como uma simples questão do indivíduo, tal
como era pensado na época, mas como um problema da própria sociedade.

81
Assim, como lembra Topalov (1994), a essa estratégia de classificação, os teóricos da
caridade iam definindo também planos de ação, que associavam aos “bons pobres”
um princípio caritativo (assistência aos inválidos, doentes e impotentes) e, aos “maus
pobres”, um princípio repressivo (proibição da mendicância, a expulsão dos
vagabundos, obrigação de trabalhar). É dessa maneira, portanto, que o tratamento da
questão social relacionava-se com ações que oscilavam entre a assistência (ou
caridade) e a repressão ou, ainda, entre a “força” e a “piedade”, tal como sugere a
discussão de Bronislaw Geremek, em La Potence ou la Pitié (GEREMEK, 1987).

Já no século XIX, a despeito do progresso e da riqueza decorrentes da


industrialização, a questão social não desapareceu - como esperavam os mais
otimistas -, mas se agravou consideravelmente. Nessa época, existia um sentimento de
se estar diante de um fenômeno social novo, o qual não podia mais ser visto em
termos de “pobres” (enquanto indivíduos), mas sim como algo que era conseqüência
direta do desenvolvimento do novo sistema econômico. Essa nova problemática
começa a ser enunciada como “pauperismo”. Assim, não é de se estranhar que, no
início da industrialização, a expressão “classes dangereuses” (classes perigosas) – que
originalmente se referia, na França, aos vagabundos, criminosos e marginais – começa
a se estender aos trabalhadores como um todo: “classes labourieuses, classes
dangereuses” (CHEVALIER apud SCHWARTZMAN, 2004, p. 87).

Percebe-se, portanto, que o problema social não dizia respeito apenas àqueles que não
tinham trabalho, mas, ao contrário, era um problema vivido também por aqueles que
trabalhavam e, portanto, muito mais amplo que a questão anterior. A novidade do
sistema capitalista consistia em que mesmo aqueles que trabalhavam (e que eram,
portanto, “integrados”) viviam numa condição de miséria: “A era industrial começa: o
pauperismo nasceu”, resumia Émile Laurent (apud HATZFELD, 1971). A mesma
idéia é percebida numa citação inglesa lembrada por Hatzfeld (1971): “Uma
manufatura é uma invenção para fabricar dois artigos: algodão e pobres.” (ibidem, p.
9). Assim, o problema deixa de ser visto como uma desgraça providencial e/ou como
um vício individual e vai passando a ser entendido como fruto da nova dinâmica da
sociedade.

Nesse mesmo período, a questão social decorrente da industrialização, além de ser


entendida como “pauperismo”, foi também enunciada em outros termos. Por exemplo,
com Engels (1845), em seu livro “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”.

82
Segundo Himmelfarb (1988), a inovação de Engels foi ter se referido à miséria
decorrente da sociedade industrial inglesa através da noção de “proletariado”.

Nesse tratamento, percebe-se, por um lado, uma ênfase na novidade de sua condição:
embora sempre tenha existido “gente pobre e classes trabalhadoras, (...) estes pobres,
estes trabalhadores que estão vivendo nas condições indicadas [anteriormente] (...),
por conseguinte proletários, não existiram sempre” (Engels apud HIMMELFARB, p.
332). A especificidade é clara na seguinte passagem: “A história do proletariado na
Inglaterra começa na segunda metade do século passado [século XVIII] com a
invenção da máquina a vapor e das máquinas destinadas a trabalhar o algodão”
(ENGELS, 1975, p. 15).

Mas, por outro lado, nota-se, em Engels (idem) um tratamento do “proletário” não
apenas como uma simples mazela social decorrente da industrialização – para tanto, o
termo “pauperismo” lhe serviria. Ele entende o proletário também como um ator
social e político. Afinal de contas, “o proletariado não é só uma classe que sofre; de
fato, esta situação vergonhosa do proletariado o impulsiona (...) e o faz lutar por sua
emancipação política”. (Engels apud HIMMELFARB, p. 331). E, ainda, nas palavras
de Engels:

A questão fundamental é a seguinte: que vai acontecer a esses milhões de


seres, que não possuindo nada, consomem hoje o que ontem ganharam,
cujas descobertas e trabalho fizeram a grandeza da Inglaterra, que se
tornam dia após dia mais conscientes da sua força e exigem mais
imperiosamente a sua parcela nas vantagens da sociedade? (...) é também
tudo isto que explica a profunda cólera de toda a classe operária (...)
contra os ricos que a exploram sistematicamente e em seguida a
abandonam sem piedade, cólera que em bem pouco tempo (...) explodirá
numa revolução tal, que a seu lado a primeira revolução francesa e o ano
de 1794 serão, por certo, uma história de crianças. (ENGELS, op. cit., p.
34-36)

Outro modo de enunciação alternativa para o “pauperismo” que, na época, se


aproximou muito da idéia de “proletariado” foi a utilização da “linguagem de classe”,
destacada por Asa Briggs (apud HIMMELFARB, p. 352), cuja utilização foi se
tornando, a partir do século XIX, cada vez mais freqüente para definir e descrever os
que antes eram chamados de pobres. Essas duas noções - operariado e classe - se
aproximam, sobretudo, quando a idéia de “classe” entende o pobre enquanto ator. O
exemplo mais óbvio dessa aproximação se encontra em Marx (em, por exemplo,

83
“Manifesto do Partido Comunista”, de 1848) (MARX e ENGELS, 1998) e no
marxismo.

Asa Briggs ressalta a importância dessa “linguagem de classe” e sugere que ela tenha
representado “uma mudança básica não apenas na maneira como os homens viam a
sociedade, mas [também uma mudança] na própria sociedade” (idem). Ou seja, na
medida em que a percepção social muda, criam-se novas possibilidades para o futuro
da sociedade. Não é à toa, portanto, que a enunciação do social tanto como
“proletariado” quanto como “classe” foi tão fundamental para o rumo da história do
século XX – seja do ponto de vista da construção de regimes comunistas, seja do
ponto de vista da organização política dos trabalhadores, sobretudo em torno dos
sindicatos.

Em outra chave, paralelamente à história do conceito de “proletariado” e de “classe”,


o social passa a ser pensado também, a partir do final do século XIX, enquanto
“desemprego” (TOPALOV, 1994). Mas essa “nova” categoria de representação do
social só se tornou plenamente operatória (no sentido de ser mobilizada pelas políticas
públicas) no contexto dos anos trinta do século XX (GAUTIÉ, 1998, p. 74), momento
marcado pela possibilidade do pleno emprego criada pela construção do Estado
interventor (com suas políticas keynesianas).

Assim, de modo geral, é possível perceber algumas variações do modo pelo qual a
questão social foi tratada ao longo da história. É evidente que, neste trabalho, não se
tem o objetivo (nem a pretensão) de esgotar essa temática. Mas, trazendo a discussão
para a especificidade do contexto latino-americano, nota-se que aqui também a
questão social nem sempre foi enunciada a partir simplesmente da idéia de “pobreza”.
Ou melhor, embora a idéia de pobreza tenha sempre existido – de fato, ela faz parte da
linguagem da vida cotidiana -, em certos momentos, outros conceitos foram mais
importantes que o de pobreza, quando o objetivo era explicar a questão social.

Neste capítulo, procura-se apontar para um deslocamento do tratamento da questão


social no contexto da América Latina: passando do tema da “marginalidade” para uma
abordagem bem específica da “pobreza”. É importante destacar que não se nega aqui
que, na América Latina, muitos outros conceitos (como os de desemprego, de
cidadania, etc.) tenham tido seu papel. A preocupação central consiste, contudo, em

84
apontar para a especificidade da região no que se refere à enunciação da questão
social e, sobretudo, para o seu deslocamento.

2. Da marginalidade

No contexto latino-americano, ao longo dos anos sessenta e setenta, o conceito de


“marginalidade” ganhou extraordinária importância e foi amplamente utilizado no que
diz respeito ao tratamento do “social”. Sua ampla utilização pode ser percebida nas
teorias que procuraram entender as causas da questão social, associando-as às
especificidades da região.

De maneira bastante resumida, pode-se dizer que as interpretações sobre o tema da


“marginalidade” se apresentaram, na América Latina, através de dois grandes eixos.
Por um lado, a partir da chamada “teoria da modernização” - e seus desdobramentos
enquanto “teoria da marginalidade”51 - e, por outro, a partir de teorias explicativas da
“marginalidade” com o enfoque marxista (MACHADO, 1983).

Desenvolvida no auge do período desenvolvimentista, a teoria da modernização


procurou interpretar a questão social nos países periféricos a partir dos fundamentos
do funcionalismo. O funcionalismo pressupunha a noção de “sistema social” e
considerava a existência de uma harmonia entre as variadas partes que constituem a
sociedade. Assim, “os diversos subsistemas interpenetram-se e a mudança num
elemento deve, por hipótese, acarretar transformações em outros, provocando uma
seqüência de ajustamentos recíprocos que mantém o todo social integrado. (...) impera
a idéia de que as estruturas sociais possuem funções e que estas servem para manter o
conjunto da sociedade de modo relativamente ordenado” (PARSONS apud
KOWARICK, 1975, p. 44).

Assim, a teoria da modernização, influenciada pelo funcionalismo, diagnosticava a


“marginalidade” como um problema de desajuste do sistema que se encontrava em
transformação (o processo de urbanização e de industrialização latino-americano).

51
Machado da Silva (1983) sustenta que as várias vertentes da chamada « teoria da marginalidade »
não representaram de fato a adesão a um marco teórico novo – isto é, alternativo à teoria da
modernização. Ao contrário, aplicaram o mesmo esquema analítico utilizado por esta teoria –
sobretudo, o modelo de sociedade dual do funcionalismo -, só que enfatizando as questões mais
problemáticas do desenvolvimento na América Latina.

85
Kowarick (1975) lembra que o processo de modernização pressuposto pela teoria da
modernização implicava:

desarticulações e rupturas, na medida em que desorganiza o quadro social


preexistente e que a ‘nova’ situação estrutural não é atingida
simultaneamente por todas as partes da sociedade. (...) Em outros termos,
o desenvolvimento gera desequilíbrios, tanto sociais quanto econômicos,
que são equacionados pela teoria da modernização em termos de padrões
polares. (KOWARICK, 1975, p. 47)

Assim, a nova situação - decorrente daquelas grandes mudanças ocorridas na América


Latina a partir dos anos cinqüenta - era retratada a partir de um dualismo marcado
pela coexistência de um setor tradicional (atraso/ campo) e um setor moderno
(avanço/ cidade).

Domingues e Maneiro (2004) ressaltam que Gino Germani entendia a estrutura social
- mundo “sociocultural” – a partir da idéia de interdependência, salientando que
modificações em alguma das partes da sociedade afetam, embora não de forma
imediata, as outras partes da sociedade e a estrutura social em geral. O processo de
modernização gerava, portanto, assincronias que se expressavam por aquele dualismo
social.

A “marginalidade” constituiria, segundo Germani (1973), “uma das perspectivas


desde as quais se pode encarar o tema da modernização, dos aspectos sociais e
humanos do desenvolvimento e a problemática gerada pelos contrastantes modelos de
processos e sociedades que se propõem como resposta ou solução aos problemas do
mundo contemporâneo, tanto em suas áreas ‘centrais’ como, sobretudo, nas
‘periféricas’” (GERMANI, tradução livre, 1973, p. 34). A idéia de marginalidade se
relacionaria, portanto, diretamente com a noção de modernização,

incluindo desenvolvimento econômico, modernização social e política


tanto no plano estrutural como no psico-social (...). O fato fundamental
que gera marginalidade e sua percepção como problema é o caráter
assincrônico ou desigual do processo de transição. (...) Estas assincronias
geram a coexistência de instituições, valores, atitudes, modelos de
comportamento, estruturas parciais, grupos ou categorias sociais, regiões
no interior de um país, que no mesmo lapso alcançam diferentes graus de
modernização e desenvolvimento. (ibidem, p. 42).

E continua:

Desde este ponto de vista se tornam marginais os grupos, categorias


sociais e áreas geográficas (...) que se encontram em tal situação de atraso,
exclusão ou deterioração crescente (seja como efeito direto ou como

86
causa, ou bem como conseqüência indireta, do desenvolvimento de outras
áreas). (ibidem, p. 44)

Assim, “a marginalidade é vista a partir de uma dualidade estrutural que opõe dois
termos ao longo de um contínuo em que um pólo, o marginal, é definido pela
ausência de um conjunto de características existentes no pólo inverso, o integrado.”
(KOWARICK, 1983, p. 48). E a idéia dessa figura do “integrado” é construída a partir
de uma concepção de cultura urbana. Assim, “os centros urbanos passam a constituir
um ambiente social peculiar, marcado por um modo específico de existência. (...) [O]
fenômeno da urbanização supõe uma maneira de viver” (ibidem, p. 50).

Segundo Machado (1983), a teoria da modernização “afirmava a tendência de


passagem do ‘tradicional’ ao ‘moderno’ (...) pela via do aprofundamento da
racionalidade econômica. Mencionavam-se seguidamente as ‘resistências à mudança’,
que não representariam mais que obstáculos culturais impostos por bolsões de valores
tradicionais que era mister transformar. A oposição campo (tradicional) x cidade
(moderno) era ao mesmo tempo o rebatimento espacial da teoria da modernização e
seu símbolo mais recorrente.” (ibidem, p. 219).

“O implícito, do ponto de vista da lógica do modelo, é que o setor não-participante da


população venha a se integrar” (KOWARICK, op. cit, p. 53). E, nesse sentido, a
existência da marginalidade é entendida, pela teoria da modernização, como um
fenômeno transitório que, por um lado, evidenciava a persistência do tradicional no
processo de desenvolvimento do moderno e, por outro, poderia ser resolvido pela
assimilação dos “desajustes”, pelo próprio processo de modernização. Essa teoria teve
seu auge justamente no período de maior euforia do desenvolvimentismo latino-
americano.

Quando o desenvolvimentismo começa a mostrar limitações e a ser questionado,


surgem teorias voltadas para a questão da “marginalidade” propriamente dita,
marcadas pelo pessimismo que se consolidava frente a questão do desenvolvimento
na região. Contudo, embora essas “teorias da marginalidade” se mostrassem como o
reverso da teoria da modernização, se voltando para as questões problemáticas do
desenvolvimento - os “pontos de estrangulamento” -, elas não deixaram de lado,
segundo Machado (1983), o esquema analítico proposto pela teoria da modernização.

87
Como exemplo dessas “novas” teorias estavam: a noção de “cultura da pobreza”52, as
abordagens culturalistas que enfatizavam comportamentos e a “incapacidade” dos
indivíduos em absorver plenamente os padrões culturais da parte moderna da
sociedade e a “teoria da participação” defendida pelo DESAL53 (Centro para el
Desarrollo Econômico y Social de América Latina) – uma discussão que, segundo
Machado (1983, p. 222), “não extravasou o âmbito da perspectiva funcionalista, em
cuja base estava a concepção de uma sociedade dual”.

Machado aponta Anibal Quijano (1966) como o primeiro a criticar a abordagem


dualista representada pela teoria da modernização. Este autor faz um balanço crítico
sobre as diferentes definições e utilizações do conceito de marginalidade e afirma que
“se se comparam as definições propostas, pode-se notar que, deixando de lado os
aspectos específicos em que cada uma delas põe particular ênfase, todas apontam
fundamentalmente a um problema único: a falta de integração em.” (QUIJANO,
1966, p. 27). E, assim, ele se propõe a distinguir “dois níveis de integração social: a
integração no sistema e a integração do sistema, chamando a atenção para a segunda.
Na medida em que o sistema social como um todo estava fracamente integrado (...)
esta situação afetava a própria inserção no sistema de crescentes segmentos
populacionais” (MACHADO, 1983, p. 223).

Segundo Machado (1983), o abandono do arcabouço teórico da “teoria da


modernização” começa a ser percebido com o surgimento de trabalhos sobre a
marginalidade a partir da teoria marxista, no início dos anos setenta.

Jose Nun (1978) explicita inclinação marxista ao expor a proposta de seu trabalho:
“situar teoricamente o tema da marginalidade no nível das relações de produção, com
especial referência ao caso dos países capitalistas da América Latina” (NUN, 1978, p.
75). Seu objetivo específico é “estruturar a noção de massa marginal a partir de uma
crítica à identificação corrente entre as categorias de superpopulação relativa e de
exército industrial de reserva, assinalando as vantagens que derivam destas precisões

52
Conceito elaborado por Oscar Lewis (apud KOWARICK, 1975). A “cultura da pobreza” seria
marcada por “uma falta de participação e integração efetiva dos pobres nas instituições sociais mais
abrangente da sociedade inclusiva” (LEWIS apud KOWARICK, ibidem, p. 34) e representaria um
mundo à parte – uma subcultura. E “no âmbito do indivíduo os principais traços são um forte
sentimento de marginalidade, de desamparo, de dependência e inferioridade.” (idem). Assim, segundo
Kowarick, na noção de “cultura da pobreza”, está presente uma idéia de “marginalidade enquanto
essência”, uma ontologia própria da pobreza que se diferenciava do resto da sociedade.
53
O DESAL entendia a marginalidade como ausência de participação política.

88
teóricas.” (idem). O autor considera fundamental diferenciar esses dois conceitos da
teoria marxista que geralmente são vistos como sinônimos.

Resumidamente, como uma primeira diferenciação, Nun afirma que os dois conceitos
se situam em diferentes níveis de generalidade. Enquanto o exército industrial de
reserva corresponderia à teoria particular do modo de produção capitalista, o conceito
de superpopulação relativa pertenceria à teoria geral do materialismo histórico e
poderia ser usado para qualquer modo de produção. Assim, cada modo de produção
específico teria “suas próprias leis de crescimento da população e da superpopulação”
e determinaria os efeitos ou conseqüências que a existência da população excedente
vai provocar no sistema. Para avaliar e detectar as conseqüências ou os efeitos
produzidos pela superpopulação no sistema, Nun (op. cit) propõe a utilização da idéia
de função: “dados um elemento x e y, a relação entre ambos pode ser funcional,
disfuncional ou afuncional” (ibidem, p. 80).

A relação seria funcional quando a sobrepopulação serve ao sistema, quando ela tem
alguma função no desenvolvimento ou manutenção do mesmo. Seria disfuncional
quando a sobrepopulação é prejudicial ao sistema e a resposta deste último consiste
em eliminar o excedente de população - por exemplo, os povos primitivos em sua fase
coletora-caçadora. E, por fim, seria afuncional quando a sobrepopulação é supérflua e
indiferente ao sistema – por exemplo: os vagabundos medievais. O autor destaca que
o afuncional às vezes pode virar disfuncional, por exemplo, quando a consciência
política da sobrepopulação começa a questionar a dominação vigente.

Nun (1978) ressalta, portanto, a necessidade de se questionar qual a funcionalidade,


em cada modo de produção, do excedente da população. Assim, o autor afirma que é
importante perceber que nem toda sobrepopulação observada no modo de produção
capitalista pode ser classificada como exército industrial de reserva, já que este
implica especificamente uma relação funcional com o sistema capitalista em seu
conjunto. Assim, embora seja uma população excedente, o exército industrial de
reserva tem uma função ao sistema, ele é “uma alavanca da acumulação capitalista, e
mesmo condição de existência do modo de produção capitalista.” (MARX, 1987, p.
733).

Essa “função” é desempenhada, segundo Marx (1987), a partir de dois eixos: por um
lado, “grandes massas humanas têm de estar disponíveis para serem lançadas nos

89
pontos decisivos, sem prejudicar a escala de produção nos outros ramos. A
superpopulação fornece-as.” (ibidem, p. 734). Ou seja, esse “exército” deveria estar
disponível para quando o sistema demandasse mais mão-de-obra para a produção.
Por outro, a existência desse “exército” serve para controlar o patamar dos salários
daqueles que estão “na ativa”. Ou seja, regular os salários, não deixando que uma
eventual escassez de mão de obra faça com que os salários aumentem: “Em seu
conjunto, os movimentos gerais dos salários se regulam exclusivamente pela
expansão e contração do exército industrial de reserva, correspondentes às mudanças
periódicas do ciclo industrial.” (ibidem, p. 739)

Para Nun (1978), nem toda população excedente cumpre, na fase monopolista do
capitalismo latino-americano, essas funções de “exército industrial de reserva”. “O
cerne do pensamento [de Nun] orienta-se no sentido de afirmar que, à diferença do
capitalismo competitivo, na fase monopolista a relação entre superpopulação e
processo de acumulação tende a não ser mais ‘funcional’, isto é, a não se configurar
enquanto um exército industrial de reserva. Isto significa que parcelas da população
excedente tornam-se ‘afuncionais’ ou ‘disfuncionais’ para o processo produtivo”
(KOWARICK, 1975, p. 110).

Assim, para Nun, no contexto do capitalismo monopolista, passaria a ser fundamental


a utilização de um novo conceito para essa parte afuncional ou disfuncional da
superpopulação. Esse novo conceito seria o de “massa marginal”, uma massa que não
tem esperança alguma de voltar a estar ocupada e que “está destinada a ser engrossada
com uma afluência constante de desocupados adicionais.” (TROTSKY apud NUN,
op. cit., p. 100).

Esse novo conceito implicaria “uma dupla referência ao sistema que, por um lado,
gera este excedente e, por outro, não precisa dele para continuar funcionando” (NUN,
op. cit., p. 100). Nun esclarece que o conceito de massa marginal “se trata de uma
distinção puramente analítica e que essas ‘partes’ só estão separadas no plano
conceitual. Sem prejuízo de que estudos concretos possam determinar quem tem uma
probabilidade maior ou menos de achar emprego (...) aqui se categorizam as relações
entre população excedente e o sistema, e não os agentes ou suportes mesmos dessas
relações.” (idem).

90
Mas o que deve ser enfatizado é que, para Nun, o fenômeno da massa marginal é
decorrente do surgimento do capital monopolista, já que grandes parcelas da
população vão perdendo suas funções que desempenhavam na época do capitalismo
do século XIX – “seu papel de redutor de salários, bem como deixam de servir ao
sistema nos momentos de sua expansão” (KOWARICK, op. cit., p. 111).

Quijano (1978) se aproxima da interpretação de Nun (1978), ao entender e


argumentar que a “população marginal” não poderia ser explicada a partir do conceito
de “exército industrial de reserva”, já que não desempenhava suas funções e
representava uma massa de força de trabalho para além das necessidades do sistema
capitalista.

Já Kowarick (1975), por sua vez, também adota uma abordagem marxista para a
questão da marginalidade, mas diverge de Nun (1978) e de Quijano (1978) a partir do
questionamento da idéia de “massa marginal” ou “população marginal”, afirmando
que o fato de a população excedente aumentar, no contexto do capitalismo
monopolista, não significa que ela não tenha “funções” para o capital.

Resumidamente, o autor afirma que, embora a relação entre acumulação e exército de


reserva não seja mecânica e direta, “[t]udo leva a crer que os ‘grupos marginais’, não
obstante as transformações ocorridas no processo de acumulação, continuam
desempenhando o ‘papel’ de exército industrial de reserva e que este ‘papel’ é
decorrente do movimento contraditório, básico e necessário que opõe o trabalho ao
capital.” (ibidem, p. 123).

Assim, Kowarick (1975)54 se contrapõe a Nun (1978), afirmando a condição da


população marginal enquanto “exército de reserva” e ao entendê-la, portanto, como
um elemento fundamental para o processo de acumulação capitalista. O autor indaga,
inclusive, se o conceito “grupos marginais” é realmente adequado:

O conceito pode ser usado na medida em que defina um segmento de


classe trabalhadora que se distingue do assalariado a partir de um modo

54
Kowarick (1975, p. 168) fundamenta sua análise da marginalidade no trabalho de Francisco de
Oliveira (2003), “Crítica da Razão Dualista”, de 1972, para quem a persistência de culturas de
subsistência na economia latino-americana não deveria ser interpretada como vestígios do passado, mas
ao contrário, como sendo funcionais ao sistema capitalista que se desenvolvia. Essa funcionalidade
existia já que aquelas atividades contribuíam: (i) para a redução do custo de reprodução da força de
trabalho nas cidades e, portanto, para o processo de acumulação e (ii) para financiar a acumulação
urbana, já que aquelas culturas de subsistência produziam um excedente que não podia ser reinvestido
em si mesmo. (OLIVEIRA, 2003, p. 129). É nesse sentido, portanto, que Oliveira criticou a
interpretação dualista, propondo que o sistema capitalista brasileiro fosse analisado como um todo.

91
peculiar de inserção nas estruturas produtivas, não-tipicamente capitalista,
mas também não é destituído de importância no processo de acumulação.
Para compreender o seu significado, é necessário analisá-lo à luz da teoria
das classes sociais que implica numa contradição básica e necessária entre
o capital e o trabalho (KOWARICK, op. cit, p. 173).

Dessa maneira, Kowarick (1975) rejeita tanto o dualismo da teoria da modernização


quanto essa interpretação de Nun (1978) da marginalidade. Essa dupla negação pode
ser percebida na seguinte passagem:

As massas populares presentes no mundo urbano bipartem-se em dois


grandes segmentos. Um que consegue se inserir nas estruturas tipicamente
capitalistas de produção. Outro que não é por elas absorvido. Mas é bom
que se repita: tal colocação não implica na adoção da imagem de uma
sociedade formada por duas estruturas, uma “moderna”, outra
“tradicional”, que respondem a dinâmicas de acumulação distintas e
opostas. Ao contrário, se nossa análise acerca da ‘teoria da marginalidade’
é correta, parece falacioso, aceitar a polaridade que retoma a dicotomia
entre o campo e a cidade, transferindo-a para o contexto urbano, onde
setores ‘arcaicos’ por oposição aos ‘dinâmicos’, são vistos como
disfuncionais para expansão do sistema. Os grupos marginais não podem
ser percebidos como integrantes de uma estrutura à parte, desvinculada do
processo de acumulação imperante na sociedade. O inverso é o
verdadeiro, ou seja, que eles preenchem papéis de relativa importância no
processo de acumulação capitalista. (KOWARICK, op. cit, p. 145)

Mas, a despeito das divergências existentes entre esses autores, o que importa é
perceber que, de modo geral, a marginalidade é, para os marxistas, interpretada e
explicada a partir das relações sociais existentes no modo de produção capitalista; a
partir dessas relações, os autores explicam como a marginalidade é gerada, qual seu
lugar ou, ainda, qual sua função para o sistema capitalista.

Fazendo uma avaliação geral sobre as interpretações para a questão da


“marginalidade”, percebe-se que, seja do ponto de vista das perspectivas sobre a
marginalidade que seguem o modelo dual da teoria da modernização, seja pelo
enfoque marxista, é evidente que a questão social, quando tratada a partir de
“marginalidade”, mobilizava uma preocupação com os processos sociais que a
geravam, ao invés de abordá-la simplesmente a partir de seus sintomas - como é o
caso do tratamento contemporâneo a partir da “pobreza”.

Machado (1983) sugere que a noção de marginalidade, a despeito de seus limites,


levantava algumas questões importantes: “Por exemplo, como se dá a articulação dos
diferentes processos responsáveis pelas diferenciações sociais borradas pela teoria da

92
marginalidade, articulação esta que produz identidade ao menos ao nível da aparência
do fenômeno percebido?” (ibidem, p. 227)

E, de modo geral, a discussão sobre a marginalidade era uma manifestação teórica que
trazia consigo uma crítica social. Segundo Fassin (1996), o uso da noção de
marginalidade não se resumia simplesmente a uma enunciação da questão social, mas
participava de sua denúncia. A “marginalidade (...) [era] um sinal do fracasso do
projeto modernista.” (ibidem, p. 268)

Era clara, portanto, a influência do contexto do desenvolvimentismo latino-americano


nas reflexões sobre a questão social. Do lado da teoria dualista, havia uma visão mais
otimista - da teoria da modernização de Gino Germani (1973), por exemplo - sobre o
futuro das sociedades periféricas, baseada na esperança em relação ao
desenvolvimentismo, entendendo a marginalidade como um fenômeno transitório, a
ser “resolvido” no futuro. E vertente uma mais pessimista (a “teoria da
marginalidade”) que a entendia como resultado da maneira pela qual o
desenvolvimento se deu na região.

De outro lado, estava a teoria marxista que era mais crítica e pessimista, uma vez que
entendia a marginalidade como um problema gerado pelo próprio funcionamento do
capitalismo na região. Ou seja, o problema estava no próprio sistema - era preciso
reconhecê-lo. Mas, ao mesmo tempo em que era uma visão pessimista em relação ao
sistema, abria espaço para um certo otimismo em relação ao futuro, através da idéia
do conflito revolucionário, decorrente do agravamento e acentuação das contradições
sociais do sistema capitalista na região.

De modo geral, pode-se dizer que a idéia da “marginalidade” pertencia ao debate


acadêmico. Constituía um conceito “analítico” (WACQUANT, 2001) utilizado pela
pesquisa social como uma maneira de tentar compreender e explicar a questão social
das sociedades periféricas.

Já no âmbito da política pública, conduzida pela concepção desenvolvimentista, havia


a crença de que o desenvolvimento social seria produto natural do crescimento
econômico (a famosa “teoria do bolo”); a “marginalidade”, portanto, não era uma
questão. Na realidade do jogo político, aliás, era a figura do trabalhador o principal
personagem das camadas populares.

93
De fato, a figura do trabalhador (ou da “classe trabalhadora”) foi, desde princípios do
século XX – ou um pouco mais tarde, dependendo do país -, tradicionalmente um ator
chave nessas sociedades capitalistas que se modernizavam. Segundo Merklen (2005),
os “setores populares se integravam à sociedade através da Nação, adotando a
identidade de um povo trabalhador.” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 120)

Se, nesse contexto, a questão social se expressou e foi entendida a partir da noção de
“marginalidade” - relacionada com interpretações preocupadas com os processos
estruturais que a geravam -, mostrar-se-á posteriormente que, a partir dos anos oitenta,
o conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a
questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, na região, a
partir da idéia da “pobreza”.

3. A enunciação contemporânea da questão social

3.1. Algumas considerações sobre a “nova questão social”

Se, ao longo da “era dourada”, a questão social nos países centrais esteve
minimizada55, seja pela realidade da social-democracia – políticas de pleno emprego
associadas ao Estado de Bem Estar Social, no caso dos países da Europa Ocidental56 –
seja “via os efeitos ‘conta-gotas’ do crescimento sustentado do mercado livre nos
Estados Unidos”57 (WACQUANT, 2001, p. 22), na América Latina, durante esse
período, como já se viu, a questão social foi apresentada e discutida a partir da noção
de “marginalidade”.

55
Como entende a “questão social” do ponto de vista da integração, Castel (2003) sugere que, em
certos momentos, ela não está presente em algumas sociedades. Por exemplo, a sociedade até pode ter
muitos pobres, mas se isso não representar uma ameaça à coesão da sociedade como um todo, a
“questão social” não se coloca enquanto tal. Era o caso, por exemplo, da “sociedade salarial” – a
sociedade do welfare state francês.
56
Wacquant (2001) lembra que nesse período, na França, havia uma imagem rósea da “Nova
Sociedade” e afirma, citando Sinfield (apud Wacquant, p. 23), que “no decorrer dos anos 1970 não
houve ‘debate sobre a pobreza na França’, nem mobilização política em torno da questão, nem política
oficial para combatê-la.” A questão social era entendida como resíduo de desigualdades ou como
atrasos passados que poderiam ser resolvidos com as políticas do welfare state.
57
Nos Estados Unidos, a questão social era vista como produto de deficiências individuais, mas se
acreditava que esse problema tendia a retroceder e, inclusive, a desaparecer com a modernização da
nação. (WACQUANT, 2001).

94
Em decorrência daquelas profundas transformações discutidas rapidamente no
primeiro capítulo – reestruturação produtiva, financeirização da economia,
transformação do papel do Estado -, a partir dos anos oitenta, a questão social é
agravada em todas as partes do mundo. Se, para os países centrais, há o surgimento de
uma “nova questão social” (ROSANVALLON, 1995), há, no mundo periférico, seu
aprofundamento e expansão.

Essa novidade, reaparecimento, ou mesmo aprofundamento da “questão social”


decorre daquelas profundas transformações, que geraram não simplesmente uma

retração do crescimento nem mesmo o fim do quase-pleno-emprego, a


menos que se veja aí a manifestação de uma transformação do papel de
‘grande integrador’ desempenhado pelo trabalho. (...) a característica mais
perturbadora da situação atual é (...) o reaparecimento de um perfil de
‘trabalhadores sem trabalho’ que Hannah Arendt evocava, os quais,
literalmente, ocupam na sociedade um lugar de supranumerários.
(CASTEL, 2003, p. 496).

Essa novidade da questão social foi comparada, por alguns autores, com a emergência
da questão do “pauperismo” decorrente das mutações que marcaram a sociedade da
nascente revolução industrial. Segundo Paugam (1996, p. 8), cada período de grandes
transformações é marcado pelo nascimento e a difusão de um novo paradigma social.
A revolução industrial e suas conseqüências sobre o social provocaram indignação e
novas indagações nos observadores da época: o “pauperismo” caracterizava a entrada
na sociedade industrial.

Assim, as novas transformações pelas quais passaram as sociedades nos últimos trinta
anos, influenciaram também os modos pelos quais as sociedades se pensam, se
representam, formulam e enunciam os problemas a serem resolvidos. Desta maneira,
com o enfraquecimento do consenso em torno das políticas de bem-estar e de pleno
emprego, a fratura do modelo de sociedade - “a sociedade salarial”, nos termos de
Castel (2003) - da social-democracia e a ascensão do neoliberalismo – e de suas
tentativas em desvalorizar politicamente os problemas relacionados às políticas de
welfare -, a própria auto-imagem das sociedades começa a ser abalada e, com isso,
surgem mudanças no modo pelo qual a questão social é formulada.

Diante da magnitude do novo problema (desemprego estrutural, “desestabilização dos


estáveis”, precarização do trabalho, etc.), o eixo do debate político e acadêmico sobre
o social se transforma. Nos países centrais, o debate deixa de ser sobre a desigualdade

95
social ou sobre uma pobreza residual - como era tratado nos prósperos anos dourados
- e se desloca, passando a receber novos tratamentos.

Mas é claro que o social não vem sendo tratado do mesmo modo urbi et orbi. Ao
contrário, em cada lugar, a questão social vem sendo debatida à sua maneira, uma vez
que existe uma variedade na maneira de conceber o mundo social – o que reflete
realidades sociológicas diferentes e, ainda, tradições intelectuais e políticas distintas
(FASSIN, 1996).

Embora o foco deste trabalho seja o atual tratamento dedicado à questão social na
América Latina, abordar-se-á sucintamente o modo como vem se desenvolvendo o
debate em outros contextos. Tomar-se-ão aqui, como exemplos, o enfoque dado à
nova questão social nos Estados Unidos, que parte da idéia de underclass, e o debate
na França, onde ele gira em torno da noção de exclusão. Finalmente, será tratada com
maior atenção a enunciação do social na América Latina, onde vem ganhando
centralidade uma idéia específica de “pobreza”.

É importante ressaltar que o fato de aqui ser apontada apenas uma abordagem para a
questão social (underclass, exclusão ou pobreza) para cada uma dessas realidades
(Estados Unidos, França e América Latina, respectivamente) não significa que sejam
os únicos modos usados para abordá-la, mas apenas que são os mais utilizados em
cada contexto.

3.2. Os Estados Unidos e o debate sobre a underclass

Nos trinta anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, a questão social não
representava um grande problema para a sociedade americana. A despeito de ela
sempre ter existido nos Estados Unidos, havia a idéia de que a pobreza existente era
algo residual. O discurso público dominante era o de que a pobreza não tinha um
lugar no imaginário social daquele momento (CASTEL, 1978).

É significativo que nessa época o livro “A Sociedade da Abundância” (The Affluent


Society), de 1958, de John K. Galbraith (apud TRATTNER, 1974) tenha se tornado
um “best-seller”. Galbraith sugeria nesse livro que “a civilização americana tinha
essencialmente resolvido os problemas de escassez e pobreza da era dourada. Ele não

96
disse que não havia absolutamente nenhuma pobreza, (...) [mas a definiu] como um
problema minoritário.” (TRATTNER, op. cit, p. 251) Problema este que seria logo
resolvido, através daquela própria “abundância”. Era simplesmente uma questão de
tempo... O presidente Lyndon Johnson calculava, por exemplo, que – antecipando os
resultados de sua “Guerra à Pobreza”, lançada em 1964 - os Estados Unidos a
eliminariam por volta de 1976 (WACQUANT, 2001, p. 22).

Mas Castel (1978) reparou que não se tratava de uma negação da existência da
miséria, por parte do discurso dominante que exaltava a “sociedade da opulência”. O
fato era que não a entendia enquanto social, ou seja, ela não tinha um “estatuto” na
sociedade americana. Como não era uma questão, não precisava ser problematizada
nem gerava grandes preocupações. Era vista apenas como o inverso, a sombra, um
acidente, enfim, algo exótico, se comparado com a “normalidade” da sociedade
americana.

Essa imagem construída por oposição – e por negação – ao “normal” não existia
apenas enquanto efeito do discurso dominante, mas ela era, sobretudo, efeito do
próprio

conjunto de práticas de assistência que negam ao pobre um estatuto social.


(...)[Na sociedade norte-americana,] a pobreza não existe, existem apenas
pobres. Ou seja, pessoas responsáveis por sua pobreza. A miséria não é
uma conseqüência estrutural da organização social, ela é (...) um
somatório de indivíduos dos quais cada um leva consigo a razão de seu
fracasso. (CASTEL, 1978, p. 48)

Desse modo, nos Estados Unidos, a pobreza apenas assume um caráter “social” no
que diz respeito aos problemas que ela pode gerar para a sociedade; ela não é “social”
em sua origem nem em seu significado, uma vez que diz respeito apenas àquele
indivíduo que é “pobre”. E, nessa lógica de culpabilização da vítima - Blaming the
Victim (Ryan apud Castel, 1978) -, as políticas sociais se resumem a apenas uma
gestão social das deficiências individuais. E é esse, então, o fundamento das políticas
do bem-estar norte-americano, o qual se inscreve no modelo “liberal” (ou residual),
descrito por Esping-Andersen (1990).

Quando os movimentos pelos direitos civis dos anos sessenta ganham força e
mostram que a realidade dos negros não era simplesmente um detalhe ou um resíduo
da sociedade americana, aquela noção idealizada da sociedade americana começa a

97
ser questionada. Passa-se a entender a questão como conseqüência da existência de
uma forte relação entre falta de direitos civis e pobreza (TRATTNER, op. cit, p. 254).

O debate passa a ser fortemente marcado pela idéia de “igualdade de oportunidades”


dos liberais e, consequentemente, a insuficiência de atributos individuais (que era
vista como a determinante da pobreza) começa a ser entendida também como
conseqüência de uma distribuição não eqüitativa das oportunidades. Assim, a pobreza
e a injustiça do sistema passam a ser explicadas por essa desigualdade de
oportunidades.

Para atuar sobre a desigualdade de oportunidades seriam necessárias políticas voltadas


à capacitação e qualificação dos indivíduos – ou seja, políticas educacionais e de
qualificação profissional. Uma vez “corrigido” o sistema e alcançada a “igualdade de
oportunidades”, a “pobreza” que ainda existisse se justificaria pela falta de esforço ou
capacidade dos indivíduos.

Por outro lado, aquele otimismo em relação à sociedade americana foi questionado
por Gunnar Myrdal (apud WACQUANT, 2001, p. 96), em seu livro Challenge to
Affluence, de 1963, uma referência direta e contrária à idéia de The Affluent Society de
Galbraith. Naquele livro, Myrdal lança mão da noção de “underclass”, referindo-se a
existência de uma camada indivíduos que tendiam a se tornar mão-de-obra
inutilizável - um estrato supérfluo e miserável que era conseqüência dos progressos da
produtividade e da generalização do acesso à formação profissional (idem). Em última
instância, seu objetivo era mostrar que a existência da pobreza não seria absorvida
pelo crescimento econômico da sociedade norte-americana e, assim, sugerir que ela
estava vinculada a questões estruturais.

Entretanto, Wacquant (2001) demonstra que o conceito de “underclass” forjado por


Myrdal – cujo conteúdo fazia referência direta ao tema do desemprego e a questões
mais estruturais – foi muito pouco utilizado nos trabalhos de pesquisadores. A grande
utilização do conceito de underclass só se manifesta a partir dos anos oitenta, com um
significado bastante distinto daquele a que Gunnar Myrdal se referia.

O termo underclass começa a se popularizar através de sua ampla utilização em


artigos das revistas Newsweek, Fortune, Reader’s Digest, dentre outras, paralelamente
à guerra ao welfare state americano conduzida pelos governos conservadores de
Ronald Reagan e George Bush (ibidem, p. 98).

98
Por influência dos discursos midiáticos, ganhava força um novo conteúdo para a
noção de underclass: as dimensões comportamental e racial começaram a se tornar
cada vez mais dominantes. As novas abordagens para a underclass passam a estar
preocupadas em descrever estilos de vida, valores e “deficiências” comportamentais
de alguns indivíduos. É nesse momento que a underclass foi definida como uma
“coleção de comportamentos anti-sociais” (WACQUANT, 1996, p. 253).

Pierson e Castles (2002) afirmam que, no que diz respeito às críticas ao welfare state
norte-americano, Charles Murray esteve dentre os acadêmicos que sustentaram e
reforçaram as críticas “pela direita”, associando as políticas de welfare com o
aumento da pobreza e da criminalidade. “Murray foi fortemente identificado com a
idéia de que instituições de welfare state tendem a produzir uma ‘underclass’ social
ligada à criminalidade”. (PIERSON e CASTLES, tradução livre, 2002, p. 3)

De fato, Murray (2002) propõe uma leitura peculiar para os resultados da “Guerra à
Pobreza”. Embora os dados oficiais mostrassem que a pobreza tinha diminuído, o
autor argumenta que ela na verdade cresceu a partir do momento em que aumentaram
os gastos do governo. Murray defende que a pobreza não deve ser avaliada pela renda
– como faziam as estatísticas oficiais – mas a partir do conceito de “pobreza latente”.
Este conceito refere-se àquelas pessoas que seriam pobres se não tivessem a ajuda
governamental, na medida em que elas constituiriam uma “população dependente”
dessa renda. E, a partir dessa idéia de pobreza latente, o autor aponta para os efeitos
trágicos das políticas da War on Poverty, tais como os de desestimular as pessoas ao
trabalho, desestruturar as famílias estáveis, estimular atividades ilegais. Para ele, esses
efeitos faziam com que a “pobreza latente” aumentasse, uma cultura da dependência
se desenvolvesse e a underclass se formasse. Em outras palavras, Murray argumenta
que as políticas de War on Poverty tiveram como efeito a formação de uma
underclass.

Assim, aos poucos foi se popularizando a idéia - oriunda da crítica “pela direita” – de
que as políticas de bem-estar para pobres (residuais), ao invés de ajudar a amenizar a
questão da pobreza, haviam intensificado esse problema, já que os programas sociais
implementados teriam supostamente criado dependência em seus beneficiários,
corroído sua vontade de trabalhar, estimulado a desorganização das famílias e,
inclusive, aumentado à propensão à criminalidade.

99
Com isso, segundo Wacquant (WACQUANT, 1996, p. 254), a noção de underclass
passa a representar “a criminalidade violenta, (...) a depravação moral dos pobres (...)
e o peso fiscal julgado intolerável dos programas sociais instaurados sob a pressão dos
movimentos reivindicativos dos anos 1960” (idem) e a referir-se a “uma ladainha de
‘comportamentos’ tidos como contrários à ética americana. Sua localização
geográfica fixou-se no gueto e sua dimensão racial se enrijeceu ao mesmo tempo em
que se eufemizou: o termo condena os negros pobres, sem efetivamente se referir à
sua dimensão cor.” (idem)

Frente à confusão que envolve o debate sobre a underclass, Wacquant (2001) levanta
algumas questões que o ajudam a argumentar que esse termo é uma “palavra
perigosa”. Dentre essas questões, o autor afirma que: (i) a noção de underclass é uma
expressão daquela reviravolta ideológica (à direita) ocorrida nos EUA; (ii) seus
critérios definidores são múltiplos, imprecisos e heterogêneos – essa indeterminação
seria uma das fontes de sua popularidade, já que “permite aos que a invocam
redesenhar à vontade as fronteiras do grupo conforme seus interesses ideológicos”
(ibidem, p. 104) e, ainda, (iii) ao ser focalizada apenas a underclass, a importante
proliferação das populações em abandono (de todas as cores e origens) - resultante da
reestruturação em curso do capitalismo - acaba sendo deixada de lado.

Por fim, o autor conclui que o rótulo de underclass não é capaz de apresentar

nem a consistência morfológica nem a ‘homogeneidade moral’ e a


‘tendência à unidade’ que estabelecem um coletivo social, segundo
Durkheim. (...) a underclass é, na melhor das hipóteses, uma classe-
imagem que exibe a todos os que a ela não pertencem um espetáculo
assustador de tudo o que todo bom norte-americano deve esforçar-se para
não ser (ibidem, p. 105).

100
3.3. O debate francês sobre a exclusão social

A partir dos anos oitenta, o debate francês sobre a “nova questão social” passa a ser
configurado a partir da idéia de precariedade e de “nova pobreza” (PAUGAM, 1991),
e, sobretudo nos anos noventa, em torno da noção de “exclusão”, que se tornou o
centro do debate público sobre a questão social na França. Essa centralidade do termo
“exclusão” é apontada por Serge Paugam:

Ela [a exclusão] nutre, (...) de modo quase cotidiano, as discussões sobre o


futuro social de nosso país [França] e contribui (...) à renovação dos
modos de intervenção voltados para as populações julgadas
desfavorecidas. (...) A exclusão é (...) o paradigma a partir do qual nossa
sociedade [francesa] toma consciência dela mesma e de suas disfunções, e
procura, às vezes na urgência e na confusão, soluções aos males que a
atormentam (PAUGAM, 1996, tradução livre, p. 7).

O termo “exclusão” aparece pela primeira vez no início dos anos setenta com o livro
Les Exclus, de 1974, de René Lenoir, cujo objetivo era o de denunciar a realidade dos
“esquecidos do progresso”: prisioneiros, doentes mentais, alcoólatras, deficientes, etc.
(DONZELOT, 1996, p. 88). Tratava-se de uma “outra França” - outro possível título
para o livro de Lenoir, segundo Paugam (1996) -, na qual eram evidentes os
problemas dos excluídos (les exclus), que, a despeito do caráter “dourado” do período,
não deixavam de existir.

A noção de exclusão se propunha a designar a existência de uma população mantida à


margem do progresso econômico. Assim, o livro de Lenoir mostrava que, a despeito
do progresso e da abundância, a sociedade francesa não conseguiu bloquear certos
mecanismos de geração de miséria.

Contudo, se, por um lado, a evidência da exclusão gerava “amargas desilusões”


(ARON apud PAUGAM, ibidem, p. 9) - a negação do destino esperado por (e para)
todos -, por outro, a “exclusão social” apenas representava um fenômeno residual
formado pelos handicapés sociaux, ou seja, os “esquecidos” pela sociedade. É bom
lembrar que, embora fosse um problema residual, a exclusão não se tratava, para
Lenoir, de um fenômeno ou uma noção de ordem individual, tal como se configurava
o debate sobre a pobreza nos Estados Unidos. Sua origem era apontada como social e

101
deveria ser investigada nos próprios funcionamentos da sociedade francesa
(PAUGAM, 1996). Mas, de todo modo, era uma questão residual.

Tentando sintetizar um pouco, é possível afirmar que, no período “dourado",


momento no qual a questão social se encontrava minimizada - uma vez que existia a
possibilidade de se pensar em pleno emprego, a ampla garantia e respeito aos direitos
sociais, etc. –, o debate sobre o social se apresentava de duas formas. Por um lado, a
crítica social - verbalizada por uma esquerda fortalecida e organizada - girava em
torno dos debates que apontavam para as formas capitalistas de dominação e de
exploração como geradoras das desigualdades sociais, etc. - com o tema da
“emancipação” sempre presente nas discussões. E, por outro lado, a questão social
aparece como exceção ou resíduo, através da idéia de excluídos enquanto “esquecidos
do progresso”.

A partir daquelas transformações já ressaltadas e do conseqüente agravamento dos


problemas sociais, o debate sobre o social sofre uma mutação e deixa de estar
centrado na questão das desigualdades, da exploração, da dominação ou, ainda, na
questão do “resíduo” e passa a girar em torno das idéias de precariedade e da “nova
pobreza” (e, mais tarde, “exclusão”).

Paugam (ibidem) explica que o debate na França passa a se organizar em torno desses
‘novos pobres’ e a nova preocupação passa a ser a de como tornar possível a sua (re-)
inserção no sistema econômico, num contexto de desemprego estrutural. Neste
momento, a RMI58 - instituída em 1988 - entra em cena como a política social
destinada a enfrentar – ou melhor, amenizar - o novo problema.

A partir do início dos anos noventa, o debate sobre a RMI e sobre políticas de
inserção se intensifica e, paralelamente, a noção de exclusão social se expande no
debate público e se torna uma noção chave para as reflexões e as polêmicas sobre a
nova malaise social. (DONZELOT, 1996). Durana (2002) também associa a aparição
e o uso generalizado da idéia de “exclusão social” - nos Estados europeus em geral -
ao aumento das políticas assistencialistas concebidas “para prestar ajuda ou proteção a
quem não a obteve por outros modos” (DURANA, 2002, p. 2).

58
A RMI (Revenu Minimum d’Insertion) é uma “renda mínima de inserção” destinada aos residentes
na França cujos rendimentos sejam inferiores a um determinado piso.

102
Donzelot (1996) argumenta que a constante preocupação com a “luta contra
exclusão”, além de referir-se a um novo problema social, serve, sobretudo, para
mascarar uma transformação nas formas de intervenção social. Isto pode ser
percebido inclusive ao se observar a mutação que sofre o próprio significado de
“exclusão”.

Percebe-se que, no momento anterior (era dourada), as preocupações das políticas de


intervenção giravam em torno do processo de produção (buscando o pleno emprego) e
da noção de cidadania (e a conseqüente garantia de direitos sociais), e a noção de
“exclusão” designava apenas aquele resíduo social formado pelos “esquecidos do
progresso” – a noção original para les exclus, de Lenoir.

Tudo se transforma no momento em que aqueles temas prediletos das políticas


públicas começam a se enfraquecer diante das transformações estruturais e a ser
criticados com o avanço do neoliberalismo. As políticas deixam de estar voltadas para
o pleno emprego e passam a se orientar pelo tema da “inserção”, ou ainda, da
exclusão. Esta última, por sua vez, muda de conteúdo, a partir dos anos noventa: deixa
de significar aqueles “esquecidos” do progresso e passa a representar as “vítimas” da
nova ordem sócio-econômica. E essas vítimas não são mais os marginais ou os
handicapés sociaux, mas sim “uma população em plena expansão de ‘normais
tornados inúteis’ a essa ordem, uma população [que passa a representar] (...) o novo
espectro que veio assombrar as nações desenvolvidas”. (DONZELOT, tradução livre,
ibidem, p. 89). Assim, ao mesmo tempo em que o termo exclusão ganha força e se
torna central para o debate público, seu significado se transforma.

Boltanski (1999) ressalta que, no âmbito específico das ciências sociais, a maneira de
articular e formular seus questionamentos também sofreu mutações:

as análises em termos de classes, categorias, grupos profissionais, etc.,


tiveram um papel central no desenvolvimento (...) da sociologia francesa.
(...) Ora as análises em termos de classes se tornaram muito mais raras
desde o início ou meados dos anos 80, ou seja, paradoxalmente, durante
um período em que as mudanças muito importantes que afetaram a
atividade econômica (...) [mostram os] efeitos que puderam exercer sobre
as classes e as relações entre classes. (BOLTANSKI, 1999, tradução livre,
p. 383).

E o autor continua:

103
a literatura abundante acumulada durante os dez últimos anos sobre
organizações e trabalho (...) deixa cada vez mais essa questão na sombra.
Nós assistimos de fato a uma transformação do debate social: estruturado
em torno do tema das desigualdades até fim dos anos 70, ele pouco a
pouco se deslocou para [a temática] (...) da exclusão. (idem).

Contudo, tendo em vista as implicações políticas dessa transformação, pode-se


afirmar que não se trata de um simples deslocamento de enunciado. De fato, o novo
“consenso” que gira em torno da noção de exclusão traz consigo o desmoronamento
de certos questionamentos que eram, outrora, de suma relevância. Questionamentos
estes, é bom lembrar, que estimulavam tensões e antagonismos na sociedade. É o que
ocorria, por exemplo, com a noção de “exploração” - o centro da crítica social durante
todo o século XX.

Com o abandono do quadro teórico geral das “classes” e a progressiva centralidade da


noção de exclusão (como contrário de inclusão) enquanto representação das mazelas
do mundo social, a noção de “exploração” foi também sendo deixada de lado, aos
poucos, pelos debates da teoria social. (BOLTANSKI, ibidem, p. 425)

Essa ausência de uma crítica social mais profunda (como a sugerida pela noção de
“exploração”) no debate francês contemporâneo pode ser percebida na maneira pela
qual a “exclusão” tem sido entendida. Na maior parte das análises, ela é vista como
um estado (dos excluídos), e não como um processo social. O uso da noção de
exclusão acaba sendo frequentemente associado - seja no debate público em geral,
seja no debate acadêmico – a um simples esforço descritivo dos “excluídos”,
procurando traçar suas variadas formas de manifestação.

Segundo Procacci (1996a), a noção de exclusão deve ser criticada porque ao enfatizar
a condição do excluído, ela obscurece o processo social que a gera. Assim, ao mesmo
tempo em que a ênfase recai na análise de trajetórias dos excluídos – isto é,
quantifica-se e descreve-se sua condição -, em vez de identidades coletivas, por
exemplo, toma-se como pressuposta uma sociedade dual (dentro-fora).
Consequentemente, a “exclusão” é entendida simplesmente como aquilo que está “de
fora” – uma realidade aparentemente autônoma -, e não enquanto resultado de um
processo social.

De fato, se a ênfase recaísse sobre a dinâmica social, perceber-se-ia que a questão


social não está “de fora”, mas no interior dessa dinâmica, produzida e reforçada por

104
suas instituições. E é justamente isso que a “exclusão” ajuda a mascarar. (BALIBAR
apud PROCACCI, 1996a)

Boltanski (1999) critica a noção de exclusão a partir do mesmo raciocínio,


argumentando que não faz sentido nenhum apreender “os excluídos” como uma
categoria, já que eles são, no fim das contas, definidos não pelo que são, mas por sua
negatividade. Assim, não ajuda nem na compreensão dos processos geradores de
exclusão, nem como fonte constituidora de uma força social a ser mobilizada – já que
os “excluídos” não têm um interesse comum nem representam uma agregação ou
identidade coletiva. (BOLTANSKI, op. cit., p. 735)

Entretanto, ao ser inespecífica, essa noção tem, ao mesmo tempo, mais facilidade de
se generalizar. Ela pode ser utilizada para explicar ou caracterizar situações ou
populações das mais diversas, que muito pouco têm em comum. (PAUGAM, 1996, p.
17) Essa abrangência, generalidade e banalização da exclusão podem ser percebidas
nos textos sobre “exclusão” reunidos no livro L’Exclusion – l’État des Savoirs,
organizado por Serge Paugam, cujo objetivo é reunir trabalhos de áreas variadas que
ajudem a esclarecer o conceito de exclusão – o novo “paradigma societal”. (ibidem, p.
7)

Muitos dos trabalhos ali presentes, embora se proponham a discutir o tema da


“exclusão”, têm a necessidade de: (i) relativizar essa noção – dizendo que é fluida,
vaga, excessivamente ampla, etc. -; (ii) explicitar e definir bem a qual temática a ser
abordada sob o rótulo de “exclusão”59 – ou seja, na verdade, os artigos têm como
abordagem central outros temas, que não o da exclusão, mas que se “encaixam” nesse
rótulo; e, ainda, (iii) criticar (ou mesmo rejeitar) a noção de exclusão, como é o caso
de Castel (1996) e Procacci (1996b).

Michel Messu (MESSU, 1997) critica fortemente o esforço de Paugam (op.cit.),


ressaltando uma série de paradoxos existentes na coletânea L’Exclusion – l’État des
Savoirs. O primeiro paradoxo consistiria, segundo Messu, em indicar que o objetivo
comum é o de esclarecer a noção de “exclusão”, enquanto que a maior parte dos

59
Ao lado do objetivo inespecífico de tratar da “exclusão”, sempre há um objetivo central. Paugam
(1996) aponta três grandes orientações ou preocupações teóricas que estão presentes nos artigos do
livro: (i) reprodução das desigualdades; (ii) enfraquecimento dos laços sociais; (iii) atuais limites das
políticas sociais.

105
autores participantes do livro a problematizam ou a rejeitam (rejeição pela ênfase em
sua inespecificidade ou pela recusa de sua utilização).

O segundo [paradoxo] refere-se [ao fato de] as tentativas de elucidação da


noção que se encontram ao longo dos capítulos não serem cumulativas –
ou ao menos não foram acumuladas na síntese do editor. Ao contrário, um
outro paradoxo, esse último se afasta das contribuições que ele reuniu,
para propor uma perspectiva pouco convincente. Enfim, a ambição de
clarificação proposta na introdução é abandonada na conclusão. (MESSU,
tradução livre, 1997, p. 148)

Frente à generalidade dessa noção, percebe-se que ela acaba servindo para designar
quase tudo, não tendo, portanto, muito valor do ponto de vista das ciências sociais.
Assim, se, por um lado, “exclusão” tenta ser uma noção crítica – na medida em que
procura apontar para os novos contornos das mazelas sociais existentes no capitalismo
contemporâneo -, por outro lado, é falha ou inespecífica no que diz respeito à
denúncia dos processos sociais geradores dessas mesmas mazelas. É o que aponta, por
exemplo, Claude Dubar (autor participante da obra L’Exclusion – l’État des Savoirs),
referindo-se a Jean-Marie Delarue, na seguinte passagem:

[A palavra exclusão] representa geralmente uma facilidade de linguagem


que esconde uma dificuldade de análise. (...) trata-se de uma noção que
faz um amálgama entre situações muito diferentes e tende a “abandonar a
questão das relações de produção e os objetivos coletivos.” (DELARUE
apud DUBAR, 1996, tradução livre, p. 111)

Como a “exclusão” aparece na discussão enquanto situação e não como resultado de


um processo social - tal como sugere, por exemplo, o conceito de “desfiliação”60, de
Robert Castel (2003) -, Boltanski (1999) afirma que esse debate acaba por reforçar,
por um lado, o enfraquecimento do discurso da crítica social tradicional que se
fundamentava na denúncia das causas das desigualdades sociais (Boltanski, op. cit., p.
397), e, por outro, se mostra sem condições de propor uma teoria crítica capaz de
interpretar satisfatoriamente a sociedade atual e de transformar a indignação social
num aparelho argumentativo para a construção de uma nova crítica social.

Messu (1997) sustenta que aquelas considerações feitas por Loïc Wacquant (1996)
sobre a underclass nos Estados Unidos – apontadas na seção anterior – se aplicam

60
Castel (2003) prefere utilizar o termo “desfiliação”, uma vez que a noção de exclusão: “é estanque.
Designa um estado, ou melhor, estados de privação. Mas a constatação de carências não permite
recuperar os processos que engendram essas situações.” (p. 26) A idéia de “desfiliação”, segundo o
autor, permite que se reconstrua o processo social e remete, ao mesmo tempo, aos desafios da
integração social.

106
“mutatis mutandis, à “exclusão” na França. A underclass, mostra o autor [Wacquant]
retraçando a história tumultuosa da noção, engendra uma grande ‘indeterminação
semântica’” (MESSU, tradução livre, ibidem, p. 159). E, com isso, Messu (ibidem)
sugere que o peso exercido pelo senso comum (influenciado pelo discurso midiático)
sobre as noções de exclusão e de underclass é tal que acaba fazendo delas “pseudo-
conceitos”. Ou seja, são termos que não tem valor cognitivo e que, por isso, devem
ser descartados por uma sociologia que pretenda ser “rigorosa” e que se recuse a se
reduzir a uma “sociologia do senso comum”. (ibidem, p. 161)

Embora o debate sobre a exclusão social tenha nascido na França, a atual utilização
desse conceito não é de exclusividade francesa. O protagonismo das instituições
européias no ressurgimento do debate sobre a nova questão social constitui, segundo
Durana (2002), o antecedente do surgimento e generalização do conceito de exclusão
social nas discussões sobre políticas sociais na Europa como um todo. Não cabe aqui
um estudo pormenorizado sobre a utilização desse conceito nessas instituições, mas
vale a pena apontar e sublinhar a relevância e influência que têm as suas discussões
sobre os debates (acerca da questão social) dentro de cada realidade nacional,
principalmente no âmbito das políticas públicas.

3.4. América Latina: o discurso sobre a “pobreza”

Observou-se até aqui que, no período desenvolvimentista, o debate sobre a questão


social na América Latina girava em torno da discussão sobre a “marginalidade”.
Simultaneamente, a questão social na Europa e nos Estados Unidos tinha sido até
certo ponto “resolvida”, uma vez que se vivia num contexto em que o pleno emprego
era tido como meta alcançável e as políticas de bem-estar eram bastante valorizadas
(principalmente, nos países europeus, dado que nos EUA o sistema de welfare sempre
foi “residual”).

Viu-se também que, a partir dos anos oitenta, há uma preocupação em se explicar e
entender a “novidade” social decorrente daquelas transformações já ressaltadas no
primeiro capítulo. Nos países do centro do sistema, essa novidade se apresenta
enquanto reaparecimento de algo que havia sido, em grande medida, superado pela
realidade das sociais-democracias européias ou, ainda, como o surgimento de um

107
“corpo estranho” que se contrapõe ao padrão de sociabilidade norte-americana. Para
expressá-la, novos termos passam a ser utilizados, tais como “exclusão” e underclass.

Já na América Latina, pode-se dizer que só há “novidade” na medida em que o


problema foi aprofundado e expandido, pois a questão social sempre foi bastante
significativa na região. Mas, a despeito disso, percebe-se também na América Latina
um deslocamento no modo de enunciar a questão social: enquanto no período
desenvolvimentista – sobretudo anos sessenta e setenta - a questão social era colocada
em termos de “marginalidade”, a partir dos anos oitenta e, sobretudo, nos noventa -
em tempos de neoliberalismo e de hegemonia dos organismos internacionais - a
questão social passa a ser expressa a partir de uma idéia bastante específica da
“pobreza”.

Embora a idéia de pobreza tenha uma longa história, não se pode negar que ela tem
conquistado notória centralidade e assumido um conteúdo bastante específico,
sobretudo nos últimos vinte anos. Para desenvolver um pouco essa idéia da
especificidade da atual utilização do conceito de “pobreza”, é de grande utilidade que
se parta da afirmação feita por Koselleck (1992) acerca da novidade dos conceitos: “A
história dos conceitos mostra que novos conceitos, articulados a conteúdos, são
produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas possam ser as mesmas.”
(KOSELLECK, 1992, p. 140)

Nesse sentido, o autor argumenta que a utilização de uma mesma palavra - em


contextos variados, e, consequentemente, com significados e conteúdos diversos -
pode representar a utilização de conceitos diferentes ou novos conceitos.

Para desenvolver essa idéia, Koselleck (1992) dá o exemplo de societas civilis. Esta
expressão aparece em Cícero como uma tradução para o latim do conceito de
koinonia politike (a Política), uma formulação de Aristóteles. Koselleck afirma que
embora a palavra permaneça a mesma (como tradução daquele conceito), o fato de ela
ser utilizada num quadro histórico totalmente diverso da realidade da pólis grega -
com sua comunidade de cidadãos, etc. – faz com que seu conteúdo se altere
substancialmente, reafirmando, portanto, o caráter único dos conceitos.

A distinção que ele faz entre koinonia politike e societas civilis (a despeito de esta
última ser uma tradução daquela) fica clara na seguinte passagem: “O que portanto é
uma societas civilis depende do momento em que o termo é empregado, se no

108
primeiro ou quarto século depois de Cristo. Isto significa assumir sua variação
temporal, por isso mesmo histórica, donde seu caráter único (einmalig) articulado ao
momento de sua utilização.” (KOSELLECK, 1992, p. 138)

Assim, de uma mesma palavra, um novo conceito pode ser forjado e, portanto, “ele é
único a partir de uma nova situação histórica que não só engendra essa nova
formulação conceitual, como também poderá se tornar através dela inteligível.”
(ibidem, p. 140)

Articulando com a discussão anterior, pode-se afirmar que, embora as palavras


exclusão e underclass sejam pré-existentes ao “boom” de sua utilização, elas
acabaram constituindo novos conceitos, na medida em que seus atuais conteúdos são
diferentes de seus significados originais, e dizem respeito a um contexto bastante
específico, a partir do qual são definidos e reforçados.

O mesmo pode se afirmar sobre a palavra “pobreza”. Embora essa palavra tenha
sempre existido na história da humanidade, ela hoje assume um conteúdo e um
significado específicos, que dizem respeito ao mundo contemporâneo, no qual o
ideário neoliberal tem se mostrado hegemônico. Assim, se no contexto do
desenvolvimentismo latino-americano a nação era composta por um povo trabalhador
(MERKLEN, 2005) e sua questão social era expressa em termos de “marginalidade” e
o conteúdo dessa idéia estava diretamente relacionado a esse contexto, pode-se dizer
que hoje não o é mais.

Diante do agravamento das mazelas sociais, decorrente do processo de reestruturação


produtiva e das políticas neoliberais de ajuste propostas pelos organismos
internacionais e implementadas na América Latina, há uma renovação da preocupação
– de governos, pesquisadores, organismos internacionais, organizações não-
governamentais - com a questão social expressa agora em termos de “pobreza”.
Segundo Merklen:

Os setores populares que tinham levado meio século para se constituir


como classe trabalhadora sob a identidade de um povo trabalhador, se
converteram em pobres no espaço vinte anos. (MERKLEN, tradução
livre, 2005, p. 121)

A partir desse “deslizamento da problemática do trabalhador à do pobre”


(MERKLEN, 2003; 2005), os problemas sociais deixam de ser tratados enquanto tais
- como o alto nível de informalidade do trabalho, o aumento do desemprego,

109
precarização do emprego –, inclusive, sem se referir às atuais formas de exploração e
de dominação das classes populares. Com isso, eles acabam sendo sintetizados e
tratados pelo termo “pobreza”, cuja “resolução” é entendida simplesmente como uma
redução da quantidade de pobres no mundo.

Embora a noção de “exclusão” também tenha sido relativamente incorporada ao


debate latino-americano, é a noção de “pobreza” que vem se constituindo como o eixo
central da enunciação da questão social na região.

Loïc Wacquant (2001, p. 10) faz uma distinção entre as noções de “conceito
folclórico” e “conceito analítico” e afirma que os conceitos folclóricos são aqueles
usados pelos administradores públicos, pelas autoridades urbanas, pela população,
etc., enquanto que os conceitos analíticos são aqueles que a pesquisa social deve se
preocupar em construir para desvendar a “maquiagem” da sociedade, para assim
poder compreendê-la. De modo geral, é possível sugerir que a noção de “exclusão”61
estaria mais inserida no debate acadêmico, sobretudo nas ciências sociais, ou seja,
como “conceito analítico”, enquanto que a noção de “pobreza” tem ganhado enorme
centralidade tanto quanto “conceito folclórico”, como quanto “conceito analítico”,
num debate que vem sendo fortemente influenciado por economistas.

Nesse novo contexto, a questão social é discutida a partir de duas preocupações


centrais sobre a “pobreza”: (a) definir e mensurar a pobreza, preocupação que nasce
nos anos oitenta e (b) propor medidas voltadas ao “combate à pobreza”, tema que
emerge com força a partir dos anos noventa e ao qual os organismos internacionais
têm se dedicado ultimamente.

Embora a preocupação de definição e mensuração da pobreza tenha aparecido antes


da temática da “luta contra a pobreza”, percebe-se que hoje essas duas preocupações
acabam se reforçando mutuamente. Na medida em que se propõem políticas
focalizadas de combate à pobreza, é cada vez mais preciso definir com maior precisão
e estimar qual o tamanho de seu público-alvo – ou seja, o número de “pobres” -; por
outro lado, quanto mais se criam métodos específicos de definição e mensuração da
pobreza, vai se tornando legítimo o debate pautado pelas cada vez mais “necessárias”
políticas voltadas para os pobres.
61
Segundo Nascimento (1994), os dois maiores divulgadores da idéia de exclusão social no Brasil
foram Helio Jaguaribe e Cristóvão Buarque. Posteriormente, o tema foi discutido também em outros
trabalhos, como é o caso de Escorel (1999).

110
Diante do aprofundamento dramático da questão social, começam a ser criadas
múltiplas metodologias para definir e mensurar a pobreza e, na medida em que as
políticas de “combate à pobreza” se tornam hegemônicas enquanto proposta de
intervenção sobre o social – como se verá mais à frente -, esses critérios de definição
e mensuração da pobreza se desenvolvem continuamente.

De fato, atualmente, a maior parte da pesquisa sobre pobreza está concentrada na


mensuração do tamanho da pobreza e em quem são os pobres62. Se o objetivo agora
consiste nisso, e não tanto em explicar as causas da questão social, percebe-se que a
questão social vai sendo reduzida a um problema fácil e simplesmente diagnosticado
pela “técnica”. A partir de certa definição, contam-se os pobres. Para desempenhar a
nova tarefa, são propostos métodos diversos - cada vez mais refinados - tanto pelos
organismos internacionais (cada organismo tem o seu próprio método) quanto por
economistas da academia (que, frequentemente, possuem algum tipo de vínculo com
tais organismos).

Embora o conceito de pobreza esteja geralmente relacionado com a idéia de carência,


penúria, ausência ou falta de algo, privação, há ênfases diferenciadas quando o
objetivo é definir quais são os elementos capazes de identificar e diagnosticar uma
dada situação como de pobreza. Segundo Barros (2001): “não pode ser definida de
forma única e universal, contudo, podemos afirmar que a pobreza refere-se a situações
de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de vida
condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico”.
(BARROS, 2001, p. 2)

A forma mais simples de definir a pobreza baseia-se em medidas monetárias de


pobreza, que toma a renda do indivíduo como parâmetro. Segundo Salama e
Destremau (1999), a “pobreza monetária” pode ser medida de maneira absoluta e de
maneira relativa.

A pobreza absoluta representaria a insuficiência de renda do indivíduo para se


reproduzir, ou seja, a renda do indivíduo é inferior a um patamar de rendimentos
capaz de satisfazer condições mínimas de sobrevivência. Merklen (2005) lembra que
já “em 1979 a CEPAL publica um importante trabalho de Oscar Altimir [“La

62
Por exemplo: Pobreza no Brasil. Afinal, de que se trata ? , livro de Sônia Rocha (2003) voltado para
a conceituação da pobreza - algo tido como indispensável quando o objetivo é a sua mensuração e a
implementação de políticas focalizadas nos pobres.

111
dimension de la pobreza em América Latina”] com o objetivo de determinar a
amplitude da pobreza na América Latina” (MERKLEN, 2005, tradução livre, p. 112)
cujo método se baseava justamente no critério “absoluto” da pobreza. Merklen
destaca a importância desse estudo, enfatizando que ele “influenciou os institutos
públicos de estatísticas de cada país assim como outros numerosos centros de
pesquisa que se voltaram à avaliação da pobreza. De fato, (...) a CEPAL ocupa uma
posição que a permite irradiar [suas idéias] tanto sobre [o meio] acadêmico [quanto]
em direção aos Estados.” (idem).

Um instrumento de mensuração decorrente da idéia de “pobreza absoluta” são as


conhecidas “linha de pobreza”, ou ainda, “linha de indigência” (ou de “pobreza
extrema”), que são traçadas a partir de certos patamares de renda, de modo a
determinar quem são pobres ou indigentes, respectivamente. A linha de indigência é
definida, segundo Rocha63 (1998), pelo valor da cesta alimentar básica e, desta
maneira, traça o limite entre os famintos e os não-famintos. Já a linha de pobreza
dependeria das necessidades básicas totais de consumo, ou seja, inclui, além do
mínimo alimentar definido pela linha de indigência, outros bens de consumo
indispensáveis, de acordo com o padrão de vida da sociedade analisada. Assim, os
pobres (ou indigentes) são definidos como aqueles cujos rendimentos se situam
abaixo da linha de pobreza (ou de indigência) e o tamanho da pobreza é calculado a
partir do somatório do todos os pobres (ou indigentes) - aqueles que vivem abaixo das
linhas.

Essa metodologia que procurar estabelecer ou traçar linhas de pobreza tem sido
utilizada a nível regional - por exemplo, sugerida pela CEPAL (2000) –, a nível
nacional – elaborada e discutida pelos institutos de pesquisa e de estatística de cada
país - e, ainda, a nível internacional - por exemplo, por iniciativa do Banco Mundial,
que em certos momentos sugere que o limite entre a pobreza e a não-pobreza esteja no
limiar de US$1/dia ou US$2/dia, per capita.

Já a pobreza relativa é determinada em comparação com a renda média da sociedade.


Por exemplo, “seriam pobres aqueles cujo nível de renda fosse aquém da metade, ou
de 40%, ou ainda de 60% do rendimento mediano (...) ou, algumas vezes, inferior à

63
Desde o início da década de oitenta, Rocha têm sido uma das referências no que diz respeito à
definição de linhas de indigência e de pobreza no Brasil.

112
metade da renda média.” (ibidem: 51) A pobreza relativa “situa o indivíduo na
sociedade (...) seu rendimento é comparado ao dos outros”. (idem)

Além dessas medidas monetárias de pobreza, existem medidas mais abrangentes – as


“medidas de pobreza humana” -, cujo objetivo é dar à pobreza “dimensões não-
monetárias e, particularmente, sociais e políticas, indo da noção de necessidades
básicas insatisfeitas à noção de capacidades.” (SALAMA e DESTREMAU, 1999, p.
73).

De acordo com a abordagem das Necessidades Básicas Insatisfeitas (NBI), são


considerados pobres aqueles indivíduos que não possuem ou não têm acesso a certos
bens que são considerados básicos – por exemplo, saúde, educação, etc. Segundo
Vuolo (2004), a idéia central da abordagem das Necessidades Básicas Insatisfeitas
(NBI) é que, “dentro do sistema de elementos e relações que definem o bem-estar de
uma pessoa ou grupo de pessoas, existem hierarquias que é necessário reconhecer.”
(VUOLO, 2004, tradução livre, p. 28-29) Ela parte da idéia de que a não-satisfação
de certas necessidades “pode resultar num mal funcionamento do ser humano”
(ibidem, p. 29) Nesse sentido, essa abordagem propõe uma “classificação das
necessidades entre aquelas que são básicas para a condição humana e as que não são”
(idem).

Segundo Salama e Destremau (1999), a abordagem das Necessidades Básicas


Insatisfeitas (NBI), ao contrário da linha de pobreza, tem como característica o fato de
ela ser universal, na medida em que pressupõe a existência de níveis (mínimos) de
necessidades básicas que podem ser universais e assim serem aplicadas a todos os
homens, de culturas e países diferentes. A conseqüência desse tipo de enfoque é que
se supõe a possibilidade de se realizar um exame exógeno das necessidades de uma
pessoa. Ou seja, “a pobreza não depende (...) da percepção subjetiva dos envolvidos
[na pobreza].” (VUOLO, op. cit., p. 29) Por outro lado, se o objetivo em última
instância é mensurar a quantidade de pobres e identificar quem eles são, essas
“necessidades fundamentais” acabam sendo expressas em termos que sejam
quantificáveis. Além disso, tem como fundamento a idéia de que sua satisfação torna
o homem mais produtivo (SALAMA e DESTREMAU, op. cit.). Pode-se perceber que
aqui há a influência da teoria do capital humano, uma vez que quanto maior a
quantidade de necessidades básicas satisfeitas, maior a produtividade do indivíduo e,
conseqüentemente, maior sua competitividade em relação aos outros.

113
As Necessidades Básicas Insatisfeitas (...) formam a base de um método
de avaliação da pobreza que compara a situação de cada grupo familiar,
quanto a um conjunto de necessidades específicas, com uma série de
normas que expressam o piso de necessidades de cada um, abaixo do qual
o grupo familiar é considerado insatisfeito. Se uma ou várias necessidades
essenciais do grupo familiar não são satisfeitas, a família é considerada
pobre, da mesma forma que todos os seus membros. (SALAMA e
DESTREMAU, op. cit, p. 76)

Pode-se perceber que a lógica de interpretação desta medida de pobreza é análoga à


daquelas linhas (de pobreza e de indigência). As únicas diferenças entre os dois tipos
de mensuração da pobreza são o fato de que as NBI, por um lado, englobam quesitos
universais e, por outro, são medidas “mais humanas”, não se restringindo apenas à
categoria renda.

Já no que diz respeito à noção de capacidades, a grande referência é Amartya Sen


(por exemplo, com seu trabalho Desigualdade Reexaminada), para quem a questão da
pobreza deve ser encarada sob a idéia de privação de capacidades básicas de realizar
(ou seja, de cada um alcançar os seus objetivos de vida) e não como uma carência de
determinadas necessidades. O autor argumenta que:

(1) a pobreza pode sensatamente ser identificada em termos de privação


de capacidades; a abordagem concentra-se em privações que são
intrinsecamente importantes (em contraste com a renda baixa, que é
importante apenas instrumentalmente); (2) Existem outras influências
sobre a privação de capacidades – e, portanto, sobre a pobreza real – além
do baixo nível de renda (a renda não é o único instrumento de geração de
capacidades); (3) A relação entre baixa renda e baixa capacidade é
variável entre comunidades e até mesmo entre famílias e indivíduos (o
impacto da renda sobre as capacidades é contingente e condicional).
(SEN, 2000, p. 110)

Sen parte do pressuposto de que existem variações entre os indivíduos no que diz
respeito à conversão na conversão de meios (recursos ou bens primários) em
“liberdade de realizar” (fazer ou alcançar seus objetivos ou fins). Ou seja, o fato de
duas pessoas possuírem os mesmos recursos não significa que necessariamente elas
serão igualmente livres para realizar, dado que cada uma delas irá converter seus
recursos em liberdade de maneiras diferentes – uma podendo ter mais facilidade de
convertê-los que a outra. Deste modo, os recursos (ou bens primários) que uma pessoa
tem – por exemplo, a renda - não são um bom indicador de quanta liberdade de fato
ela consegue desfrutar.

Nesse sentido, percebe-se que “o autor opera o deslocamento do ter para o ser e
fazer.” (HASENBALG, 2003, p. 459) Sen (2001) recomenda que a abordagem da

114
“capacidade para realizar” seja incorporada aos estudos sobre a pobreza – que deve
ser entendida como uma deficiência de capacidades básicas para alcançar certos
níveis minimamente aceitáveis de bem-estar - e aqui reside a inovação prática de seu
trabalho. É um avanço em relação à abordagem da “linha de pobreza” e uma crítica a
ela.

Segundo Hasenbalg (2003), a “crítica central à abordagem convencional sobre a


pobreza (LP) [linha de pobreza] está em que essa abordagem concentra-se nos meios
para alcançar o bem-estar. Esses meios, segundo Sen, são importantes, mas
insuficientes para fazer avaliações de vantagem individual porque não levam em
conta as variações nas taxas de conversão de meios em capacidades.”
(HASENBALG, 2003, p. 460)

Esta nova concepção de pobreza trazida por Amartya Sen, isto é, a partir de uma
abordagem muito mais ampla do que aquela que a define a partir da renda, teve
conseqüências práticas, por exemplo, quando o PNUD a aproveitou para transformá-
la em base conceitual e metodológica de seus trabalhos sobre o desenvolvimento dos
diversos países. Um exemplo disso foi a criação do IDH (Indicador de
Desenvolvimento Humano), que é uma medida (e não um patamar) das realizações
médias do desenvolvimento humano básico num único índice composto, que engloba:
renda (calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego
da metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade
(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação
entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior).
(PNUD, 2001: 144). O IDH é publicado pelo PNUD anualmente, desde 1990, em seu
“Relatório de Desenvolvimento Humano”.

Em 1997, o PNUD construiu um indicador adicional: o IPH (Indicador de Pobreza


Humana), que é uma medida multidimensional da pobreza e reúne, num índice
composto, as quatro dimensões da “privação” humana: uma vida longa e saudável,
conhecimento, provisão econômica e inclusão social (ibidem: 150). O IPH é dividido
em IPH-1 – para medir a pobreza humana em “países em desenvolvimento” – e IPH-2
- para medi-la nos países industrializados. Cada índice é formado por variáveis com
pesos diferentes, de acordo com o grupo de países a que se refere; por exemplo, o
IPH-1 mede a privação de uma vida longa e saudável pela percentagem de pessoas

115
que não devem passar dos 40 anos, enquanto o IPH-2 considera a percentagem de
pessoas que não devem passar dos 60 anos. Esta distinção decorre da idéia de que a
“privação humana varia com as condições sociais e econômicas da comunidade”.
(ibidem, p. 18)

Além dos trabalhos voltados para a mensuração da pobreza, tem se considerado


necessária a realização de trabalhos voltados para a construção de mapas de pobreza
(ou da fome), para que se possa identificar onde, especificamente, se localiza a
pobreza, para que, desta forma, se facilite a implementação das políticas públicas que
a combata pontualmente.

No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, foram lançados os “mapas da
fome” Mapa da Fome I, II e III - pelo IPEA (1993), em 1993, e o “mapa do fim da
fome” (elaborado pela Fundação Getúlio Vargas, em julho de 2001), por exemplo,
tem como objetivo “[avaliar] a extensão da indigência e o custo da sua erradicação a
nível nacional e das unidades da federação na década de 90; (...) apresentação do
sistema de metas de pobreza e do conceito de metas sociais; apresentação (...) dos
índices de pobreza.” (CPS/FGV, 2001, p. 3)

Assim, o trabalho mapeia a “população indigente” em número absoluto e em


porcentagem para cada estado brasileiro e, ademais, calcula o montante necessário de
transferências para se erradicar a miséria em cada estado. Deste modo, o projeto
apresenta, ou melhor, justifica a sua validez: “No momento em que o Congresso
oficializa o fundo de erradicação da pobreza, é oportuna a avaliação do custo mínimo
da empreitada. (...) Cabe ao fundo financiar a gestação das boas práticas nos bolsões
de miséria.” (ibidem, p. 2) Ou seja, num momento em que se priorizam as políticas
compensatórias, estudos desta natureza são expressamente requisitados. Dando
continuidade a esse trabalho, a FGV lançou, em abril de 2004, o Mapa do Fim da
Fome II.

Outro indício importante da atual centralidade do conceito de “pobreza” enquanto


eixo de enunciação da questão social pode ser encontrado na proliferação de
recomendações de políticas voltadas para “combater a pobreza”, formuladas pelos
organismos internacionais (Banco Mundial, PNUD e OIT). Esses organismos tem se
esforçado na difusão da idéia de que o tema do combate à pobreza é a grande questão

116
a ser resolvida no mundo contemporâneo, ponto que será desenvolvido mais adiante,
no próximo capítulo.

Por agora, o que importa é enfatizar, por um lado, essa atual centralidade da temática
da “pobreza” no tratamento da questão social e, por outro, o deslocamento da
discussão que é percebido de um momento ao outro: da marginalidade à pobreza.

Se, por um lado, é possível dizer que a enunciação se deslocou porque houve grandes
transformações estruturais na sociedade – como sugere a seguinte passagem de Mary
Douglas (1998):

Como ela [a comunidade] usa a divisão do trabalho como fonte de


metáforas no intuito de afirmar-se, o auto-conhecimento e o conhecimento
que a comunidade tem do mundo deve passar por mudanças quando a
organização do trabalho muda. Quando ela alcança um novo nível de
atividade econômica, novas formas de classificação devem ser
conceituadas. (DOUGLAS, 1998, p. 107)

Ou seja, enfatizando a gênese social das categorias à qual Émile Durkheim se referia
(DURKHEIM, 1996; 1999), poderia ser sugerido que, diante de novos problemas, são
necessárias novas maneiras de pensá-los, tratá-los, enunciá-los – para que seu
enfrentamento seja possível.

Mas, por outro lado, é possível afirmar que a transformação da enunciação da questão
social ocorra também pela predominância de certa(s) visão(ões) de mundo – ou
ideologias – que se fazem presentes a cada momento na sociedade. Cada ideologia
tem uma maneira específica de perceber e entender o mundo e, portanto, de entender a
“questão social”. Consequentemente, como se verá mais adiante, é a partir da política
que “questão social” é moldada, enunciada e problematizada.

117
Capítulo IV – A QUESTÃO SOCIAL COMO “POBREZA”

Como já se viu, um dos grandes objetivos das ciências sociais é o de em questionar as


categorias de descrição do mundo que, em determinado momento, se colocam como
evidência. (TOPALOV, 1994) Diante disto, o objetivo deste capítulo consiste em
apontar para a emergência e centralidade da “pobreza” como uma nova forma de
“classificação” na América Latina e entender porque ela vem se articulando como o
eixo de enunciação do social, para que, mais adiante, se possa desnaturalizá-la e
associá-la a um projeto político e a uma visão de mundo específicos.

Sabe-se que, na linguagem ordinária, a “pobreza” é termo de uso comum - enquanto


modo de percepção da realidade social - e de longa data. O que merece atenção aqui é
perceber que o fato de esse termo ter se tornado o eixo da questão social – e das
políticas que se propõem a resolvê-la - tem implicações de grande importância.

Nesse sentido, por que hoje a questão social tem sido predominantemente tratada a
partir de “pobreza”? Por que, quando se fala hoje em resolver a questão social, se
pensa em “combater a pobreza” ou ainda “reduzir a quantidade de pobres” do mundo?
Num momento em que a crítica se encontra enfraquecida (BOLTANSKI, 1999) –
sobretudo se comparada com aquela forte crítica existente nos anos sessenta – e de
hegemonia do pensamento neoliberal, aquela “batalha de classificações” destacada
por Topalov (1994) parece não ser tão intensa. A luta pela classificação do mundo
parece ter sido facilmente dominada pelos “porta-vozes”64 da globalização: os
organismos internacionais.

Faz-se necessário, portanto, entender melhor como vem se constituindo essa nova
forma de classificação do social. Diante da proliferação das recomendações de
políticas de “combate à pobreza” e dos estudos voltados para a mensuração do
número de pobres, percebe-se que o social vem sendo enunciado a partir da

64
Tomando, por exemplo, o relatório (World Development Report) do Banco Mundial de 1991,
dedicado inteiramente ao tema do “desenvolvimento” - The Challenge of Development -, é possível
perceber claramente esse papel de porta-voz da globalização neoliberal. Além de propor que o Estado
não atrapalhe o “bom” funcionamento dos mercados e que só atue “naquelas áreas que são inadequadas
para o mercado” (WORLD BANK, 1991, p. iii), destaca-se também outra das afirmações/metas
enfatizadas: o “desenvolvimento econômico de sucesso requer a integração dos países na economia
global. Abertura para os fluxos internacionais de bens, serviços, capitais, trabalho, tecnologia e idéias
estimula o crescimento econômico” (idem).

118
“pobreza”. É preciso, portanto, compreender quais são as conceituações e
instrumentos de intervenção que vem sendo propostos como modelo a ser seguido
pelos governos do mundo todo, sobretudo, os dos países periféricos.

Assume-se neste trabalho que os organismos internacionais, suas recomendações e


seus discursos constituem um lócus fundamental para a análise de como a questão
social vem sendo tratada nos últimos anos e que devem ser tomados como objeto
importante da pesquisa. Para tanto, serão analisados os relatórios de organismos que
vêm fazendo do “combate à pobreza” a grande prioridade para suas atuações, tais
como o Banco Mundial, o PNUD e a OIT. Uma vez analisado como aquelas questões
se manifestam em cada um deles, procurar-se-á comparar essas abordagens, de modo
a perceber até que ponto falam da mesma coisa, que os pontos que seus discursos têm
em comum, a fim de fazer um balanço geral sobre o atual tratamento da questão
social.

A partir de uma análise dos documentos dos organismos internacionais, mostrar-se-á


como a “pobreza” aparece em seus discursos, procurando elucidar qual o significado
tratamento da questão social enquanto “pobreza”. Quais são as implicações da
abordagem da questão social a partir desse conceito? Por que se tornou tão importante
definir e contar os pobres? Além disso, tentar-se-á mostrar como esse tratamento se
traduz em estratégias de políticas e quais suas implicações.

Embora o discurso do “combate à pobreza” seja voltado muitas vezes para o “mundo
inteiro”, seus principais receptores são os países periféricos. Isto não quer dizer que
esse discurso não repercuta nos países centrais65, mas é inegável que ele tem maior
influência sobre os periféricos.

65
O debate sobre a “pobreza” é relevante nos países centrais, mas, como já visto no capítulo anterior,
na França ou nos EUA, trata-se da questão social de maneiras diversas: a partir da noção de “exclusão”
e de “underclass”, respectivamente.

119
1. A emergência do discurso internacional sobre a “pobreza”

Pode-se dizer que a consolidação da agenda do “combate à pobreza” nos países


latino-americanos é, em grande parte, fruto da proliferação de propostas e
recomendações de políticas dessa natureza produzidas pelos organismos
internacionais e de sua conseqüente adoção por parte de seus governos.

A relação entre as instituições internacionais e os governos latino-americanos não é


algo recente. Nascidas no mundo pós-guerra, as instituições resultantes dos Acordos
de Bretton Woods66 - o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – e aquelas
ligadas à Organização das Nações Unidas67 (ONU) operam nos países da América
Latina desde final dos anos quarenta.

Entretanto, é a partir dos anos oitenta que as intervenções do Banco Mundial e do


FMI se tornam mais freqüentes e influentes na região. De fato, diante da dificuldade
financeira e da necessidade de renegociarem suas dívidas externas e aliviarem a
situação de seus balanços de pagamentos, a maioria dos países latino-americanos
começa a estreitar suas relações com os organismos internacionais, cujas idéias,
propostas e recomendações passam a interferir direta (sob forma de condicionalidades
- por exemplo, em troca da renegociação da dívida ou da contração de novos
empréstimos) ou indiretamente - a partir de sua influência ideológica e de suas
“recomendações” de políticas - na política interna daqueles países.

O Banco Mundial e o FMI passam a difundir a agenda do ajuste estrutural. Num


primeiro momento, os programas de ajuste liderados pelas instituições internacionais
consistiram numa “resposta à possibilidade de interrupção dos fluxos de pagamentos
dos países devedores latino-americanos, cujo momento mais crítico foi o default

66
Conferência proposta pelo governo norte-americano, em 1944, e cujo principal objetivo foi organizar
a nova ordem econômica do pós-guerra.
67
A ONU foi fundada após a 2ª Guerra Mundial com o objetivo de manter a paz e a segurança no
mundo. As Nações Unidas são constituídas por seis órgãos principais: a Assembléia Geral, o Conselho
de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela, o Tribunal Internacional de
Justiça e o Secretariado. Ligados à ONU, há organismos especializados que trabalham em áreas tão
diversas como saúde, agricultura, aviação civil, meteorologia e trabalho – por exemplo: a OMS
(Organização Mundial da Saúde) e a OIT (Organização Internacional do Trabalho).

120
mexicano de 1982” (COELHO, 2004). Nesse sentido, Coelho (2004) ressalta que
esses programas tiveram “uma roupagem inicial de curto prazo” (ibidem, p. 2)

Mas, aos poucos foi se percebendo que essas propostas não eram de curto prazo. Seu
conteúdo se mostrava em total consonância com o receituário do chamado “Consenso
de Washington” e se resumia a recomendações de políticas de ajuste de cunho
neoliberal, cujos eixos principais eram a retração do papel estatal, privatizações,
abertura comercial e desregulamentações. Muitas dessas propostas foram colocadas
em termos condicionalidades (isto é, a adoção de determinadas políticas) em troca da
concessão de empréstimos.

Sobre essas condicionalidades dos organismos internacionais, Stiglitz (2002a) afirma


que os países foram "forçados a aceitar um amplo conjunto de condições [que são, na
prática, programas de políticas] para que recebam a assistência. Muitas das condições
não têm nada a ver com a crise (...); algumas entram mesmo em áreas que são de
natureza altamente política." (STIGLITZ, 2002a, p. 15) Segundo Stiglitz (2002b),
suas propostas estavam baseadas

em premissas que se referiam a como os mercados funcionam mas que


não são adequadas nem para países desenvolvidos, muito menos para
países em desenvolvimento. O FMI forçou a adoção dessas políticas
econômicas sem uma visão ampla de sociedade ou do papel para a
economia no interior da sociedade. E ele forçou a adoção dessas políticas
de modo que enfraqueceu as democracias emergentes. (STIGLITZ,
tradução livre, 2002b).

Ao FMI, coube a disseminação das propostas de políticas liberalizantes que diziam


respeito a questões macroeconômicas, tais como: políticas monetárias, controle da
inflação, questões de balança comercial e controle fiscal. Já o Banco Mundial se
preocupou com questões mais estruturais, tais como as referentes ao destino do gasto
do governo, às políticas comerciais, às instituições financeiras (STIGLITZ, 2002c) e,
ainda, assumiu também o papel de formulador de recomendações de natureza política
(GUIMARÃES, 2002, p.13).

Com a progressiva ampliação de suas funções, o Banco Mundial vai atuando cada
vez mais como órgão político central, como uma espécie de coordenador do processo
global de desenvolvimento. Para tanto, o Banco elabora “documentos políticos, nos
quais se destaca uma considerável produção teórico-conceitual na área da política
econômica e social a qual, certamente, sinaliza a sua relação com as nações-
membros” (FONSECA, 1998).

121
Na prática, portanto, esses organismos não atuaram simplesmente como fornecedores
de uma ajuda momentânea, de curto prazo. Ao contrário, ampliaram suas funções
técnicas e financeiras, assumindo cada vez mais um papel político, mediante a
formulação de políticas globais e setoriais capazes de influenciar a agenda dos países
credenciados para seu financiamento. Eles passaram a atuar, em última instância,
como poderosos propagadores da ideologia legitimadora da globalização neoliberal,
conseguindo interferir na condução das políticas domésticas daqueles países, as quais
representaram, em seu conjunto, uma ampla agenda baseada, nos termos de Stiglitz
(2002b), num “fundamentalismo ideológico de mercado”.

Seria simplificador, entretanto, afirmar que a adoção das políticas de ajuste estrutural
nos países periféricos tenha sido resultante pura e simplesmente de uma imposição
por parte dos organismos internacionais. Se, por um lado, esses países passavam por
dificuldades e precisavam negociar suas dívidas externas – e, nesse sentido,
precisavam obedecer ao que lhes estava sendo proposto -, por outro lado, é preciso
levar em conta também houve uma adesão ao caminho neoliberal por parte dos
governos conservadores latino-americanos. É o que se percebe na afirmação de
Batista (1994) acerca da guinada conservadora:

Tudo se passaria, portanto, como se as classes dirigentes latino-


americanas se houvessem dado conta, espontaneamente, de que a
gravíssima crise econômica que enfrentavam não tinha raízes externas – a
alta dos preços do petróleo, a alta das taxas internacionais de juros, a
deterioração dos termos de intercambio – e se devia apenas a fatores
internos, às equivocadas políticas nacionalistas (...). Assim, a solução
residiria em reformas neoliberais apresentadas como propostas
modernizadoras, contra o anacronismo de nossas estruturas econômicas e
políticas. (idem)

E o autor continua:

Contribuía para a pronta aceitação do diagnóstico e da proposta neoliberal


– dessa visão economicista dos problemas latino-americanos – a
existência de um grande número de economistas e cientistas políticos
formados em universidades norte-americanas, de Chicago e Harvard, onde
passara a pontificar uma visão clássica e monetarista dos problemas
econômicos. Alguns desses economistas seriam chamados a ocupar
posições de comando em seus países de origem. (idem)

Desse modo, não se pode dizer que a implantação de uma agenda neoliberal nos
países latino-americanos tenha sido pura imposição, mas sim que ela conseguiu
construir uma hegemonia no continente. De qualquer maneira, seja porque precisavam
renegociar suas dívidas externas e tomar novos empréstimos – e, portanto, era preciso

122
“obedecer” às condicionalidades -, seja porque na década de oitenta observou-se um
predomínio do neo-conservadorismo nos governos latino-americanos – ou ainda (o
mais provável) pelos dois motivos -, o fato é que a agenda desses governos esteve
voltada para a implementação do neoliberalismo na região, e, portanto, alinhada com
as recomendações dos organismos internacionais.

Se, nesse período, essas propostas estiveram voltadas para o ajuste estrutural, diante
do agravamento das condições sociais decorrentes das políticas de ajuste (por
exemplo, aumento do desemprego, da informalidade, da precarização do emprego,
redução dos salários), dimensões mais “sociais” ou “humanas” (que tinham
desaparecido da formulação de políticas “de desenvolvimento” - em prol da dimensão
econômica) vão emergindo pouco a pouco. Cling, Razafindrakoto e Roubaud (2003)
ressaltam três motivos para que os organismos internacionais tenham se voltado para
questões daquelas naturezas, lançando estratégias de “luta contra a pobreza”, as quais
vêm, por sua vez, ocupando o centro de suas ações: (i) a constatação dos altos custos
do ajuste, (ii) a proliferação das críticas (internas e externas) ao Consenso de
Washington e à globalização neoliberal e (iii) os questionamentos da legitimidade dos
organismos internacionais.

Em primeiro lugar, a constatação dos altos custos sociais do ajuste é divulgada, no


mundo dos organismos internacionais, com a publicação, em 1987, de Adjustment
with a Human Face, organizado por membros da UNICEF. Esta obra surge como
alerta sobre as conseqüências nefastas dos programas de ajuste estrutural. Embora
tenha colocado seus impactos negativos em evidência, não foi proposto um abandono
do ajuste. Apenas se considerou necessário dar-lhe uma “face humana”, ou seja,
incluir em seu receituário as políticas de alívio (CORNIA et alli, 1987, p. 2). Mas, de
qualquer modo, esse alerta da publicação chamou a atenção para a questão e, ainda,
funcionou como um reconhecimento, no mundo dos organismos internacionais, de
que as políticas de ajuste tinham um “custo” social.

Ao longo dos anos noventa, várias conferências internacionais das Nações Unidas
contribuíram em seguida à uma tomada de consciência dessa questão. O primeiro
Human Development Report do PNUD aparece em 1990 com a preocupação de tratar
da “dimensão humana do desenvolvimento” (PNUD, 1990) e, nesse mesmo ano, o

123
Banco Mundial dedica inteiramente seu World Development Report ao tema da
pobreza68 (WORLD BANK, 1990).

Em 1995, realizou-se em Copenhague uma sessão extraordinária da ONU sobre o


tema da pobreza. E, um ano depois, “a Assembléia geral das Nações Unidas
proclamou 1996 o ‘ano internacional da erradicação da pobreza’ e, o decênio 1997-
2006, foi considerado como o ‘Primeiro decênio das Nações Unidas para a eliminação
da pobreza’” (CLING et alli, 2003, p. 3). Desde então, cada vez mais os organismos
internacionais fazem do “combate à pobreza” uma prioridade, o que se tem mostrado
como novo consenso da retórica internacional.

Em segundo lugar, é ressaltada a importância das críticas - internas e externas - ao


“Consenso de Washington” e à globalização neoliberal.

Quanto às críticas ao “Consenso de Washington”, pode-se dizer que, frente ao


fracasso das políticas de ajuste estrutural e diante de seus custos sociais, que se
somam aos efeitos das crises mexicana (1995), tailandesa (1997) e russa (1998),
foram surgindo, dentro dos próprios organismos internacionais, autores que passaram
a questionar e a criticar o que foi definido no Consenso de Washington, tanto em
relação a suas conseqüências sócio-econômicas quanto à excessiva instabilidade
decorrente da complacência diante da volatilidade dos fluxos de capitais para as
economias emergentes.

Stiglitz (1998), por exemplo, critica o Consenso de Washington afirmando que se


deve ir além dele – o que ele chama de “pós-Consenso de Washington”. Para ele, o
consenso confundia meios com fins: ele considerava a privatização e a liberalização
do comércio como fins em si mesmos, em vez de considerá-los como meios para se
alcançar um crescimento mais sustentável, eqüitativo e democrático. Além disso, o
consenso de Washington estava muito enfocado na estabilização dos preços, em lugar
do crescimento e da estabilidade da produção.

Ao dizer que se deve ir além, percebe-se que Stiglitz assume que a proposta do
Consenso de Washington já é um começo, embora seja insatisfatória para o

68
Embora o Banco Mundial já tivesse se dedicado antes à temática da pobreza – nos tempos em que
era presidido por Robert McNamara (o que pode ser percebido pelos relatórios de 1978, Prospects for
Growth and Alleviation of Poverty, e o de 1980, Poverty and Human Development) -, o fato de a
instituição ter se dedicado uma década inteira aos programas de estabilização e de ajuste estrutural faz
com que o reaparecimento do tema da pobreza, no relatório de 1990 – Poverty -, possa ser entendido
como uma “novidade”.

124
desenvolvimento da sociedade. Em última instância, Stiglitz acaba não discordando
de suas premissas e acreditando nos benefícios do capitalismo globalizado. Fiori
(2001) argumenta nesse sentido:

A nova posição, representada por Stiglitz, não está em desacordo com os


objetivos gerais do Consenso. O que ela não aceita e critica é a convicção
de que ‘os mecanismos de mercado’ possam resolver, automaticamente,
os problemas do crescimento econômico e da distribuição eqüitativa da
riqueza. Mas critica também a forma descontrolada e selvagem dos
processos de privatização, que acabaram substituindo o Estado por novos
monopólios privados; a obsessão do ‘velho consenso’ com o problema da
inflação, que Stiglitz considera um dos grandes responsáveis pelo baixo
crescimento das economias submetidas à terapia de Washington. (FIORI,
2001, p. 89)

Stiglitz (2002c) aprofundou suas críticas em relação ao “Consenso de Washington” no


livro Globalization and its Discontents, no qual critica a maneira como o processo de
globalização foi pensado e conduzido pelos organismos internacionais, destacando a
importância do papel do Estado em regular e complementar os mercados - tal como
havia sito descrito nos relatórios do Banco Mundial de 1997 (O Estado num Mundo
em Transformação) e o de 2002 (Building Institutions for Markets) - e em promover a
eliminação da pobreza.

Além de ter sido questionado desde o interior do establishment multilateral, o


Consenso de Washington, os fundamentos das ações dos organismos internacionais e
a globalização neoliberal também sofreram fortes críticas por parte das resistências
políticas organizadas, sobretudo a partir dos movimentos contra-hegemônicos e anti-
globalização (ou “antimundialização”) que tiveram suas primeiras manifestações em
Chiapas (em 1996, no “Primeiro Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra
o Neoliberalismo”) – o “primeiro elo do movimento internacional contra a
mundialização liberal” (SEOANE e TADDEI, 2001) -, passando, por exemplo, por
Seattle, em 1999 – “momento de consolidação de vasto, diverso e novo movimento
planetário contra a injustiça” (ibidem, p. 163) -, Praga, Genova e Porto Alegre - onde,
em 2000, nasceu o Fórum Social Mundial.

O término da década de 90 na América Latina mostra um aumento


significativo dos protestos sociais, que parece reverter a menor
conflitividade registrada no começo da década. (...) O terrível impacto
social das transformações estruturais veiculadas pelas políticas neoliberais
começa a sacudir a ‘paz social’ do continente a partir de meados dos anos
90. Os protestos assumem um impulso decisivo (...)[em] 1999-2000,
dando origem a novas formas de luta e a novos atores e movimentos
sociais, que manifestam as profundas transformações experimentadas

125
pelas estruturas sociais da região sob o influxo das políticas neoliberais
durante a década. (SEOANE e TADDEI, 2001, p. 169)

Desde 1999, dezenas de milhares de pessoas reuniram-se em dois tipos


distintos de iniciativas: o protesto contra os projetos das grandes
instâncias mundiais de decisão – Banco Mundial, Fundo Monetário
Internacional (FMI), OMC, União Européia – e o outro, mais
institucional, os Fóruns mundiais, continentais, nacionais, locais. Essas
reuniões tornaram-se um fato político central. (HOUTART, 2003).

Sem entrar muito numa discussão sobre as conquistas69 e os limites70 desses


movimentos do altermundialismo71, é possível afirmar que suas críticas direcionadas
ao neoliberalismo (ou à globalização neoliberal) somadas aos questionamentos ao
“Consenso de Washington” oriundos do interior do próprio establishment cumpriram,
em alguma medida, o papel de “crítica” - enfatizado por Boltanski (1999) - e, de
alguma maneira, abalaram a legitimidade do discurso defendido pelos organismos
internacionais, que se viram na necessidade de mudar suas estratégias de justificação,
em prol da manutenção de sua legitimidade e de seu projeto de poder. Ou seja, de
algum modo, essas críticas pressionaram o modo de justificação do capitalismo
globalizado, que se viu na necessidade de se transformar. Nos termos de Boltanski
(1999), a crítica cumpriu, nesse momento, o papel de “motor nas mudanças do
espírito do capitalismo” (BOLTANSKI, 1999, p. 69), mudanças estas que raramente
são radicais72.

69
A grande conquista desses movimentos parece ser a de tentar recriar a utopia no mundo
contemporâneo. Na medida em que se afirma que “um outro mundo é possível”, é questionada, ou
mesmo derrubada, a tese do “fim da história” dos anos oitenta/noventa e abrem-se novos horizontes
para o mundo social, muito embora não esteja claro de que horizontes se tratam.
70
Em relação ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, por exemplo, Emir Sader (2003) afirma que o
fato de seu Comitê Organizador ter sido composto majoritariamente por organizações não-
governamentais fez com que o caráter do evento fosse o de “espaço de aglutinação da ‘sociedade
civil’”, fato do qual Sader destaca duas problemáticas. Por um lado, ressalta a possibilidade de
“coincidências perigosas do resgate da “sociedade civil” com movimentos neoliberais (...), [as quais,
contudo,] não tiveram até aqui efeitos negativos que desfigurassem o caráter (...) antineoliberal dos
fóruns” (SADER, 2003, p. 86). Por outro lado, Sader afirma que essa opção pela “sociedade civil”
também “deixa de fora os partidos e os governos, ao assumir a oposição sociedade civil/Estado. Esse
aspecto é mais grave, não apenas porque um movimento antineoliberal não pode prescindir de
nenhuma força numa luta ainda tão desigual, mas principalmente porque se abstrai das temáticas do
poder, do Estado, da esfera pública, da direção política e até mesmo, de alguma forma, da luta
ideológica.” (idem). E continua: “esse aspecto termina sendo grave porque, se levado estritamente
adiante, limita a formulação de propostas alternativas ao neoliberalismo. Nesse caso, a busca de
alternativas fica restrita ao marco local (...) sem propostas globais de projetos negadores e superadores
do neoliberalismo como proposta global do capitalismo” (ibidem, p. 87).
71
Reunidos em torno da idéia de que “um outro mundo [ou outra globalização] é possível”.
72
Boltanski (1999, p. 70-71) destaca três possíveis efeitos da crítica sobre o “espírito do capitalismo”:
(i) ela pode deslegitimar o espírito vigente, minando as modalidades de adesão social a ele associadas;
(ii) a crítica força o capitalismo a respondê-la. Para conservar a adesão social, o espírito do capitalismo

126
Por fim, em terceiro lugar, somado àqueles dois fatores já ressaltados – a evidência
das mazelas sociais e a proliferação das críticas - um outro motivo é destacado por
Cling et alli (2003) para que os organismos internacionais tenham se voltado para
questões “mais sociais”. Cling et alli (2003) o entendem como uma “crise de
legitimidade” dos organismos internacionais. Embora o termo seja demasiado forte, e
não pareça ser o caso, é importante perceber que esses organismos passaram por
questionamentos73 de sua legitimidade, o que também contribuiu para uma
“mudança” da retórica internacional.

Se, por um lado, os defensores mais radicais do “Consenso de Washington”


diagnosticaram seu fracasso a partir do argumento da “não-completude” de sua
agenda - como é o caso de John Williamson (WILLIAMSON e KUCZNSKI, 2004) -,
percebe-se que, por outro, sem negar esses últimos, os organismos internacionais
acabam adaptando suas estratégias e incorporam elementos das críticas em sua
própria justificação.

Se no momento anterior eles eram os propagadores da “modernidade”, do ajuste


estrutural e da globalização neoliberal, num momento seguinte eles passam, sobretudo
o PNUD e o Banco Mundial, a ser os defensores da eliminação da pobreza - “o nosso
sonho é um mundo sem pobreza”74 : “O Banco Mundial assumiu a missão de
combater a pobreza com paixão e profissionalismo, colocando essa luta no centro de
todas as suas atividades.” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. v)

Outro exemplo para essa mudança de retórica seria também o fato de o FMI ter
mudado a denominação e o enfoque de seus programas:

Em setembro de 1999, o FMI adotou um novo enfoque de luta contra a


pobreza em suas relações com os países de baixa renda. Como parte desta
reorientação, o FMI considerou terminado o serviço reforçado de ajuste
estrutural (SRAE) e o substituiu com um novo serviço financeiro em favor

absorve ou incorpora em si mesmo alguns dos elementos ressaltados (denúncias, valores, etc.) pela
crítica; (iii) a crítica leva a transformações internas no próprio processo de valorização do capital que
demandam outras formas de justificação. O “mundo [fica] momentaneamente desorganizado em
relação aos referentes anteriores e (...) [se torna indecifrável]. (...) a crítica se encontra desarmada
durante um tempo. O velho mundo que denunciava desapareceu, mas ainda não se sabe o que dizer do
novo. A crítica atua como um estimulante para acelerar a transformação dos modos de produção, os
quais entram em tensão com as expectativas dos assalariados formados com a base nos processos
anteriores, o que chamará a uma recomposição ideológica destinada a mostrar que o mundo do trabalho
tem ainda um «sentido»”. (BOLTANSKI, tradução livre, 1999, p. 71)
73
No lugar de “crise”, parece se adequar melhor à situação a idéia de “questionamentos”.
74
Esta frase se encontra escrita na parede da entrada da sede do Banco Mundial, em Washington.

127
(...) [daqueles] países (...), o serviço para o crescimento e a luta contra a
pobreza (SCLP). (FMI, 2001)

Essa “nova agenda” poderia ser interpretada, em certa medida, como uma resposta
dos defensores (e legitimadores) do sistema àquelas críticas, a partir da incorporação
de alguns dos pontos por elas levantados – um dos efeitos da crítica levantados por
Boltanski (1999, p. 71). Ou seja, diante da necessidade de levar em consideração os
efeitos sociais nefastos resultantes da implementação da agenda do ajuste, a retórica
internacional começa a se transformar e passa a levar em consideração o “lado social”
e a centrar-se na questão do “combate à pobreza”.

Essa “virada” de ênfase nas preocupações (e recomendações) dos organismos


internacionais - passando do “ajuste estrutural” ao “combate à pobreza” – poderia ser
percebida como uma mudança de rumo da retórica internacional, tal como afirmam
Cling et alli (2003). Afinal de contas, estaria se deixando de falar em questões
estritamente econômicas, voltando-se para questões mais “humanas”. Contudo, por
mais “humanas” ou “politicamente corretas” que possam parecer essas novas
propostas de políticas de cunho mais social – afinal de contas, quem seria contra a
redução da pobreza? -, e, ainda, por mais que aqueles três fatores ressaltados por
Cling et alli (ibidem) tenham, de fato, influenciado essa pretensa mudança no
discurso, é difícil aceitar o argumento de que essa nova retórica represente realmente
uma transformação em seus projetos. Afinal de contas, a “importância” das reformas
do ajuste não é questionada; elas são vistas como necessárias pelo rumo quase
“natural” das coisas: o mundo “em transformação”, a globalização.

Assim, ao contrário - antecipando um pouco o que será discutido mais à frente –, a


retórica internacional sobre a pobreza, longe de representar mudanças, compartilha os
fundamentos ideológicos das estratégias neoliberais. Ou seja, o mundo social
pressuposto pelo tratamento da questão social a partir do conceito de “pobreza” é
justamente o mundo social característico do neoliberalismo. Embora os organismos
internacionais se preocupem em tratar do humano e do social em suas propostas de
políticas de “desenvolvimento”, é preciso distinguir bem em que consiste esse
“humano” e “social”; em suma, em que consiste esse conceito de “pobreza” de que
tanto se fala e o que se pressupõe quando se trata da questão social enquanto
“pobreza”.

128
Os organismos internacionais que mais têm se dedicado ao tema da pobreza e do
“combate à pobreza” são o Banco Mundial75 e o PNUD76 (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento). Embora a OIT (Organização Internacional do
Trabalho) não faça do “combate à pobreza” seu principal objetivo ou mesmo sua
raison d’être, ela também tem se dedicado à questão e, portanto, também merece
atenção77.

Para entender como a questão social vem sendo tratada atualmente, é preciso atentar
para o conceito de “pobreza”, como ele vem sendo formulado e mobilizado. Para
tanto, serão analisados os relatórios anuais desses organismos, com destaque para
aqueles que se dedicam especificamente à temática da “pobreza”.

É possível delinear os significados desse novo tratamento para a questão social, ou


seja, o que se quer dizer quando se fala hoje em “pobreza” a partir de três eixos. Em
primeiro lugar, a partir das definições e conceituações explícitas para o termo
“pobreza” nas análises daqueles organismos internacionais. Em segundo lugar, é
possível apreender significados para a “pobreza” a partir do que se ressalta como
causas para ela. Ou seja, a partir de suas “causas” é possível entender melhor como se
trata o objeto em questão. Por fim, um terceiro eixo para entender como a “pobreza”
vem sendo tratada - e quais os pressupostos normativos desse tratamento - partiria das
recomendações de políticas para “solucioná-la”: as políticas de combate à pobreza.
No presente capítulo, discutir-se-á o primeiro e o segundo eixos. O terceiro eixo será
deixado para o próximo capítulo.

75
“Atualmente, a principal meta do trabalho do Banco Mundial é a redução da pobreza no mundo em
desenvolvimento.” - http://www.obancomundial.org/index.php/content/view/6.html
76
“O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento tem como mandato central o combate à
pobreza.” - http://www.pnud.org.br/pnud/
77
Num primeiro momento, talvez pudesse se considerar que seria também conveniente examinar a
CEPAL, uma vez que é uma instituição que, desde sua criação, procurou assumir uma postura crítica
em relação ao pensamento dominante e construir uma interpretação alternativa para os problemas e
desafios latino-americanos. Mas, a despeito disso, tal empreitada não se justifica para os propósitos
deste trabalho, uma vez que a CEPAL não tem a temática da “pobreza” no centro de suas preocupações
- só incorpora o discurso do “combate à pobreza” a partir do ano 2000 - e, sobretudo, porque, a
despeito dessa incorporação, percebe-se que não há uma discussão específica sobre o que é a pobreza e
quais são suas causas. Ao contrário, sua preocupação para com a pobreza é mais em descrevê-la - e de
fornecer informações sobre sua realidade (evolução da pobreza, sua distribuição espacial, dentre
outros) (CEPAL, 2004) - do que em trabalhar conceitual e teoricamente a questão. Assim, quando a
CEPAL trata da “pobreza”, ela utiliza definições externas, tal como a de “linha de pobreza” – bastante
presente em seu Panorama Social (CEPAL, 2000; 2004). Desse modo, para evitar repetições
cansativas, a CEPAL não entrará nesta discussão.

129
2. Os discursos dos organismos internacionais: a “pobreza” e suas
causas, segundo o Banco Mundial, o PNUD e a OIT

2.1. Banco Mundial

Diante da vasta lista de publicações do Banco Mundial, é necessário que se escolha


quais dos documentos devem ser analisados. Frente a grande importância dedicada
aos World Development Reports - os quais são, segundo o próprio Banco Mundial,
são sua melhor contribuição para “pensar o desenvolvimento” -, eles são tomados
como material empírico para a presente pesquisa.

Com publicação anual, esses relatórios se apresentam como um guia para o mundo no
que diz respeito às questões econômicas, sociais, políticas e ambientais atuais. “Cada
ano o WDR fornece uma análise profunda sobre um aspecto específico do
desenvolvimento. (...) [são abordados] tópicos como o papel do Estado, economias em
transição, trabalho, infra-estrutura, saúde, meio ambiente, e pobreza.”78 Embora cada
relatório se dedique a um tema específico79, os World Development Reports não são
estudos isolados ou independentes; eles dialogam entre si. Cada relatório novo faz
referências às questões discutidas nos anteriores imediatos ou aos relatórios mais
antigos que discutiram o mesmo tema, ressaltando os avanços, as limitações
anteriores, etc.

Além de cada relatório ter os objetivos de “promover o debate” e de “inspirar


mudanças políticas” (WORLD BANK, 1995) para seu tema específico, cada WDR
acaba constituindo uma parte que formará um todo. Assim, ao se complementarem e

78
Retirado do site do Banco Mundial: http://www.worldbank.org/
79
Prospects for Growth and Alleviation of Poverty (1978), Structural Change and Development Policy
(1979), Poverty and Human Development (1980), National and International Adjustment (1981),
Agriculture and Economic Development (1982), Management in Development (1983), Population
Change and Development (1984), International Capital and Economic Development (1985), Trade
and Pricing Policies in World Agriculture (1986), Industrialization and Foreign Trade (1987), Public
Finance in Development (1988), Financial Systems and Development (1989), Poverty (1990), The
Challenge of Development (1991), Development and the Environment (1992), Investing in Health
(1993), Infrastructure for Development (1994), Workers in an Integrating World (1995), From Plan to
Market (1996), The State in a Changing World (1997), Knowledge for Development (1998/1999),
Entering the Twentieth Century (1999/2000), Attacking Poverty (2000/2001), Building Institutions for
Markets (2002), Sustainable Development in a Dynamic World (2003), Making Services Work for
Poor People (2004), A Better Investment Climate for Everyone (2005), Equity and Development
(2006), Development and the Next Generation (2007), Agriculture for Development (2008).

130
dialogarem uns com os outros, esses relatórios parecem ter também, em seu conjunto,
a pretensão de formar um grande modelo teórico a ser recomendado como referência
normativa para o mundo inteiro. No que diz respeito ao tema da “pobreza”, os World
Development Reports (os “Relatórios sobre Desenvolvimento Mundial”) que se
dedicaram a esse tema específico foram o de 1990 - A Pobreza - e o de 2000-2001 – A
Luta contra a Pobreza.

2.1.1. Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 1990: A Pobreza

O discurso presente no relatório de 1990, que justifica a importância do tema da


pobreza nada tem a ver com algum tipo de reconhecimento do fracasso das políticas
de ajuste estrutural. Ao contrário, segundo o Banco Mundial (WORLD BANK, 1990,
p. 1), o “mundo em desenvolvimento” teve “um enorme progresso” nas últimas
décadas. Mas, a despeito desse “enorme progresso”, o Banco Mundial constata que há
“mais de um bilhão de pessoas no mundo em desenvolvimento que vivem na
pobreza” (idem). Assim, é a partir disso que a questão da pobreza é problematizada no
relatório de 1990, que se propõe a entender e a explicar a pobreza, para poder
mensurá-la, assim como propor políticas para combatê-la.

Em 1990, o Banco Mundial definiu a pobreza como: “a incapacidade de atingir um


padrão de vida mínimo” (ibidem, p. 26). Desta definição, podem ser destacadas duas
questões diferentes: (i) o que é um padrão de vida mínimo?; (ii) o que se entende por
“incapacidade”? A primeira se coloca como uma questão mais de caráter
metodológico; já a segunda envolve temas mais amplos e diz respeito às “causas” da
pobreza e também às estratégias de combate à pobreza, as quais serão analisadas no
próximo capítulo.

Em relação à primeira questão, o Banco Mundial apresenta a seguinte resposta: o


padrão de vida mínimo deve ser avaliado pelo consumo, isto é, a despesa necessária
para que se adquira um padrão mínimo de nutrição e outras necessidades básicas e,
ainda, uma quantia que permita a participação da pessoa na vida cotidiana da
sociedade. Assim, trata-se de calcular um valor mínimo para cada país (ou região) e,
em seguida, comparar o valor encontrado com a renda dos indivíduos. Aqueles que
tiverem uma renda inferior a esse valor poderão ser considerados pobres e, portanto,

131
sem condições de viver minimamente bem. Percebe-se, portanto, que a definição de
pobreza é, em 1990, baseada em critérios monetários (renda).

Para transformar a definição de “padrão de vida mínimo” num instrumento mais


objetivo de definição do que é ser pobre, o Banco Mundial propõe a utilização da
“linha de pobreza”, que separa os pobres dos não-pobres a partir de um valor
estipulado para o “padrão de vida mínimo”. O valor proposto varia entre US$275 e
US$ 370 por pessoa por ano, ou seja, em torno de um dólar por dia por pessoa.

Além de determinar o critério que distingue o pobre do não-pobre, o Banco Mundial


se preocupa também em medir e criar índices: por um lado, propõe calcular o número
de pobres como proporção da população - headcount index (WORLD BANK, 1990,
p. 27). Mas esse índice teria o defeito de não permitir a medição do quanto os pobres
estão abaixo da linha de pobreza. Para resolver esse problema, é proposto um outro
índice – o “hiato de pobreza” (poverty gap) – (ibidem, p. 28) que mede a quantia
necessária (transferência) para cada pobre “subir” exatamente até a linha de pobreza.
Ou seja, seria o indicador da quantia exata necessária para “eliminar a pobreza”, de
modo que todos os pobres “subam” exatamente até o limite (entre pobre e não-pobre)
representado pela linha de pobreza.

Assim, um dos lados da pobreza caracteriza-se por estar aquém de um padrão de vida
mínimo (traduzido por um valor monetário exato). Percebe-se que, quando se define e
se ressalta a pobreza como o fato de estar abaixo de um determinado valor, estão
presentes duas preocupações centrais: por um lado, a de distinguir ou separar com
exatidão quem é pobre de quem é não-pobre e, por outro, a de contar o número exato
de pobres. Esses objetivos podem ser claramente percebidos quando, mais à frente,
forem analisadas as recomendações de estratégias para “combater” a pobreza.

No que diz respeito à questão (ii) ressaltada anteriormente - o que se entende por
“incapacidade”? -, ou seja, o “outro lado” do que é pobreza, é possível afirmar que ela
remete àquilo que o Banco Mundial ressalta como causas da pobreza. Pode-se afirmar
que a renda insuficiente do pobre é explicada a partir de duas noções que se
relacionam entre si: falta de “ativos” (assets) e falta de oportunidades.

Embora não seja explicada explicitamente, a questão das “oportunidades” é a grande


chave para entender a pobreza, já que ela significa oportunidades de obter renda. A

132
existência ou falta de oportunidades é vinculada diretamente à carência de “ativos”.
Assim, possuir ou não ativos afeta diretamente as “oportunidades” dos indivíduos.

Contudo, esse fato de “possuir ou não ativos” não é explicado: ou a pessoa tem ativos,
ou ela não tem. Talvez, o pressuposto seja de que o indivíduo optou ou decidiu por
não investir, por exemplo, em seu “capital humano” - tal como afirma a teoria do
capital humano, por exemplo: Schultz (1973) -, porém isso não está claro no relatório.
Mas, de qualquer forma, essa questão não é discutida, não há um porquê exterior ao
indivíduo.

Assim, além de ser definido a partir do “consumo” medido em termos monetários, ou


seja, como aquele que não tem renda suficiente para satisfazer a nutrição e outras
necessidades básicas, e, portanto, não pode estar acima da “linha de pobreza”, o pobre
também é visto como aquele cujo problema é a falta de “ativos” (ibidem, p. 31). Ou
seja, a causa da situação de pobreza reside no próprio pobre, no fato de ele ser assim -
sem “ativos” que lhe criem “oportunidades”: “A dotação de ativos afeta diretamente
as oportunidades de renda”. (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 32) A causa da
renda insuficiente residiria na ausência de ativos.

Esses ativos podem ser de vários tipos, e os dois “ativos” mais importantes para a
criação de oportunidades para os pobres são: “capital humano” (para o pobre urbano)
e o acesso à “terra” (ao pobre rural). Entretanto, como se ressaltou anteriormente, não
há um significado explícito para oportunidades. A partir do que o Banco Mundial
coloca enquanto meios para aumentá-las, é possível entender um pouco mais o que
vem a ser “oportunidades”.

No caso das oportunidades ampliadas pela terra, no mundo rural, a idéia é simples, já
que oportunidades representariam as possibilidades de plantio, seja para consumo
próprio (satisfazendo as necessidades de nutrição), seja para venda da produção, e
assim, aumentando suas rendas. Com mais rendas, o pobre poderia ultrapassar a
“linha da pobreza” e ser considerado um não-pobre.

Mas, no que diz respeito às oportunidades ampliadas pelo aumento de “capital


humano”, a lógica sobre o “aumento das rendas” é menos trivial. A influência da
“teoria do capital humano” é bastante clara na argumentação exposta no relatório de
1990.

133
Como foi visto no segundo capítulo, a “teoria do capital humano” – que tem como
referência Theodore Schultz (SCHULTZ, 1973) - afirma que as diferenças de rendas
entre os indivíduos são influenciadas pelo capital humano (principalmente educação)
que cada um investe em si mesmo. E seu raciocínio básico pode ser assim sintetizado:
(i) aumento da educação dos trabalhadores, (ii) estes terão suas habilidades e
conhecimentos melhorados, (iii) quanto maiores as habilidades e conhecimentos,
maior a produtividade do trabalhador; (iv) essa maior produtividade acaba gerando
maior competitividade e, assim, maiores rendas para o indivíduo.

Desse modo, embora o Banco Mundial (1990) não defina muito bem as
oportunidades, parece estar subentendido que são oportunidades no “mercado” de
trabalho. Com mais educação, os indivíduos pobres passam a ser mais produtivos, a
ter maior poder para escolher alternativas para suas vidas e, assim, ter “maiores
chances” de renda; tudo isso porque estariam mais aptos para competir no mercado.
Ou seja, uma das grandes causas enfatizadas para a pobreza é o fato de que os
“pobres” não conseguem competir. Seria por isso que apresentam dificuldades de
obterem rendas. No fim das contas, o que se pressupõe é que se, por um lado, as
oportunidades podem ser geradas pelo crescimento econômico (alcançado a partir do
aprofundamento e aceleração da inserção da economia na globalização), por outro,
elas são criadas pelo próprio indivíduo através de seus “ativos” - seu “capital
humano”, por exemplo.

Resumindo, o pobre é caracterizado, no Relatório de 1990, a partir de dois critérios:


por um lado, como aquele que não tem renda suficiente para estar acima da “linha de
pobreza” (critérios monetários determinado por um determinado padrão de consumo)
e, por outro, como aquele que não tem “ativos” suficientes que lhes criem
oportunidades para conseguir auferir aquela renda suficiente para ultrapassar a “linha”
– critério este que faz do “pobre” um indivíduo “não-competitivo”.

134
2.1.2. O Relatório sobre Desenvolvimento Mundial de 2000/2001: A Luta
contra a Pobreza

O relatório de 2000/2001 define a pobreza como “privação acentuada de bem-estar”.


Se o relatório de 1990 definia privação a partir de critérios monetários – tal como
renda e consumo - e apontava para o “capital humano” – medido pelos níveis de
educação e saúde do indivíduo – como idéia fundamental para pensá-la, o de
2000/2001 se propõe a ampliar a visão “tradicional” sobre a pobreza, enfatizando as
suas “múltiplas dimensões”.

Nesse sentido, pretendendo ir além da abordagem monetária da pobreza, o relatório de


2000/2001 afirma que a entende a partir de três eixos centrais: (i) falta de renda e
recursos para atender necessidades básicas, incluindo níveis aceitáveis de educação e
saúde; (ii) falta de voz e de poder nas instituições estatais e na sociedade; (iii)
vulnerabilidade a choques adversos e exposição a riscos, combinados com uma
incapacidade de enfrentá-los. Percebe-se, portanto, que as novidades do relatório de
2000/2001 referem-se aos itens (ii) e (iii).

Embora ressalte as “múltiplas dimensões” da pobreza e traga “novidades”, o novo


tratamento da “pobreza” pelo Banco Mundial se mostra um tanto ambíguo; ao tentar
definir quem é pobre e propor critérios de mensuração da pobreza, ou seja, contar o
número de pobres ou a proporção de pobres existente num determinado país, o
relatório de 2000/2001, “em vez de tentar definir um índice composto ou medir
compensações entre dimensões, focaliza a privação em diferentes dimensões e, em
particular, as múltiplas privações por que passam os pobres de renda.” (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 21).

Ou seja, a despeito de o relatório levar em conta certas privações múltiplas, para dizer
quem é pobre e “medir” a pobreza (e dizer quem é “pobre” e quem é “não-pobre”),
continua utilizando os indicadores monetários – aqueles mesmos de 1990 -, quais
sejam: linha de pobreza – “instrumento essencial no desenvolvimento de medidas de
pobreza”: um dólar por dia - e hiato de pobreza (poverty gap). (ibidem, p. 18)

Para dar conta das outras dimensões, são indicados, paralelamente, critérios (índices)
de avaliação dos níveis de saúde e educação; e é ressaltada a dificuldade de se medir

135
os dois elementos novos: a vulnerabilidade e a falta de voz e de poder dos pobres.
Quanto à “vulnerabilidade”, que é entendida como a taxa de entrada e saída da
pobreza, ressalta-se a dificuldade de se mensurar um conceito “dinâmico”; já no que
diz respeito aos meios de avaliação da falta de voz e de poder dos pobres, são
propostos métodos participativos, pesquisas de opinião, levantamento de variáveis
qualitativas.

Percebe-se, então, que a “necessária” distinção entre pobres e não-pobres parte de


critérios monetários; as outras facetas da pobreza – suas “múltiplas dimensões” - são
consideradas apenas num momento posterior - ou seja, quando se quer explicar e
ressaltar quais são as “causas” da pobreza e como incidir (através de políticas) sobre
elas.

Para examinar, explicar e discorrer sobre as causas da pobreza e, assim, evidenciar


seu lado inovador, o relatório do Banco Mundial de 2000/2001 toma, como ponto de
partida, o estudo The Voices of the Poor, realizado em 2000, cujo objetivo consistiu
em ouvir o que os “pobres” de cinqüenta países do mundo “em desenvolvimento” têm
a dizer sobre a “pobreza”. Assim, o estudo partiu de uma avaliação “participativa” da
pobreza, que consiste num método que procura o expressar a voz dos pobres, a partir
do que eles têm a dizer sobre a pobreza, uma vez que são considerados os únicos
expertos sobre essa temática.

Logo na introdução desse estudo, constata-se que:

A pobreza dói. As pessoas pobres sofrem dor física como conseqüência de


comer pouco e trabalhar muitas horas; dor emocional em função das
humilhações diárias que gera a dependência e a falta de poder e dor moral
por se verem forçadas a fazer escolhas. (NARAYAN, 2000, p. 3)

Diante de tal constatação, logo vem a seguinte indagação: já que a pobreza é tão
dolorosa, por que os pobres “permanecem na pobreza”? (idem) Ou seja, por que eles
não procuram sair da pobreza? Para analisar a questão, duas perspectivas são
ressaltadas: (i) a partir das realidades, experiências e pontos de vista dos pobres; e (ii)
a partir de um ponto de vista institucional, centrando a atenção nas instituições
informais e formais da sociedade com as quais interagem as pessoas pobres.

136
Do ponto de vista das realidades dos pobres, uma das conclusões desse estudo foi que
“a pobreza tem várias dimensões” (NARAYAN, 2000, p. 4) que estão
interconectadas. Dentre as definições de pobreza dadas pelas pessoas que se
encontram nessa situação prevalecem seis dimensões:

Primeiro, (...) o essencial é sempre a fome e a falta de alimentos. Segundo, a


pobreza tem dimensões psicológicas importantes como a impotência, a falta
de voz, a dependência, a vergonha e a humilhação. (...) Terceiro, as pessoas
pobres carecem de acesso à infra-estrutura básica (...). Quarto, (...) as
pessoas pobres se dão conta de que a educação brinda uma saída da pobreza
(...). Quinto, (...) mau estado de saúde e doença como fontes de miséria. (...)
Finalmente, os pobres falam poucas vezes de renda, mas se centram (...) na
administração dos ativos —físicos, humanos, sociais e ambientais — como
maneira de fazer frente a sua vulnerabilidade. (ibidem, p. 4-5)

Já do ponto de vista institucional, o livro destaca que o Estado tem sido ineficaz em
chegar aos pobres; a função que as Ongs cumprem na vida dos pobres é limitada e os
pobres dependem fundamentalmente de suas próprias redes informais; e o tecido
social — o único “seguro” das pessoas pobres — está se desmanchando. (ibidem, p.
5-7)

Partindo das considerações feitas nesse estudo, o Banco Mundial (2000, op. cit., p.
34) resume as diversas dimensões da pobreza nos três tópicos já ressaltados: (i) falta
de renda e recursos para atender necessidades básicas (incluindo níveis de educação e
saúde); (ii) falta de voz e de poder nas instituições estatais e na sociedade; (iii)
vulnerabilidade a choques adversos, combinada com uma incapacidade de enfrentá-
los.

Uma vez identificadas as “dimensões” da pobreza, o Banco Mundial (2000) ressalta o


melhor modo de apreender suas causas:

Para compreender os fatores determinantes da pobreza em suas múltiplas


dimensões, o melhor é raciocinar em termos de recursos80, dos seus
rendimentos (ou da sua produtividade) e da volatilidade dos rendimentos.
(ibidem, p. 34)

Esses recursos (ou “ativos”) podem ser de vários tipos:

80
No original, em inglês: assets (ativos).

137
recursos humanos, como a capacidade de trabalho básicos, as aptidões e
a boa saúde; recursos naturais, como a terra; recursos físicos, como o
acesso à infra-estrutura; recursos financeiros, como a poupança e o
acesso a crédito; recursos sociais, como as redes de contatos e obrigações
recíprocas a que se possa recorrer em tempos de necessidade, e a
influência política sobre os recursos. (idem, grifos no original)

Afirma-se que os “rendimentos” (ou produtividade) desses recursos (“ativos”)


dependem do acesso aos mercados – criadores de “oportunidades” – “e de todas as
influências globais, nacionais e locais que sofrem nesses mercados. Contudo, os
rendimentos não dependem apenas do comportamento dos mercados, mas também do
desempenho das instituições estatais e sociais.” (idem)

Percebe-se, portanto, as duas perspectivas da abordagem: por um lado, (i) a partir da


realidade do pobre, enquanto detentor (ou carente) de “recursos” e suas limitações
enquanto ator. É importante ressaltar que os motivos do acesso restrito aos “ativos”
não são explicados, ou seja, por que essas pessoas pobres têm poucos “ativos” ou
quase nenhum? Não se trata de questões desse tipo; a ênfase recai sobre os
“rendimentos” desses ativos, que, em última instância, são entendidos como um tipo
de “capital”. Já no que diz respeito à “volatilidade”, afirma-se que ela “resulta de
flutuações de mercado, condições meteorológicas e, em certas sociedades, da
turbulência das condições políticas” (idem) e, ainda, que ela pode afetar tanto os
rendimentos quanto os próprios recursos (podem destruí-los).

Por outro lado, (ii), centrando a atenção nas instituições – e, sobretudo, nas limitações
que elas criam para a realidade dos pobres: o acesso aos recursos e os seus
rendimentos (ou produtividade) dependem de como elas atuam. As instituições podem
impor “uma pesada carga aos pobres, impedindo que eles aproveitem novas
oportunidades econômicas e se dediquem a atividades que transcendam sua zona de
segurança imediata” (ibidem, p. 36). Abusos de poder das instituições “dificultam sua
participação nos assuntos públicos e a expressão de seus interesses. Além disso,
instituições estatais irresponsáveis e insensíveis são uma das causas da expansão
relativamente lenta dos recursos humanos dos pobres”. (idem).

Percebe-se que o relatório de 2000/2001 apresenta continuidades e novidades em


relação ao de 1990. Como continuidade, pobre continua sendo considerado aquele
cuja renda está abaixo da “linha de pobreza” e, ainda, que não possui “ativos”
suficientes. Destaca-se o eixo econômico das “oportunidades” de mercado,

138
oportunidades que podem ser ampliadas tanto pelos indivíduos – aumentando a
produtividade de seus ativos – quanto pelo próprio mercado, através do crescimento
econômico.

Como novidades, são ressaltadas novas dimensões tanto do ponto de vista dos
“ativos” – por exemplo, inclui-se no rol dos “recursos” a discussão sobre o “capital
social” - quanto da pobreza propriamente dita. O novo relatório entende essa última
como multidimensional e, além das econômicas, leva em conta também dimensões
políticas, institucionais e sociais, como a “falta de voz” (voicelessness) e “falta de
poder” (powerlessness) – as quais impediriam que os pobres exercessem influência
sobre as instituições estatais e que participassem politicamente - e, ainda, a dimensão
da “vulnerabilidade”.

“Falta de voz” (voicelessness) e “falta de poder” (powerlessness) seriam, por um lado,


um problema institucional, resultantes dos abusos de poder sofridos pelos “pobres”
relatados em The Voices of the Poor (NARAYAN, 2000, p. 5). De acordo com este
estudo, “as pessoas pobres percebem que suas interações com os representantes do
Estado são marcadas por rudeza, humilhação, abuso e indiferença” (idem). Assim,
essa falta de voz e de poder seria resultante, segundo o Banco Mundial (2000), das
próprias características das instituições públicas - como as ressaltadas: falta de
“responsabilidade”, falta de “sensibilidade” perante os pobres e, ainda, “ineficiência”
– que dificultam que os pobres tenham “influência sobre as instituições estatais”
(ibidem, p. 39), impedindo-lhes o empowerment81. Em suma, a ênfase recai sobre a
estrutura inadequada e o mau funcionamento das instituições do Estado, os quais
reforçariam a condição de pobre. Por outro lado, as duas faltas – voicelessness e
powerlessness - seriam resultantes do próprio fato de o pobre ser pobre (enquanto
carente de recursos, ou ainda, enquanto ator incompleto). A carência de recursos gera
uma “impotência [que] sujeita-os a grosserias, humilhações, vergonha, tratamento
desumano” (ibidem, p. 36).

Assim, tanto a falta de recursos quanto o problema das “instituições” seriam


empecilhos para que os pobres exercessem influência sobre as instituições estatais e
que participassem politicamente: que tivessem “voz” e “poder”.

81
Muitas vezes o termo empowerment tem sido traduzido como “empoderamento”. Palavra esta que
não faz parte contudo da língua portuguesa, segundo dicionários como Aurélio e Houaiss.

139
Por fim, no que diz respeito à “vulnerabilidade”, o Banco Mundial (2000) faz algumas
considerações:

é companheira constante da privação material e humana, dadas as


circunstâncias dos pobres e quase pobres. (...) Os riscos que os pobres
enfrentam em conseqüência de suas circunstâncias são a causa da sua
vulnerabilidade. Porém, uma causa mais básica é a incapacidade de
reduzir ou mitigar o risco ou de absorver os choques, que tanto se origina
das causas de outras dimensões da pobreza, como as alimenta. Os baixos
níveis de recursos (...) torna, os pobres especialmente vulneráveis a
choques adversos (...). A falta de recursos adequados pode dar margem a
um círculo vicioso, em que as ações de defesa a curto prazo agravam as
privações a longo prazo. (...) Outra causa subjacente de vulnerabilidade é
a incapacidade do Estado ou da comunidade de desenvolver mecanismos
de redução ou alivio dos riscos (ibidem, p. 37).

Em última instância, nota-se que há duas causas principais para a “vulnerabilidade”:


primeiro, a dotação insuficiente de “recursos” (ou ativos) que o indivíduo possui
parece ser novamente central para a argumentação. Segundo o relatório, portanto, são
os baixos níveis de “ativos” que geram no pobre essa incapacidade de enfrentar os
riscos, deixando-o numa situação de vulnerabilidade. Em segundo lugar, destaca-se o
problema institucional – a “incapacidade”, “ineficiência”, dentre outras falhas das
instituições estatais - que não ajuda os pobres no enfrentamento dos riscos.

De um ponto de vista teórico, é possível sugerir que as duas perspectivas – do pobre


enquanto agente e dos obstáculos institucionais - são articuladas, embora de maneira
frouxa, a partir da noção de “capacidades” de Amartya Sen (2000), ou melhor,
enquanto “privação das capacidades”.

2.1.2.1. Pobreza como “privação das capacidades”: a presença das


idéias de Amartya Sen

Embora o recurso à teoria de Amartya Sen no Banco Mundial (2000) não seja tão
explícito quanto nos relatórios do PNUD, como se verá adiante, a ampliação da
agenda da pobreza, a partir do relatório de 2000/2001, está diretamente relacionada
com a incorporação no tratamento da pobreza, ainda que um tanto frouxa, das idéias
daquele autor. Seria possível afirmar que tal incorporação é frouxa na medida em que:
(i) o autor é pouco citado – apenas quatro vezes ao longo do relatório; (ii) a
incorporação de suas idéias não explicita seu arcabouço teórico e (iii) ocorre

140
simplesmente a partir da utilização da noção de “capacidades”82. Parece, contudo, ser
importante destacar essa incorporação, ainda que frouxa, na medida em que (i) a
pobreza como “privação de capacidades”83 é ressaltada como uma “novidade” ou
“avanço” e que (ii) a carência de “recursos” (dos mais variados tipos) por parte dos
indivíduos e, ainda, o ambiente institucional aparecem enquanto limitações nas
“capacidades” dos indivíduos:

todas essas formas de privação restringem severamente o que Amartya


Sen chama de ‘capacidades inerentes à pessoa, ou seja, as liberdades
substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere’ (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 15)

Por terem suas capacidades limitadas por aquelas duas perspectivas, os pobres “vivem
sem a liberdade fundamental de ação e escolha que os que estão em melhor situação
dão por certo”. (ibidem, grifo meu, p. 1)

2.1.2.2. Indivíduo, “recursos” e limitações das “capacidades”

Pode-se perceber que parte da problemática sobre a pobreza exposta anteriormente diz
respeito ao indivíduo pobre e essa abordagem baseia-se em sua carência de recursos
(assets). Segundo Narayan (2000), os próprios

pobres quase nunca falam das rendas, mas sim se referem repetidamente
aos ativos que consideram importantes. A carteira de ativos que
administram é diversa: ativos físicos, humanos, sociais e ecológicos.
(NARAYAN, 2000, p. 49)

Esta afirmação aparece, em The Voice of the Poor, logo após a citação de quatro
depoimentos de “pobres” tomados como exemplos para ilustrar como o tema dos
“ativos” é crucial para eles. Contudo, nenhum desses depoimentos é colocado em
termos de “ativos”.

A escolha do termo “recursos” (ou “ativos”) como elemento sintetizador dos


depoimentos dessas pessoas e, ainda de modo geral, como um dos pilares da
82
Sem se referir a outros conceitos importantes do autor, tal como o de “funcionamentos” ou à
discussão sobre meios e fins no que diz respeito às liberdades (SEN, 2000; 2001). A noção de
“capacidades” é definida rapidamente como “as liberdades substantivas de que desfruta para levar a
vida que [a pessoa] prefere” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 15)
83
Nas palavras de Amartya Sen: “a pobreza deve ser vista como privação de capacidades básicas”
(SEN, 2000, p. 109).

141
problemática pobreza é, portanto, bastante reveladora. Tem-se por pressuposto que,
tal como uma empresa, esse indivíduo deveria possuir ativos, cujos “rendimentos” (ou
produtividade) são fundamentais para a sua existência. Ele é considerado “pobre”
porque carece desses ativos e, portanto, não consegue nem criar “oportunidades” para
si, nem gerar “segurança” para enfrentar os “riscos”. Por mais que esses ativos
ressaltados possam ser “humanos” ou “sociais”, sua associação a idéias e objetivos
essencialmente econômicos é evidente.

O conceito de “capital humano” é utilizado e definido enquanto meio de aumentar as


oportunidades do indivíduo no mercado. É considerado “capital” porque “tal como o
capital físico é criado por mudanças materiais para formar instrumentos que facilitem
a produção, o capital humano é criado por mudanças nas pessoas que tragam
habilidades e capacidades que as tornem capazes de agir de maneiras novas.”
(COLEMAN, tradução livre, 2000, p. 19) Tal como foi ressaltado no segundo
capítulo, o argumento fundamental é o de que o capital humano gera – sobretudo a
partir de incrementos em educação - “produtividade” no indivíduo, tornando-o mais
apto a competir no mercado e, com isso, contar com maiores “oportunidades” de
auferir rendas.

Já no que diz respeito ao “capital social”, a abordagem presente no relatório84


(BANCO MUNDIAL, 2000) também tende ao entendimento do termo enquanto um
tipo particular de recurso disponível para o indivíduo. Além de ressaltar brevemente
como o capital social pode ser importante para o desenvolvimento econômico
(ibidem, p. 133), fazendo uma pequena resenha das variadas teorias sobre o “capital
social”85, o relatório do Banco Mundial (ibidem) enfatiza o entendimento desse termo
sobretudo como recursos aos quais o indivíduo pode ter acesso.

84
Aqui se analisa o relatório de 2000-2001, mas a discussão sobre “capital social” no Banco Mundial
começou em 1996, a partir da Social Capital Initiative (disponível na internet
http://www.worldbank.org/ ) cujos trabalhos tiveram como objetivo “contribuir tanto para um
entendimento conceitual do capital social quanto para a sua mensuração” (WORLD BANK, 1998, p. 7)
e buscaram, em geral, testar duas hipóteses: (i) que a presença do capital social melhora a eficácia dos
programas de desenvolvimento; (ii) que através das intervenções externas - do próprio Banco Mundial,
por exemplo - é possível estimular o acúmulo de “capital social”.
85
Vale notar que não há referências a Pierre Bourdieu, muito embora este autor tenha sido um dos
pioneiros no tratamento do tema do “capital social”, entendendo-o - juntamente com o “capital
econômico” e o “capital simbólico” - a partir da lógica da reprodução das relações de classe. Ele
define “capital social” como “o conjunto dos recursos reais ou potenciais que estão ligados à posse de
uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de mútuo conhecimento e
reconhecimento; ou, em outros termos, ao pertencimento a um grupo, como conjunto de agentes que
não são apenas dotados de propriedades comuns (...), mas que são também unidos pelas relações

142
Neste ponto, a aproximação com Coleman (2000) é evidente, uma vez que este último
afirma que, embora o “capital social”, ao contrário das outras formas de “capital”,
“não [esteja] (...) alojado nem nos próprios atores nem nos instrumentos físicos de
produção” (COLEMAN, tradução livre, 2000, p. 16) – mas, ao contrário, seja
“inerente à estrutura das relações entre os atores e dentre os atores” (idem, grifo meu)
–, é possível entendê-lo a partir do ponto de vista dos próprios indivíduos, ou seja,
enquanto “recursos para as pessoas” (idem, grifo meu).

Coleman (2000) afirma que a importância do conceito de “capital social” consiste no


fato de ele identificar ou iluminar certos aspectos da estrutura social a partir de suas
funções:

A função identificada pelo conceito de ‘capital social’ é o valor desses


aspectos da estrutura social para os atores enquanto recursos que eles
podem usar o para alcançar seus interesses. (COLEMAN, tradução livre,
ibidem, p. 19)

Quanto à utilização do conceito de “capital social” na abordagem especificamente da


questão da pobreza no Banco Mundial percebe-se que ela vai na mesma direção dos
argumentos de Coleman. Tal como o “capital humano”, o conceito de “capital social”
é considerado em tal abordagem como um tipo “recurso”: “recursos sociais”. Assim,
embora o termo “capital social” objetive abarcar as relações sociais - as relações
informais, as relações de parentesco, organizações locais, as redes sociais -, elas
apenas são importantes na medida em que podem atuar como "recursos” de capital
para os indivíduos – e só assim podem ser consideradas "capital social". O modo
como este termo é abordado no relatório (enquanto “recursos”) está essencialmente
relacionado a questões de produtividade e de instrumentalidade para o indivíduo.

permanentes e úteis.” (BOURDIEU, 1980, p. 2). E afirma que o “volume de capital social que um
agente particular possui depende da extensão da rede de relações que pode efetivamente mobilizar e do
volume do capital (econômico, cultural e simbólico) que possui cada um daqueles indivíduos aos quais
o agente está ligado.” (idem) Embora Bourdieu também trate da importância do “capital social”
enquanto recursos para o indivíduo, é importante ressaltar que ele considera este indivíduo situado num
contexto de uma estrutura social fundamentada em classes. Além disso, como lembra Swain (2003), é
importante perceber também que o autor se refere ao “capital” numa sociedade capitalista. Nesse
sentido, segundo Bourdieu, apenas a burguesia possui “capital social” (SWAIN, ibidem, p. 189).
Assim, a análise do capital social em Bourdieu pressupõe questões que estão ausentes tanto nos
teóricos do “capital social” quanto no próprio Banco Mundial, tais como uma sociedade baseada em
classes, as relações e a desigualdade existentes entre essas classes.

143
Tal como afirma Coleman (2000), embora o “capital social” seja uma forma de capital
menos tangível que o “capital humano” – já que ele existe nas relações entre as
pessoas -, ele deve ser considerado um facilitador da atividade produtiva. Dessa
forma, o que importa, em última instância, é o quanto de “capital social” o indivíduo
possui (ou ainda, quanto de capital social existe nas relações sociais em que tal
indivíduo se insere), de modo que lhe seja útil e produtivo e que, assim, faça jus ao
estatuto de “capital”: “redes sociais e organizações sociais são ativos claramente
essenciais na carteira de recursos a que recorrem os pobres para manejar riscos e
oportunidades.” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 133).

A abordagem do Banco Mundial (2000) parte da diferenciação de três tipos de


“capital social”: (i) unificador, que se refere aos fortes vínculos que ligam os
membros da família, vizinhos, amigos, parceiros nos negócios; são laços que ligam
pessoas que têm características demográficas comuns; (ii) conectivo, que é definido
pelos fracos vínculos entre os indivíduos de diferentes antecedentes étnicos e
ocupacionais; ele implica em conexões horizontais com pessoas de situação
econômica e poder político geralmente comparáveis; (iii) vinculador, que consiste em
elos verticais entre pobres e as pessoas que ocupam posições influentes nas
organizações formais. (ibidem, p. 134) Percebe-se, portanto, que essa utilização do
“capital social”, na discussão sobre a pobreza, delineia e enfatiza um sentido
instrumental para o termo, associando a importância desse tipo de “capital” para o
indivíduo pobre a seu atributo de facilitador da transformação do indivíduo pobre em
um “não-pobre”.

As implicações do capital social para o pobre são analisadas, por exemplo, por
Collier86 (1998). Procurando adequar a discussão sobre “capital social” a uma
perspectiva mais econômica, o autor explica porque o “capital social” deve ser
entendido tanto como “social” quanto como “capital”: (i) é ‘social’ porque ele “gera
externalidades emergentes da interação social. Tanto a iniciação quanto suas
conseqüências geram efeitos que não estão internalizados na decisão de cálculo de
cada agente.” (ibidem, p. viii); (ii) “capital social é ‘capital’ “apenas se seus efeitos
persistirem. [Essa] persistência pode se dar tanto porque a interação social ela mesma

86
Paul Collier foi diretor do Grupo de Pesquisas sobre Desenvolvimento (Development Research
Group) do Banco Mundial entre 1998 e 2003.

144
tem alguma característica que a torna persistente, ou porque os efeitos são capazes de
fazer durar a interação que os causa.” (idem)

Collier (1998) sugere que o capital social é “economicamente benéfico” porque as


interações sociais podem causar uma ou outra de três “externalidades”:

Ele facilita a transmissão de conhecimento sobre o comportamento dos


outros e isso reduz o problema do oportunismo. Ele facilita transmissão de
conhecimento sobre tecnologia e mercados e isso reduz as falhas de
informação nos mercados. Ele reduz o problema do carona [free-riding] e
isso facilita a ação coletiva. (idem)

Assim, as implicações do capital social sobre o pobre são articuladas pelo autor como
variações a partir de uma tipologia da teoria dos jogos. Não cabe aqui maior digressão
sobre cada uma dessas variações, mas apenas apontar para o fato de que a pobreza
vem sendo entendida e discutida também à luz da teoria dos jogos. A idéia de “pobre”
vai se aproximando, portanto, de um indivíduo racional-maximizador em condições
adversas para “jogar”.

De modo geral, pode-se perceber que, embora o conceito de “capital social” possa ser
associado a discussões sobre sociabilidade, civismo e política – como é o caso de
Putnam (1996), por exemplo – e a utilização desse conceito pelo Banco Mundial na
discussão sobre a pobreza possa representar uma “novidade” (quando se compara com
o relatório anterior), suas limitações e implicações são evidentes. Ao entender o
“capital social” enquanto recursos disponíveis para o indivíduo, essas discussões
mostram estar na maior parte das vezes associadas e reduzidas apenas a objetivos
econômicos – sendo explicadas a partir de um ponto de vista instrumental.

Nesse sentido, a despeito de serem exaltadas como “novidades” e de terem a


pretensão de dar conta de fenômenos que estão para além da dimensão econômica, as
discussões sobre “capital social” partem simplesmente de interpretações que o tratam
simplesmente como um “acúmulo” de meios (recursos) tanto para gerar
“oportunidades” para o indivíduo quanto para reduzir e enfrentar sua
“vulnerabilidade”, ou seja, atuando como uma possibilidade de tornar alguém um
não-pobre.

É nesse sentido que, no relatório, a carência desses recursos - dos mais variados tipos,
incluindo, “capital humano” e “capital social” - por parte dos indivíduos aparece
relacionada a limitações em suas “capacidades”, aproximando-se do sentido atribuído

145
por SEN (2000): “todas essas formas de privação restringem severamente o que
Amartya Sen chama de ‘capacidades inerentes à pessoa, ou seja, as liberdades
substantivas de que desfruta para levar a vida que ela prefere’” (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 15)

Dessa maneira, ao serem carentes de “recursos”, os pobres têm suas “capacidades”


limitadas e é justamente por isso que eles “vivem sem a liberdade fundamental de
ação e escolha que os que estão em melhor situação dão por certo”. (ibidem, grifo
meu, p. 1)

2.1.2.3. Instituições e limitações das “capacidades”

Outro pilar sobre o qual se sustenta a discussão da pobreza como “privação de


capacidades” pode ser identificado na discussão sobre as instituições, que são tratadas
como limitadoras das capacidades dos indivíduos.

A importância das instituições reside em que elas “afetam as oportunidades das


pessoas ao brindar e manter seu acesso aos recursos sociais, materiais e naturais.
Também reforçam a capacidade de ação coletiva e de auto-ajuda, enquanto que sua
falta pode contribuir à imobilização e à inércia.” (NARAYAN, 2000, p. 9)

As instituições aparecem classificadas em dois tipos: “instituições sociais” e


“instituições estatais”. O Banco Mundial (2000) define as primeiras como: “os
sistemas de parentesco, as organizações locais e as redes dos pobres” e resume que
elas devem ser entendidas enquanto “capital social”. Às vezes sob o título – um tanto
indefinido - de “sociedade civil”, as “instituições sociais” aparecem, de modo geral,
enquanto “capital social” ou “recursos sociais” de que os indivíduos dispõem (ou não)
e que afetam suas “oportunidades” e suas “capacidades”. As “instituições sociais”
(entendidas como “capital social”) afetam as capacidades dos indivíduos na medida
em que lhes servem enquanto recursos para atuar e, assim, ampliar suas
“oportunidades” de sair da pobreza.

As “instituições estatais” são abordadas a partir da “constatação” de seu fracasso -


ineficiência, ineficácia, insensibilidade e irresponsabilidade. Diante de tal
“constatação”, as instituições estatais são entendidas como uma das causas da
perpetuação das condições de pobreza. Elas são entendidas como entraves ao acesso

146
aos recursos, às oportunidades e ao empowerment dos pobres – contribuindo para a
sua falta de voz (voicelessness) e de poder (powerlessness). Em última instância, são
percebidas como limitadoras das capacidades dos indivíduos. A partir da questão
“como tornar as instituições do Estado mais sensíveis aos pobres” (BANCO
MUNDIAL, 2000, p. 103), prescrevem-se inúmeras “recomendações” de mudança
para as instituições estatais que muito têm a ver com as diretrizes do Banco Mundial
sobre a reforma do Estado (por exemplo, os relatórios de 1997 e de 2002). A questão
do melhoramento das instituições estatais diz claramente respeito ao enxugamento do
Estado, reduzindo-o à função de facilitador dos mercados.

Assim, mais parece que esse discurso do “combate à pobreza” diz respeito à tentativa
de transformação do Estado do que à questão social propriamente dita. De todo modo,
não cabe ainda entrar numa discussão sobre o que é recomendado para tornar o Estado
mais “sensível” aos pobres, mas vale destacar que as propostas consistem, por
exemplo, em reduzir o tamanho da administração pública, concentrando a ação
pública sobre os “mais pobres”, privatizar empresas públicas, descentralizar
(reduzindo o poder do Estado e transferindo-o para as esferas locais) e, ainda,
construir “coalizões em prol dos pobres” (ibidem, p. 113) em torno da “política de
redução da pobreza”.

Organizando e resumindo o que o Banco Mundial (2000) diz sobre a conexão entre as
instituições estatais e a “pobreza”, poderia se afirmar que: (i) elas são vistas como
“ineficientes” porque não conseguem atuar sobre as “oportunidades” dos pobres; é
por isso que elas devem se adequar ou se retrair87, dando espaço e/ou criando as
condições necessárias para o “bom” funcionamento dos mercados; (ii) elas também
são ineficazes porque não conseguem atuar sobre os “recursos” dos pobres – por
exemplo, seu “capital humano” -; é por isso que os esforços da atuação pública devem
se concentrar ou “focalizar” (e, assim, ser mais “sensíveis”) em promover educação e
saúde básicas para eles; e, ainda, (iii) elas são irresponsáveis e abusam de poder
porque inibem o empowerment (a voz e o poder) dos pobres – para estimulá-lo, é
87
Como foi visto no primeiro capítulo, o Banco Mundial (1997; 2002) sugere que o Estado tenha um
tamanho “moderado”, que se reduza (atuando apenas em setores que não interessem ao setor privado) e
que fortaleça suas instituições (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 64), tornando-as favoráveis (funcionais)
ao “bom” funcionamento dos mercados - atuando nos casos em que esses últimos apresentem
“imperfeições”. Assim, o Estado deve ser “eficiente”: um catalisador, facilitador e encorajador dos
negócios privados, isto é, dos mercados. (BANCO MUNDIAL, 1997). E as instituições (BANCO
MUNDIAL, 2002) devem ser “eficazes”, garantindo o marco legal (direitos de propriedade, garantia do
cumprimento dos contratos, etc.) “necessário” para o “bom” funcionamento dos mercados.

147
preciso descentralizar (isto é, transferir formalmente o poder do Estado para os
centros locais de decisão), garantir liberdades políticas e o “bom funcionamento” dos
processos democráticos, tudo isso visando garantir a “participação” dos “pobres”.
Mas é importante ressaltar que esta “participação” nada tem a ver com a construção
de vontades ou identidades coletivas – inseridas num Estado-nação -, mas
simplesmente com uma idéia de participação local da população previamente definida
como pobre88.

É por aí, portanto, que a problemática das instituições - enquanto motivo para a
“perpetuação das condições de pobreza” (NARAYAN, 2000, p. 11) - é entendida
como limitação das “capacidades humanas” dos indivíduos.

2.2. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)

No mesmo ano em que o Banco Mundial publica seu World Development Report
sobre a pobreza (BANCO MUNDIAL, 1990), o Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) divulga o seu Human Development Report, o primeiro de
uma série cujo objetivo consistiu em trazer o tema do “desenvolvimento humano”
para o centro da discussão sobre o desenvolvimento e em enfatizar a importância
dessa nova abordagem. Desde então, o Human Development Report tem sido
publicado anualmente e procurado direcionar o debate sobre o “desenvolvimento
humano”, através da discussão de temas89 diversos. Sua “questão central tem sido

88
Por exemplo, a própria experiência do projeto Voices of the poor (NARAYAN, 2000) – baseada no
método participativo de avaliação da pobreza (isto é, a pobreza segundo os pobres) - é entendida como
um exercício de participação, na medida em que implicaria em empowerment aos “pobres”. Diante
disto, duas considerações: por um lado, percebe-se que o significado de “participação” para o Banco
Mundial é bastante amplo (que pode significar quase qualquer coisa) e, por outro, ressalta-se, mais uma
vez (por exemplo, tal como no caso de “criação” de “capital social”), a importância da intervenção
externa - dos organismos internacionais – enquanto elemento de estímulo à participação ou à
democracia.
89
Os temas dos Human Development Reports foram: Concept and Measurement of Human
Development (1990); Financing Human Development (1991); Global Dimensions of Human
Development (1992); People's Participation (1993); New dimensions of Human Security (1994);
Gender and Human Development (1995); Economic Growth and Human Development (1996); Human
Development to Erradicate Poverty (1997); Consumption for Human Development (1998);
Globalization with a Human Face (1999); Human Rights and Human Development (2000); Making
New Technologies Work for Human Development (2001); Deepening Democracy in a Fragmented
World (2002); Millennium Development Goals: A Compact among Nations to End Human Poverty
(2003); Cultural Liberty in Today's Diverse World (2004); International Cooperation at a Crossroads:
Aid, Trade and Security in an Unequal World (2005); Beyond Scarcity: Power, Poverty and the Global
Water Crisis (2006).

148
sempre as pessoas como objetivo do desenvolvimento e a sua capacitação enquanto
participantes no processo de desenvolvimento.” (PNUD, 1999, p. 18)

O Human Development Report foi idealizado pelo economista paquistanês Mahbub ul


Haq a partir da preocupação crítica com o economicismo recorrente na percepção e
avaliação do “desenvolvimento”, abordagens que partiam da renda ou do crescimento
do PIB. No início dos anos noventa, Mahbub ul Haq reuniu algumas pessoas – tais
como Amartya Sen, Frances Stewart e Richard Jolly90 - para ajudá-lo na elaboração
dos relatórios, cujo objetivo central seria o de abordar de modo inovador a temática
do desenvolvimento.

Desde o primeiro relatório da série (UNDP, 1990), o PNUD insiste na importância de


trazer a dimensão “humana” para o centro do debate econômico e político do
desenvolvimento. O objetivo proposto é o de que a análise do desenvolvimento vá
além da renda e busque alcançar o nível de bem-estar das pessoas.

Dentro dessa perspectiva, o “desenvolvimento humano” é definido como um processo


de alargamento das escolhas, oportunidades e liberdades das pessoas (UNDP, 1990).
Percebe-se, portanto, que o referencial teórico desses relatórios está fortemente
marcado pelas reflexões de Amartya Sen.

Se, como já foi visto, a incorporação das idéias de Sen pelo Banco Mundial (2000) se
dá de uma maneira um tanto frouxa, o mesmo não pode ser dito em relação ao modo
como o PNUD mobiliza a teoria do economista laureado pelo Nobel91. Como
Amartya Sen fez parte do “painel de consultores” na elaboração de vários dos Human
Development Reports, seria de esperar a presença de suas idéias nesses documentos.
Mas a seguir mostrar-se-á como essas idéias são centrais e fundamentais para toda
essa argumentação, sobretudo no que diz respeito à construção da noção de
“desenvolvimento humano” e ao tratamento da questão da pobreza.

90
Em 1987, Frances Stewart e Richard Jolly participaram - juntamente com Giovanni Andrea Cornia –
da publicação da UNICEF “Adjustment with a Human Face”, já mencionada anteriormente.
91
Amartya Sen ganhou o Nobel de Economia em 1998.

149
2.2.1. Amartya Sen e a noção de “desenvolvimento humano”

Se outrora - durante a chamada “era dourada” (HOBSBAWM, 1995) - o tema do


“desenvolvimento” remetia a questões relacionadas a profundas mudanças nas
características internas dos países e, sobretudo, às relações e interações existentes
entre eles (DOMINGUES, 2003), percebe-se que, aos poucos, o conceito de
“desenvolvimento” foi se esvaziando e atualmente quer dizer muito menos. Tal idéia
deixou de significar uma preocupação “tanto com o aspecto internacional quanto com
aquele interno do desenvolvimento (...) [passando a se resumir a] um problema às
vezes de crescimento econômico puro e simples ou [a] uma questão de mudança das
perspectivas e vidas das pessoas individualmente.” (ibidem, p. 202)

Amartya Sen (2000) lida com a idéia de “desenvolvimento” dentro desta última
perspectiva (DOMINGUES, 2003) - e contra o “economicismo” da primeira
perspectiva -, através de sua noção de “desenvolvimento como liberdade”.

Sen (2000) defende que a melhor maneira de entender o “desenvolvimento” é


destacando sua relação com a questão da liberdade, através de sua abordagem das
“capacidades”. A liberdade individual deve ser identificada como o grande objetivo
ou, ainda, a “perspectiva norteadora” (ibidem, p. 10) do processo de desenvolvimento.
Para explicar o que entende por “liberdade” e, consequentemente, por
“desenvolvimento”, Sen parte das noções de “funcionamentos” e de “capacidades”.

O autor (ibidem, p. 94) quer situar a discussão para além da questão da “utilidade”
(como para os utilitaristas) e da questão “bens primários” - como em Rawls (1993).
Assim, propõe a dimensão das “capacidades” – as liberdades substantivas – “de
escolher uma vida que se tem razão para valorizar” como a abordagem mais
apropriada para discutir temas como desenvolvimento, bem-estar, justiça, igualdade,
etc.

A discussão sobre a abordagem mais apropriada para tanto aparece claramente em


Desigualdade Reexaminada (SEN, 2001), em que o autor afirma que, diante de (i) a
diversidade existente entre os homens e (ii) a multiplicidade de variáveis a partir das
quais a questão da “igualdade” pode ser avaliada ou julgada, é impossível que se
obtenha a igualdade de tudo ao mesmo tempo e que há que escolher qual o tipo de
igualdade mais relevante, e que sendo assim, de modo a impedir que conceito se

150
esvazie. Defender simplesmente “igualdade”, não quer dizer muita coisa; para Sen, é
necessário que se especifique de que igualdade se está falando, é preciso responder à
questão central para o autor: “igualdade de que?”.

A partir desta questão, escolhe-se uma “variável focal” para a análise da igualdade.
Além de ter como objetivo problematizar a avaliação da igualdade, no livro
Desigualdade Reexaminada, Sen se propõe a mostrar, explicar e justificar qual é a
melhor “variável focal” – é neste momento, então, que o autor vai defender sua
“abordagem das capacidades”.

Antes de discutir sua proposta de “variável focal”, Sen (2001) ressalta que é
fundamental que se distinga entre os conceitos de “realização” e de “liberdade para
realizar”. Para o autor, a realização refere-se ao que uma pessoa conseguiu fazer ou
alcançar; enquanto que a liberdade para realizar diz respeito à oportunidade que tem
para fazer ou alcançar aquilo a que ela dá valor.

O objetivo proposto por Sen (2000; 2001) é concentrar-se na oportunidade real de o


indivíduo promover seus objetivos de vida. Nesse sentido, é “preciso levar em conta
não apenas os bens primários que as pessoas possuem, mas também as características
pessoais relevantes que governam a conversão de bens primários na capacidade de a
pessoa promover seus objetivos.” (SEN, 2000, p. 95) Ou seja, para o autor, o fato de
duas pessoas possuírem os mesmos recursos não significa que necessariamente elas
serão igualmente livres para realizar, dado que cada uma delas irá converter seus
recursos em liberdade de maneiras diferentes – uma podendo ter mais facilidade de
convertê-los que a outra. Deste modo, os recursos (ou bens primários) que uma pessoa
tem não seriam um bom indicador de quanta “liberdade” de fato ela consegue
desfrutar.

Para discutir sua abordagem das capacidades, Sen começa pela noção de
“funcionamentos”. O conceito de “funcionamentos” serve para dar conta da
pluralidade existente na sociedade no que diz respeito aos objetivos de vida de cada
pessoa. Segundo o autor, tal conceito “reflete as várias coisas que uma pessoa pode
considerar valioso fazer ou ter” (ibidem, p. 95). A potencialidade de esses
funcionamentos serem efetivados refere-se ao conceito de “capacidade de realizar
funcionamentos” – ou simplesmente “capacidades” (capabilities) -, que representa a
liberdade que cada pessoa tem de escolher a vida que deseja ter. Ou seja, a

151
“capacidade de realizar funcionamentos” significa a liberdade da pessoa para
concretizar de fato seu bem-estar. Em outras palavras, as “capacidades” são
“combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela [a
pessoa]. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de
realizar combinações alternativas de funcionamentos.”

Como a avaliação do desenvolvimento está voltada para a questão da “liberdade” que


as pessoas desfrutam, se a análise se detivesse na idéia de “funcionamentos”
(realizados), seria limitada ou incompleta do ponto de vista do “desenvolvimento
como liberdade” (ALKIRE, 2002), uma vez que, num dado momento,
funcionamentos significariam aqueles que já foram alcançados pela pessoa, não
dando, portanto, a idéia de possibilidades de agência ou liberdade dos indivíduos.

Percebe-se, então, que o conceito de “capacidades” é usado pelo autor para poder dar
conta dessas idéias de liberdade e agência das pessoas, uma vez que ele representa um
conjunto de possibilidades (ou potencialidades; isto é, ainda não realizadas) de
funcionamentos e reflete, em última instância, a liberdade da pessoa de levar a vida
que valoriza.

Assim, “liberdade” de modo geral significa, para Sen (2000), a capacidade da pessoa
se realizar como agente, isto é, poder agir de acordo com suas próprias vontades e
escolhas. Antes de discutir melhor como a liberdade e desenvolvimento estão
vinculados nos trabalhos de Sen, é importante ressaltar que o autor faz uma distinção
entre dois tipos de liberdades, que, em última instância, refere-se a uma indicação dos
dois lados da liberdade: como fim e como meio.

De um lado, está a “liberdade substantiva”, a liberdade com valor intrínseco e sendo,


portanto, um fim em si mesma. Em última instância, é a liberdade humana em geral
como objetivo supremo do desenvolvimento. De outro lado, estão as liberdades
instrumentais, as quais atuam como meio e ajudam na promoção de liberdades de
outros tipos. O autor destaca cinco tipos de “liberdades instrumentais”:

(1) liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades


sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança protetora. Cada um
desses tipos distintos de direitos e oportunidades ajuda a promover a
capacidade geral de uma pessoa. Eles podem atuar complementando-se
mutuamente. As políticas públicas visando ao aumento das capacidades
humanas e das liberdades substantivas em geral podem funcionar por

152
meio da promoção dessas liberdades distintas mas inter-relacionadas. (...)
Na visão do ‘desenvolvimento como liberdade’, as liberdades
instrumentais ligam-se umas às outras e contribuem para o aumento da
liberdade humana em geral. (SEN, 2000, p. 25)

Desse modo, “as liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento,
mas também os meios principais.” (idem) A “liberdade” significa tanto a capacidade
da pessoa de se realizar como agente, isto é, de poder agir de acordo com suas
próprias vontades e escolhas (as “liberdades substantivas”) quanto os meios (as
“liberdades instrumentais”) pelos quais aquela “condição de agente” é ampliada ou
expandida.

Assim, o “desenvolvimento” é definido como o processo de expansão dessas


liberdades reais que as pessoas desfrutam (ibidem, p. 17). Se, por um lado, a
“abordagem das capacidades” ou o “enfoque nas liberdades humanas contrasta com
visões mais restritas de desenvolvimento, como as que identificam desenvolvimento
com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento das rendas pessoais,
(...)” (idem), por outro lado, percebe-se, como havia sugerido Domingues (2003), que
o “desenvolvimento” para Amartya Sen nada tem a ver com questões socialmente
mais amplas, que envolvam nações ou países, mas, ao contrário, refere-se
simplesmente a “uma questão de mudança das perspectivas e vidas das pessoas
individualmente.” (DOMINGUES, 2003, p. 202) E, nas palavras de Sen: “Essa
concepção da economia e do processo de desenvolvimento centrado na liberdade é em
grande medida uma visão orientada para o agente.” (SEN, 2000, p. 26). O
“desenvolvimento como liberdade” diz respeito, portanto, apenas aos indivíduos, ou
melhor, a cada indivíduo, em qualquer lugar do mundo.

A “novidade” trazida pelo primeiro Human Development Report do PNUD, em 1990,


refere-se justamente a uma proposta de incorporação dessa nova concepção de
desenvolvimento na discussão sobre o tema. Ou seja, quando se enfatiza que é preciso
colocar “as pessoas” no centro do debate sobre o desenvolvimento, parece que está
sendo sugerido também que o desenvolvimento seja entendido enquanto
“desenvolvimento como liberdade”, tal como propõe Amartya Sen.

Durante todo o período, a causa dos pobres e a necessidade de centrar a


atenção nos interesses das pessoas foram consideravelmente ajudadas pelo
trabalho teórico de Amartya Sen e o seu conceito central de promoção das
capacidades humanas. (...) A expansão das capacidades humanas implica
numa maior liberdade de escolha - para que as pessoas possam explorar

153
um leque mais variado de opções que considerem merecer a pena.
(PNUD, 1996, p. 49)

A incorporação das idéias de Sen (2000; 2001) é, portanto, bastante clara no PNUD.
Seus relatórios estão permeados pelas noções de funcionamentos, capacidades
humanas, oportunidades, escolhas, liberdades, as quais parecem estar todas
articuladas por intermédio das idéias do autor. Sua influência é evidente na discussão
do PNUD sobre “desenvolvimento humano”. Este último tem como finalidade o bem-
estar humano e é definido como “um processo de alargamento das escolhas das
pessoas” (UNDP, 1990, p. 10). E esse processo de "alargamento das escolhas das
pessoas é alcançado através da expansão das capacidades humanas e dos
funcionamentos." (UNDP, 1998, p. 17).

Para o PNUD (1990), o “termo desenvolvimento humano significa tanto um processo


de ampliação das escolhas das pessoas como o seu nível de bem-estar que foi
alcançado. [O termo] (...) também ajuda a distinguir claramente entre dois lados do
desenvolvimento humano. Um lado é a formação de capacidades humanas (...). O
outro é o uso que as pessoas fazem de suas capacidades adquiridas.” (UNDP, 1990, p.
10)

E, assim, argumenta-se que “este modo de olhar para o desenvolvimento difere das
abordagens convencionais do crescimento econômico, formação de capital humano, o
desenvolvimento dos recursos humanos, bem estar humano ou necessidades humanas
básicas.” (ibidem, p. 11). A grande diferença ou novidade trazida pela idéia de
“desenvolvimento humano” seria, em comparação92 com esses outros tipos de
abordagens, o fato de que enquanto estes últimos ressaltam e apontam para questões
relacionadas apenas a meios, a abordagem do “desenvolvimento humano” – tal como
a “abordagem das capacidades” de Amartya Sen (2000; 2001) – aponta, sobretudo,
para fins. Ou seja, para a ampliação das escolhas, oportunidades e liberdades de cada
pessoa como um fim si mesmas, e não como simples instrumento ou meio para outro
objetivo qualquer (econômico, por exemplo).

92
Sen (1997) fez comparação semelhante, contrastando o conceito de “capital humano” com o de
“capacidade humana”. Para ele, o conceito de capital humano é mais limitado já que apenas concebe as
qualidades humanas em relação com o crescimento econômico, enquanto que o conceito de
capacidades dá ênfase à expansão da liberdade humana para levar o tipo de vida que as pessoas
valorizam. Ou seja, o “capital humano” é um conceito instrumental, enquanto o conceito de
“capacidades” implica num fim em si mesmo, já que se refere à “condição de agente” do indivíduo.

154
A abordagem das “capacidades” não visa prescrever nem fixar uma agenda ou uma
lista de capacidades a priori importantes a serem alcançadas, já que isso depende,
segundo Sen (2000; 2001) de valores pessoais: cada pessoa quer realizar
“funcionamentos” diferentes. Isso faz com que essa abordagem pressuponha certo
grau de pluralismo, já que considera que as pessoas têm valores diferentes.

Amartya Sen tem sido alvo de críticas, tanto no que diz respeito a problemas e
limitações de sua teoria (DOMINGUES, 2003) quanto às dificuldades de
operacionalização da abordagem das capacidades (CLARK, 2006; ALKIRE, 2002).

Domingues (2003) valoriza o esfoço de Sen em incluir um pluralismo de valores em


sua análise, uma vez que, na modernidade - que tem implicado progressivos
“desencaixes” dos indivíduos -, “somente meios autoritários poderiam introduzir um
universo fechado a priori de valores” (ibidem, p. 217) para todos. Contudo,
Domingues argumenta que, nesse pluralismo de Sen, é bastante problemática a
fragmentação da liberdade que é defendida a partir do conceito de “capacidades”.
Adverte que a idéia de “liberdade” foi introduzida na modernidade como “um
conceito unificado em sua luta contra a ordem feudal”. Ou seja, na idéia de liberdade,
estava pressuposta um combate à dominação feudal. No trabalho de Amartya Sen,
embora trate do tema da liberdade, não há uma discussão sobre a “dominação”, não é
uma questão para ele. Nesse sentido, a proposta de Sen é, para Domingues,
problemática e se aproxima da

concepção pré-moderna de liberdade (...). A fragmentação da liberdade


como capacidade corresponde a várias imunidades que podiam ser
encontradas no mundo feudal. Enquanto para o Esclarecimento a
liberdade tinha de ser vista como liberdade igualitária (...) Sen prefere
quebrar o espaço-tempo em uma miríade de ‘espaços’ avaliativos. (...) Ou
a liberdade é igual para todos ou não é liberdade moderna; em vez disso é
privilégio, de forma similar àqueles da era feudal. (...) Ademais, ou a
liberdade se põe contra a dominação ou simplesmente não é liberdade,
porém tão-somente a aceitação de um status quo no qual se admitem as
desigualdades sociais, a dominação e o controle de certas coletividades
sobre outras – classes, gêneros, raças, nações, estados – de forma mitigada
e possivelmente muito ideologizada, sem questioná-las. (DOMINGUES,
2003, p. 219-220)

Assim, com essa fragmentação da idéia de liberdade proposta por Sen, a questão da
dominação não é problematizada, abrindo espaço para que ela perdure no mundo
social. Domingues chega à conclusão de que a proposta de Sen representa um recuo
em relação à social-democracia. Embora esta última não tenha conseguido superar a

155
dominação capitalista, o Welfare State serviu para remediar seus efeitos e, em grande
medida, atacou a desigualdade decorrente da sociedade de classes através dos direitos
sociais. Nas discussões de Sen não se encontra nada disso, ele apenas “contenta-se
com medidas discretas que não requerem direitos universais” (ibidem, p. 225) e uma
“eqüidade” nas capacidades de indivíduos que não parecem estar inseridos em
relações sociais em que estão presentes o poder e a dominação.

A partir de críticas mais brandas a Amartya Sen, outros ressaltam as dificuldades no


que diz respeito à operacionalização da abordagem das capacidades, ou seja, à
transformação de sua teoria em políticas públicas. Como levar a abordagem das
capacidades para os policy makers? Alguns afirmam que há uma contradição nessa
abordagem, já que ela pressupõe um pluralismo de valores sobre qual é a natureza da
boa vida (CLARK, 2006) e, para ser posta em prática, requer a escolha de certas
capacidades como universalmente valorizadas/boas. Alkire (2002) argumenta, por sua
vez, que as exigências de informação da abordagem das capacidades seriam tão altas,
que isso poderia impossibilitar a coleta de dados sobre os múltiplos “funcionamentos”
das pessoas, inviabilizando, portanto, sua aplicação.

O PNUD reconhece algumas dessas dificuldades na operacionalização do conceito de


“desenvolvimento humano”. Afirma que “nenhum índice, por si só, poderia traduzir a
complexidade desse conceito” (PNUD, 1994, p. 90) e que para a “escolha de aspectos
particulares da vida para uma investigação (...) torna-se necessária uma discussão
pública. Existe um inevitável elemento de juízo em qualquer seleção que se faça. Na
construção de qualquer índice (...) as seleções e as ponderações têm que ser
explicitamente estabelecidas e classificadas para que possam ser alvo de apreciação
pública.” (PNUD, 1997, p. 16)

A despeito de reconhecer a dificuldade de operacionalizar o conceito de


desenvolvimento humano, o PNUD definiu como essenciais três tipos de
“funcionamentos” para toda pessoa: poder levar uma vida longa e saudável, adquirir
conhecimento, ter acesso a recursos necessários para levar um nível de vida decente.
A partir daí, propôs a construção de um índice para medir o desenvolvimento
humano: o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que é uma medida das
realizações médias do “desenvolvimento humano” básico reunidas num único índice
composto, que engloba três variáveis para representar aquelas dimensões: renda

156
(calculada pelo PIB per capita ajustado ao custo de vida local com o emprego da
metodologia conhecida como paridade do poder de compra - PPC); longevidade
(medida pela esperança de vida ao nascer); e instrução (medida por uma combinação
entre as taxas de alfabetização e de escolaridade primária, secundária e superior)
(PNUD, 2001, p. 144).

O PNUD argumenta que embora o IDH não seja capaz de traduzir a complexidade do
conceito de “desenvolvimento humano”, ele é um indicador mais completo que o PIB,
capaz de melhor avaliar e comparar a realidade – o “progresso nacional” (PNUD,
1994, p. 91) - dos diferentes países, incorporando questões “mais humanas” à sua
mensuração93.

A partir de 1997, o PNUD (1997) começa a se dedicar especificamente à temática da


pobreza, que passa a ser discutida, como se verá a seguir, a partir da concepção de
“desenvolvimento humano”.

93
A cada ano, o PNUD faz, em seus relatórios, uma revisão do IDH e eventuais “correções,
melhoramentos e ajustamentos resultantes quer da evidência das suas deficiências quer da aceitação de
críticas e sugestões feitas por acadêmicos e políticos” (PNUD, 1994, p. 90) para, assim, melhorar a
mensuração do desenvolvimento humano.

157
2.2.2. Pobreza e “desenvolvimento humano”

Foi em 1995, com a Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social94 - realizada em


Copenhague -, que a luta contra a pobreza se tornou um objetivo da ação
internacional. Nesta conferência, surgiu um novo consenso entre os países a propósito
de se colocar as pessoas no centro do debate do desenvolvimento. Ou seja,
estabeleceu-se então uma condordância para com a maneira como o PNUD entendia o
desenvolvimento95. Enfatizou-se a erradicação da pobreza como uma meta para 185
países, que assumiram o compromisso de reduzir a pobreza mundial pela metade até
2015 e de adotar medidas para alcançar tal objetivo.

Em 1997, o PNUD dedica seu relatório anual ao tema do combate à pobreza - sob o
título “Desenvolvimento Humano para Erradicar a Pobreza”. Este relatório tem como
objetivo entender e analisar esse “desafio mundial numa perspectiva de
desenvolvimento humano. Não focaliza apenas a privação de rendimento, mas a
pobreza numa perspectiva de desenvolvimento humano – a pobreza como uma
negação de escolhas e oportunidades para viver uma vida aceitável.” (PNUD, 1997, p.
2).

Da mesma maneira que o “desenvolvimento humano” se coloca como um conceito


mais avançado e complexo que o de “desenvolvimento” (como crescimento do PIB),
a idéia de “pobreza humana” se propõe a ir além das concepções mais comuns de
“pobreza” – seja na perspectiva de “rendimentos”96, seja na de “necessidades
básicas”97. A noção de pobreza proposta pelo PNUD - embora também considere
essas duas perspectivas de pobreza - vai além delas, assumindo que a “pobreza tem

94
The World Summit for Social Development – cf. http://www.un.org/esa/socdev/wssd/
95
O relatório do PNUD de 1994 (PNUD, 1994) fixou, como um de seus objetivos, o de sugerir uma
proposta concreta de agenda para essa Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Social.
96
Concepção de pobreza mais comum definida a partir de critérios monetários. Uma pessoa é pobre se,
e só se, seu nível de rendimento se situa abaixo da linha de pobreza definida.
97
A pobreza é vista como privação de condições materiais para uma satisfação minimamente aceitável
das necessidades humanas. Este conceito de privação vai além da falta de rendimento privado – uma
vez que considera as “necessidades básicas insatisfeitas”, mas se limita a uma avaliação do bem-estar
material da pessoa.

158
muitas dimensões” (PNUD, 1997, p. 15) e afirmando que ela precisa ser entendida a
partir de sua concepção de “desenvolvimento humano”.

Como foi visto anteriormente, o desenvolvimento humano é definido como um


processo de alargamento das escolhas das pessoas. A pobreza, por sua vez, é
entendida como negação das oportunidades e escolhas mais elementares para
desenvolvimento humano. É a abordagem das “capacidades” que fundamenta a
definição de pobreza, enfatizando, assim, as noções de Amartya Sen (2000; 2001) de
privação de “capacidades básicas para funcionar” (PNUD, 1997, p. 16), ou seja, a
privação de oportunidades e liberdades da pessoa para realizar níveis mínimos
aceitáveis de “funcionamentos”, como viver uma vida longa, saudável e criativa, e
gozar de um padrão de vida decente, liberdade, dignidade, respeito próprio e dos
outros, por exemplo. (ibidem, p. 5)

Para tornar o conceito de “pobreza humana” operacional, de modo que a pobreza


enquanto privação ou “negação de escolhas e oportunidades para uma vida aceitável”
(idem) possa ser “medida”98, não é possível levar em conta todas suas dimensões.
Desse modo, para medir a “pobreza humana” e para construir um indicador para ela -
o IPH (Indicador de Pobreza Humana) - são tomados apenas aqueles
“funcionamentos” - três elementos fundamentais da vida humana99 – já considerados
no IDH (longevidade, conhecimento e padrão de vida adequado), mas a partir do
enfoque da “privação”:

A primeira privação refere-se à sobrevivência (...) e é representada no IPH


pela percentagem de pessoas que se espera [que] morram antes dos 40
anos. A segunda dimensão relaciona-se com o conhecimento (...) e é
medida pela percentagem de adultos analfabetos. O terceiro aspecto
refere-se a um nível de vida adequado (...) [que] é representado por um
composto de três variáveis – percentagem de pessoas com acesso a
serviços de saúde e [à] água potável e percentagem de crianças
subnutridas menores de 5 anos. (PNUD, 1997, p. 18)

O IPH é construído, portanto, a partir da média100 entre esses três componentes. O


IPH é dividido em IPH-1 – para medir a pobreza humana em “países em

98
É importante perceber a dupla finalidade de “medir”: não apenas para “fornecer informação mas
[para] (...) também ser utilizada na política” (PNUD, 1997, p. 17).
99
A escolha desses elementos é “feita procurando equilibrar, por um lado, as considerações sobre a
relevância e, por outro, a disponibilidade e qualidade dos dados.” (PNUD, 1997, p. 19)
100
Não cabe explicar aqui os procedimentos matemáticos da construção do IPH, em termos de
ponderação e agregação. Tudo isto é detalhado na nota técnica 1 do relatório (PNUD, 1997, p. 118).

159
desenvolvimento” – e IPH-2 - para medi-la nos países industrializados. Cada índice é
formado por variáveis com pesos diferentes, de acordo com o grupo de países a que se
refere, procurando refletir as diferentes realidades dos dois grupos de países.

O PNUD chama a atenção para o fato de que, na construção do IPH, não estão
presentes medidas de rendimentos, ou seja, diferentemente do IDH, o Índice de
Pobreza Humana não inclui uma dimensão “monetária”. O PNUD justifica essa
escolha afirmando que é difícil estabelecer um mesmo limiar de pobreza (linha) que
possa ser utilizado por diferentes países. Assim, justifica-se afirmando: “uma
possibilidade mais pragmática é a de ser menos ambicioso e centrar a privação
material na fome e subnutrição, e não no rendimento.” (ibidem, p. 19)

A discussão sobre pobreza humana tem a mesma matriz teórica que a de


desenvolvimento humano. “Enquanto o desenvolvimento humano foca o progresso da
comunidade como um todo, a pobreza humana centra-se na situação (...) das pessoas
mais pobres da comunidade.” (ibidem, p. 20) Assim, tanto o IDH quanto o IPH “têm
de utilizar as categorias de informação associadas ao desenvolvimento humano e da
qualidade de vida que vão para além da informação que o rendimento pode fornecer.”
(idem) Mas o IPH aparece como se fosse um reverso do IDH: “enquanto o IDH
aborda estas características na perspectiva globalizadora, o IPH deve utilizá-las na
perspectiva da privação.” (idem)

Em última instância, parece que o novo conceito proposto pelo PNUD - a "pobreza
humana" - e seu indicador (IPH) buscam servir de base para um entendimento mais
“humano” sobre o que é a pobreza e propor um modo de “medir” quanta pobreza há
num país.

Contrariamente ao Banco Mundial, percebe-se que os relatórios do PNUD não tratam


especificamente do tema das causas da pobreza. Não se dedicam a uma explicação
clara de quais sejam as causas da “privação de capacidades” e, portanto, quais as
causas da pobreza. Apenas o fazem de modo bastante simplificador, em certos
momentos em que o tema aparece rapidamente, como no trecho abaixo:

Numa concepção de capacidade, a privação de uma vida relaciona-se não


só com o estado de empobrecimento em que a pessoa vive mas, também,
com a ausência de oportunidades reais – devidas tanto a constrangimentos
sociais como a circunstancias pessoais – para levar uma vida com valor e
estimada. Na concepção de capacidade focam-se (...) [os

160
“funcionamentos”] que uma pessoa pode ou não desenvolver, dadas as
oportunidades que têm. (PNUD, grifo meu, 1997, p. 16)

Ou seja, a “privação de capacidades” poderia ter sua origem tanto em


“constrangimentos sociais”101 quanto em “circunstancias pessoais” (estas últimas
seriam aquelas variações existentes entre uma pessoa e outra, para as quais Sen (2001)
chama a atenção, no que diz respeito à conversão de recursos em capacidades). Mas,
de qualquer modo, esse tema das causas ou origens das “privações de capacidades”
não é desenvolvido satisfatoriamente nos relatórios do PNUD.

Tampouco há um esforço explícito no PNUD de propor maneiras de identificar ou


definir quem é pobre. Embora o PNUD não proponha uma medida simples - como
traçar uma “linha” – para identificar quem é pobre ou não-pobre, isso não significa,
contudo, que essa questão esteja ausente.

Dentro da perspectiva proposta pelo PNUD - a do “desenvolvimento humano”


baseado na abordagem das “capacidades” -, percebe-se que o “pobre” aparece como o
reverso daquele indivíduo “livre” – ou “com capacidades” - de Sen (2000). Ou seja, o
pobre aparece como um indivíduo “sem capacidades”, sem “condição de agência”,
carente de oportunidades e de escolhas em sua vida.

Trazendo essa distinção conceitual para a realidade do atual “mundo em mudança”, o


PNUD afirma que a “globalização tem seus vencedores e seus perdedores.” (PNUD,
1997, p. 82). A globalização encerra em si mesma, lembra o PNUD (1997), uma
descrição e uma prescrição:

A descrição é o alargamento e aprofundamento dos fluxos internacionais


de comércio, finança e informação no mercado global único e integrado.
(...) A prescrição é a liberação dos mercados nacionais e globais, na
convicção de que os fluxos livres de comércio, capital e informação
conduzirão ao melhor resultado possível em termos de crescimento e bem-
estar humano. Tudo é apresentado com um certo ar de inevitabilidade e
com uma convicção esmagadora. Nunca, desde o surgimento do comércio
livre no século XIX, a teoria econômica demonstra tanta certeza. (ibidem,
p. 82)

O PNUD acredita claramente no “poder da globalização para trazer benefícios


econômicos e sociais para sociedades (...) Contudo, (...) defende uma agenda dos
fracos de todo mundo, os marginalizados pela globalização, e apela para uma agenda
(...) para atingir uma globalização com face humana.” (PNUD, 1999, p. v) Assim, há

101
Ver exemplos mais à frente.

161
uma naturalização da globalização, na medida em que ela é entendida como o novo (e
único) caminho pelo qual o desenvolvimento virá. Contudo, nesse novo contexto, há
os que conseguem ter “condição de agência” e conseguem atuar livremente e se
beneficiar do novo contexto – os “vencedores do mercado” (ibidem, p. vi) – e há
também os “perdedores”, sem “capacidades” de agir: os pobres.

Na busca do “desenvolvimento humano”, a tarefa passa a ser a de alcançar uma


“globalização humana”, isto é, uma globalização que tome conta de seus “perdedores”
- os “pobres” – dando-lhes capacidades e condições básicas de “agência”, para que
possam atuar no novo contexto. Nesse sentido, parece que a idéia de “globalização
humana” parte do mesmo raciocínio do “ajuste com face humana” - Adjustment with a
Human Face -, da UNICEF (1987), ressaltando a necessidade de correções que
aliviem as conseqüências negativas da globalização, sem negar, contudo, o papel
desempenhado por esta última no “progresso humano”. Ao mesmo tempo em que “a
globalização expande as oportunidades para o progresso humano sem precedentes
para alguns, (...) [ela] reduz essas oportunidades para outros e (...) falha nos objetivos
de equidade e de erradicação da pobreza” (PNUD, 1999, p. 44).

Assim, argumenta o PNUD (2003), embora uma visão muito otimista da globalização
deva ser relativizada – uma vez que se revelou inadequada para milhões de pessoas
pobres -, é preciso reconhecer o mérito da globalização para grande parte do mundo
(PNUD, 2003, p. 16). “Apesar dos protestos contra a globalização nos últimos anos,
as forças do mercado mundial contribuíram para o crescimento econômico - e para a
redução da pobreza” (idem) - em vários países em desenvolvimento. Se o
desenvolvimento econômico deixou a desejar – e não trouxe o progresso esperado -,
isso se deve, argumenta o PNUD, a dois fatores (que serviriam como exemplos
daqueles “constrangimentos sociais” ressaltados como causas da “privação de
capacidades”).

Por um lado, devido à “má governança” – ou seja, onde os “governos são corruptos,
incompetentes ou irresponsáveis perante cidadãos as economias nacionais vacilam”
(idem) –. Ou seja, a discussão se assemelha àquela proposta pelo Banco Mundial
acerca das instituições, sobretudo, as estatais, que são apresentadas como um
empecilho ou limitação às “capacidades” dos indivíduos.

162
Por outro lado, em função de uma insuficiência de investimentos dos governos em
educação e saúde. Neste ponto, é importante ressaltar como o argumento é baseado
numa interpretação de saúde e educação enquanto “capital humano”: como
conseqüência dessa falta de investimentos, “o crescimento econômico acabará por se
extinguir por causa do número insuficiente de operários saudáveis e qualificados.”
(idem) Nota-se também, nessa discussão, uma proximidade àquela sugerida pelo
Banco Mundial acerca dos “recursos” dos indivíduos como criadores ou alargadores
das “capacidades” individuais.

Embora o PNUD apresente o tema do “desenvolvimento humano” como uma


abordagem radicalmente inovadora para o desenvolvimento, parece que as
conseqüências consideradas por essa concepção não questionam o processo de
globalização em si, mas se resumem a sugerir uma conciliação entre os fundamentos
do processo e novas questões: “o desenvolvimento humano e a redução da pobreza
devem ser levados para o topo da agenda dos decisórios políticos e econômicos”
(PNUD, 1996, p. 10) – temáticas cada vez mais presentes no centro do debate e da
agenda mundiais102.

102
Em 2000, ocorre, em Genebra, uma continuação da conferencia de 1995: o Social Summit +5 cujos
objetivos foram o de rever o que se alcançou até então e o de criar compromissos em torno de novas
iniciativas. Em setembro do mesmo ano, ocorre a “Cúpula do Milênio”, em Nova Iorque, na qual foram
acordados os oito “objetivos do milênio”, dentre os quais está o combate à pobreza (até 2015, ter
reduzido a pobreza à metade, em comparação com a pobreza de 1990). Em 2005, realizou-se a Cúpula
do Milênio + 5, com o objetivo de avaliar o progresso das metas da Declaração do Milênio da ONU,
aprovada na Cúpula do Milênio em 2000.

163
2.3. Organização Internacional do Trabalho (OIT)

Voltada tradicionalmente para a questão do trabalho, do emprego e da justiça social,


pode-se dizer que a Organização Internacional do Trabalho (OIT) incorporou a
preocupação com a pobreza só recentemente, a partir de 2000. Embora afirme que o
tema da pobreza esteve presente em seu rol de prioridades desde 1944103, reconhece
também que o tema só foi “reforçado” no momento em que um compromisso
internacional para alcançar os “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” foi
estabelecido.

É nesse contexto, portanto, que a instituição incorpora a temática da luta contra a


pobreza, apontando-a como o grande objetivo mundial, mas encaixando-a em seu
discurso do “trabalho decente” (OIT, 1999), enfatizando, assim, que “o mundo do
trabalho é precisamente a chave para se alcançar uma erradicação contundente,
progressiva e duradoura da pobreza” (OIT, 2003, p. 3).

Segundo a OIT (1999), o trabalho decente é o ponto de convergência de seus quatro


objetivos estratégicos: (i) promover e cumprir as normas e os princípios e direitos
fundamentais no trabalho; (ii) gerar maiores oportunidades para que mulheres e
homens possam ter empregos e rendas dignos; (iii) melhorar a cobertura e a eficiência
de uma seguridade social para todos; (iv) fortalecer o diálogo social. Assim, a noção
de “trabalho decente” é um conceito que vem sendo considerado pela OIT um marco
geral para as suas propostas de desenvolvimento econômico e social. E, também, para
a discussão da temática da pobreza. Percebe-se, deste modo, que a incorporação da
temática da “superação da pobreza” na OIT se dá a partir de uma discussão sobre
trabalho, apontando para a necessidade de se buscar o “trabalho decente”, frente ao
reconhecimento da existência de uma crise do emprego em âmbito mundial.

Para "superar a pobreza", a OIT enfatiza que é necessário:

mudar o paradigma da formulação de políticas para reconhecer que o


emprego, e o fomento das empresas que o geram, constitui a via mais
eficaz para a erradicação da pobreza. (...) Na maioria das receitas em
matéria de formulação de políticas não se percebe a criação de emprego

103
Quando declarava que a "pobreza constitui um perigo à prosperidade em todo lugar". Cf.:
www.ilo.org .

164
como um objetivo explícito, mas sim como um resultado que se confia
que deriva da aplicação de políticas macroeconômicas fundadas. (...) a
chave consiste em garantir que tal crescimento seja equilibrado e propicie
o emprego de mão de obra, isto é, que dê lugar à criação de tantos postos
de trabalho decente quanto seja possível. Podemos alcançar este objetivo
geral? Não podemos, devemos. Voltemos a dirigir nosso olhar ao
investimento e à iniciativa empresarial, o emprego, a geração de renda e o
trabalho decente para todos. (OIT, tradução livre, 2006)

Assim, embora a OIT trate do tema da erradicação da pobreza, ela o discute dentro de
sua temática central, indicando que, para enfrentar a questão do trabalho, é preciso
“mudar o paradigma” da política pública, incluindo e difundindo a noção de “trabalho
decente” como seu objetivo central.

A discussão sobre a pobreza aparece na OIT de duas formas : (i) em certos momentos,
recorre-se àquelas conceitualizações feitas pelos outros organismos, ora segundo o
Banco Mundial104, ora seguindo a noção elaborada pelo PNUD105 ; (ii) em outros
momentos, aparece a figura do “trabalhador pobre”, sem se discutir muito, entretanto,
quem são os pobres, as causas da “pobreza”, etc. Mas, embora não haja uma discussão
específica sobre as “causas” da pobreza na OIT (2003), é possível perceber que, em
última instância, considera-se que “os pobres não são os causadores da pobreza. A
pobreza é resultado de falhas estruturais e de sistemas econômicos e sociais
ineficazes. É o fruto de uma resposta política inadequada, de políticas muito pouco
imaginativas e de um apoio internacional insuficiente.” (OIT, 2003, p. 2). Ou seja, a
pobreza é função da insuficiência de “trabalho decente” no mundo.

Dos fundamentos do “trabalho decente”, os que parecem ser mais peculiares à OIT e,
também, estar em oposição àquelas outras abordagens presentes nos discursos
internacionais sobre a pobreza são as idéias de direitos, centralidade do emprego e
proteção social. Contudo, quando se busca entender melhor de que se tratam essas
dimensões do “trabalho decente”, percebe-se que o discurso da OIT não é tão
alternativo assim.

104
Para tratar da quantidade de “trabalhadores pobres” que há no mundo, por exemplo, a OIT utiliza a
abordagem da pobreza monetária utilizada pelo Banco Mundial, como se percebe na nota a seguir:
“utilizamos (…) a expressão extrema pobreza/pobreza extrema dos trabalhadores como sinônimo do
nível de pobreza geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 1 dólar (…), e a
expressão pobreza moderada/ pobreza moderada dos trabalhadores quando se trata do nível de pobreza
geral ou o da população trabalhadora equivalente a renda diária de 2 dólares.” (OIT, 2004, p. 25) Mas,
de toda maneira, a questão da definição e conceituação da pobreza propriamente dita não aparece em
seus relatórios.
105
Em outros momentos, a OIT enfatiza o caráter multidimensional da pobreza, recorrendo às
formulações do PNUD.

165
No que diz respeito aos “direitos do trabalho”, eles estão relacionados com a questão
da liberdade no âmbito do trabalho, tais como a liberdade de associação, a luta contra
a discriminação, o combate ao trabalho forçado e ao trabalho infantil, dentre outros.
Embora sejam temas de grande relevância, os “direitos do trabalho” ressaltados não
têm a ver com direitos sociais – os quais remetem à idéia de “trabalho protegido” -,
mas a direitos civis e políticos do trabalhador.

A questão do “emprego” é discutida, por sua vez, nos World Employment Reports106,
uma série de relatórios da OIT dedicados a essa temática. No relatório de 2004-2005,
Empleo, Productividad y Reducción de la Pobreza, propõe que a relação entre
emprego e pobreza seja examinada a partir da “produtividade”.

A razão fundamental para abordar conjuntamente as três questões é a


simples observação de que uma porcentagem significativa da população
pobre no mundo todo já trabalha: a fonte da sua pobreza não é a falta de
atividade econômica, mas o caráter pouco produtivo de suas ocupações.
(OIT, tradução livre, 2005, p. 1)

Ressalta-se também que aumentos na produtividade têm efeitos positivos para o


trabalhador e para a empresa. Segundo a OIT (2005, p. 2):

Para os trabalhadores, um aumento da produtividade dá lugar, em teoria, a


salários mais altos (...). Para as empresas, um aumento da produtividade se
traduz em custos unitários de produção mais baixos (...) O fato de
produzir mais com menos permite ademais que as empresas que atuem em
mercados competitivos reduzam seus preços, e, ainda, é uma das
principais formas de reforçar a competitividade (e conseguir, ao mesmo
tempo, que outras empresas sejam relativamente menos competitivas).
(ibidem, p. 2)

Embora reconheça que existe uma polêmica em torno da questão da produtividade


(OIT, 2005, p. 83) – no que diz respeito à destruição de postos de trabalho –
argumenta-se que, para a macroeconomia em geral, num mundo globalizado, ela gera
benefícios - os quais são explicados a partir da crença107 num ajuste “natural” da

106
World Employment Report 1995/96; World Employment Report 1996/97: National Policies in a
Global Context; World Employment Report 1998/99: Employability in the Global Economy. How
training matters; World Employment Report 2001: Life at Work in the Information Economy; World
Employment Report 2004-05: Employment, Productivity and Poverty Reduction.
107
Esta passagem reflete bem essa crença: “As pessoas se beneficiam da redução dos custos graças aos
aumentos da produtividade obtidos em outro setor da economia, embora esses aumentos provoquem
uma perda de postos de trabalho no setor no qual se produziram. Os efeitos do crescimento da
produtividade e, determinado setor da economia dependem da existência de «mecanismos de
compensação » mediante os quais a economia se ajusta.” (OIT, 2005, p. 8)

166
economia. Dessa maneira, o aumento da produtividade (tanto dos próprios
trabalhadores quanto do processo produtivo) seria um caminho para se combater a
pobreza (o “trabalhador pobre” e o “desempregado”).

No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é
explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua
produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de
modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, afirma-se
é preciso estimular a produtividade da economia (tanto com “capital humano”, quanto
com produtividade para criar mais empregos na economia como um todo).

É nesse sentido, portanto, que a “produtividade” representa peça chave na relação


entre emprego e pobreza, segundo a OIT. Consequentemente, percebe-se que a
temática do “emprego”, longe de estar referida ao debate do pleno emprego tal como
se colocava no pós-guerra – emprego este promovido pela ação estatal, através de
suas políticas -, ela se fundamenta na defesa da importância da “produtividade” – de
indivíduos e de empresas - como meio para estimulá-lo.

Por fim, quanto à “proteção social” como elemento central do “trabalho decente”, a
OIT refere-se a “direitos sociais básicos” – tal como assistência médica e educação
básicas -, mas sem se aprofundar muito na questão.

Em suma, seria possível afirmar que a incorporação da temática do “combate à


pobreza” teria vindo “de fora” da instituição, por pressão do novo contexto das
resoluções “do milênio”. Ao trazer para si essa problemática, a OIT por um lado
reforça o discurso internacional – assumindo que o grande objetivo do milênio é
acabar com a pobreza -, mas, por outro, se esforça em moldar e situar a discussão a
partir de seu enfoque específico do “trabalho decente”, cuja discussão é desenvolvida
sobretudo a partir da temática da “produtividade”.

167
Capítulo V – DAS DEFINIÇÕES CONCEITUAIS ÀS
RECOMENDAÇÕES PARA O “COMBATE À POBREZA”

A questão social a partir dos anos noventa começou a ser tratada predominantemente
sob a noção de “pobreza”, cujo debate esteve centrado em grande parte nas
formulações dos organismos internacionais. O quadro abaixo busca sintetizar as
análises dos significados e causas para o termo “pobreza”, tal como indicado no
capítulo anterior.

Quadro 1 – A pobreza e suas causas.

Banco Mundial PNUD OIT


Temática "Desenvolvimento "Trabalho decente”
"Luta contra a pobreza"
central humano" e produtivo
Definição monetária (linha de "Pobreza humana" -
Pobreza pobreza) (1990) e “pobreza privação de capacidades Trabalhador pobre
multidimensional” (2000) humanas
Falta de recursos ("ativos") e Má governança, falta de
de oportunidades e, ainda, oportunidades e fatores
Causas
limitações geradas pelas pessoais (tais como as Falta de "trabalho
da
instituições (as duas questões variações no modo de decente"
pobreza
são expressas em termos de conversão de recursos em
limitação das "capacidades") capacidades)

O quadro exposto sintetiza as peculiaridades de cada organismo. Nota-se que o Banco


Mundial trata a pobreza em termos monetários (Banco Mundial, 1990) e,
posteriormente, a partir da abordagem das capacidades (Banco Mundial, 2000).
Embora tenha alargado sua concepção, em 2000, entende as capacidades (a agência)
do indivíduo sempre a partir de um ponto de vista instrumental (capacidades como
“meio”, enquanto recursos que o indivíduo possui). Já o PNUD, por sua vez, parte da
abordagem das capacidades tal como sugerida por seu teórico, Amartya Sen (2000),
ressaltando os seus dois lados: como meio (instrumental) e como fim em si mesmo.
Por fim, a OIT trata da pobreza basicamente de dois modos: por um lado, incorpora e
se apropria da abordagem daqueles outros dois, dependendo do momento. E, por
outro lado, a entende como sendo decorrente da falta de “trabalho decente”,
enfatizando os direitos (políticos e civis) do trabalhador e a necessidade de fazer com

168
que ele seja “produtivo”. Percebe-se, portanto, que o quadro anterior refere-se à
dimensão descritiva, isto é, ao diagnóstico que vem sendo feito sobre a questão social.

Tal como sugere Topalov (2004), a ação ou a política pública não resulta da
existência ‘objetiva de um problema’, mas do seu enunciado. Assim, uma vez
diagnosticado o problema em termos de “pobreza”, os organismos internacionais
propõem maneiras de lidar com ele, indicando-lhe “soluções”. É aqui que entram,
portanto, as estratégias de “combate à pobreza” – as recomendações de políticas para
“resolver” aquilo que é visto como a grande malaise contemporânea. A seguir,
analisar-se-á o que é sugerido por cada organismo para que seja possível tal
empreitada.

1. Segundo o Banco Mundial

Pelos relatórios do Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 1990; 2000), percebe-se


que as estratégias de “combate à pobreza” estão centradas em três pilares: promoção
das oportunidades, incentivo ao empowerment e promoção da segurança. Estes dois
últimos objetivos são relativamente recentes, já que só foram incorporados como
recomendações no relatório de 2000/2001 (BANCO MUNDIAL, 2000).

1.1. Promoção das “oportunidades”

O primeiro pilar – o da promoção das “oportunidades” – consiste na mais “antiga”


recomendação para combater a pobreza, presente desde o World Development Report
de 1990 (WORLD BANK, 1990) – momento em que se ressaltava como causas para a
pobreza a falta de ativos.

A importância dos ativos, definidos de modo geral, sugere que as políticas


deveriam procurar aumentar os ativos que o pobre tem – especialmente
habilidade, saúde, e outros aspectos do capital humano, e, nas economias
agrícolas, terra. (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 32)

Assim, como medidas recomendadas para ampliar as “oportunidades” dos pobres, no


relatório de 1990, são ressaltadas: (a) adotar um modelo de crescimento que estimule

169
o uso “eficiente” dos ativos que o pobre detém; (b) ampliar o acesso dos pobres aos
ativos; (c) investir nas pessoas (aumentar o capital humano dos pobres).

Quanto à primeira medida (a), propõe-se identificar políticas que estimulem um


modelo de crescimento econômico que use a mão-de-obra de maneira eficiente, de
modo que sejam criadas novas oportunidades para os pobres obterem rendimentos. De
modo geral, a ênfase é no crescimento econômico a partir de medidas liberalizantes,
ou anti-intervencionistas, já que se considera que “quando o governo intervém no
mercado, ele geralmente gera um viés anti-emprego.” (ibidem, p. 62) A idéia é que,
através do estímulo ao mercado, novas oportunidades serão criadas e, assim, os
pobres poderão obter maiores rendimentos. Com mais renda, o indivíduo poderia
ultrapassar a “fronteira” da pobreza (linha da pobreza) e, assim, ser considerado um
não-pobre.

A segunda estratégia de ampliação das oportunidades para combater a pobreza refere-


se ao aumento do acesso dos pobres a “ativos” – terra e crédito, por exemplo. No caso
da terra, é proposta uma “reforma agrária”. Segundo o Banco Mundial (1990),
políticas que expandam a propriedade, que definam bem os direitos de propriedade
nas terras onde “sistemas tradicionais falharam” e que melhorem o gerenciamento dos
recursos das propriedades comunais podem criar oportunidades para os pobres rurais.
(ibidem, p. 64)

Se, por um lado, o Banco Mundial aparentemente rompe um tabu e passa a falar em
“reforma agrária”, por outro lado, ao se apropriar dessa expressão, retira o conteúdo
historicamente construído pelos movimentos sociais, ou seja, pela política, e passa a
propagar pelo mundo todo a sua própria versão de “reforma agrária” – “que é
basicamente a abordagem neoliberal do mercado aplicada à terra” (ROSSET, 2004, p.
16). O Banco Mundial se livra, assim, facilmente da noção tradicional de reforma
agrária - ou seja, como sinônimo de expropriação –, afirmando simplesmente que
“não é politicamente possível no contexto atual, porque as elites econômicas resistem
e ocorrem muitos conflitos” (ibidem, p. 22). Ou, ainda, nas palavras do próprio Banco
Mundial (1990): “realidades políticas proíbem reformas que desviem muito do status
quo” (WORLD BANK, tradução livre, 1990, p. 64). Conseqüentemente, a partir de
uma afirmação como esta - que proclama a impossibilidade de transformações do
mundo como ele é e que, aliás, se encaixa bem naqueles três tipos de argumentos da
retórica reacionária destacados por Albert Hirschman (HIRSCHMAN, 2001) - o

170
Banco Mundial propõe uma “reforma agrária” cuja realização se daria através da
criação e/ou ampliação do “mercado de terras”. Desse modo, para que os pobres
tenham acesso às terras, seria preciso que se criasse um mercado de terras, de modo
que as transferências para os pobres pudessem ocorrer. Nesse sentido, aquelas
políticas que visam criar oportunidades para os pobres rurais (WORLD BANK, op.
cit., p. 64) através do acesso ao “ativo” terra acabam servindo e atuando como passos
em direção da construção ou aprofundamento de um “mercado de terras”. Percebe-se
aqui que por mais que o Banco Mundial esteja preocupado com a pobreza rural, a
política para superá-la coincide com os propósitos neoliberais de inserir em todas as
instâncias do mundo social a dinâmica própria ao sistema mercado.

Por fim, a questão (c) diz respeito ao “investimento nas pessoas”. “Há uma evidência
esmagadora de que o capital humano é uma das chaves para a redução da pobreza”
(ibidem, p. 79) Os pobres – sobretudo os urbanos – são vistos como carentes de
“capital humano”. Ou seja, eles não têm “oportunidades” porque lhes falta um “ativo”
fundamental que é o “capital humano” – educação, saúde e nutrição; mas é dada
ênfase especial à educação. A influência da “teoria do capital humano” é bastante
clara na argumentação exposta no relatório de 1990.

Se a resolução da falta do ativo “terra” é proposta pelo Banco Mundial (ibidem, p. 64)
a partir do desenvolvimento de um “mercado de terras”, no caso do aumento do
“capital humano” dos pobres são propostas reformas nos sistemas de saúde e de
educação no sentido da retração da provisão estatal, voltando-se apenas para os
serviços básicos.

Argumenta-se que o objetivo é que a saúde e a educação alcancem os pobres. O


raciocínio pressupõe uma manutenção do status quo e desconsidera qualquer mudança
política. Ou seja, parte-se do pressuposto que o montante a ser gasto com serviços
públicos não pode ser alterado (uma mudança política não entra, portanto, no
horizonte de possibilidades) - para que o “equilíbrio” fiscal do governo não se
modifique - e enfatiza-se que “gasto extra em serviços sociais em geral não ajuda
automaticamente o pobre.” (1990, p. 79) Assim, dado que o gasto não pode ser
alterado e que os serviços não alcançam os pobres, sugere-se que o

modelo existente precisa ser alterado em favor deles [dos pobres] em


termos de quantidade e de qualidade dos serviços. As medidas mais
importantes nos setores sociais para melhorar as condições de vida do

171
pobre são também as mais básicas: expandir e melhorar a educação
primária e a atenção primária em saúde. (idem)

Defende-se uma reforma nesses setores para que se “liberem” recursos – ou seja, uma
focalização - que possam ser usados na expansão e melhoria dos serviços básicos e na
promoção de um melhor acesso para o pobre. Sugerem-se, portanto, mudanças na
alocação dos recursos – dos serviços de maior complexidade e de alto nível para os de
saúde básica e educação primária. Afirma-se que recomendar essas mudanças não
significa negar a importância dos serviços de alto nível:

Qualquer país que queira competir na economia mundial precisa de uma


política educacional abrangente que inclua gastos na educação superior,
ciência e tecnologia, e treinamento profissional. Hospitais são uma parte
essencial de um sistema de saúde balanceado (...) Entretanto, [isso] não
justifica usar serviços de alto nível como meio de transferir dinheiro
público a estudantes privilegiados e pacientes urbanos das classes média e
alta (WORLD BANK, 1990, p. 86)

Assim, propõem-se duas linhas de ação: por um lado, deslocar recursos dos serviços
de alto nível para serviços básicos (atenção primária de saúde e educação básica) e,
por outro, introduzir taxas para aqueles que podem pagar (por exemplo, pela educação
superior) - o que arrecadaria recursos para melhorar os serviços para os pobres. Em
suma, nota-se, nesse ponto, mais uma proposta de enxugamento do Estado e de
estímulos ao mercado (setor privado) – seja de saúde, seja educacional.

O tema da promoção das “oportunidades” é trabalhado no Relatório Sobre o


Desenvolvimento Mundial de 2000-2001 (BANCO MUNDIAL, 2000) basicamente a
partir das mesmas questões levantadas pelo de 1990, e também são pontuadas a partir
de três itens: (a) estimular o crescimento (ibidem, p. 45); (b) tornar os mercados
favoráveis aos pobres (ibidem, p. 61); (c) ampliar os recursos (ativos) dos pobres
(ibidem, p. 79).

Em primeiro lugar, afirma-se que as oportunidades para os pobres serão aumentadas a


partir do crescimento, para o qual contribuem:

Algumas políticas econômicas - como a abertura ao comércio


internacional, boas políticas monetárias e fiscais (representadas por
déficits orçamentários moderados e ausência de alta inflação), um sistema
financeiro bem desenvolvido e um governo de tamanho moderado
(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 50).

Também se chama a atenção para a ajuda externa, a qual só “poderá fomentar o


crescimento se essas políticas estiverem implantadas; não poderá se elas não

172
existirem”. Ou seja, afirma-se que o crescimento deve ser alcançado com a
continuidade das medidas e reformas, dando ênfase, portanto, aos ditames da
globalização neoliberalizante.

No que se refere a “tornar os mercados favoráveis aos pobres”, a ênfase recai sobre as
reformas que favoreçam os mercados, já que “mercados em bom funcionamento são
importantes para gerar crescimento e expandir oportunidades para os pobres”
(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 61). Ressalta-se, entretanto, que as reformas nem
sempre geram, no curto prazo, benefícios para todos. Do “impacto das reformas de
mercado (...): há ganhadores e perdedores, e estes últimos podem incluir os pobres”
no curto prazo (ibidem, p. 38). Argumenta-se que “esses custos não negam os
benefícios das reformas” (ibidem, p. 66). Assim, insiste-se em que é preciso
implementar rapidamente as reformas pró-mercado para que cheguem logo os
benefícios para os pobres e, enquanto elas não se completam, seus “efeitos adversos
(...) sobre os pobres podem ser compensados por ações (...) como as redes de
segurança para aliviar os custos da transição.” (ibidem, p. 38).

Recomenda-se o prosseguimento das reformas, sobretudo as de “segunda geração”108,


tidas como fundamentais para a consolidação dos resultados das reformas de
“primeira geração”109. Além disso, enfatiza-se que “os mercados podem beneficiar os
mais pobres” (ibidem, p. 73) através de reformas específicas. Como exemplo, é
ressaltado o “alívio do ônus da regulamentação (...). Uma cuidadosa revisão dos
regulamentos e a adoção de requisitos mais flexíveis.” (ibidem, p. 74) Ou seja,
flexibilizar como meio de beneficiar os pobres. Outro exemplo é a promoção de um
melhor acesso dos pobres aos mercados financeiros: “O acesso aos mercados
financeiros é importante para os pobres. (...) Estes serviços ajudam a manejar o risco e
nivelar o consumo em face de alguma das flutuações” (ibidem, p. 75). Isto se refere à
proposta do microcrédito110 ou microfinanciamento – a oferta de produtos financeiros
destinada aos pobres.

108
Reformas que dizem respeito ao fortalecimento institucional, recomendadas sobretudo nos relatórios
que dizem respeito ao Estado (1997, 2002), as quais foram discutidas brevemente no primeiro capítulo.
109
Estabilização de preços, equilíbrio fiscal, abertura comercial e financeira, por exemplo. Este ponto
foi também discutido no primeiro capítulo.
110
Em 2006, o bengalês Muhammad Yunus recebeu o prêmio Nobel da Paz. É conhecido como “o
banqueiro dos pobres” e considerado o grande idealizador do microcrédito destinado aos pobres de
Bangladesh.

173
Por fim, no que diz respeito à ampliação dos ativos dos pobres (c), sugere-se que isso
deve ser feito a partir de três eixos. Primeiro, a utilização do poder do Estado para
redistribuir recursos (ibidem, p. 81) – isto é, focalizar e orientar a despesa pública para
os pobres.

Uma orientação maior da despesa pública para os pobres envolverá a


redução (...) dos subsídios aos não-pobres. A privatização de empresas
públicas deficitárias e ineficientes libera fundos que podem ser utilizados
no atendimento das necessidades dos pobres. (...) Uma gestão
macroeconômica prudente pode reduzir o serviço da dívida e abrir espaço
para a despesa orientada para os pobres. (BANCO MUNDIAL, 2000, p.
85)

Ou seja, partindo da premissa de que o Estado não pode alterar seu padrão de gastos,
recomenda-se que os focalize nos pobres, deixando que as demandas dos não-pobres
sejam satisfeitas pela iniciativa privada, isto é, pelos mercados. Assim, caberia ao
Estado direcionar sua ação aos pobres, no sentido de simplesmente aumentar seus
“ativos”, através, por exemplo, da educação e saúde – entendidas enquanto “capital
humano”. Aumentando o capital humano dos pobres, suas “oportunidades” também
seriam expandidas.

O segundo eixo parte de uma implementação de reformas institucionais para


assegurar uma efetiva prestação de serviços: “Boa administração pública,
concorrência e mercado bons, bem como a livre participação de múltiplos agentes,
seja governamentais, não-governamentais ou privados, são essenciais para uma
efetiva prestação de serviços, especialmente para pobres.” (ibidem, p. 88).

O terceiro eixo para promover a expansão de recursos dos pobres refere-se à


participação dos pobres. É indicada uma incorporação dos pobres aos processos de
escolha, acompanhamento e avaliação de programas e serviços que ampliem seus
recursos (ibidem, p. 91). O tema da participação é entendido como um dos pilares do
combate à pobreza e como meio para a expansão dos recursos dos pobres, no sentido
de que, quanto mais os pobres participam, mais eles têm seu “capital social” ampliado
- aumentando assim suas “oportunidades” e perspectivas de escapar da pobreza.

174
1.2. Incentivo ao empowerment

O segundo pilar do “combate à pobreza” refere-se ao estímulo ao empowerment dos


indivíduos pobres, para combater aquela falta de voz e de poder - destacada como
uma das dimensões da pobreza. Tal como foi visto no capítulo anterior, a questão da
falta de empowerment dos indivíduos pobres está relacionada, segundo o Banco
Mundial (2000), com as instituições – as estatais e as sociais.

Por um lado, parte-se de uma ênfase na ineficiência, insensibilidade e


irresponsabilidade das instituições estatais. As instituições estatais aparecem como
entraves que limitam as “capacidades” dos indivíduos. Nesse sentido, afirma-se que é
preciso fazer com que as instituições do Estado se tornem mais eficientes, mais
responsáveis e mais sensíveis aos pobres (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 103).

Recomendam-se, assim, a redução do tamanho da administração pública,


concentrando a ação pública sobre os “mais pobres” e privatizando empresas públicas,
questões conectadas como se vê:

É preciso racionalizar a estrutura funcional e orgânica da função pública,


melhorando a distribuição de recursos para programas que constituem
prioridades sociais e têm maior capacidade para reduzir a pobreza. Ainda
mais importante dinamizar o “tamanho apropriado” das entidades públicas
administrativas e privatizar as empresas públicas e outros programas
operacionais públicos. (ibidem, p. 104).

Outro meio ressaltado para beneficiar o empowerment dos pobres é a criação de


mecanismos de descentralização. Entendida como uma “transferência formal de poder
aos centros de decisão locais”, a descentralização serviria para levar os programas
para mais perto dos pobres e estimular mecanismos de “participação” da população
pobre local. Além disso, recomenda-se que se construam “coalizões em prol dos
pobres” (ibidem, p. 113), em torno da “política de redução da pobreza”.

Por outro lado, no que diz respeito às propostas de empowerment no âmbito social,
enfatiza-se que é preciso remover as barreiras e fortalecer o capital social dos pobres.

As instituições sociais (...) afetam consideravelmente a pobreza. Assim


fazem afetando a produtividade dos ativos econômicos, as estratégias para
enfrentar os riscos, a capacidade de buscar novas oportunidades e a
medida que determinadas vozes se fazem ouvir ao serem tomadas
importantes decisões. As instituições sociais podem ajudar os pobres a
sobreviver e subir na vida. Mas podem também erguer barreiras entre os

175
pobres (...) e as oportunidades e os recursos de que necessitam para
promover seus interesses. (ibidem, p. 121).

Afirma-se que as “barreiras sociais podem assumir muitas formas. (...) [Tais como]
barreiras resultantes da desigualdade entre os sexos, da estratificação social e da
fragmentação social.” (idem) Essas barreiras restringem "a mobilidade ascensional,
limitando a capacidade de participar nas oportunidades econômicas, beneficiar-se do
crescimento econômico e contribuir para o desenvolvimento.” (ibidem, p. 136) Assim,
segundo o Banco Mundial (2000), é “importante assegurar a igualdade na lei e na
atuação das instituições do Estado. Além disso, pode haver necessidade de políticas
de ação afirmativa para reduzir as desvantagens cumulativas das práticas
discriminatórias.” (idem)

Assim, dentre os objetivos das propostas de empowerment no âmbito social estão: (i)
a promoção da equidade entre homens e mulheres; (ii) a superação das barreiras
sociais que impedem a ascensão social dos pobres - barreiras estas que podem ser
fruto da discriminação (racial, étnica, de gênero, etc.), contra a qual podem ser
estabelecidas políticas de “ação afirmativa” que servem “para compensar as
incapacidades resultantes de uma prolongada discriminação” (ibidem, p. 130); (iii) o
reforço do “capital social”, ou seja, apoiar as redes sociais de pessoas pobres -
aumentar suas “capacidades”, melhorando a eficácia dos projetos e programas dos
organismos internacionais de combate à pobreza.

Pode-se perceber que, em nome da expansão das “capacidades” humanas dos pobres,
as estratégias de empowerment estão vinculadas, por um lado, a reformas e
transformações nas instituições estatais e, por outro, às propostas referentes às
instituições sociais – seja removendo as “barreiras sociais” (discriminação, por
exemplo), seja estimulando “capital social”, isto é, reforçando um instrumento (meio)
para que os pobres saiam da pobreza.

1.3. Promoção da segurança

Por fim, a terceira estratégia de luta contra a pobreza proposta pelo Banco Mundial
consiste na promoção da segurança (security) dos pobres, voltada para o combate da
vulnerabilidade, de modo que os pobres consigam enfrentar os riscos que estão

176
sempre presentes em suas vidas. Viu-se, no capítulo anterior, que a “vulnerabilidade”
é problematizada a partir de duas questões. Por um lado, ressalta-se a dotação
insuficiente de “ativos” (físicos, humanos e sociais) que o indivíduo possui. Assim,
seus baixos níveis de “ativos” fazem com que o pobre seja incapaz de reduzir os
riscos e enfrentar os “choques”, deixando-o numa situação de vulnerabilidade. Por
outro lado, destaca-se o problema institucional – a “incapacidade”, “ineficiência”,
dentre outros problemas das instituições estatais, que não ajudam os pobres no
“manejo” e enfrentamento dos riscos.

Nesse sentido, percebe-se, primeiramente, que o problema da vulnerabilidade se


relaciona, no relatório do Banco Mundial, com aquelas estratégias de promoção de
“oportunidades” e de empowerment para os pobres. Com maiores “oportunidades” e
mais empowerment, os pobres teriam mais capacidade de enfrentar os riscos e,
portanto, teriam sua “vulnerabilidade” reduzida.

Paralelamente, como estratégia específica para reduzi-la, afirma-se que o Estado deve
intervir “para melhorar a gestão dos riscos” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 151), ou
seja, promover uma segurança para os pobres.

Antes de especificar quais seriam as estratégias específicas que o Estado deve se


empenhar para ajudar os pobres no manejo de seus riscos, discutem-se “princípios
gerais” sobre os riscos e seu enfrentamento. Dessa discussão mais “geral”, questiona-
se acerca de como o Estado deve intervir no que diz respeito aos riscos:

Quando, e como, deve o Estado intervir em proporcionar uma rede


segurança social para o público? A resposta mais ampla é a de que isso
depende dos tipos de choque (...) e dos tipos de seguro privado existentes.
(ibidem, p. 154)

Argumenta-se, então, que, numa situação em que os esquemas informais (mecanismos


que envolvem indivíduos, famílias ou grupos) oferecem um seguro adequado contra
os riscos “idiosincrásicos”111, o Estado deve intervir apenas para proteger contra
riscos covariantes112.

Contudo, quando os esquemas informais de seguro não funcionam, devem ser criados
“mecanismos formais” - uma rede de segurança social - para o manejo dos riscos
111
Segundo o Banco Mundial (2000, p. 140), são os riscos que afetam o indivíduo ou a família, ou seja,
são os que ocorrem em nível “micro” – decorrentes de doença, velhice, morte.
112
São riscos que afetam grupos de famílias ou comunidades (nível “meso”) – tais como chuvas,
epidemias - ou, ainda, regiões ou países (“macro”) – como terremotos, inundações, seca.

177
(tanto “idiosincrásicos” como “covariantes”), de modo a garantir o bem-estar das
pessoas. Numa situação como esta, afirma-se que Estado e mercado precisam atuar:

Decidir se a cobertura deve proceder do Estado ou de seguradores


privados depende muito do tipo de risco. Muitas vezes, o Estado tem mais
capacidade para cobrir riscos covariantes, mas a maioria dos riscos
idiosincrásicos pode ser mais bem manejada por provedores privados
(comunidades, companhias de seguros). Neste caso, o papel do governo
seria facilitar e, se necessário, regulamentar a provisão do setor privado.
(BANCO MUNDIAL, 2000, p. 155)

Ou seja, é recomendado que o setor privado atue onde é possível estabelecer


mecanismos de mercado, ou seja, onde os riscos (“idiosincrásicos”) são
individualizados. Em situações onde não é de interesse do setor privado atuar113,
afirma-se que o Estado deve intervir, argumentando-se que “faltam-lhe [ao setor
privado] a força institucional, os recursos financeiros ou a capacidade de gestão”
(ibidem, p. 156). Faltaria mencionar também que não há interesse do setor privado em
atuar nesses casos, uma vez que não geram lucros.

Assim, a partir dessa discussão dos “princípios gerais da gestão dos riscos” (ibidem, p.
153), cria-se um modelo, no qual são delineados papéis específicos e diferentes para
Estado e mercado (setor privado) e onde inicia e termina, respectivamente, o papel de
cada um.

Entretanto, embora, segundo esses “princípios gerais”, caiba ao Estado intervir


especificamente no caso dos riscos do tipo “covariantes”, existem casos de riscos
“idiosincrásicos” em que a não é de interesse do setor privado atuar – segurança para
o público “pobre” – e, portanto, se justifica a intervenção estatal. São destacados
alguns “instrumentos específicos” (BANCO MUNDIAL, 2000, p. 157) da ação estatal
voltada para melhorar a capacidade de manejo dos riscos dos “pobres”, tais como:
seguro-saúde, programas de micro-financiamento, transferências monetárias, dentre
outros.

Assim, “o governo deve proporcionar seguro-saúde e orientar os gastos em saúde


pública para serviços que atendam principalmente aos pobres” (ibidem, p. 158), dado
que estes últimos não conseguem comprar seguros de saúde privados.

Afirma-se que os programas de microfinanciamento

113
Por exemplo, como criar um “seguro” privado contra terremotos e inundações?

178
podem ajudar as famílias pobres a nivelar o consumo durante um choque
adverso. (...) Mas os programas de microfinanciamento fazem mais do que
ajudar as famílias a enfrentar os choques: podem também proporcionar
capital para criar ou expandir microempresas. Assim, o
microfinanciamento a ajuda as famílias a diversificar suas fontes de renda
e reduzir sua vulnerabilidade a choques de renda. (ibidem, p. 162)

As transferências de dinheiro, por sua vez, “compreendem pagamentos aos idosos a


título de assistência social, abonos de família, programas orientados de
desenvolvimento humano e vales para pagamento de serviços básicos.” (ibidem, p.
163) Esses programas transferem renda com base em critérios – como a comprovação
de a pessoa estar “abaixo da linha de pobreza” – e, muitas vezes, estão ligados a certas
condicionalidades, como a freqüência escolar dos filhos. Afirma-se que o programa
ligado a esse tipo de condicionalidade serve a um duplo objetivo: redução da pobreza
no curto prazo (redução da vulnerabilidade do pobre) e estímulo às “oportunidades”
da próxima geração, a partir do investimento em seu “capital humano” dos filhos
dessas pessoas.

Dessas propostas, percebe-se que é recomendado que o mercado (setor privado) atue
oferecendo “seguros” para aqueles que podem comprá-los. O Estado teria o papel de,
por um lado, oferecer a segurança para enfrentar os riscos do tipo “covariantes” e, por
outro, ajudar os pobres a manejarem seus riscos “idiosincrásicos”, através de
instrumentos específicos tais como os ressaltados: seguro-saúde, programas de micro-
financiamento e transferências monetárias, por exemplo. Em suma, propõe-se uma
expansão do setor privado, uma intervenção do Estado em campos pouco lucrativos e
também em políticas assistenciais focalizadas nos pobres.

179
2. Segundo o PNUD

Como já mencionado, o PNUD entende a pobreza enquanto “pobreza humana”,


partindo da perspectiva do “desenvolvimento humano” - um desenvolvimento que dá
prioridade ao pobre, buscando alargar suas escolhas e oportunidades e estimulando
sua participação em decisões que afetam suas vidas. (PNUD, 1994) A temática
específica do “combate à pobreza” aparece no relatório de 1997 - “Desenvolvimento
humano para erradicar a pobreza” – propondo a análise desse “desafio mundial numa
perspectiva de desenvolvimento humano. Não destaca apenas a privação de
rendimento, mas a pobreza numa perspectiva de desenvolvimento humano – a
pobreza como uma negação de escolhas e oportunidades para viver uma vida
aceitável.” (PNUD, 1997, p. 2).

Embora a perspectiva do desenvolvimento humano não constitua “uma rígida receita


de prescrições políticas, com uma lista de ‘destinação’ e uma lista de ingredientes
indicando como chegar lá” (FUKUDA-PARR, 2003, p. 10), é possível sistematizar
um pouco e destacar, a partir dos relatórios que tratam do “combate à pobreza”
(PNUD, 1997; 1999; 2003), cinco grandes eixos para suas estratégias: (i) dar
“capacidades” aos pobres; (ii) tornar o Estado “capacitador” e responsável; (iii)
promover um crescimento econômico a favor dos pobres; (iv) alcançar uma gestão
mais humana da globalização; (v) encorajar novas parcerias para combater a “pobreza
humana”.

2.1. Aos “pobres”, mais “capacidades”

Viu-se que a pobreza é entendida como “privação de capacidades” básicas. Assim, em


primeiro lugar, recomenda-se que seja dedicada grande atenção às estratégias de
ampliação das “capacidades” dos pobres, de modo que eles possam realizar níveis
mínimos de “funcionamentos”, ganhando um pouco mais de controle sobre suas
vidas.

180
Esse “investimento” nas capacidades das pessoas aparece a partir de duas dimensões:
(i) a libertação dos pobres de privações (ii) o empowerment, referido à dimensão da
participação dos pobres em decisões que afetam suas vidas.

Os pobres estariam mais “capacitados” - e mais libertos de suas privações - através de


serviços sociais básicos – tais como educação básica e cuidados primários de saúde –
garantidos pelo Estado. (PNUD, 2003, p. 85) A idéia é que, com mais educação e
saúde, as pessoas aumentam seus recursos “para realizar” e, com isso, se tornam mais
capazes de levar o tipo de vida que valorizam. Nota-se que o argumento se aproxima
daquele do “capital humano” – utilizado pelo Banco Mundial -, só que, desta vez,
adaptado à idéia de “capacidades”.

A dimensão do empowerment é bastante destacada no PNUD. Ele é entendido


enquanto capacitação política das pessoas pobres, de modo que elas sejam agentes de
seu próprio desenvolvimento; elas “devem se organizar em ações coletivas que
influenciem as circunstâncias e decisões que afetam suas vidas. Para que possam fazer
valer seus interesses, as suas vozes devem poder ser ouvidas nos corredores do
poder.” (PNUD, 1997, p. 95).

Enquanto grupo, os pobres “podem influenciar as políticas estatais e exigir uma


alocação adequada de recursos para as prioridades de desenvolvimento humano, para
mercados mais acessíveis às pessoas e para um crescimento econômico favorável aos
pobres.” (ibidem, p. 96) Assim, contra a carência de poder inerente à pobreza, a
organização dos pobres se faz necessária:

A redução da pobreza se baseia em que os pobres se organizem por si mesmos


na comunidade; esse é o melhor antídoto contra a carência de poder, fonte
básica da pobreza. Uma vez organizados, os pobres podem influir no governo
local e exigir-lhe responsabilidade. Também podem formar coalizões com
outras forças sociais e criar organizações mais amplas para influir na adoção
de decisões nos planos regional e nacional. Portanto, o que os pobres mais
necessitam são recursos para desenvolver sua capacidade de organização.
(PNUD, 2000).

Até aqui, percebe-se que é recomendado que os “pobres” (previamente definidos, por
exemplo, os “abaixo da linha”) se organizem em função do fato de serem “pobres”, ou
de se situarem “na pobreza”, com o objetivo de “sair da pobreza”, já que “os pobres

181
são o melhor recurso que se pode mobilizar na luta contra a pobreza” (PNUD, 2000,
p. 74).

Argumenta-se, ainda, que são as organizações internacionais que devem dar o


impulso, “a assistência (...) para a formação de capacidade” (idem). Esta “assistência
técnica deve se dirigir a desenvolver a capacidade de organizações da sociedade civil
para representar os pobres e conseguir que os formuladores da política nacional
abordem questões relacionadas com a pobreza. O objetivo estratégico é forjar uma
aliança entre o Estado e a sociedade civil para a redução da pobreza.” (idem) Assim,
enfatiza-se, por um lado, que o “combate à pobreza” é a grande meta a se atingir e,
por outro, que os organismos internacionais são uma peça chave para o seu alcance.

Tal como o Banco Mundial114, o PNUD também ressalta como importante estímulo à
participação dos pobres a criação de fóruns de discussão sobre a “guerra contra a
pobreza”. Nessas reuniões públicas, os pobres se engajariam descrevendo suas
condições de vida e contando suas experiências na “pobreza”. Assim, o empowerment
– ou o “aumento do poder dos pobres” - acaba sendo um fim e um meio do combate à
pobreza. Fazer com que os pobres “participem” é um objetivo da empreitada, mas
também a maneira através da qual ela se realizará. É, em última instância, um dos
lados da tão almejada “expansão das capacidades dos indivíduos – expansão que
envolve o alargamento das escolhas e, portanto, um aumento da liberdade”. (PNUD,
1996, p. 55)

Percebe-se que a questão do poder é apresentada de forma vaga, simplista e, ainda,


despolitizada. As relações de poder não são consideradas. O poder é visto
simplesmente como as “capacidades” que os indivíduos têm, ou melhor, que precisam
ter, desvinculando-os das relações sociais em que estão inseridos. Desse modo, nota-
se que se desconsideram as definições mais clássicas das ciências sociais sobre o
poder115 - entendido a partir de seu caráter relacional - nas discussões sobre
empowerment.

114
O Banco Mundial ressalta a experiência do projeto The Voices of the Poor.
115
Por exemplo, ver Stoppino (2000).

182
2.2. Um Estado capacitador, responsável e ativo

Juntamente com a “capacitação” dos pobres, reformas nas instituições do Estado são
sugeridas como estratégias de luta contra a pobreza. Segundo o PNUD, o Estado é,
muitas vezes, ineficiente, irresponsável e “incapacitador”, agindo contra os interesses
dos pobres. As medidas propostas referem-se: a uma retração do papel do Estado –
como é o caso da defesa do mercado/iniciativa privada e da descentralização –; a uma
transformação de seu papel – por exemplo, a ênfase na regulação -; e, ainda, a uma
concentração ou direcionamento – isto é, focalização - de sua atuação e recursos para
os pobres. No que diz respeito a sua retração, é enfatizado um papel “capacitador”
para o Estado. Há forte recomendação de incentivo aos mercados e ao papel da
iniciativa privada:

A concorrência de mercado é uma forma importante de as pessoas,


especialmente as mais pobres, escaparem à dominação econômica. São
várias as forças que podem encorajar a concorrência real, mesmo quando
os governos são fracos e servem a seus próprios interesses. Em primeiro
lugar, as ambições dos produtores (...) que visam lucro. Em segundo
lugar, as influências e interesses externos - competidores estrangeiros
desejosos de entrar no mercado, governos doadores e outros que querem
oportunidades para as suas exportações e para seus investidores. Em
terceiro lugar, as agências internacionais que apóiam a doutrina do
comércio livre e da livre concorrência. (...) as pessoas pobres podem se
beneficiar desta difusão do poder de mercado - e certamente se
desvencilharão melhor do que se estivessem sob monopólios ou sobre a
dominação total da economia pelo governo. (PNUD, 1997, p. 103)

Ao invés de atuar ativamente em certas áreas, o Estado deveria transferi-las para o


setor privado, estimulando a concorrência e beneficiando, segundo o argumento, os
pobres. Embora o PNUD não mencione o termo “privatização”, parece ser disso que
se trata, em certos casos. Em outros, ele ressalta a importância das parcerias público-
privadas (PNUD, 1997, p. 106; 2003, p. 111).

Outra discussão acerca da retração do Estado bastante presente no PNUD diz respeito
à descentralização (PNUD, 2003, p. 134). Entendida como a transposição da
autoridade política da administração central aos níveis locais e destes para a
comunidade, que passa a se co-responsabilizar pela gestão (e, em alguns casos,
também pelo financiamento) das políticas públicas, o papel da descentralização no
“combate à pobreza” é fortemente enfatizado. Afirma-se que ela contribui para
melhorar a situação dos mais pobres, pois “aumenta a participação popular nos

183
processos de tomada de decisão, uma vez que aproxima o governo das pessoas”
(ibidem, p. 135). Esse processo é entendido como imprescindível para a promoção da
democracia, das liberdades e das capacidades dos indivíduos. Entretanto, trata-se,
também, da transferência de atribuições e responsabilidades do Estado para a
comunidade, como é o caso típico da gestão e do financiamento de alguns programas
de saúde nos países africanos.

Contudo, embora essa transferência de poder possa ser realizada independente da


organização dos pobres, para que ela seja importante para o combate à pobreza é
fundamental, argumenta o PNUD, que essas pessoas estejam organizadas de modo
que possam participar, buscar e promover seus próprios interesses frente ao governo
local. Percebe-se então que há uma estreita relação entre a “capacitação dos pobres”
(empowerment) e a descentralização:

deve se reforçar o vínculo entre a descentralização e a capacitação da


população para avançar na luta contra a pobreza. Se a descentralização
inclui uma verdadeira transferência de poderes aos níveis locais,
provavelmente se reforce o entorno propício para a mitigação da pobreza.
Que os pobres se beneficiem ou não é realmente uma questão mais
complexa relacionada com seu próprio nível de organização e capacitação.
(PNUD, 2000, p. 63)

As indicações referentes ao papel do Estado enquanto regulador são inerentes, por sua
vez, à transformação de sua atuação. A questão da regulação está diretamente
relacionada àquela do estímulo à concorrência de mercado. Ao mesmo tempo em que
se recomenda que o Estado se retire e diminua sua atuação enquanto produtor ou
empresário, de modo que a iniciativa privada entre em ação, sugere-se que, para que a
concorrência seja garantida, é necessário que o Estado atue como regulador. Isto é o
que o PNUD entende por “reforçar o Estado” (PNUD, 2003, p. 119): “A capacidade
reguladora nos países em desenvolvimento tem que ser desenvolvida e melhorada, de
modo que a provisão pública e privada funcione para todos os serviços e utilizadores.”
(idem).

Ainda no que diz respeito ao Estado, estão presentes nos relatórios do PNUD (2000;
2003) recomendações de concentração ou direcionamento de sua atuação, esforços e
recursos para os pobres: “Uma boa parte do êxito dos programas nacionais contra a
pobreza descansa na ‘orientação’ de seus benefícios para os pobres.” (PNUD, 2000, p.
84).

184
Se os pobres carecem de poder, é improvável que lhes cheguem os
benefícios dos programas contra a pobreza, ou que lhes cheguem com
efeito duradouro. A orientação efetiva dos benefícios é o resultado da
capacitação dos beneficiários, e não o inverso. Provavelmente a própria
palavra orientação enfraqueça a compreensão do problema: é melhor falar
em termos gerais sobre concentração dos recursos para a redução da
pobreza. (idem)

Assim, depois de tomada como pressuposto a capacitação dos pobres, sugerem-se


diversas maneiras para a “concentração dos recursos” (focalização) do Estado para os
pobres, dentre as quais: (i) concentração em zonas geográficas; (ii) benefícios
específicos a grupos desfavorecidos; (iii) orientação por tipo de intervenção.

Quanto à primeira forma, o PNUD (2000) argumenta:

Uma maneira de concentrar os recursos é vinculá-los a unidades


geográficas, como províncias ou comunidades. Em vez de direcionar os
recursos a determinados setores, o governo os aloca nas zonas pobres. Os
custos administrativos desta medida são geralmente reduzidos. Em muitos
programas nacionais contra a pobreza a orientação geográfica dos
benefícios é o principal método de intervenção, frequentemente com a
assistência do PNUD. (idem)

O primeiro passo desse método seria determinar quais são as regiões mais pobres,
coletar dados e elaborar “mapas geográficos da pobreza”, de modo a identificar as
regiões mais pobres e orientar-lhes especificamente as intervenções prioritárias.

No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos noventa, alguns mapeamentos foram feitos
especificamente para a fome. Em 1993, foram lançados os “mapas da fome” - Mapa
da Fome I, II e III -, pelo IPEA (1993), e, mais tarde, o “Mapa do Fim da Fome I”
(CPS/FGV, 2001) e o “Mapa do Fim da Fome II” (CPS/FGV, 2004), ambos
elaborados pela Fundação Getúlio Vargas.

Quanto aos benefícios específicos:

A orientação geográfica dos benefícios, inclusive no nível da comunidade,


talvez não permita chegar aos grupos sociais desfavorecidos. As mulheres,
as minorias étnicas, as castas inferiores, os refugiados e as populações
indígenas provavelmente necessitam de intervenções especiais. (PNUD,
2000, p. 88)

Já o terceiro modo de orientação parte da indicação de tipos específicos de


intervenção, tais como a alocação de recursos a serviços sociais básicos e o
microfinanciamento.

185
Assim, visando o “desenvolvimento dos recursos humanos”, recomenda-se a
“promoção do investimento em serviços sociais básicos, como a educação e a atenção
médica básicas, a nutrição, a água e o saneamento, e a saúde reprodutiva.” (ibidem, p.
91) Mas a sugestão limita-se a serviços básicos. O PNUD argumenta que para os
serviços não-básicos, há, desde os anos noventa, uma tendência no sentido de uma
forte expansão da iniciativa privada ou ainda, dependendo do caso, das parcerias
público-privado para sua provisão. (PNUD, 2003, p. 111)

Quanto ao microfinanciamento, sugere-se um aumento do acesso a esse tipo de


mecanismo. O PNUD explica sua importância, sugerindo que se trata de um modo
poderoso de abrir os mercados para os pobres (criar “oportunidades”) – possibilitando
que diminuam seus riscos e que, ainda, venham a se tornar pequenos
“empreendedores” - e que “com freqüência o microcrédito contribui à capacitação da
comunidade” (PNUD, 2000, p. 92) e é por isso que ele “vem apoiando muitas das
novas iniciativas de microfinanciamento, e está ampliando essas atividades a nível
mundial”.

Como muitas das instituições que oferecem os micro-financiamentos têm dificuldades


de sobrevivência - de se sustentarem do ponto de vista financeiro116 e de seu
funcionamento -, argumenta-se que elas precisam de ajuda, de modo que tenham sua
capacidade institucional fortalecida. “Esse fortalecimento (...) melhoraria seu acesso
ao capital dos bancos comerciais e, por conseguinte, sua capacidade para outorgar
empréstimos aos pobres”. (ibidem, p. 93) Assim, o PNUD destaca a necessidade de se
fortalecer117 a capacidade institucional das instituições de microfinanciamento, de
modo que elas possam se sustentar e, assim, cumprir seu papel no “combate à
pobreza”.

Por fim, quanto ao Estado, o PNUD afirma que ele deve ser responsável para com os
pobres, no sentido de estar sempre empenhado na luta contra a pobreza, no aumento
das capacidades dos indivíduos, na criação de um ambiente propício à participação e
às parcerias para a erradicação da pobreza.
116
Segundo o PNUD, “uma instituição de microfinanciamento tem um funcionamento sustentável
quando pode cobrir todos os gastos de funcionamento, e é sustentável desde o ponto de vista financeiro
quando pode cobrir todos os gastos de capital.” (PNUD, 2000, p. 92)
117
É destacado o exemplo das licenças concedidas a essas instituições de microfinanciamento. Com as
licenças, elas conseguem obter mais facilmente empréstimos no mercado de capitais, tornando mais
provável sua sustentalibidade enquanto instituição tanto do ponto de vista financeiro, quanto do de seu
funcionamento.

186
2.3. Um crescimento econômico a favor dos pobres

Outra ação recomendada como estratégia para combater a pobreza consiste na


promoção do “crescimento a favor dos pobres”, que, para o PNUD, “não é apenas
crescimento (...) significa centralizar a questão da redução da pobreza na tomada de
medidas políticas a nível nacional.” (PNUD, 1997, p. 111)

Para gerar crescimento, as principais componentes da política econômica


são: garantir uma gestão macroeconômica saudável e a estabilidade
macroeconômica, impulsionar a procura interna através de um
ajustamento adequado das taxas de juro reais, adotar uma disciplina fiscal,
acelerar a produção industrial, reformar as instituições do setor financeiro
e promover uma boa governança. Mas o crescimento econômico por si só
não é suficiente. Deve ser a favor dos pobres – expandindo suas
capacidades, oportunidades e escolhas de vida. (PNUD, 1999, p. 94)

O PNUD (2003) argumenta que o crescimento econômico é necessário por dois


motivos:

Primeiro porque o crescimento econômico reduz diretamente a privação


de rendimentos de muitas famílias, aumentando as suas poupanças e
libertando recursos para investimentos em desenvolvimento humano. Sem
crescimento econômico, os países não podem esperar reduzir para metade
a percentagem de pessoas que vivem com privação de rendimento, a
primeira meta dos Objetivos. Segundo, porque o crescimento econômico
tende a aumentar as receitas do governo. Porque a maioria dos
investimentos em desenvolvimento humano – saúde, nutrição, educação,
infra-estrutura – vem do setor público, mais recursos fiscais são decisivos
para atingir os Objetivos. (PNUD, 2003, p. 67)

Contudo, se, para a promoção do desenvolvimento humano, é necessário um maior


investimento público naqueles setores, o crescimento econômico por si só não basta.
O PNUD defende que é preciso vontade política para colocar o lado “humano” no
centro das atenções, isto é, que se busquem políticas públicas voltadas para a redução
das várias dimensões não-econômicas da pobreza. (ibidem, p. 68)

Com isso, conclui-se que o crescimento econômico não garante que os países em
desenvolvimento consigam reduzir a pobreza. Para tanto, são necessários esforços do
setor público - investimentos em “desenvolvimento humano”. E as políticas voltadas
para o “crescimento favorável aos pobres” devem procurar “reduzir desigualdades e
aumentar as capacidades humanas”. (PNUD, 1999, p. 94)

Diante disto, recomenda-se, dentre outras medidas: (i) enfatizar a industrialização


trabalho-intensiva, de modo a expandir as oportunidades de emprego; (ii) “construir

187
capacidades humanas através da educação e garantir o acesso às pessoas pobres. A
educação foi considerada (...) o fator mais importante para a explicação das
disparidades de rendimentos e a dispersão salarial entre níveis de qualificação tornou-
se significativa.”; (iii) tornar acessíveis mais ativos financeiros (exemplo, o
microcrédito) e recursos produtivos (como o acesso à terra) aos pobres; (iv)
transferências de rendimento e perseguir programas contra a pobreza para os mais
pobres – um mecanismo bastante enfatizado são os programas de transferência de
renda. Em suma, são políticas que buscam ampliar as oportunidades e as capacidades
dos mais pobres.

2.4. Uma gestão “mais humana” da globalização

O problema central não é a globalização em si, nem a utilização do


mercado enquanto instituição econômica, mas a desigualdade presente nos
arranjos institucionais globais - o qual produz por sua vez uma
distribuição desigual dos dividendos da globalização mesma. A pergunta,
portanto, não reside em se os pobres do mundo podem ou não obter algo
do processo de globalização, mais sob que condições podem obter uma
parte realmente justa. Urge reformar os acordos institucionais –
juntamente como os nacionais - para erradicar os erros que resultam tanto
das omissões como das constrições, que tendem a reduzir drasticamente as
oportunidades dos pobres no mundo todo. A globalização merece uma
defesa razoável, mas também requer uma reforma da mesma ordem.
(SEN, 2001a, p. 50)

A passagem supracitada - texto sobre a globalização de Amartya Sen - ilustra bem o


entendimento do PNUD sobre a globalização e como sua reforma importa para o
“combate à pobreza”. Tal como Sen, o PNUD sugere que se, por um lado, é preciso
defender a globalização, por outro, também é necessário que ela se transforme - que a
globalização seja mais justa e mais humana, de modo que a luta contra a pobreza se
torne possível.

Com a globalização, afirma o PNUD, foram criadas grandes oportunidades nos


mercados mundiais (PNUD, 1999, p. 84). O problema é que nem sempre elas se
distribuem igualmente e que, ademais, com a volatilidade dos mercados, novas
vulnerabilidades são criadas.

Diante disto, é preciso ajustar a globalização, adequando-a a partir dos ditames do


“desenvolvimento humano”. As noções de justo e humano referem-se, por

188
conseguinte, a essa perspectiva. Para que a globalização seja justa é preciso que ela
amplie as oportunidades (promova a “equidade”) e para que ela se torne humana é
necessário que ela dê atenção aos pobres (dotando-os de capacidades humanas).

Nota-se, ainda, que a argumentação do PNUD é circular: para que a pobreza seja
combatida é preciso uma globalização que promova o “desenvolvimento humano” e
para promover este último é preciso que o processo de globalização combata a
pobreza (crie oportunidades e capacite as pessoas pobres).

2.5. Reunião de forças no combate à “pobreza humana”

Por fim, outro ponto frequente em vários relatórios que tratam do combate à pobreza
(PNUD, 1997; 1999; 2003) diz respeito ao estímulo à formação de parcerias em torno
daquele objetivo. “Todos os agentes da sociedade precisam se juntar numa parceria
com vista a abordar a pobreza humana em todas as suas facetas.” (PNUD, 1997, p.
95)

O sucesso da mobilização política contra a pobreza depende do apoio


vasto e diversificado que se consegue angariar. As pessoas pobres, por
melhor organizadas que estejam, não podem forçar alteração de políticas
no sentido da erradicação da pobreza. Devem ser envolvidos todos os
grupos da sociedade - e não apenas aqueles que representam os pobres. As
alianças, as parcerias e os compromissos são os únicos veículos para uma
reforma pacífica e sustentada. (ibidem, p. 100)

Essa defesa de que é necessária a reunião de forças para uma mobilização política
contra a pobreza: (i) enfraquece aquele argumento do PNUD de que o empowerment
dos pobres consegue por si só promover a “redução da pobreza”; (ii) parece ser um
artifício utilizado para dar um tom “progressista” às políticas de combate à pobreza e
mais “humano” às políticas da própria globalização liberalizante e (iii) serve como um
recurso para a reafirmação da retórica internacional.

Em primeiro lugar, a argumentação do PNUD nem sempre é clara. Como já se viu, o


PNUD argumenta que empowerment dos pobres é fundamental para que eles “saiam
da pobreza”, já que, uma vez organizados, eles “podem influir no governo local e
exigir-lhe responsabilidade. Também podem formar coalizões mais amplas para
influir na adoção de decisões nos planos regional e nacional.” (PNUD, 2000). Ao
mesmo tempo, argumenta-se que a participação dos pobres não é suficiente e que,

189
para se combater a pobreza, é preciso que se forme um consenso em torno de políticas
"em favor dos pobres" é fundamental.

Em segundo lugar, esforça-se em afirmar que o “combate à pobreza” precisa ser


entendido como uma mudança de rumos, até mesmo uma utopia possível de ser
colocada em prática: “Quando se juntam as pessoas suficientes em favor de uma
causa muitos dos ideais tornam-se realistas.” (PNUD, 1997, p. 100) Com isso, ao ser
ressaltada a necessidade de fazer com que todos se engajem no “combate à pobreza”,
quer-se imprimir um tom progressista ao entendimento desse tipo de política, como se
representasse uma alteração das políticas, quando, na verdade, nada mais é que um
esforço em dar ao neoliberalismo uma face humana.

Por fim, percebe-se que essa necessidade de reunir forças em torno do “combate à
pobreza” aponta e serve também para um reforço justificativo da importância do papel
dos organismos internacionais na nova empreitada do milênio. Atualmente, dizer que
é preciso buscar consenso em torno daquele objetivo acaba sendo afirmar que as
forças políticas nacionais precisam se alinhar ao que prescreve o discurso
internacional.

190
3. Segundo a OIT

Já se viu que a OIT sugere que é preciso “superar a pobreza mediante o trabalho”
(OIT, 2005). Mais especificamente, defende-se a perspectiva do “trabalho decente”
(OIT, 2003) e produtivo (OIT, 2005). Assim, para propor o que fazer, parte-se dos
objetivos considerados por esse enfoque, a saber: (i) promover e cumprir os princípios
e direitos fundamentais no trabalho; (ii) gerar maiores oportunidades para que
mulheres e homens possam ter empregos produtivos e maiores rendas; (iii) promover
a proteção social; (iv) fortalecer o diálogo social. Para tanto, a OIT (2003) defende
que uma política de redução e erradicação da pobreza requer uma expansão das
oportunidades do trabalho decente e produtivo, uma estratégia de crescimento a favor
dos pobres e, ainda, uma melhora da “governança” do mercado de trabalho.

3.1. Empregabilidade, formação profissional e aumento da produtividade

A principal estratégia de expansão das oportunidades do trabalho decente e produtivo


– para assim reduzir a pobreza - diz respeito a um tema bastante recorrente: o do
aumento de “capital humano” dos trabalhadores.

Nos debates sobre o modo de reduzir a pobreza é muito comum afirmar


que a principal riqueza, ou a única, dos pobres é seu trabalho. Parece
óbvio que a formação cumpre uma função essencial na hora de aumentar a
produtividade e as rendas e de propiciar o acesso eqüitativo às
oportunidades de emprego. (OIT, tradução livre, 2003, p. 42)

As propostas de aumento de capital humano aparecem na OIT a partir de discussões


de temas próximos, como o aumento da empregabilidade dos trabalhadores (OIT,
1998), a formação profissional e a capacitação dos trabalhadores (OIT, 2003) e o
aumento da produtividade do trabalhador (OIT, 2005).

A discussão sobre a “empregabilidade” é central para essa organização. Em 1998, a


instituição dedicou seu World Employment Report à questão: Employability in the
Global Economy. How Training Matters, destacando a importância do investimento
em educação e do desenvolvimento de habilidades, no atual contexto mundial. Com a
globalização, ressalta a OIT (1998):

191
As mudanças na tecnologia e na organização do trabalho (...) resultaram
numa mudança na natureza da demanda por qualificação. O caráter
mutante das novas tecnologias requer trabalhadores que possam aprender
e se adaptar a essas mudanças rapidamente e eficientemente. (ILO, 1998,
p. 46)

Desse modo, no novo contexto a demanda por trabalho exige que os trabalhadores
estejam investindo permanentemente em sua qualificação (e treinamento) e formação
profissional, de modo que mantenham e sempre renovem sua “empregabilidade”. A
ênfase na importância e na necessidade de políticas de desenvolvimento de recursos
humanos enquanto estratégia para enfrentar a atual situação de declínio do emprego e
de rápida globalização é assim justificada.

Embora o tema do “combate à pobreza” ainda não apareça no relatório de 1998 (OIT,
1998), é importante perceber que a “minimização dos custos sociais” da globalização
é proposta a partir do aumento do capital humano.

No relatório Superar la Pobreza mediante el trabajo, de 2003, a OIT trata da


formação profissional e da capacitação dos trabalhadores como um dos caminhos para
atingir aquele objetivo. E ressalta que nem sempre essas dimensões estão presentes
nas estratégias de redução da pobreza. Geralmente, argumenta a OIT (2003), enfatiza-
se o papel da educação (ou ensino), mas não o da contínua qualificação profissional
ao longo da vida do trabalhador: “A formação deixou de ser um investimento único
no começo da vida laboral para se converter num processo de aprendizagem
permanente no qual as qualificações se renovam e adaptam de maneira constante.”
(ibidem, p. 43) E, especificamente, “no caso dos jovens economicamente vulneráveis
e socialmente excluídos resulta especialmente indispensável adquirir umas
qualificações básicas que os preparem para uma ampla gama de possíveis postos de
trabalho.” (idem) Ou seja, essa questão evidencia a ênfase dada ao papel e
importância da “empregabilidade” na redução da pobreza; com mais educação e
melhor formação profissional, o indivíduo pode expandir sua produtividade, e assim,
aumentar suas rendas e o acesso às oportunidades de emprego.

Essa questão é abordada no relatório de 2004-2005, Informe sobre el Empleo en el


Mundo 2004-2005: Empleo, productividad y reducción de la pobreza, a partir de uma
discussão específica sobre como o emprego e a pobreza se relacionam através da
questão da “produtividade”. Para a OIT, “a fonte da pobreza [da maioria dos
trabalhadores] não é a falta de atividade econômica, mas o caráter pouco produtivo de

192
suas ocupações.” (OIT, 2005, p. 1) Assim, a OIT defende que o aumento da
produtividade - tanto dos próprios trabalhadores quanto do processo produtivo118 –
deve ser visto como um caminho para se combater a pobreza (o “trabalhador pobre” e
o pobre desempregado).

No que diz respeito ao trabalhador pobre, seu problema é que é mal pago – o que é
explicado pelo fato de ele não ser “produtivo”. Assim, ele precisa aumentar sua
produtividade (aumentar seu capital humano e, portanto, a sua “empregabilidade”), de
modo que sua remuneração aumente. Já no que diz respeito ao desemprego, a OIT
(2005) afirma que é preciso estimular a produtividade da economia - tanto com
“capital humano”, tornando o pobre mais competitivo e mais empregável, quanto com
inovações tecnológicas, criando novos empregos na economia como um todo.

Em suma, percebe-se que as temáticas abordadas pela OIT (1998; 2003; 2005)
referem-se, em última instância, a uma discussão sobre o papel do “capital humano”
no combate à pobreza: é preciso aumentá-lo para que o pobre possa competir e, assim,
aumentar sua renda e sair da pobreza. Ao lado das propostas de aumento da
empregabilidade, da qualificação e da produtividade do trabalhador, são
recomendadas também outras políticas voltadas para a promoção do “trabalho decente
e produtivo”. É o que se discute a seguir.

3.2. Estratégias específicas para a promoção do “trabalho decente” e


“produtivo”

Para superar a pobreza e “atender as necessidades e aspirações dos pobres” (OIT,


2003, p. 42), a OIT sugere os seguintes instrumentos específicos de política: (i)
criação de novos postos de trabalho; (ii) estímulo ao espírito empresarial de pobres
interessados em montar micro e pequenas empresas; (iii) financiamento da redução da

118
Tal como já observado no capítulo anterior, embora a OIT (2005) reconheça a polêmica existente
em torno da questão da produtividade – o fato de ela poder destruir empregos, já que o progresso
tecnológico permite que as empresas produzam mais com menos trabalhadores – ela defende que, para
a macroeconomia em geral, num mundo globalizado, ela gera benefícios – já que a tecnologia cria
igualmente novos produtos e novos processos, cujo resultado é a expansão dos mercados e a aparição
de novas oportunidades de emprego. Segundo a OIT, do ponto de vista da macroeconomia em geral, há
uma “destruição criativa de emprego”. (OIT, 2005, p. 81)

193
pobreza; (iv) promoção da proteção social; (v) combate ao trabalho infantil; e (vi)
superação da discriminação.

Quanto ao primeiro item, recomenda-se um investimento em projetos cuja técnica seja


trabalho-intensiva (sobretudo, os de infra-estrutura, por exemplo a construção de
estradas) de modo que a criação de novos postos de trabalho seja impulsionada. “A
curto prazo, a pobreza se reduz ao aumentar as rendas daqueles que trabalham no
projeto e, a longo prazo, se reduz ao fornecer bens públicos indispensáveis para uma
elevação para as rendas de toda a população.” (OIT, 2003, p. 48)

Já segundo ponto diz respeito ao apoio ao espírito empresarial e empreendedor dos


pobres que aspiram criar suas próprias empresas. Recomenda-se que se dê ao pobre
capacidade empresarial e de gestão – um apoio específico que o ajude a montar seu
próprio negócio. São, assim, sugeridos programas e serviços de apoio e orientação aos
pobres que atuam na economia informal, de modo que seu empenho seja convertido
em “capacidade empresarial”. Com o próprio negócio, o pobre pode trabalhar para si,
aumentar sua renda e, assim, ultrapassar a “linha” da pobreza.

O terceiro campo de atuação refere-se ao financiamento da redução da pobreza. Ou


seja, facilitar o micro-financiamento, a prestação de serviços financeiros aos
trabalhadores pobres que carecem do acesso ao crédito. Esta questão é também
indicada, como já se viu, pelo Banco Mundial e pelo PNUD. Ressalta-se a
importância do microcrédito no combate à pobreza e se relaciona com o item anterior,
como se percebe na seguinte passagem:

É impossível montar uma empresa sem acesso ao crédito. No mundo todo,


os pobres têm um acesso muito limitado aos serviços financeiros formais.
As atividades de micro-financiamento estão indissoluvelmente
relacionadas com o dinamismo empresarial e permitem aos pobres obter
empréstimos com fins produtivos, poupar e acumular ativos. (OIT, 2003,
p. 10)

Além dessa importância para o pequeno empreendedor, a OIT (ibidem, p. 56) ressalta
que o micro-financiamento reforça o conceito de “trabalho decente” em três sentidos:
(i) com os investimentos feitos nas pequenas empresas, é facilitada a criação de novos
postos de trabalho; (ii) com a poupança, seguros e a possibilidade de empréstimos de
urgência, se estabilizam as rendas e reduz-se a vulnerabilidade dos pobres, ou seja,
sua “segurança” é reforçada (não se menciona, contudo, que, em algum momento, os
pobres terão de honrar os compromissos financeiros assumidos nesses momentos de

194
urgência); (iii) estímulo ao sentido de responsabilidade nos pobres, reforçando seu
capital social, capacitando essas pessoas.

Tal como os outros organismos internacionais, a OIT fixa para si o papel de


assessorar os bancos centrais no que é relativo à formulação de leis e regulamentos
para os bancos que estão a serviço dos pobres. Argumenta que isto contribuiria para
criar um entorno propício para a criação e o desenvolvimento de bancos que
favoreçam aos pobres e o “combate à pobreza”.

“Para uma família pobre, a condição sine qua non para participar produtivamente na
sociedade e na economia consiste em dispor de renda básica, de uma assistência
médica elementar e de vagas nas escolas para seus filhos.” (ibidem, p. 12). Assim, a
garantia de nível de renda básica e a promoção da proteção social são exigências
básicas para superação da pobreza.

A OIT lembra que, embora sua importância seja patente, grande parte da população
pobre está à margem de qualquer tipo de proteção. Em junho de 2001, chegou-se a
“um novo consenso sobre a seguridade social na 89ª reunião da Conferência
Internacional do Trabalho.” Decidiu-se que é preciso “máxima prioridade às políticas
e iniciativas que levem seguridade àquelas pessoas que não estão cobertas pelos
sistemas vigentes”. (OIT, 2003, p. 60)

Além de ser condição básica para a vida dos pobres, a OIT ressalta o papel funcional
que a seguridade social pode ter: ela “pode elevar a produtividade e facilitar um
desenvolvimento econômico e social sustentável. (...) facilita as mudanças estruturais
e tecnológicas que requerem uma força de trabalho adaptável e móvel. (...) Os
sistemas desenhados com acerto melhoram o rendimento econômico e, desta maneira,
contribuem à vantagem comparativa dos países nos mercados mundiais.” (ibidem, p.
61).

São sugeridos tipos variados de micro-seguros e mutualistas locais de saúde. Além


disso, é ressaltada a conveniência de que governos e organismos internacionais
estudem a possibilidade de estabelecer programas de renda mínima.

A OIT propõe uma estratégia de expansão gradual dos sistemas, mas aponta, ao
mesmo tempo, para a necessidade de se preocupar com a questão dos gastos em
proteção social e a análise dos resultados, de modo a adequar essas políticas aos
limites fiscais e financeiros. Assim, para a OIT, a expansão da proteção social deve

195
depender e ser limitada por questões fiscais e financeiras: “a extensão aos mais pobres
da seguridade social exigirá uma combinação integrada de regimes que possam se
ampliar progressivamente, ao compasso do aumento da capacidade administrativa e
dos recursos econômicos do país.” (ibidem, p. 63)

Por fim, os dois últimos campos apontados pela OIT para a luta contra a pobreza – o
combate ao trabalho infantil e a superação da discriminação – dizem respeito aos
princípios e direitos fundamentais que devem estar presentes no “trabalho decente”.

Nas suas piores formas, [o trabalho infantil] prejudica a saúde das


crianças, priva-os de educação e até pode levar-lhes a vida. Enquanto a
pobreza impulsiona certas famílias a colocar seus filhos a trabalhar, a
geração seguinte estará condenada a mesma sina. (ibidem, p. 11)

Segundo a OIT (2003, p.11), o trabalho infantil é, ao mesmo tempo, uma causa e um
sintoma da pobreza. Assim, “o combate ao trabalho infantil está intrinsecamente
ligado às estratégias de redução da pobreza.” (ibidem, p. 67) A erradicação do
trabalho infantil requer uma estratégia integrada que leve em conta questões de
gênero, que se centre na família, e que procure retirar as crianças do trabalho,
levando-as à escola e, por outro lado, oferecendo trabalho aos pais que estiverem
desempregados. Assim, além de impedir que as crianças trabalhem – reafirmando o
direito fundamental da criança de estar fora do trabalho -, OIT procura também
promover o desenvolvimento de alternativas adequadas de educação para crianças, o
acesso a rendas e proteção para seus pais, vinculando, assim, o combate ao trabalho
infantil às estratégias já mencionadas para a superação da pobreza.

Já no que diz respeito à discriminação, a OIT sustenta que ela se relaciona com a
pobreza de duas maneiras. Por um lado, existe uma discriminação da sociedade contra
a própria pobreza. Com freqüência, a sociedade “não trata num plano de igualdade as
pessoas que vivem na pobreza.” (OIT, 2003, p. 71) Para justificar essa afirmação,
recorre ao estudo financiado pelo Banco Mundial The Voices of the Poor, no qual um
pobre argumenta que: “a pobreza é uma humilhação e provoca a sensação de não
sermos independentes e de ter que aceitar grosserias, insultos e a indiferença quando
buscamos ajuda” (NARAYAN apud OIT, 2003, p. 71)

Por outro lado, a discriminação também pode se manifestar de múltiplas outras


formas, que reforçam as situações de pobreza: “As conseqüências derivadas da
pobreza se vêem agravadas como conseqüência da discriminação em função de raça,

196
casta, origem étnica, cor da pele, religião, sexo, orientação sexual, estado de saúde e
deficiência.” (idem)

A OIT afirma que o ponto de partida para todas as suas atividades destinadas a
superar a discriminação consiste na afirmação do direito à igualdade de oportunidades
e de trato no emprego. Mas lembra que a “chave para o êxito de um enfoque inclusivo
da promoção da igualdade no mercado de trabalho é a participação ativa dos
sindicatos, as organizações de empregados e outros interessados na luta contra a
discriminação e a proposição de soluções construtivas” (idem) que busquem melhorar
as oportunidades de emprego para mulheres, negros, dentre outros.

Uma vez que a discriminação reforça as situações de pobreza, criando barreiras às


oportunidades de emprego, é essencial, segundo a OIT, “promover a igualdade de
gênero e eliminar todas as formas de discriminação no trabalho. A chave para
eliminar a pobreza é a compreensão cabal das formas concretas que reveste a
discriminação no plano local, já que variam segundo os países e as culturas.” (OIT,
2003, p. 11)

Essas são, portanto, as seis estratégias específicas voltadas para a promoção do


“trabalho decente” como meio de combater a pobreza - aumentando a produtividade
do trabalhador: “Com uma aplicação mais intensa e ampla das políticas e programas
de trabalho decente se eleva a produtividade e aumentam os recursos nacionais e as
rendas das pessoas ameaçadas pela pobreza.” (ibidem, p. 73)

3.3. Crescimento a favor dos pobres e a “boa governança” do mercado de


trabalho

Pelo que já foi visto, percebe-se que, para a OIT, a erradicação da pobreza deve ser
alcançada através de um crescimento a favor dos pobres, que, por sua vez, significa a
promoção de “trabalho decente”, a partir daquelas estratégias mencionadas na seção
anterior. Contudo, ela argumenta que, para garantir um crescimento a favor dos
pobres, mudanças institucionais são necessárias.

Construindo seu argumento a partir das idéias de Douglass North (1990), a OIT
afirma que as instituições são importantes para os resultados da economia e, ainda,

197
que muitas das regras podem (e precisam) ser transformadas. Assim, para gerar e
manter um crescimento a favor dos pobres, é preciso que cada vez mais se discuta a
governança, isto é, “a influência reguladora das instituições, normas e medidas que
determinam o funcionamento da economia e da sociedade”. (OIT, 2003, p. 78)

Argumenta, ainda nessa chave, que:

A persistência da pobreza em grande escala indica que, em muitos países,


as instituições, entre elas as que regem o mercado de trabalho, não levam
nada a um grande número de pessoas. (...) O problema pendente consiste
em formular normas oficiais que confluam com os valores amplamente
aceitos e definir normas não oficiais que paliem a incerteza e a
desconfiança, melhorando com isso o funcionamento dos mercados. A
qualidade das instituições que configuram o marco de governança dos
mercados de trabalho é um fator capital numa estratégia que promova a
produtividade, o crescimento e um desenvolvimento sustentável e que
permita reduzir a pobreza e, em última instância, a elimine. (OIT, 2003, p.
76)

O que a OIT procura oferecer e difundir, portanto, com a perspectiva do “trabalho


decente” é “um marco integrado para fomentar uma mudança institucional, fundada
em valores universais, que possa ajudar os países a configurar a governança do
mercado de trabalho” (ibidem, p. 77)

Esse novo marco para as instituições é, segundo a OIT, elemento crucial para a
erradicação da pobreza. A necessidade de melhorar a “governança" do mercado de
trabalho - garantindo o cumprimento de certos princípios básicos - é justificada de
duas maneiras. Por um lado, porque o mercado de trabalho não é como os outros
mercados. Sua peculiaridade se dá pelo fato de afetar as pessoas. Por outro lado,
ressalta-se uma instrumentalidade para a garantia dessas normas básicas: a sensação
de estar sendo tratada com justiça repercute no seu rendimento. A equidade
“percebida” (e não tanto a equidade “real”) é fator fundamental na criação de
condições de trabalho que estimulem os trabalhadores, de modo que sua
produtividade seja aumentada. (ibidem, p. 78)

Dentre os princípios básicos que devem estar presentes no mercado de trabalho, são
ressaltados os seguintes direitos fundamentais: a) a liberdade de associação e a
liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito de negociação coletiva; b) a
eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório; c) a abolição
efetiva do trabalho infantil; e d) a eliminação da discriminação em matéria de
emprego e ocupação. (ibidem, p. 79) Nota-se, dessa forma, que embora sejam

198
destacados alguns dos direitos civis e políticos importantes da tradição da luta sindical
no contexto do capitalismo, não são ressaltados os direitos sociais - conquistas estas
fundamentais para a proteção do trabalho.

A vinculação entre a garantia desses direitos básicos e o aumento da renda do


indivíduo é assim resumida:

O estabelecimento de sistemas de governança dos mercados de trabalho


que garantam que os trabalhadores que têm de encontrar algum modo de
sobreviver possam reivindicar seus direitos fundamentais é um fator
fundamental para melhorar a renda que podem obter de seu trabalho.
(OIT, 2003, p. 80)

Percebe-se também que o enfoque do “trabalho decente” da OIT se aproxima da


abordagem do PNUD, já que ele “se baseia na convicção de que um objetivo primário
do desenvolvimento, e o meio principal para erradicar a pobreza, é a criação de
condições nas quais se tenha a liberdade de desenvolver a capacidade própria [dos
indivíduos].” (idem)

4. Comentários adicionais.

A partir do que foi exposto anteriormente, é possível sintetizar as recomendações dos


três organismos através do quadro abaixo.

Quadro 2 – O “combate à pobreza”. O que fazer?

Banco Mundial PNUD OIT


- Capacitar os pobres - aumentar o “capital
- Promoção das humano” do trabalhador e
- Reformar o Estado
“oportunidades” a produtividade da
Recomendações - Crescimento econômico economia
para o - Incentivo ao pró-pobre
empowerment - expandir as
“combate à
- Reunir novas forças oportunidades de trabalho
pobreza” - Promoção da decente e produtivo
- Promover uma
segurança globalização “mais - boa governança do
humana” mercado de trabalho

Assim, uma vez diagnosticada a questão social em termos de “pobreza”, são


recomendadas “soluções” para enfrentá-la. Juntando as informações do quadro 1 com

199
as do quadro 2, tem-se um quadro mais abrangente, que possibilita uma comparação
entre as abordagens dos três organismos.

Quadro 3 - Comparando os organismos.

Banco Mundial PNUD OIT


Temática central "Trabalho
"Luta contra a pobreza" "Desenvolvimento decente” e
humano" produtivo

Pobreza
Definição monetária "Pobreza humana" -
(linha de pobreza) privação de capacidades Trabalhador pobre
(1990) e “pobreza humanas
multidimensional”
(2000)
Causas da pobreza
Falta de recursos Má governança, falta de
("ativos") e de Falta de "trabalho
oportunidades e fatores
oportunidades e, ainda, decente"
pessoais.
limitações geradas pelas
instituições.
- aumentar o
“capital humano”
- Promoção das - Capacitar os pobres
do trabalhador e a
“oportunidades”
- Reformar o Estado produtividade da
- Incentivo ao economia
- Crescimento econô-
Recomendações para o empowerment mico pró-pobre - expandir as
“combate à pobreza” - Promoção da segurança oportunidades de
- Reunir novas forças
trabalho decente e
- Promover uma produtivo
globalização “mais
- boa governança
humana”
do mercado de
trabalho

De modo geral, o Banco Mundial seria mais “economicista”, o PNUD se apresenta


com pretensões “humanistas” e, a OIT, a partir da temática do “trabalho”. Mas, a
despeito de suas peculiaridades, nota-se que não há grandes divergências no que diz
respeito ao “que fazer” para “combater a pobreza”.

Suas estratégias comuns referem-se às temáticas da retração do Estado, da capacitação


dos pobres, do assistencialismo e focalização dos recursos públicos nos que
comprovam ser pobres (crescimento “pró-pobre”), do incentivo à transformação do

200
pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do incentivo
à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando esses
objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) a “oportunidades”
necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.

201
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerou-se, nesta tese, a expressão “questão social” a partir do entendimento


sugerido por Castel (2003), ou seja, definindo-a a partir do eixo da integração como:

uma aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o


enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura. É um desafio
que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade (o que em
termos políticos, se chama nação) para existir como um conjunto ligado
por relações de interdependência. (CASTEL, 2003, p. 30).

Uma vez construída a “questão social” como categoria sociológica e assim definida,
Castel (2003) se permite fazer uma releitura da história a partir da idéia de
“metamorfoses da questão social”, ou seja, como uma “dialética do mesmo e do
diferente”, mostrando que em toda sociedade há uma questão social, que deve ser
entendida enquanto uma produção social cuja origem reside nas estruturas básicas da
sociedade, na organização do trabalho e no sistema de valores dominantes a partir dos
quais se atribui dignidade ou indignidade social. (CASTEL, 1996)

Sugeriu-se que a reaparição da questão social (no caso europeu) e/ou o seu
aprofundamento (nos países periféricos) podem ser entendidos a partir daquelas
transformações mundiais recentes analisadas no primeiro capítulo. Embora seja
possível, numa chave sociológica, interpretar essa nova “questão social” a partir do
processo social que a gera – tal como sugere Castel (2003) -, quando se observa como
ela vem sendo enunciada – especialmente no âmbito das políticas públicas – percebe-
se que o “nome” nem sempre diz respeito à “coisa”, o que evidencia o lado político do
problema. Nesse sentido, para elucidar a atual formulação da questão social,
argumentou-se que é preciso entender, primeiramente, como o capitalismo
contemporâneo vem sendo justificado e legitimado. Discutiu-se esta temática no
segundo capítulo, analisando-se rapidamente o discurso neoliberal (como utopia e
como ideologia) e, paralelamente, discorreu-se sobre a justificação do capitalismo no
mundo do trabalho (BOLTANSKI, 1999). Ainda como elementos do novo conjunto
ideológico, destacaram-se os debates e discursos contemporâneos sobre flexibilidade
e empregabilidade, que vêm se constituindo nas novas regras do jogo do mundo do
trabalho.

202
Procurou-se esclarecer melhor a separação entre o “nome” e a “coisa” no terceiro
capítulo. Considerou-se como “coisa” o conceito de Castel (2003) de “questão social”
- conceito que traz consigo a idéia de mutações ou metamorfoses - e como “nome”
tomaram-se os diversos modos a partir dos quais a “coisa” é tratada ou “enunciada”
ao longo do tempo. Apontou-se, assim, para um deslocamento interpretativo da
questão social no contexto latino-americano: se, no contexto do desenvolvimentismo,
ela era tratada enquanto “marginalidade” – a partir de interpretações preocupadas com
os processos estruturais que a geravam -, viu-se que, a partir dos anos oitenta, o
conceito de marginalidade entra em desuso e, sobretudo, a partir dos anos noventa, a
questão social (mais extensa e aprofundada) começa a ser enunciada, sobretudo, a
partir da idéia da “pobreza”. No quarto capítulo sugeriu-se que para entender melhor a
centralidade, especificidade e significado da questão social enquanto “pobreza”, é
preciso tomar como material empírico os relatórios dos organismos internacionais que
tratam dessa temática - Banco Mundial, PNUD e OIT - e que têm se dedicado – tal
como foi visto no quinto capítulo - à formulação de recomendações de políticas. Uma
vez analisados esses relatórios e ressaltadas as suas especificidades, é preciso fazer
agora algumas considerações a partir de seus traços comuns.

1. Naturalização e individualização no tratamento da questão


social

A partir da análise dos relatórios daqueles organismos internacionais, é possível


perceber que, de modo geral, a “pobreza” aparece de uma forma bastante naturalizada
e, por diversas vezes, o problema é visto como algo que simplesmente existe e que
sempre existiu. É colocada enquanto um problema em si mesmo, quase que como
uma questão ontológica. Isso é bastante claro, por exemplo, no tratamento do Banco
Mundial (1990; 2000), a partir da “linha de pobreza”. A pobreza acaba sendo vista
como o conjunto daqueles que estão abaixo da linha. Definida enquanto tal, o objetivo
da política pública acaba sendo o de reduzir o tamanho dessa massa, do número de
“pobres” do mundo. Esta solução acaba se satisfazendo com o simples movimento
desses indivíduos para cima da linha. É nesse sentido, portanto, que o objetivo do
“pobre” ou da política contra a pobreza nada tem a ver com emancipação das pessoas,
mas apenas com “sair da pobreza”.

203
A idéia é a de que, embora a pobreza seja um problema em si mesmo e tenha sempre
existido, agora, no século XXI, chegou o momento de entendê-la melhor e de
enfrentá-la. Assim, para expandir um pouco o entendimento sobre a pobreza e não
limitar a discussão a questões monetárias e de identificação da pobreza, propõe-se que
suas causas sejam entendidas.

Entretanto, a despeito de que sejam apresentadas “causas” para o fenômeno, percebe-


se que o pressuposto da naturalização do fenômeno permanece. Isto porque, as
principais causas identificadas referem-se ou aos próprios indivíduos (aqueles que não
têm “ativos” ou “capacidades” minimamente satisfatórios) ou às instituições – sendo
que os problemas que delas decorrem são vistos (i) como entraves criados pelo Estado
às ações dos indivíduos (“instituições estatais”) ou, ainda, (ii) como insuficiência ou
carência de “instituições sociais”, entendidas enquanto recursos ou ativos a serem
usados pelos indivíduos. No caso do Banco Mundial (2000) e do PNUD (1990; 1994;
1997), isto facilmente percebido e é geralmente tratado a partir da idéia de
“capacidades” de Amartya Sen (SEN, 2000; 2001).

Já no caso da OIT (2003; 2005), como a questão da pobreza é colocada a partir da


noção de emprego decente, percebe-se que as causas da pobreza são entendidas de um
modo menos “naturalizado”, na medida em que lida com a questão a partir do campo
do “trabalho”. Este tratamento diferente pode ser explicado tanto em função da
própria natureza da instituição (como o próprio nome já diz, é um organismo voltado
para a questão do “trabalho”), quanto pela incorporação tardia da temática da
“pobreza” em sua agenda.

Mas, na medida em que a OIT (2003; 2005) aborda o tema do “trabalho decente” e da
pobreza enfatizando principalmente lado “produtivo” do trabalho, há um reforço da
idéia de que o problema é dos próprios indivíduos (falta de empregabilidade, de
capital humano, de capacitação adequada, etc.), mantendo encobertas, portanto, as
relações e causalidades de caráter mais social ou estrutural. E, além disso, ao lançar
mão em vários momentos das abordagens dos outros organismos (linha de pobreza,
capacidades, etc.), há também na OIT o pressuposto de naturalização do problema.

Nesse sentido, a pobreza, de modo geral, não é entendida como o fruto do sistema
social, ou seja, como uma “questão social”. Ao contrário, o próprio modo pelo qual
ela é tratada acaba escondendo que o problema é social. Há, dessa forma, uma

204
semelhança com tratamento dado à “questão social” pela “Guerra à Pobreza” nos
Estados Unidos dos anos setenta (CASTEL, 1978).

Segundo Castel (1978), o problema na época não era visto como “social”, mas
consistia na simples existência dos “pobres”, através da lógica de culpabilização da
vítima (blame the victim). Ou seja, a “pobreza” era vista como algo natural (um
problema em “si mesmo”) e observada a partir dos “sintomas” da questão social
(ibidem, p. 57).

Hoje, além de serem ressaltados os “sintomas” - por exemplo, a partir do estudo The
Voices of the Poor (NARAYAN, 2000) -, são apontadas “causas” para a pobreza, as
quais, além de se identificarem por “problemas” dos indivíduos, envolvem as
deficiências das instituições que criam entraves ou barreiras limitadores das
capacidades dos indivíduos. Desta maneira, a pobreza acaba sendo tratada de modo
descontextualizado ou, ainda, des-historicizado: o conjunto daqueles indivíduos que
estão “abaixo da linha” e que se encontram em tal situação devido a uma falta de
recursos ou ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de “capacidades” (PNUD, 1990;
1997), ou ainda, de trabalho decente (leia-se: produtivo) – sobretudo, por carência de
“capital humano” ou empregabilidade (OIT, 1998; 2003; 2005).

Ao lado dessa naturalização, há ainda uma individualização do problema. Se em


outros tempos – no contexto do desenvolvimentismo latino-americano, por exemplo -,
a questão social era tratada como um “mal social”, um problema da própria sociedade
(ou, ainda, do sistema capitalista), a partir da idéia de “marginalidade”, hoje ela é
tratada individualmente, ou seja, enquanto “pobreza”, que nada mais é que um
somatório de “pobres”.

O problema se desloca, portanto, da sociedade para o indivíduo. A discussão sobre a


“pobreza” passa a estar centrada nos “pobres” individualmente. Seja porque lhes
faltam recursos, ativos ou capacidades, seja porque não conseguem agir livremente
em função dos empecilhos gerados pelas “instituições”. Percebe-se, portanto, que
questões concernentes à sociedade, ao Estado, ao sistema social, etc., são tratadas
através do ponto de vista das “instituições” conceituadas num vezo reducionista: ou
como “recursos” para os indivíduos (por exemplo, as “instituições sociais”, através de
conceitos como o de “capital social”) ou como obstáculos às suas ações (ou seja, as

205
instituições estatais, que são ineficazes, ineficientes, enfim, que precisam ser
“reformadas”).

No que diz respeito aos próprios indivíduos, percebe-se que a ênfase na carência de
ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), de capacidades humanas (PNUD, 1997; BANCO
MUNDIAL, 2000), ou ainda, de capital humano (OIT, 2003; 2005), denota, por sua
vez, um tratamento do pobre como, no limite, um “não-indivíduo”. Ele aparece como
alguém que precisa se desenvolver mais, se capacitar, se equipar e, ainda, se organizar
com outros “pobres”, em busca de mais “voz”, com o fim último de “sair da pobreza”.

Desta maneira, nota-se que está sempre presente nas argumentações sobre a pobreza
um indivíduo teórico - ou um “não-indivíduo” -, e não um indivíduo real. Por mais
que haja o esforço em mostrar que os estudos sobre “pobreza” são bastante “reais”, já
que eles vão ao campo – por exemplo, em The Voices of the Poor – perguntar às
pessoas que vivem na “pobreza” quais são suas reais problemáticas e “realidades”,
percebe-se que a avaliação de suas causas e a formulação de seu conceito são feitas a
priori, ou seja, a partir de um modelo teórico para o indivíduo, que, por contraste,
torna o “pobre” um não-indivíduo ou um indivíduo incompleto. Isto é percebido no
modo como as respostas ou declarações dadas pelos “pobres” sobre a “pobreza” no
referido estudo são sempre encaixadas em uma daquelas problemáticas: ou o
problema é a carência de “ativos” ou ele reside nas “instituições”.

Assim, pelo que foi visto, a figura do “pobre” é construída pela negação. O pobre é o
não-empregável, o não-competitivo, o não-produtivo, ou seja, ele acaba sendo o
inverso daqueles padrões de individualidade tratados no segundo capítulo, que, em
última instância, são convergentes. O pobre é o inverso do individuo teórico
competitivo, enfim, daquele homem-empresa - o novo homo economicus do
neoliberalismo - descrito por Foucault (FOUCAULT, 2004a), ou, ainda, do
“empresário de si mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002a).

Por mais contraditório que possa parecer, percebe-se uma naturalização e uma
individualização no tratamento de algo que é essencialmente social. Os “pobres” ou a
“pobreza” não são definidos nem pelos processos que os geram nem por aquilo que
são, mas por sua negatividade. É possível imaginar sem dificuldades, portanto, que
essa nova abordagem para a questão social traz consigo uma série de pressupostos e
implicações que merecem análise mais detida.

206
2. A construção da “pobreza” como conceito

Foucault (2004a) sugeriu que para entender o neoliberalismo contemporâneo é preciso


levar em conta seu projeto de transformação do mundo social. Ao contrário dos
liberais clássicos que defendiam a não-intervenção estatal e, portanto, argumentavam
em favor do laissez-faire, os neoliberais contemporâneos apostam num
intervencionismo peculiar. Bem diferente do keynesianismo, o Estado deve se retrair
daquelas funções que anteriormente desempenhava (enquanto propulsor do
desenvolvimento, protetor social, etc.) e voltar-se para a transformação da sociedade.
Com o objetivo de fazer da “empresa” um modelo generalizável, o Estado deve se
empenhar em inserir no tecido social os mecanismos concorrenciais do mercado, de
modo a propagar e a multiplicar aquela forma em todo o corpo social. (FOUCAULT,
2004a, p. 247) Assim, ao mesmo tempo em que Estado se torna complementar e
funcional ao mercado, tal como sugere o Banco Mundial (1997; 2002), adequando
suas instituições e tornando-se um “facilitador” dos mercados, ele busca também
inserir na própria sociedade (nos indivíduos) a lógica concorrencial do mercado
(FOUCAULT, 2004a).

Do ponto de vista da incorporação dessa argumentação ao debate sobre o mundo do


trabalho, percebe-se que há uma defesa da inscrição do indivíduo na forma “empresa”
(ibidem) – voltada para a concorrência - através dos debates da teoria do capital
humano, da empregabilidade, enfim, do modelo do indivíduo como “empresário de si
mesmo” (MACHADO DA SILVA, 2002a), ou seja, aquele novo homo economicus
pressuposto pelo neoliberalismo (FOUCAULT, 2004a).

O que se pretende sugerir aqui é que, diante do aprofundamento da questão social, que
se torna cada vez mais evidente, os neoliberais não conseguem dar conta dessa
realidade simplesmente a partir da idéia do indivíduo competitivo ou do “empresário
de si mesmo”. Para tanto, eles lançam mão de um novo conceito que está relacionado
com esse tipo de indivíduo, entendido justamente como o seu inverso: os pobres ou a
pobreza (como o conjunto ou somatório de pobres).

Embora a “pobreza” seja uma palavra antiga que sempre foi usada enquanto categoria
de percepção social, é possível sugerir, diante do conteúdo específico que vem
assumindo, que ela seja “nova” enquanto conceito - no sentido destacado por

207
Koselleck119 (1992). Assim, pode-se dizer que a pobreza como “conceito” tem
aparecido – sobretudo, nos discursos dos organismos internacionais - como se
referindo àquele indivíduo que ainda está incompleto, que precisa se “equipar” com
recursos ou ativos, enfim, se capacitar, aumentar sua empregabilidade, de modo que
consiga competir e, assim, ultrapassar a fronteira da linha da pobreza. Ou seja, esse
“pobre” aparece como o reverso do indivíduo competitivo neoliberal.

Assim, a pobreza deixa de ser uma simples categoria de percepção social e passa a ser
construída enquanto conceito, o qual, por sua vez, ajuda a recortar a realidade de uma
maneira diferente, contribuindo assim para o reforço de uma visão de mundo
específica: a neoliberal. O conceito de “pobreza” atua, portanto, como um elemento
importante do modelo proposto.

Neste sentido, discorda-se aqui do que argumentou Øyen (1996), num dos artigos da
coletânea Poverty: A Global Review. O autor sugeriu que falta uma filosofia às atuais
medidas e discussões sobre a pobreza e, por isso, o paradigma da pobreza não chega a
lugar algum (ØYEN, 1996, p. 3). Ao contrário, entende-se nesta tese que o tratamento
das mazelas sociais contemporâneas a partir do conceito de “pobreza” – e, por
conseguinte, as propostas para enfrentá-las -, por mais que se esforce em assumir um
caráter puramente “técnico”, pressupõe, sim, uma filosofia ou uma visão de mundo
social específica e que, justamente por isso, traz consigo algumas implicações. Ou
seja, é justamente a partir de uma determinada filosofia (visão de mundo) que a
questão da pobreza e as recomendações para enfrentá-la são estruturadas120.

119
Sobre a novidade dos conceitos, Koselleck (1992) sugere que: a “história dos conceitos mostra que
novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empregadas
possam ser as mesmas.” (KOSELLECK, 1992, p. 140) Assim, ele pondera que a utilização de uma
mesma palavra - em contextos variados, e, consequentemente, com significados e conteúdos diversos -
pode representar a utilização de conceitos diferentes, ou seja, “novos conceitos”.
120
Lessa (1998) sustenta que todo paradigma de teoria política é dotado de duas dimensões analíticas
obrigatórias: (i) a dimensão descritiva; (ii) a dimensão normativa. Em relação à “dimensão descritiva”,
Lessa a considera “o domínio dos diagnósticos de diferentes states of affairs, através da descoberta do
que se toma como as suas propriedades básicas” (LESSA, 1998, p. 29). Quanto à dimensão normativa,
sugere que ela se refere “a que alternativas devem ser construídas para tais contextos. O leque de
possibilidades dessa segundo dimensão inclui: a manutenção do referido state of affairs; a eliminação
de fontes potenciais de desestabilização, ou a construção de um modelo alternativo.” (idem) Trazendo
as considerações de Lessa para a presente discussão, percebe-se, portanto, que, a partir de uma visão de
mundo específica, são destacadas as dimensões: descritiva (a “pobreza”) e normativa (o “combate à
pobreza”).

208
Assim, a partir das análises dos organismos internacionais, percebe-se que, embora
cada um construa sua argumentação de uma maneira e apresente suas peculiaridades,
eles guardam afinidades no que diz respeito: (i) a uma concepção do “pobre” como
um indivíduo incompleto ou, ainda, um não-indivíduo; e (ii) ao “que fazer” (as
propostas de políticas e instrumentos de intervenção).

Viu-se que, quanto ao que fazer, suas estratégias comuns referem-se às temáticas da
capacitação dos pobres, do assistencialismo e focalização dos recursos públicos nos
que comprovam ser pobres (crescimento “pró-pobre”), do incentivo à transformação
do pobre num “pequeno empresário” (através do “micro-crédito”) e, ainda, do
incentivo à “participação” dos pobres. E, de modo geral, pressupõe-se que, quando
esses objetivos forem alcançados, estarão criadas (e expandidas) as “oportunidades”
necessárias para que os “pobres” saiam da pobreza.

Assim, nessa perspectiva a ordem social básica é o mercado. Visto como o grande
mecanismo de integração, o mercado estabelece que todos os indivíduos devem seguir
sua lógica concorrencial. Aqueles que conseguem competir, ou seja, atuar livremente
nessa arena do mercado, são considerados indivíduos completos considerados
autônomos. Aqueles que não conseguem acompanhar essa engrenagem - ou seja, os
pobres - precisam de ajuda. Seja através de uma assistência “momentânea”, seja por
ações que os transformem em indivíduos por inteiro: capacitação para poderem
competir e microcrédito para abrirem seus próprios empreendimentos. Percebe-se,
portanto, que ao lado da naturalização da “pobreza”, há também uma naturalização do
próprio “mercado”, que é pressuposto como o fundamento da ordem social.

O Estado deve, por sua vez, se retirar em algumas áreas, abrindo espaço para a
iniciativa privada (expandindo o “mercado”), concentrar seus esforços nas áreas onde
o capital privado não tem interesse e, ainda, fortalecer suas instituições de modo que o
mercado funcione melhor. Além disso, deve “enxugar” suas instituições para que, de
um lado, não atrapalhem as ações dos indivíduos e, por outro, concentre suas ações
naqueles que se mostram incapazes. Assim, compete ao Estado dar assistência aos
pobres, focalizar seus recursos e suas ações sobre os pobres, voltando-se para o
objetivo de capacitá-los, ou seja, dar-lhes condições de se tornarem exemplares do
indivíduo competitivo: mais ativos (BANCO MUNDIAL, 2000), mais capacidades
(BANCO MUNDIAL, 2000; PNUD, 1997), mais empregabilidade e “capital

209
humano” (OIT, 1998; 2003) aos pobres, de modo que possam competir e que, assim,
suas “oportunidades” sejam expandidas.

Ao mesmo tempo em que se enfatiza essa transformação do pobre num indivíduo


mais completo, ressalta-se também um lado “político” para a questão. Recomenda-se
que esses pobres devem-se organizar, devem ser “empoderados” (empowered), para
que, assim, possam ter “voz” e “participar” em busca do que se considera seu o fim
último dos pobres: “sair da pobreza”. Esta “participação” muitas vezes refere-se
simplesmente ao levantamento das opiniões dessas pessoas definidas como “pobres”
acerca de temas relativos à “pobreza”.

Assim, uma vez implementadas todas as recomendações, os indivíduos pobres


estariam prontos para competir e, assim, abrir-se-iam as condições para a expansão de
suas “oportunidades”. Dessa maneira, a visão de mundo pressuposta parece ser
mesmo a do neoliberalismo, que, com a ajuda do conceito de pobreza, procura abarcar
a realidade contemporânea e propor medidas para transformá-la.

3. Discurso e disputa política

Uma vez sugerido que a atual utilização do conceito de “pobreza” pressupõe uma
visão de mundo específica, e que dela faz parte, pode-se identificar uma íntima
relação do discurso do “combate à pobreza” com o poder, tal como ressaltava
Foucault (2004b). Para o autor, os discursos não são neutros; ao contrário, eles são
justamente lugares onde a política exerce um de seus maiores poderes. E, dessa
maneira, o “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar.” (ibidem, p. 10) O discurso é, portanto, segundo Foucault, um instrumento
de poder na luta pela imposição de sentido no mundo social.

Entendido dessa maneira, duas considerações podem ser feitas acerca do discurso do
“combate à pobreza”. Em primeiro lugar, tal como argumenta Mestrum (2002), ele é
um discurso de “legitimação” da globalização neoliberal. Ele funciona como um
guarda-chuva atrás do qual se escondem e se reforçam as reformas de que a
globalização (neoliberalizante) necessita. (MESTRUM, 2002, p. 78)

210
De fato, pelas recomendações de políticas anteriormente analisadas, percebe-se que o
“combate à pobreza” aparece como um pretexto para outras recomendações das mais
diversas naturezas (a transformação do papel do Estado, privatização, o estímulo à
abertura dos mercados, a ampliação da área de atuação do capital privado, a
focalização das políticas sociais) que coincidem realmente com a agenda neoliberal e
que, de modo geral, são mais polêmicas. Afinal de contas, é muito mais fácil e
“justificável” ser favorável ao “combate à pobreza” do que defender aquelas outras
políticas.

Nesse sentido, apresentar o “combate à pobreza” como uma mudança na retórica


internacional - na medida em que ela deixa de estar centrada no tema específico do
“ajuste” e se volta para questões “mais humanas” – acaba fazendo parte da própria
estratégia de legitimação do discurso dos organismos internacionais e de suas
políticas. E, em última instância, nada mais é que uma aplicação da mesma lógica à
temática específica do tratamento da questão social.

Em segundo lugar, o discurso do “combate à pobreza” deve ser entendido como um


instrumento de poder que está em disputa com a ordem social anterior (a do Welfare
State – seja enquanto realidade, seja enquanto paradigma a ser seguido) e que luta por
sua destruição. Ao lutar pela construção de narrativas, pela imposição de sentido no
mundo social e por um monopólio da decisão de formulação de políticas, aquele
discurso toma como objetivo a progressiva destruição da ordem social anterior.

Assim, quando se defende a necessidade do “combate à pobreza”, o que está em jogo


é uma tentativa de destruição do mundo do welfare state. Ao reforçar a “pobreza”
como conceito chave para a compreensão do mundo social e ao procurar combatê-la
através daquelas recomendações, percebe-se que o que está sendo proposto é um tipo
de sociedade individualizada, que tem como fundamento o mercado, no qual atuam
indivíduos atomizados – os competitivos e os incapazes (pobres) – e, ainda, um
Estado que assume dois papéis: por um lado, o de ser complementar e funcional ao
mercado, fortalecendo suas instituições, tornando mais fácil o funcionamento do
mercado e, por outro, assumindo a obrigação de se dedicar àqueles indivíduos que não
conseguem competir.

O problema é que, num contexto de escassez das “utopias” – no sentido de Karl


Mannheim (1976) - e em que a “crítica social” se encontra enfraquecida

211
(BOLTANSKI, 1999) ou, ainda, não tão articulada e estruturada quanto nos anos
sessenta, por exemplo, vai se abrindo espaço para que os discursos quase religiosos
dos organismos internacionais - que “ensinam” o que o mundo todo deve fazer –
consigam se disseminar amplamente, ganhando uma adesão cada vez maior,
inclusive, de vozes tradicionalmente ligadas à crítica - como partidos de esquerda,
movimentos sociais, dentre outros.

Assim, tal como os próprios organismos propõem, vem sendo formado um amplo
consenso que estabelece que os “pobres” precisam de políticas de “combate à
pobreza” – simplesmente isso. Ao fazer daquelas recomendações - que são,
entretanto, políticas das mais variadas naturezas - a grande necessidade dos “pobres”,
tomam-se silenciosamente medidas que visam muito mais destruir o que foi
conquistado pela realidade do welfare state (e do que poderia, por hipótese, ser
conquistado se este ainda fosse visto enquanto horizonte paradigmático), do que
resolver de fato a “questão social”.

Diante disto, não parece estranho, portanto, que, em nome da luta contra a pobreza,
conceitos que outrora eram de suma importância – tais como cidadãos, direitos
universalizados, classes sociais – estejam hoje enfraquecidos. São conceitos que se
busca desmoralizar e que têm sido associados a coisas do “passado” ou a “privilégios”
que merecem ser destruídos.

Na disputa pela construção do sentido do mundo social, o discurso neoliberal do


“combate à pobreza” ajuda a recortá-lo à sua maneira : fragmentando o tecido social,
tratando-o como um conjunto de indivíduos atomizados e submetidos à dinâmica da
competição.

Do ponto de vista do mundo do trabalho, há também uma clara transformação: o que


antes, na chamada era dourada, constituía uma “classe social” - composta por
trabalhadores empregados e desempregados e, de modo geral, unidos por uma
identidade coletiva capaz de gerar solidariedade e força política – tem sido tratado
agora como uma massa de indivíduos atomizados: os “empresários de si mesmos” que
podem competir e os incapazes (pobres) que precisam de ajuda.

No que diz respeito à proteção social na América Latina, nota-se que também houve
uma transformação. Se antes a ênfase recaía sobre os “trabalhadores” (MERKLEN,
2005, p. 116), ou ainda, sobre os “cidadãos”, ambos detentores de direitos sociais,

212
hoje o alvo central da política social – agora, “focalizada” - passa a ser os “pobres”.
Criam-se, assim, as bases para que os sistemas de proteção social sejam questionados
e criticados por não constituírem o melhor modo de “combater a pobreza”. E emerge,
assim, a polêmica “focalização x universalização” das políticas sociais, sugerindo que
aqueles que defendem a “focalização” lutam realmente os interesses dos “pobres” e
buscam a “justiça social”, enquanto os que defendem a “universalização” apenas estão
preocupados em manter os “privilégios” de “alguns”.

Nota-se, por fim, que o dever ser contemporâneo da política social inscrito nas
recomendações de “combate à pobreza” sugere que seu eixo se desloque da noção de
direitos e passe para as esferas das capacitações, compensações e caridades. Diante
disto, torna-se evidente que um novo (e perigoso) registro epistêmico vem sendo
usado e difundido no tratamento e entendimento do mundo social.

4. Comentário final

Frente ao objetivo ressaltado por Topalov (1994) para as ciências sociais, esta tese
teve como objetivo central o de desnaturalizar o tratamento da questão social baseado
na temática da “pobreza”, procurando propor um entendimento para seus significados
e suas implicações.

Consequentemente, pode-se concluir que enquanto a questão social continuar sendo


tratada a partir dessa noção específica de “pobreza”: (i) as perspectivas sociológicas121
capazes de dar alguma explicação para a questão social entram em declínio, dando
lugar a uma abordagem individualizante e des-historicizada; (ii) vai sendo construído
um conceito que ajuda a recortar e modelar a realidade social à luz dos marcos
neoliberais; (iii) reforça-se um discurso de poder que tem como objetivo legitimar o
projeto neoliberal-globalizante dos organismos internacionais e, ao mesmo tempo,
desmontar o mundo social construído pelo welfare state.

Ao escrever sobre o “esgotamento das energias utópicas” dos trabalhadores,


Habermas (1987) alertou para o risco de eles estarem sendo conservadores, ao
defenderem, contra a guinada neoliberal, algo “do passado” (o welfare state). Diante

121
Que enfatizem o lado “social” e “político” da questão – seja iluminando suas problemáticas mais
estruturais, seja – tal como propõe Domingues (2003) - se preocupando com o tema da “dominação”.

213
disso, argumentou Habermas, a classe trabalhadora estaria deixando de ser o lócus da
construção das utopias, que estariam se esgotando.

É evidente que as utopias no mundo contemporâneo precisam ser reconstruídas,


estruturadas e fortalecidas. É importante lembrar, que quando as utopias e as críticas
eram radicais, as respostas dadas pelo status quo tiveram algo de substantivo - é isto o
que mostra a história da construção dos welfare states122.

Contudo, enquanto as utopias não se estruturam e se organizam, é preciso defender o


que já existe. Assim, não está se defendendo aqui o welfare state como um mundo
“ideal”, mas apenas como algo que já foi construído123, e que se pretende desmontar.
Assim, ao contrário do que Habermas aponta, a defesa dos welfare states não seria um
“retorno” ao passado, mas um esforço, na ausência de uma utopia clara, pela
manutenção daquilo que um dia já foi conquistado.

122
Essa história mostra que os welfares states foram resultantes da política, num contexto em que a
democracia liberal não conseguia mais dar conta das reivindicações das classes operárias. Ou seja,
quando as tensões entre as classes sociais se acirraram e passaram a ameaçar a ordem social, o
princípio de proteção social (POLANYI, 2000) - “coletivista” e intervencionista – foi acionado, com o
objetivo de preservar a coesão social. Ou, ainda, tal como mostrou Marshall (1967), para lidar com o
acirramento da questão das classes, incluiu-se o elemento “social” na cidadania.
123
Nem que seja no “papel”, como é o caso da Constituição Brasileira de 1988.

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