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Rio de Janeiro
2015
Paulo Victor Rodrigues da Costa
Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 316.6
Assinatura Data
Paulo Victor Rodrigues da Costa
Banca examinadora:
Rio de Janeiro
2015
AGRADECIMENTOS
Para Ana Feijoo, pela paciência com que lidou comigo nos meus primeiros
passos acadêmicos, e por ser um eterno exemplo de dedicação e simplicidade.
Para Luiz Veríssimo, pelas conversas esporádicas e serenas, bem como pela
atenção dedicada ao presente trabalho.
Para Myriam Protasio, pela constante solicitude e pela atenção dedicada ao
trabalho.
Para Aline, sem a qual não sou ninguém.
RESUMO
COSTA, Paulo Victor Rodrigues da. Tédio como tonalidade afetiva da era da
técnica: esboço de uma psicologia de resistência. 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
COSTA, Paulo Victor Rodrigues da. Boredom as technological age’s tone: sketch of a
resistance psychology. 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) –
Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
This master thesis aims to enter Heidegger's notion of boredom, in such a way
that it is possible to outline their relationship to our historical horizon and how the
psychology, in the midst of such a scenario, is in crisis as an academic discipline. The
trajectory will be to the principle set out the main influences in Heidegger's thought, ie,
phenomenology and hermeneutics, in order to show the change that Heidegger prints in
both disciplines. Later it will be seen that the notion of Dasein becomes essential to
understanding what is at stake with the affective tone of boredom. The tone of boredom
is inherent to oblivion and neglect the way of being of Dasein, while being
fundamentally marked by being Erschlossenheit. From such oblivion and neglect, the
contemporary man is guided by animality to find their own essence. From the certainty
of animality as a criterion to evaluate the man himself, psychology is lowered to a sub-
discipline position of biological sciences, especially neuroscience. In such a scenario it
is urgent to build a resistance psychology, whose agenda is to measure the human-being
as being originally free.
INTRODUÇÃO…………………………………………………………… 7
1 PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS AO PENSAMENTO
HEIDEGGERIANO……………………………………………………… 15
1.1 Husserl e a fenomenologia………………………………………………... 15
1.2 Dilthey e a hermenêutica………………………………………………... 22
1.3 A fenomenologia-hermenêutica de Heidegger………………………....... 26
2 O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO……………………………… 30
2.1 Ser e Tempo……………………………………………………………...... 30
2.2 Ser-Aí…………………………………………………………………….... 37
3 TONALIDADE AFETIVA DO TÉDIO…………………………………. 49
3.1 Tonalidade afetiva……………………………………….………………... 49
3.2 O tédio……………………………………………………………………... 53
3.3 O ser entediado por……………………………………………………... 54
3.4 O entediar-se junto a……………………………………........…………... 57
3.5 O tédio profundo……………………………………………...…………... 62
4 ERA DA TÉCNICA………………………………………...…………….. 68
4.1 Esquecimento da questão de ser………………………………………… 68
4.2 Miopia, cegueira e vazio………………………………………………... 72
5 TÉDIO, ERA DA TÉCNICA E PSICOLOGIA........................................ 82
5.1 Redução do homem à vida.......................................................................... 83
5.1.1 O animal……………………………………………………………..……... 84
5.1.2 Animalização do homem…………………………………………………... 86
5.2 A crise da Psicologia……………………………………………….……... 89
5.2.1 O legado cartesiano à Psicologia e sua ruína……………………………... 90
CONCLUSÃO……………………………………………………...……... 101
REFERÊNCIAS…………………………………………………………... 105
7
INTRODUÇÃO
decididamente o âmbito filosófico no século XIX com Hegel. Até então, a busca era por
uma filosofia isenta e asséptica que atingisse plenamente respostas definitivas para suas
questões, desconsiderando qualquer elemento que se vinculasse a alguma
“contaminação” histórica. Ao trazer para jogo o elemento histórico, um passo decisivo é
dado na direção de considerar a experiência humana como invariavelmente datada,
finita e contingencial. A par da conquista hegeliana, Dilthey a absorve em seu
pensamento, de um tal modo que, para ele, o homem é desde sempre constituído por
uma determinada rede significativa que o atravessa. Tal rede nunca é absoluta, no
sentido de ser estática, pelo contrário, ela é sempre móvel e passível de ser
ressignificada e, justamente por isso, histórica. No fundo, Dilthey revela o cerne
histórico, não só da vida, mas também do pensamento e da vontade humana. É a partir
dessa característica histórica da experiência humana que Dilthey propõe uma distinção
entre ciências humanas e ciências da natureza: ciências humanas necessariamente
partem da compreensão de uma rede significativa prévia que orienta as práticas
humanas em geral, enquanto ciências da natureza partem do princípio de tirar de seus
objetos de estudo qualquer elemento histórico que “contamine” a pretensão científica de
respostas certas. Dilthey reconhece na filosofia de seu tempo justamente a necessidade
de delimitação dos limites e diferenças entre ciências humanas e ciências naturais, uma
vez que o fato humano é essencialmente histórico e o seu conhecimento deve se dar por
compreensão, enquanto os objetos da ciências precisam ser retirado de tal dinâmica
histórica para serem válidos enquanto objetos científicos e se estabelecerem no âmbito
da explicação.
Além de Dilthey outro filósofo importante para o pensamento heideggeriano é
Edmund Husserl, em razão disso haverá, também, a preocupação em desenvolver, de
acordo com os aspectos que interessam ao presente trabalho, a sua filosofia. Sua
importância se dá pelo fato de o método fenomenológico se construir contra uma
querela clássica no interior da filosofia: a briga entre concepções realistas e idealistas
acerca da possibilidade de conhecimento do mundo. Como será visto ao longo do texto,
tal briga ganha contornos diferenciados no decorrer do século XIX. Resumidamente, o
que há é a impossibilidade de se chegar a alguma conclusão que não deturpe o sonho
filosófico de chegada ao conhecimento “puro”: o idealismo pela contaminação da
realidade a partir do aparato perceptivo e o realismo pela impossibilidade de retirar da
experiência localizada noções gerais (CASANOVA, 2014). Até o fim do século XIX tal
conflito não se decide e, muito pelo contrário, só indica que suas aporias não levam a
10
decisões seguras. Tal situação no fundo depõe contra a pretensão filosófica de dar conta
do todo e da possibilidade de conhecimentos absolutos. Surge, então, a presença
avassaladora do positivismo e a postura de não mais se dedicar a questões de cunho
metafísico ou absoluto, mas apenas criar condições que permitam a certificação de
análises pontuais e seguras no interior de seu próprio campo de análise. A tentativa
husserliana é a de vincular qualquer tipo de ciência ao vínculo mais fundamental
possível, isto é, ao vínculo da percepção enquanto ato. Com a atenção voltada para tal
problemática Husserl promove o reencontro do homem com o ente sem intermediações,
retorno que a filosofia de seu tempo ignorara e que, posteriormente, ganharia novos
contornos com uma radicalização ainda maior feita por Martin Heidegger.
O trabalho consistirá em cinco capítulos. No primeiro dar-se-á a exposição
concisa do pensamento de Dilthey e de Husserl. Não será o objetivo do capítulo esgotar
o pensamento de ambos os autores, o que será buscado será elencar pontos úteis para o
desenvolvimento do pensamento heideggeriano e para o tema geral do trabalho. Como
já foi brevemente antecipado, será importante trabalhar com Dilthey de modo que seja
possível tornar clara a importância do horizonte histórico na dinâmica constitutiva do
homem. Será indicado como Dilthey trabalha com a noção de que um pensamento
isento de historicidade não se faz possível, uma conquista que por si só tem muito a
contribuir ao pensamento de Heidegger. Também no primeiro capítulo será enfatizado o
retorno ao elemento sensível da percepção, promovido por Husserl, a partir do método
fenomenológico. Será mostrado que compreender Husserl, de início, é compreender que
todo fenômeno é caracterizado como ato intencional que se determina a partir de si, da
maneira em que ocorre propriamente no ato vivencial, considerando que toda atitude
teórica abre mão do fenômeno enquanto fenômeno. Husserl busca permitir àquilo que se
dá a vigência de si enquanto tal, para além de posições teóricas sobre experiência
humana. Essa postura husserliana é pioneira no sentido de indicar, por meio não teórico
e sim descritivo, a natureza ekstática da percepção humana, entendendo consciência
como ato intencional. Claramente, com isso se busca fugir do conceito moderno de
sujeito substancializado anterior ao fenômeno propriamente dito; a noção de “eu” como
previamente dada e conquistada antes mesmo de o fenômeno se dar como fenômeno.
Husserl conquista o “eu transcendental”, o “eu” que se dá na mesma medida em que se
reconhece como ato intencional, anterior a qualquer posição teórica, seja
“internalizante” (idealista) ou “externalizante” (realista). Ainda no final do primeiro
capítulo, será indicado como Heidegger se apropria tanto de Dilthey quanto de Husserl,
11
claramente com isso por que tal crise se chama crise dos universais, pois a filosofia se
encontra em um caminho sem saída em relação a sua pretensão mesma de fundamentar
qualquer tipo de conhecimento absoluto. O resultado de tal crise para a filosofia é
bastante forte:
1
Interessante considerar como o projeto husserliano se afina com o projeto cartesiano: ambos, em épocas
distintas obviamente, buscaram a refundamentação do solo filosófico: Descartes por não aceitar as bases
do pensamento medieval e Husserl por não aceitar as bases do pensamento cartesiano.
17
E ainda:
2
Rebater a postura fenomenológica de ausência de pressupostos sob a argumentação de que “não ter
pressupostos já é um pressuposto” é apelar para uma argumentação vazia e sem vínculo com oque de
fato é pensado por Husserl e que, justamente por isso, se encontra distante do âmbito argumentativo
husserliano, se configurando dessa forma como desnecessária e infrutífera para aquilo que está em jogo
na fenomenologia.
20
ele é evidente que o mundo é, em si e por si, aquilo que é, quer se esteja presente ou
ausente. Relativamente a esta existência, Husserl suspenderá apenas o seu juízo, isso
também ocorrerá no que se trata da existência do próprio “eu”. Tal suspensão, como dito
acima, designada pela equivalente palavra grega epoché, já fora usada na antiguidade
pelos céticos na filosofia grega, que suspendiam ou se abstinham de qualquer
asseguramento por não reconhecerem razões decisivamente eliminatórias da incerteza
(REALE, 2011). Husserl a introduz, porém, não como instrumento de uma atitude
cética, mas de depuração em busca de um radicalismo em direção ao que pode se
mostrar como confiável.
Posto isto, o que é colocado entre parênteses não é negado, mas perde o caráter
de absoluto e inquestionável que lhe é atribuído na atitude natural e passa a valer como
fenômeno da consciência. Na atitude fenomenológica propiciada pela epoché, o modo
de visão do mundo sofre uma transformação radical: deixa-se de aceitar a evidência da
existência das coisas, deixa-se de lidar com o mundo físico e passa-se a lidar com o
mundo da consciência, formado pelas vivências do sujeito.
Com isso, fica claro que a epoché reflete a mudança de atitude necessária para o
empreendimento proposto por Husserl, qual seja, a migração da atitude natural, que
posiciona mundo como algo pré-concebido, para a atitude fenomenológica, que entende
mundo como ato de consciência. O mundo da atitude natural não é só exterior, seu
modo de reflexão faz com que o eu se remeta a si mesmo e para a sua própria imanência
como algo sólido. Para Husserl, toda a posição da natureza deve ser hibernada, e,
portanto, também a existência de si mesmo que reflete. Deste modo, como está acima
indicado, atinge-se o “eu” absoluto ou transcendental e, com ele, o âmbito da
experiência genuinamente confiável. Este “eu”, assim depurado, torna-se apenas
concebível na sua relação ao “objeto”, o qual já também não é um objeto mundano,
existente no sentido empírico da palavra, mas um “objeto” puramente intencional. Com
isso, Husserl reposiciona a própria noção de consciência: se tradicionalmente
consciência era entendida como algo previamente constituído, como faculdade interna
do sujeito, agora consciência é entendida como ato que em si mesmo possibilita a
21
3
Essa virada imposta por Dilthey repercute de forma essencial no trabalho de Heidegger, de forma que é
a partir daí que se torna possível a virada prática heideggeriana.
24
vivencial mais imediata dos indivíduos psicofísicos para o campo universal a partir do
qual tais vivências se tornam possíveis, esse é o chamado círculo hermenêutico: a
vivência de uma rede universal pelo individuo, que em vivenciando um tal nexo
histórico é capaz de alargá-lo e modificá-lo. A partir de tais reconstruções entre
unidades psicofísicas e o todo histórico é possível reconstruir o nexo vital que atravessa
o todo relacional de uma época, numa expressão que ficou conhecida como “espírito do
tempo”. No entanto, o termo utilizado por Dilthey é visão de mundo (Weltanschauung).
Visão de mundo é o que se dá quando a vivência humana se estabelece por meio de um
determinado horizonte histórico contingencial. Para Dilthey, qualquer individuo em
qualquer tempo histórico é expressão de uma visão de mundo específica. Por fim, a
visão de mundo por sua vez é justamente o que resulta, em última análise, da atividade
hermenêutica homem/história, de um tal modo que a partir da compreensão da unidade
psico-física particular se reconstrói o nexo vital a partir do qual essa unidade pode se
estabelecer enquanto vivente. Essa, no fundo, é uma das grandes conquistas diltheianas:
a explicitação do caráter histórico das vivências humanas. Histórico é aqui entendido
como expressão de uma visão de mundo prévia a partir da qual uma vida se concretiza
em sua contingência, afetividade e interesse. Não há como, em função disso, pensar o
homem como desarticulado de algum tipo de horizonte histórico/visão de mundo em
sua vivência concreta.
Como foi anteriormente esclarecido, os pensamentos de Husserl e Dilthey foram
aqui tratados com alguma rapidez e de um tal modo que fossem realçados apenas os
pontos que pudessem vincular seus pensamentos ao surgimento do pensamento
heideggeriano. De modo que se possa seguir adiante no texto é preciso relembrar que, o
que foi conquistado por Husserl se refere ao caráter intencional e não empírico da
percepção humana, de uma forma tal que não há mais espaço para considerações
dicotômicas do tipo eu/mundo, mas apenas ato originário do “eu” transcendental. Em
relação à Dilthey o que se conquistou foi caráter hermenêutico da vivência humana, a
partir da relação entre homem e história, de um tal modo que, a partir de tal relação
circular, o que em última análise se delimita é a “presença” de uma determinada visão
de mundo, que se faz presente por meio de uma vivência concreta do nexo estrutural do
todo.
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2 O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO
É em Ser e Tempo que Heidegger inicia a jornada de uma vida inteira dedicada à
investigação sobre a relação de tensão e reciprocidade entre homem e ser. De acordo
com o pensamento heideggeriano, o homem se insere no interior de um processo
histórico a partir do qual passa a ser entendido como um ente dotado de propriedades
previamente dadas, sendo passível de ser encerrado em determinações pré-concebidas,
algo já antevisto por Dilthey. Sua tentativa é a de resgatar o que de essencial se perdeu
nesse processo de aproximação entre homem e coisa simplesmente presente. Para tanto,
inaugura uma investigação minuciosa acerca de como o homem se mostra em sua
existência, sem recorrer a caracterizações e axiomas situados fora do eixo
fenomenológico-hermenêutico de investigação, garantindo dessa maneira o rigor
necessário para suas pretensões.
O projeto de pensamento heideggeriano é, pelo menos desde Ser e Tempo, o
projeto de desenvolvimento de uma ontologia fundamental, isto é, um pensamento que
se articula com a gênese do acontecimento de mundo, de modo que, a partir de tal
gênese, seja possível a redescoberta do homem a respeito de sua própria humanidade.
De início, é preciso considerar uma comparação com Husserl. Se com Husserl a
consciência intencional indica que o homem não acontece nem dentro, em um sentido
psicologizante, nem fora, em sentido empírico, mas como “eu” transcendental, com
Heidegger essa mesma conquista da fenomenologia aponta na realidade para o fato do
homem ser o ente a quem mundo se abre como mundo. O que Heidegger vê na
fenomenologia não é a chegada a um ponto final, ao “eu” transcendental que seria o
fundamento de qualquer filosofia ou ciência, mas a um ponto de partida: à investigação
31
do homem como abertura de mundo. Aqui já há um aceno para aquilo que é a tônica do
labor heideggeriano como um todo: a constatação da íntima relação entre homem e ser.
[...] [Heidegger] depois de ter declarado que queria retomar o método da
redução, teorizado por Husserl – entendendo este, porém, não no sentido
transcendental como “recondução da visada fenomenológica da atitude
natural do homem que vive no mundo das coisas e das pessoas à vida
transcendental da consciência”, mas antes no sentido ontológico de uma
“recondução da visão fenomenológica do ente à compreensão do ser”.
(VOLPI, 2013, p. 33).
4
Ao longo do trabalho serão apresentados os existenciais que de forma mais imediata interessam a
investigação do trabalho.
32
Assim sendo, a quase imediata reação de classificar seu pensamento como mais
uma linha teórica ou mais um “-ismo” cai por terra, e o caminho de investigação sobre o
sentido do ser se estabelece como reconhecimento fenomenológico do modo mesmo
como a existência se dá. O questionamento do sentido do ser trás consigo algumas
questões que se referem à formalidade desse questionamento. Na medida em que há a
necessidade de se perguntar sobre o ser e seu sentido, fica em suspenso qual ente em
específico deve ser interrogado a fim de assegurar-se o correto acesso a seu
questionamento. Como já foi dito, já que sua tentativa não é a de questionar entes em
específico em suas características fáticas próprias (ontologia regional), mas de
questionar a abertura dos entes em geral (ontologia fundamental), torna-se necessário
clarificar de qual ente deve partir a saída para tal abertura ao ser. Como já é possível
33
imaginar, Heidegger aponta que o ente a ser interrogado é aquele a quem foi confiado o
privilégio de tal questionamento, isto é, o homem. Portanto, questionar o sentido do ser
significa tornar transparente um ente privilegiado: aquele capaz de tal questionamento, e
que Heidegger nomeia de ser-aí5.
Logo no início de Ser e Tempo, Heidegger procura livrar o leitor da impressão
de que seu pensamento recai em tautologia. Tal má impressão ocorre devido ao
entendimento de que para iniciar a investigação sobre o ser, uma ideia inicial sobre o ser
precisaria entrar em vigor para tornar possível a sua contemplação, como indicaria a
expressão “o ser é”. Em suma, para falar sobre o ser seria necessário utilizar a noção
que se quer explicar. Isso faria com que sua investida entrasse em descrédito devido a
um círculo vicioso elementar, no qual o que se busca já seria subentendido no cerne do
questionamento. Tal objeção poderia ser válida caso o pensamento heideggeriano se
tratasse de uma argumentação vinculada à lógica clássica que, partindo de categorias
elementares ou de comandos gerais, fosse desencadeando uma série de raciocínios
lógicos que findariam por indicar alguma tautologia que invalidaria tal série de
raciocínios. No entanto, Heidegger não é um filósofo analítico (CABRAL, 2008), sua
linguagem acontece em uma frequência outra em relação à linguagem de antolhos da
lógica. Seu pensamento é muito mais uma aceitação ou acolhimento das formas mais
básicas e originárias pelas quais a existência se dá. Como está explicitado no trecho:
5
Uma das tentativas de Heidegger com o termo ser-aí (Dasein) é retirar do termo homem toda sua
herança tradicional, que remete a entendimentos antropológicos, biológicos, psicológicos etc. Além
disso, ser-aí reúne um entendimento de fundamental importância para o desenvolvimento de seu
pensamento, que é a ideia de co-pertencimento e co-originariedade entre homem e mundo, por isso a
importância da utilização do hífen no termo.
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muitas vezes não é percebido pelo leitor e se faz passar por hipótese teórica. Por isso é
necessário acompanhar com máxima clareza seus passos para que nada do que é
apresentado soe gratuito. No trecho acima, além da tematização do problema do círculo
vicioso, vem à tona um dos passos iniciais para o questionamento do sentido do ser: a
necessidade de que tal questionamento se dê, de início, a partir da cotidianidade
mediana do ser-aí. Isso quer dizer que no processo de análise existencial sempre será
levado em conta a maneira pela qual o ser-aí é e se revela em seu dia a dia, em suas
atividades mais banais, pois são nessas condições que o ser-aí se encontra
irrefletidamente lançado em seu modo de ser e por isso mesmo apto a ser interrogado. É
a partir da existência cotidiana que se torna possível o solo de análise sobre o qual o
pensamento acerca do sentido do ser pode ser iniciado. Tal instância cotidiana de
compreensão de si-mesmo é chamada de compreensão pré-ontológica, compreensão que
se estabelece de maneira irrefletida e atematizada, mantendo o ser-aí, de início e na
maior parte das vezes, no campo do não estranhamento de sua própria dinâmica
existencial. Esse não-estranhamento permite a lida rápida e dinâmica do ser-aí em sua
performance cotidiana. Para citar um exemplo ilustrativo é possível considerar a
situação de alguém com pressa e atrasado ao dirigir um carro: o indivíduo em questão
não irá realizar cada movimento necessário para que o carro ande de maneira clara e
explícita. Ela simplesmente agirá, fará os movimentos necessários para que o carro
ande, sem sobressalto algum. Esse agir irrefletido dos atos cotidianos é capaz de revelar
as estruturas ontológicas que suportam tais atos. Torna-se claro, com isso, que na
compreensão cotidiana o ser-aí se relaciona de maneira prática com os entes em geral e,
somente a partir dessa praticidade cotidiana, é que se torna possível a tematização do
homem como ente em íntima relação com o ser. Portanto, a analítica proposta por
Heidegger em Ser e Tempo visa reinserir de forma plena o ser-aí em seu mesmo “lugar”,
que de uma maneira ou de outra já sempre foi compreendido pré-ontologicamente e
irrefletidamente. Espaço esse que o ser-aí já sempre ocupou de forma imediata.
Portanto, um maior apuro do ser-aí com seu espaço existencial performático é um maior
apuro do ser-aí consigo mesmo. É precisamente isso que Heidegger busca em sua
empreitada:
E ainda:
De uma maneira geral a tradição tende a tornar pouco acessível aquilo que ela
mesmo lega. A tradição simplesmente torna evidente aquilo que é imediato e, dessa
forma, impede a passagem para as fontes originais de onde nasceram. Isso acontece de
maneira tão radical que até faz esquecer essa proveniência. É em vista desse fenômeno
de estreitamento dos sentidos e significados legados pela tradição que Heidegger propõe
uma destruição da história da ontologia, de modo a melhor transparecer a questão do ser
em sua originariedade, sem os vícios e preconceitos históricos que já são fornecidos de
imediato pela tradição filosófica. Sua intenção é a de abalar as certezas de uma tradição
cristalizada e implodir sua construção petrificada, sempre tendo como fio condutor a
análise do ser-aí, até se atingir o mais limpidamente possível as determinações
essenciais do sentido do ser.
Cabe ressaltar que a destruição da ontologia tradicional a ser empreendida por
Heidegger em nada tem a ver com uma negação do passado. Muito pelo contrário, ela
visa a incorporação decidida do passado no presente, de modo que possa remeter
plenamente a um futuro que não seja mera repetição de sentidos e significados de um
horizonte histórico sedimentado. Esse processo difere em muito do processo moderno
de entendimento do passado que, esse sim, tem em vista o completo abandono do antigo
para que um novo conhecimento se imponha. A respeito da destruição da ontologia
tradicional Heidegger diz:
2.2 Ser-Aí
ente que todo ser-aí é, estruturação esta a partir da qual o questionamento do ser se torna
possível6.
O termo ser-aí reúne a ideia de existência (ser), delimitada por um espaço
específico de concretização de si mesma (aí). Justamente por isso, no processo de
investigação do ser-aí a expressão ser-no-mundo é correntemente usada por Heidegger
para designar algo muito peculiar: o co-pertencimento entre homem e mundo. Já em sua
cunhagem o termo demonstra que na determinação existencial do ser-aí está presente
uma noção de co-pertencimento entre homem e mundo. Mas de que maneira essa
relação se dá? De início não se pode pensar que primeiramente se tem um ser-aí “puro”
que em seguida acopla-se um mundo. Fazer isso, como já foi visto, seria reeditar os
preconceitos tradicionais com os quais o senso comum trabalha. Não. Mundo já é e
sempre foi “pertencente” ao ser-aí.
6
Cabe ressaltar que a exposição da estruturação do ser-aí aqui descrita não corresponde completamente
ao que é desenvolvido por Heidegger em Ser e Tempo. Uma vez que o presente trabalho se encarrega da
tarefa de focar no tema da tonalidade afetiva do tédio, mostram-se urgentes alguns pontos da obra
citada, em detrimento de outros.
39
vida “pasteurizado”. No entanto, quando ele faz isso achando ter se tornado alheio ao
horizonte no qual está inserido, finda por reforçar ainda mais seu laço com a
impessoalidade na medida em que procura incessantemente ser sua negação e passa a
dever sua identidade aos ditames sociais que critica. Não há nenhuma postura radical de
singularidade em tal exemplo. Ninguém se torna singular escolhendo coisas diferentes
da maioria.
Uma outra característica do impessoal, além da de configurar o que é margem ou
não, é a de agregar ao seu repertório de ditames aquilo que outrora se configurava como
revolucionário. O impessoal é sempre capaz de “sugar” em sua direção as mais diversas
tendências, sejam elas quais forem. Nesse sentido a sabedoria popular já cunhou
excelentes e debochados termos, e não menos precisos, para designar tal acontecimento,
como “hippie de boutique” ou “comunista da Zona Sul7”. O que esses termos
aparentemente bobos revelam, mesmo sem estarem completamente atentos para isso, é a
inesgotável absorção da margem às orientações sedimentadas do mundo em um
consequente nivelamento de todas as possibilidades de ser, aqui o trecho de Ser e Tempo
é bastante claro:
7
Zona Sul do Rio de Janeiro, considerada área nobre da cidade.
42
direção ao mundo e sua familiaridade. Apesar disso, essa mesma fragilidade ontológica
impossibilita a sua determinação de uma vez por todas. Nesse sentido, o impessoal
apresenta uma face dupla: a de permitir uma necessária intimidade com o mundo e a de,
justamente por isso, velar e dificultar ao ser-aí a possibilidade de conquista plena de si-
mesmo, mas sem com isso impossibilitá-la. O impessoal, no fundo, é marca de que ao
ser-aí é possível ser si-mesmo. A par do que foi explicitado acerca da impessoalidade, e
a sua capacidade de tornar o ser-aí comum, resta clarificar o que propriamente
permanece inacessível ao ser-aí toda vez que ele se encontra no ritmo cotidiano.
Como foi visto ao longo do texto, não há apelo interno capaz de fornecer
medidas específicas ao homem; sua essência é seu ato, “ato” sendo aqui entendido não
como ação específica de fazer alguma coisa em detrimento de outra, mas como
estruturação dinâmica ek-sistencial. Chega-se a conclusão que nada é mais natural a um
ente que não possui subjetividade do que o fato de ser “lançado”, “jogado” para fora de
si. Por isso, quando se tematiza o ser-aí em seus fundamentos nenhuma naturalidade se
apresenta, nenhuma categoria aprioristicamente dada torna o ser-aí predicável, de forma
que sua “essência” é o seu próprio caráter de lançado em sua mostração, em seu
acontecimento. É em função dessa fragilidade ontológica que mundo se torna tão
importante para sua existência, pois sem mundo o ser-aí simplesmente não é8! Se é que
pode ser colocado dessa forma, tudo o que concerne e diz respeito ao homem aponta
para o lado de “fora” e em resposta a recorrente pergunta “o que é o homem?”, deve-se
responder: nada. O homem é seu próprio lançamento no mundo e não uma categoria
simplesmente dada.
Para Heidegger, o ser-aí sai de uma indeterminação originária e paulatinamente
se torna familiar ao mundo que lhe constitui e que de certa forma ele mesmo é. Há de
início uma estranheza que se suprime em direção à familiaridade do mundo e que torna
possível ao ser-aí alguma consistência. Isso não quer dizer que, lançado no mundo, o
ser-aí alcançaria uma essência posterior a sua indeterminação originária. Enquanto
existente, o ser-aí já sempre se concretizou de uma maneira ou de outra dentro dos
limites de seu mundo e de seu horizonte histórico. Justamente por isso a analítica da
cotidianidade\impessoalidade se faz importante no pensamento heideggeriano, pois, de
8
É importante resguardar o sentido de mundo aqui delimitado para além de um entendimento de
preservação da natureza, no sentido de que o homem necessitaria para sobreviver daquilo que a natureza
lhe fornece. Mundo tem a ver com o espaço performático “no” qual o homem se vê repentinamente
lançado. Por mais que a deterioração da natureza tenha como base uma relação despreocupada do
homem com o mundo que ele mesmo é, seu entendimento é maior que o conceito de natureza e sua
preservação.
44
início e na maior parte das vezes, o ser-aí se encontra imerso irrefletidamente em seu
mundo, tomando a si e os outros seres-aí como entes simplesmente presentes e, com
isso, velando seu caráter mais fundamental: o de poder-ser (Seinkönnen).
A noção de poder-ser, por sua vez, aponta para possibilidades inerentes a um
ente que em essência “não é”, e na mesma medida em que é ausente de propriedades,
lhe é entregue a liberdade de ser, sendo! Aqui um importante ponto se revela: aquilo que
faz com que o ser-aí seja privilegiado em relação à questão do ser não é nenhuma
qualidade positiva, mas a sua negatividade estrutural. Quando se diz que o ser-aí é
estruturalmente vazio não se está dizendo que o homem está condenado a um niilismo
sem fim em meio ao qual nenhum modo de vida valeria a pena, pelo fato de que motivo
algum nunca seria forte o suficiente para dar cabo da existência e sua falta de sentido.
Na verdade aquilo que a nulidade do ser-aí permite é justamente o inverso disso, ela
permite ao ser-aí a possibilidade de “apoio” no mundo e seus sentidos. É por não ser
essencialmente nada que alguém pode, em sua dinâmica existencial, “ser” alguma coisa.
Uma pessoa só pode se identificar com a psicologia e ser psicóloga porque de antemão
ela não é psicóloga e nem é absolutamente nada, seu modo de ser só pode se dar na
mesma medida de sua existência, e isso vale para todas as atividades humanas. Portanto,
a nulidade própria ao ser-aí o lança para as possibilidades do mundo ao invés de privar-
lhe disso. Cabe lembrar também que o caráter de poder-ser do ser-aí sempre se encontra
cerceado concretamente por horizontes existenciários específicos e por épocas
específicas, a liberdade do ser-aí não é algo que se dá sem limites e por si mesma, mas
para ser liberdade precisa de limites fáticos para sua realização.
Contudo, como já foi dito, na impessoalidade o ser-aí permanece “cego” a esse
fato e sua dinâmica existencial acontece por modos de ser que lhe são assegurados por
“empréstimo” pelo mundo fático que é o seu, por sentidos sedimentados que lhe dizem,
com certa segurança, o que deve ser feito ou não. Em outras palavras, o impessoal
permite ao ser-aí a ilusão de ter uma existência justificada numa cadência específica
previamente dada. Esses estado de coisas Heidegger chama de decadência
(Verfallenheit) do ser-aí em relação ao seu caráter mais fundamental de ter-de-ser si-
mesmo:
E o ser-aí sempre é meu uma vez mais a cada vez dessa ou daquela maneira
de ser. Ele já sempre se decidiu de algum modo em que medida o ser-aí a
cada vez é meu. O ente para o qual em seu ser o que está em jogo é esse ser
mesmo relaciona-se com seu ser como sua possibilidade mais própria. O ser-
aí é sempre a cada vez essencialmente sua possibilidade, e ele não 'tem'
45
Heidegger chama de cuidado (Sorge)9. Cuidado é um termo para designar que o ser-aí
tem-de-ser-si-mesmo incessantemente e que quanto a isso não há escapatória alguma: o
ser-aí cuida de si integralmente, sem momentos de pausa. Enquanto existente o ser-aí
sempre se dará, de maneira inalienável, ao modo do cuidado de si.
Por sua vez aquilo que se revela com o fato do ser-aí ser incessantemente ao
modo do cuidado (mesmo na decadência) é que o homem já sempre se inseriu
originariamente no seio do tempo. A diferença essencial entre autenticidade e
decadência, entre propriedade e impropriedade nesse quesito é que a partir do instante
em que o ser-aí se toma de maneira própria, em toda a sua negatividade estrutural, o
tempo se abre de maneira mais rica. O tempo deixa de ser uma sucessão de minutos
simplesmente dados e se torna o tempo específico da singularidade, de maneira que o
ser-aí singular se torna o seu próprio tempo. O que está sendo dito com isso não é que
ao experimentar, pela negatividade de sua essência, seu caráter essencial de poder-ser o
ser-aí passa a criar para si um tempo particular, como se seu dia a partir de então
deixasse de ter 24 horas. O que se conquista na propriedade é a dimensão fundamental
do tempo, aquilo de que tempo é evidentemente tempo, ou seja, tempo de ser-si-mesmo.
Isso se dá de maneira que o ser-aí passa a ser o “espaço” da temporalização plena do
mundo.
Na decadência o arranjo da temporalidade se dá de forma que há um passado
que trás o ser-aí ao presente através de uma “linha do tempo” e que entrega um presente
que deve ao passado sua conjuntura mesma. O futuro, nesse estado de coisas, é apenas o
ainda não do que já se presentificou de maneira dada no espaço do agora. Com a
experiência do ser-aí como poder-ser essa dimensão partida do tempo se unifica em
função do porvir, de maneira que tanto o passado quanto o presente se unem ao futuro.
Como escreve Heidegger:
10
Nesse sentido Freud, Lacan, e a psicanálise de uma forma geral, soam por demais ingênuos em suas
hipóteses interpretativas. O modo como lidam com o caráter nulo do fundamento humano, ao modo do
inconsciente e da falta, é por demais superficial para a densidade própria do mistério íntimo do ser-aí,
que nunca se apresenta como passível de encerramento teórico pleno.
48
11
Um bom meio de se voltar para questões que envolvem especificamente o tédio e a finitude em suas
concreções contemporâneas é o livro Tédio e Finitude (FEIJOO, 2012).
49
Foi visto até aqui, que apesar de todo rigor com que Husserl desenvolveu seu
pensamento, Heidegger reconheceu na fenomenologia resquícios de vícios do
pensamento tradicional, como a ideia de encerrar as vivências fenomenológicas em um
“ego transcendental”. No entanto, foi somente a partir do exercício do pensamento
fenomenológico que Heidegger encontrou o caminho de entrada para o questionamento
do ser, tomando como veículo de análise o homem (ser-aí). Heidegger se utilizou dos
ensinamentos de Husserl para delimitar precisamente o modo mesmo pelo qual a
existência se dá, reconhecendo principalmente o co-pertencimento e a co-originariedade
entre homem e mundo, de um tal modo que tal relação se posiciona em razão de uma
fragilidade ontológica inerente ao ser-aí. Fragilidade esta que lança o ser-aí, a princípio,
na impessoalidade. Foi visto que a impessoalidade seria como uma “etapa” necessária
para a inserção do ser-aí no campo propriamente dito das possibilidades, do poder-ser,
no campo do peso existencial e do tempo em sentido originário.
O desenvolvimento dessas temáticas ao longo do texto se fez importante
principalmente no que tange a busca por uma compreensão mais bem fundamentada
acerca do horizonte histórico atual, que de uma maneira ou de outra se faz ver de
diversas formas e diversos aspectos. No presente capítulo chega o momento de delimitar
o que propriamente se mostra como tonalidade afetiva, e de que maneira se configura o
tédio, para que no quarto, e último, capítulo possa ser indicado o movimento que torna
possível o tédio como afinação epocal, por meio de uma breve explanação do que
Heidegger chama de abandono da questão do ser.
Primeiramente é preciso revisitar uma questão que fora propositalmente deixada
em aberto no segundo capítulo. Essa questão diz respeito ao modo de “acesso” do ser-aí
50
ao espaço que ele mesmo é. Como já foi visto, o ser-aí não possui uma internalidade a
partir da qual experimenta o mundo. Consequentemente sua experiência de mundo não
é feita mediante conceitos tradicionais como sentimentos e afetos, uma vez que estes
partem do pressuposto de que há um mundo empírico que a partir de si atinge a
subjetividade humana fazendo com que este experimente uma sensação específica na
sua lida com os entes. Tais noções dão a entender que o mundo é por si mesmo neutro e
que, a partir do momento em que o homem se vê por ele afetado, há automaticamente
um processo de falsificação desse espaço neutro na direção de um sentimento ou afeto
específico. Portanto, para o pensamento tradicional, os sentimentos e afetos participam
de um mero processo de adorno da realidade, que de certa forma distancia o homem
daquilo que a realidade neutra por si mesma é.
No entanto, mundo para Heidegger não é um mundo empírico previamente
delimitado, não é um espaço potencialmente comprovável e determinável de uma vez
por todas. Ele não é comprovável justamente porque sua experiência só é e só pode ser
feita de maneira fenomenológico-hermenêutica, de forma que mundo se dá enquanto
fenômeno ao invés de estar simplesmente presente e apto a ser percebido por uma
subjetividade. Ao ter reconhecido tal fato na maneira como o ser-aí experimenta mundo,
Heidegger se deparou diante da situação de ter de delimitar o modo mesmo pelo qual
essa experiência acontece sem lançar mão das conceituações tradicionais explicitadas.
Para tanto reconheceu as tonalidades afetivas.
Tonalidade afetiva se refere ao modo mesmo como o ser-aí se encontra
“sintonizado” com o mundo que ele mesmo é; corresponde à “afinação” do ser-aí com
seu espaço performático, é o modo concreto com que mundo se pronuncia na sua
mostração. Ao se dizer isso supera-se a noção tradicional de que é apenas vez por outra
que alguma tonalidade afetiva “colore” a existência humana. Ao invés disso, há a
certeza de que elas se fazem presente incessantemente e são condições de possibilidade
para a experiência fática de mundo.
Contudo, esse “estar presente” da tonalidade afetiva não diz respeito a um estar
presente semelhante à presença de um ente físico no espaço. A presença da tonalidade
afetiva se dá sob o modo específico com que mundo se revela concretamente, de
maneira que sua presença se estabelece como uma “presença-ausente”: uma tonalidade
afetiva não pode ser vista, ela não está aí simplesmente dada em algum lugar, mas ao
mesmo tempo é ela que perpassa o ente em sua totalidade, se estabelecendo no “como”
51
E ainda:
3.2 O tédio
que o tédio como tonalidade afetiva fundamental não passa de uma simples opinião?
Quanto a isso simplesmente não há resposta alguma. O pensamento heideggeriano
quando confrontado frontalmente por ultimatos se retrai e se desvincula do seu âmbito
argumentativo próprio. Como já foi visto, Heidegger não faz teorizações, ele tenta
muito mais uma inserção do homem em seu modo mesmo de dinâmica existencial, de
modo que para isso simplesmente não há “provas”. Provas empíricas não acontecem no
mesmo nível de originariedade de seu questionamento. Portanto, ou simplesmente o que
está sendo dito encontra sua escuta própria ou tudo não passa de meditações vazias e de
jogo de palavras que em nada tocam o que há de essencial no homem. No livro Os
conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, Heidegger reconhece
três modos possíveis de instalação do tédio: o ser-entediado-por..., o entediar-se-junto-
a... e o tédio profundo. De início, será dada atenção à primeira forma do tédio.
acontecer a partir de uma situação em meio a qual o seu acontecimento seja corriqueiro.
Nesse sentido Heidegger fornece um exemplo: a espera da chegada de um trem por uma
pessoa qualquer em uma estação ferroviária. Grosso modo, a situação é a seguinte: uma
pessoa se encontra sentada numa estação de trem, esta estação localiza-se no interior
mais remoto de uma cidade qualquer. A estação não é familiar, muito menos atrativa,
pois se insere numa região extremamente inóspita. Além de tudo ela é comum, é uma
estação como qualquer outra. Por algum motivo a pessoa em questão chega à estação 4
horas antes da partida do trem de modo que não há outra alternativa senão esperar. Ela
tenta ler um livro, por alguns instantes chega a ter a impressão que de fato lê, mas não
consegue mantê-la por muito tempo. Olha ao redor desinteressadamente à procura de
algo que a prenda e repentinamente focaliza os gráficos indicadores de diversas estações
das quais nunca ouviu falar e calcula mentalmente a distância entre elas. Quando olha
para o relógio novamente se passaram 5 minutos. Uma aflição toma lugar e é preciso
fazer alguma coisa para que tal situação não piore. É preciso sair dali. Ela vai à rua, mas
nada muda essencialmente. Ela conta o número de árvores, conta de quanto em quanto
tempo alguma pessoa passa, desenha figuras aleatórias na areia e se pega novamente
olhando para o relógio: agora já se passaram 10 minutos desde o começo de seu
sofrimento.
Essa é uma situação que não é estranha a quem lê. De certa forma sua leitura
estimula um certo desconforto semelhante ao experimentado por diversas situações que
se passam no cotidiano das grandes cidades. Mas como é possível determinar
exatamente do que tanto se foge numa situação como essa? O que causa tanto
desconforto? Foge-se e se quer aplacar o tédio. Mas o que “é” propriamente o tédio? E
porque isso, que nem se sabe ao certo o que é, é tão chato? Nesse ponto é preciso apelar
ao termo “tédio” em alemão, que é autoexplicativo. Em alemão tédio se escreve die
Langeweile. Essa palavra é formada pela junção de um substantivo (Weile) a um
adjetivo (lang) que juntos desempenham o sentido de “instante longo”, “momento
longo”. Portanto no tédio há um “alongamento” do tempo. O tempo se torna
insuportavelmente longo quando o tédio se instaura, de forma que ao seu menor anúncio
alguma coisa precisa ser feita imediatamente para aplacá-lo. No entanto, esse
alongamento do tempo em nada tem a ver com o período de tempo objetivo que uma
pessoa tem de ficar a espera que algo aconteça. Muitas vezes um momento
insuportavelmente longo de tédio dura 5 minutos, outras vezes mais, outras vezes
menos. Apesar disso, o decisivo não é quanto tempo objetivamente se experimenta uma
56
situação entendiante, mas o que propriamente acontece quando uma situação qualquer
de tédio se anuncia, bem como o que acontece quando se lança mão de certos recursos
para espantá-lo.
Como foi visto, ao menor sinal de que o tédio pode se instalar há a tentativa
imediata de sufocá-lo. Quando uma pessoa conta árvores, desenha figuras aleatórias na
areia, ou lê um livro que nem a interessa tanto, o que ela está querendo fazer é se ver
livre desse tempo hesitante e por isso se vê obrigada a lançar mão das mais diversas
estratégias para consegui-lo. Tais estratégias que invariavelmente surgem com o tédio
são chamadas de passatempo. Sem brecha para dúvidas, toda vez que houver tédio
haverá um passatempo correspondente. O passatempo, por sua vez, possui
rigorosamente apenas um objetivo específico: matar o tempo que se alonga. O
passatempo é o “instrumento” utilizado para desviar o olhar do tédio, que se anuncia tão
inóspita que inviabiliza de imediato a sua simples permissão a se aproximar. Apesar
desse caráter destruidor do passatempo, um olhar ligeiramente mais demorado ao que
ele busca é capaz de reconhecer na atitude de “matar o tempo” uma certa libertação da
sensação de clausura que a hesitação do tempo trás consigo. No que se refere ao
presente trabalho, tal fato será decisivo mais adiante.
Retornando ao exemplo dado, nada se dá à pessoa em questão como se ela
estivesse plenamente a par da lentidão do tempo e quisesse, por esse motivo explícito,
fazer alguma coisa com isso. Ela muito mais se volta contra uma situação que mal sabe
dizer propriamente qual é, mas sabe muito bem que ela é “chata”. Essa “chatice”
inexplicável e que mal consegue ser experimentada senão por instantes direciona
imediatamente para uma libertação imediata, que é não sentir de maneira alguma a
hesitação do tempo, de forma que o tempo e sua experiência desagradável fiquem
anestesiados12.
Até o presente momento foi visto que na primeira forma do tédio, o ser-
entediado por..., o ser-aí se encontra a beira de se confrontar com o tédio, e que o tédio
se configura como uma hesitação do tempo, um “alongamento” do tempo. Foi visto que
12
Algumas noções equivocadas podem surgir a partir daqui. Mesmo que de maneira bem distante o
passatempo tenha uma ligação com a libertação, o que ele faz, e somente faz, é tornar o tempo
insignificante ao invés de permitir que se dê de maneira hesitante pelo tédio. Esse esclarecimento
salvaguarda de má interpretação os acontecimentos que, assim como aqueles que acontecem durante o
exercício do passatempo, retiram o ser-aí da experiência mais imediata do tempo. De forma alguma o
que acontece com alguém que se dedica imensamente a algo que gosta de modo a não se dar conta de
que um dia inteiro passou é a mesma coisa que acontece quando alguém vê televisão e quando se dá
conta já é noite. Apesar de aparentemente se tratar do mesmo fenômeno de “rápida passagem do
tempo”, as duas situações não dizem respeito ao mesmo acontecimento.
57
esse tempo, que teima em não passar logo, direciona inequivocamente o ser-aí a um
correspondente passatempo, que tem por único objetivo neutralizar esse tempo
hesitante. No entanto, são dois os momentos importantes e estruturais da tonalidade
afetiva do tédio. O primeiro deles, como foi visto, é a retenção do ser-aí em um tempo
hesitante. O segundo é que a experiência de tal tempo hesitante ocorre conjuntamente à
serenidade vazia.
Em relação à serenidade vazia, quando uma estação entedia a quem espera pelo
trem que não chegará tão cedo, o que ocorre é a simples entrega de um espaço fora da
possibilidade mesma da qual ela é espaço. Uma estação que não possui um trem que
siga viagem prende o ser-aí em um vazio que não o orienta para prática alguma,
forçando-o a forjar para si alguma coisa com a qual se ocupe, um passatempo. Sendo
que esse passatempo não possui evidentemente compromisso algum com o que se
pratica em seu ato e nem do que dele advém. O que leva a pensar que, mesmo ao se
livrar da “inconveniência” de um espaço sem sentido, há uma permanência no vazio,
sob a ilusão de que se faz alguma coisa.
Portanto, ao se questionar o tédio no seu primeiro modo, algumas características
próprias ao seu funcionamento já se conquistam. Há na tonalidade afetiva do tédio uma
relação íntima dessa tonalidade com o tempo e seu ritmo. O tédio se relaciona
propriamente com a temporalização do ser-aí. No tédio o tempo hesita, ele se torna
cansativo, se torna longo demais para ser aceito. O ser-aí se encontra repentinamente
retido por essa hesitação do tempo. Por isso remete imediatamente ao passatempo, que é
o seu antídoto mais imediato. Na mesma linha de acontecimento da retidão em um
tempo hesitante, co-pertencente a ela, há o “deixar vazio” que a serenidade vazia do
tédio promove, de modo que o que resulta de uma situação entediante é a entrega de um
espaço que “não diz nada” ao ser-aí. No tédio, o ser-aí se insere na experiência de um
ralentamento temporal co-pertencente ao vazio de um espaço, que ele mesmo é, e que
não lhe permite muita coisa.
Apesar de diferenciar três formas de tédio, Heidegger não quer com isso
estabelecer a existência de três acontecimentos distintos, pelo contrário, quer revelar
58
como esses três eventos concernem a um único fenômeno que afina o ser-aí
contemporâneo de maneira geral. Enquanto no primeiro tédio o entediante se faz
presente a partir de uma situação específica, como se pudesse ser dito que ele se impõe
ao ser-aí de “fora”, o que acontece na segunda forma do tédio é diferente da primeira.
Para a segunda forma do tédio Heidegger narra uma segunda história, que é a seguinte:
frontalmente pelo o que acontece com o tédio nessa situação, é preciso primeiramente se
inserir no acontecimento de sua fuga, ou seja, no passatempo.
No segundo “tipo” de tédio simplesmente não há situação entendiante. Não no
sentido de que no entediar-se-junto-a... simplesmente não acontece um tédio
considerável, mas que entediar-se-junto-a... remete a um “não sei o quê”. O que é
entediante é algo indeterminado que se articula com o aquiescimento ao convite da
festa. Uma vez que o convite é aceito o ser-aí então presente na festa se movimenta em
um “deixar rolar” que, de forma contrária daquela que no primeiro tédio era a
serenidade vazia, o mantém imerso nos acontecimentos do seu espaço, ao invés de
lançá-lo na busca incessante de algo para fazer. Essa imersão nos acontecimentos da
festa inviabiliza a sensação de retenção no tempo hesitante, de modo que a retenção
típica do entediar-se-por... simplesmente não é sentida no entediar-se-junto-a...
Outra vez mais comparativamente, no primeiro tédio o ser-aí é forçado a se
deparar com uma situação na qual lhe é imposto um espaço vazio. O tempo se retém e o
ser-aí se vincula a uma paz superficial e irritante. A reboque, o passatempo trás a
tentativa vã de reinserção nesse espaço, mas o que ele somente faz é reinserir o ser-aí de
maneira mais contundente no vazio. No segundo tédio o que acontece é que o próprio
ser-aí busca para si o esvaziamento do espaço em meio ao qual vai se inserir. O ser-aí
busca escapar de si-mesmo. Heidegger diz:
entre o trabalho e o sono. Ele direciona seu foco e seu tempo para o acontecimento de
esquecer de si-mesmo. Ele procura se deixar vazio, se anular.
Assim como no ser-entediado-por..., os dois momentos estruturais do tédio
também acontecem: a retenção do tempo e a serenidade vazia. No entanto, ambas se
transformam e se fazem presentes de diferentes maneiras. O “deixar rolar” que concerne
à atmosfera da festa corresponde à serenidade vazia da primeira forma de tédio. A
diferença consiste no fato de que o “deixar rolar” absorve o ser-aí no espaço ao invés de
direcioná-lo para a fuga do tédio. O “deixar rolar” torna o ser-aí extremamente presente
em toda a situação. Só que essa presença e absorção no espaço acontecem de modo que
se tem a clara impressão de que muita coisa acontece. Mas esse “acontecer” é um mero
acontecer tático entre os entes simplesmente presentes no espaço da festa, de modo que
o que se dá nisso tudo é o próprio afogamento na serenidade vazia, transfiguradamente.
Na serenidade vazia os entes em geral não transmitem nada de importante e assim o é
nesse “deixar rolar”. Essa total imersão no presente trás consigo a retenção do tempo,
afinal tudo na festa impressiona: a comida é boa, as companhias são agradáveis, há uma
atmosfera prazerosa de diversão etc. Tudo é tão bom na situação que ela passa muito
rapidamente, como se fosse um único instante. Essa é precisamente a retenção do
tempo. A festa inteira se desenrola como se não houvesse vinculação nenhuma com o
tempo. O ser-aí busca na festa uma desvinculação com o tempo. Quem nunca ouviu a
expressão “como se não houvesse amanhã”, frequentemente dita por quem deseja se
entregar completamente a um evento ou festa? O que ela revela é justamente isso: a
vontade de deixar o passado para trás, esquecer-se do futuro e se entregar
completamente a um presente que passa como num segundo. Passado e futuro não são
separados, como se houvesse uma clivagem. Eles são esquecidos em nome do “agora”.
Isso se desdobra dessa forma pelo fato do tempo, na segunda forma do tédio, se resumir
a um presente estagnado na totalidade gratuita do seu espaço simplesmente dado, onde
muita coisa divertida e interessante pode acontecer, e geralmente acontece, mas nada
que diz respeito essencialmente ao ser-aí de fato tem início. Pois o que se dá nessa
situação é que a própria festa é o passatempo do tédio e, como foi visto, o passatempo
não é outra coisa se não uma imersão maior no vazio que a própria situação por si
mesma é.
É importante frisar que a estagnação do tempo não é um abandono completo do
tempo, o que acontece é o refreamento do fluxo temporal. Por mais que toda festa seja
divertida e prazerosa, ela sempre acaba. Ela sempre acaba porque não há de todo modo
61
uma desvinculação total do ser-aí com a dinâmica do fluxo temporal que ele mesmo é,
fluxo temporal entendido aqui como aquilo que é possibilitado através da
indeterminação que cada ser-aí invariavelmente “é”, a partir de sua relação de tensão
com o ser. Como foi visto, tal indeterminação ontológica sustenta o ser-aí enquanto
poder-ser e enquanto ente marcado pela permissão de ser finitamente si-mesmo. A
desoneração de tal modo de ser é o intuito latente na busca frenética por diversão: adiar
indefinidamente si-mesmo. Esse esclarecimento é necessário porque afasta o
entendimento de que o ser-aí seria completamente capaz de instaurar, a partir de sua
atitude, as medidas de seus próprios acontecimentos. Por mais que o passatempo seja
uma tentativa de anestesiar o ser-aí entediado, há um limite, impossível de ser
delimitado precisamente, que impede a saída total de seu próprio modo de ser, ou seja,
que impede o ser-aí de se desvincular totalmente de si-mesmo.
Definitivamente, o que há no segundo exemplo é que a própria festa é o
passatempo do tédio. No passatempo do entediar-se-junto-a... também acontece uma
mudança. Ao invés dele ser uma postura solta e inquieta, como no ser-entediado-por..,
ele é toda a ação conjunta referente ao convite e, por conseguinte, não salta aos olhos de
maneira peculiar. A festa por si só já é a situação forjada para afugentar o tédio. Mas que
tédio? Tédio em relação a que? Como foi dito, em relação a um “não sei o que”. Esse é
um dos motivos para que a segunda forma do tédio seja dita “mais profunda” que a
primeira. Nessa forma de tédio não há uma imposição “de fora” que força o ser-aí a se
deparar com uma situação específica entediante e que o retira a força do seu ritmo, mas,
nesse segundo momento, o tédio já afina de forma tão impressionante o ser-aí que ele
mesmo se “avalia” desinteressante, vazio, e em função disso se dá tempo para se
anestesiar. De maneira estritamente caricata, enquanto que no ser-entediado-por... o
tédio se remete para “fora”, para uma situação específica, no entediar-se-junto-a... o
tédio se remete para “dentro” do próprio ser-aí. Isso se dá de modo que ao invés de uma
situação qualquer entediar, o que entedia agora é o próprio homem:
O tédio concentra-se cada vez mais em nós, em nossa situação enquanto tal; e
o que há de singular na situação não tem grande importância. De maneira
acessória, ela não é senão aquilo junto ao que nos entediamos, não o que nos
entedia (HEIDEGGER, 2003, p. 136).
62
“É entediante para alguém”, com essas palavras Heidegger define aquilo que se
passa com o ser-aí quando tomado pelo tédio profundo. “É entediante para alguém”. O
que uma expressão como essa poderia revelar? Bem, aquilo que ela expõe é um estado
no mínimo esquisito, no qual o ser-aí é deixado completamente vazio. A expressão
revela que esse esvaziamento é tão arrasador que não é precisamente um indivíduo que
entedia ou frente a uma situação específica ou em relação a si-mesmo, como se pudesse
dizer fortuitamente que “se está entediado pela estação de trem” ou “se está esquivando
do tédio de si”, simplesmente há a supressão de qualquer indicação quanto a uma
experiência existencial que possa ser encarada como “sua”, tudo se torna nulo.
O que de fato ocorre na interpretação do tédio, e que já pode ser visto agora, é
que seus dois primeiros modos são versões mais brandas e amenas do tédio profundo
propriamente dito. De certa forma a primeira e a segunda forma de tédio são anúncios
de um acontecimento que o ser-aí procura a todo custo afastar de si. Esse acontecimento
é o tédio profundo. Nas duas primeiras formas do tédio há uma atitude de fuga em
relação ao desconforto que a tonalidade afetiva do tédio provoca, no entanto na
tonalidade afetiva do tédio profundo simplesmente não há possibilidade alguma de
passatempo. Não há essa possibilidade em razão da tonalidade do tédio profundo forçar
impiedosamente o ser-aí a “ouvi-la”. Ela força o ser-aí a se deparar diante dela sem
escape possível. Não seria apenas inútil se debater contra a profundidade desse tédio a
partir de um passatempo qualquer, mas seria uma desmedida já que ele se impõe
cruamente ao ser-aí. Um passatempo já não é mais admitido:
indiferença com relação aos entes em geral. Isso não acontece como se o tédio fosse
tomando cada coisa ao seu tempo e lentamente fosse retirando o sentido de cada coisa
em particular de modo que por fim a totalidade seria esvaziada. Na verdade, tudo em
geral e cada coisa em particular tornam-se, em uma tacada só, indiferentes. No tédio
profundo, não se faz presente nenhuma vinculação do tédio com um determinado
espaço que força tal situação, nem o ser-aí consigo mesmo busca se entediar junto a
alguma situação, mas tudo, de forma contrária a tonalidade da angústia, se mostra como
desprovido de exuberância.
Como já foi visto, mesmo que o ser-aí se encontre “esvaziado” isso não significa
que a constituição do ser-aí enquanto ser-aí seja alterada ou dizimada. Por esse motivo a
expressão “é entediante para alguém” mantém o “alguém”, porque mesmo que o ser-aí
seja recusado pelo ente na totalidade, os entes permanecem aí presentes a espera de se
tornarem realmente o espaço pleno que de fato são. O ser-aí se encontra entregue ao
ente na totalidade que se recusa, mas de alguma maneira ainda se encontra presente para
se recusado. No livro Os Conceitos Fundamentais da Metafísica Heidegger escreve:
E ainda:
Aquilo que o tédio mesmo dá a conhecer por meio de uma indicação é a pertença
do ser-aí ao tempo, não ao tempo simplesmente dado do relógio, mas ao tempo da
singularidade enquanto poder-ser-si-mesmo – no trecho acima indicado pela palavra
instante. “Instante” é um termo que se refere ao filósofo dinamarquês Sören
Kierkegaard e que se relaciona ao ser-aí singular. De maneira geral, aproximando tal
termo da terminologia heideggeriana, designa um decidir-se libertador que reinsere o
homem como ente plenamente aberto a sua essência como poder-ser. Essa decisão é
possível a partir de um confronto do ser-aí consigo mesmo, confronto ao qual o tédio
direciona e indica silenciosamente. O instante é aquilo para que o tédio profundo se
refere ao modo de uma recusa. Somente pelo instante é possível “quebrar” o banimento
do tempo. O instante se vincula a liberdade que todo ser-aí sempre é e será. Nele o ser-aí
se toma como próprio e assume a responsabilidade de ser-si-mesmo. Esse, portanto, é o
ápice velado do ser-aí banido do tempo e precisamente aquilo que o tédio indica e tem a
dizer a partir de uma recusa: o ser-aí é livre.
Curiosamente, a indicação de que o homem é livre se dá ao modo de uma
opressão frente ao alongamento do tempo. O ser-aí é oprimido pelo tédio. Justamente
por isso, como foi visto ao longo do presente capítulo, ao menor sinal desse
alongamento o ser-aí escapa em direção à distração, o que dizima a possibilidade do
tédio dizer o que lhe é próprio e chafurda ainda mais o ser-aí no vazio. Essa sim é a
66
maior penúria do homem contemporâneo: não ter olhos para ver, nem ouvidos para
ouvir aquilo que lhe é aberto. Há uma “cegueira” para o que de essencial há no mundo
contemporâneo sendo que, de fato, pouca coisa acontece com o homem.
O ser-aí permanece de fora de sua própria opressão essencial de modo que
ninguém se encontra junto a si e junto ao outro de maneira plena, e tudo se organiza em
meio a uma encenação um tanto quanto discutível de conforto e felicidade. Há essa
enorme opressão essencial da qual se abre mão em nome dos mais diversos “escapes”
cotidianos. Escapes esses que sempre fornecem as mesmas perguntas e as mesmas
respostas e mantém o ser-aí distante da tarefa que é ter-de-ser-si-mesmo e de sua
grandeza correspondente. Hoje, o homem é convidado a se contentar com a mera
resolução de problemas superficiais, para os quais sempre se tem disponível nas mãos
as respectivas soluções. Por sua vez, o pensamento existencial tem um compromisso
originário com o ser-aí em sua essência nula, isso indica que há um compromisso de tal
pensamento com a preservação do homem enquanto pode-ser, enquanto possibilidade de
singularização, bem como com seus riscos correspondentes. O pensamento existencial
busca manter o ser-aí junto de sua própria riqueza e, consequentemente, junto de seu
próprio risco, pois esta sempre será a condição de um ente que não possui fundamento
algum: ele sempre estará por vir. E o que precisamente impressiona no risco que ronda o
ser-aí atual é que há uma certa aparência de que não se corre risco algum.
Cotidianamente, não há pista alguma do que propriamente acontece com o ser-aí. Não
há nem pista de que se foge do tédio, ou se há não se quer saber o que é esse tédio e o
que ele poderia ter a “dizer”. O homem já não acontece à altura do questionamento que
indica o caminho que poderia reinseri-lo no seu próprio tempo, talvez isso nem lhe diga
mais nada. Qualquer desconforto tem de ser prontamente remediado, anulado em nome
de uma noção extremamente questionável de bem-estar. Simplesmente não se quer
encarar essa “chatice” cotidiana, de modo que o ser-aí busca, cada vez mais, doses
cavalares de diversão. O ser-aí atual necessita de diversão, de um tal modo que nunca
experimente qualquer interrupção em sua dinâmica impessoal de existência. O ser-aí
contemporâneo é constantemente adiado por meio da diversão e sua consequente
manutenção na impessoalidade. A diversão mantém na impessoalidade uma vez que, em
se entregando freneticamente a ela, o ser-aí nunca põe em jogo sua existência mesma e
apenas circula superficialmente por sentidos e significados sedimentados quaisquer. A
diversão enquanto fuga incessante do tédio não abre o ser-aí para uma experiência densa
de si-mesmo. O ser-aí desaprendeu a ser grande e apenas convive, ou não, com a vaga
67
sensação de que algo se encontra fora do lugar. Mas para que se importar com isso se
existem tantas tarefas cotidianas a serem desempenhadas, tantos “objetivos” a serem
cumpridos? Além disso, o que há de tão problemático em um mundo onde tudo pode ser
tão divertido?
Quem nunca exige nada de si nunca pode saber de uma recusa e de um ser-
recusado, mas se embalança sim em meio a um deleite. Ele sempre tem o que
deseja e apenas deseja o que pode ter (HEIDEGGER, 2003, p. 194).
68
4 ERA DA TÉCNICA
Se algo se tornou nítido até aqui foi justamente o caráter de vazio que impera em
relação ao horizonte histórico contemporâneo. Mas a que se deve tal fato? Como pôde
algo desse tipo ter lugar? O que afinal precisamos fazer? Podemos fazer algo? Antes de
fomentar ou buscar respostas para tais perguntas é preciso considerar alguns pontos da
trajetória que Heidegger nomeia de “destino do ocidente”. Destino aqui em nada tem a
ver com um plano previamente traçado para o desenrolar do mundo ocidental. Muito
pelo contrário, destino tem a ver com a possibilidade, sempre radical, de tomada de
caminhos laterais e rotas de fuga. Tem a ver com a concretização epocal específica e
com a tomada de decisões históricas fáticas. No entanto, cedo ou tarde, um caminho
chega ao fim, e chega ao fim não pelo fato de “sua hora ter chegado”, como se a
passagem do tempo meramente atualizasse um acontecimento programado, mas pelo
fato de que qualquer trajetória, necessariamente, encontra seus limites. Destino do
ocidente é uma expressão, portanto, para indicar em essência um esgotamento. Tal
esgotamento é a consumação de um processo histórico de distanciamento do homem de
seu vínculo com a abertura de mundo que ele mesmo é, e que hoje fornece seus
primeiros indícios mais fortes por meio do tédio. O esgotamento se faz sentir e ver pelo
fato de o vazio indicado pelo tédio se apresentar de maneira cada vez mais radical e
galopante, tendo como “sintoma” imediato a busca desesperada por diversão. No
entanto, na medida em que um caminho ganha contornos específicos e definitivos, é
preciso indicar e pensar o modo por meio do qual tal caminho se desenvolveu, bem
como pensar a possibilidade de sua transformação.
69
13
Não se diz, com isso, que em 25 séculos de filosofia nunca lidaram com o problema da diferença
ontológica, mas apenas que o próprio modo como consideraram tal diferença não faz jus ao modo de
como ela se “dá”.
70
14
É justamente nesse ponto que reside a querela do outro início: Heidegger em muitos momentos de seu
trabalho dá a entender, por meio de uma linguagem pouco usual, que outro início seria uma expressão
ligada à superação da tradição metafísica em direção a um tempo, hoje, desconhecido. Tempo esse que
se veria forçado a encarar o ser como seu próprio fundamento radicalmente nulo e dissonante.
72
15
No que tange ao modo grego de lidar com o movimento de desvelamento da physis uma importante
contribuição se dá através da interpretação heideggeriana de Heráclito em Heráclito, 1998.
75
16
Aqui é preciso tornar claro que o que está em jogo não é um apego apaixonado pelo modo de ser grego,
nem uma pretensão de reconstruir uma Grécia perdida, mas de apontar a experiência de mundo grega
como a experiência que melhor revela o caráter essencialmente des-velador da abertura de mundo que o
ser-aí humano é.
17
Embora aqui esse processo seja indicado de maneira por de mais rápida e um tanto grosseira, tal texto
visa dar alguma orientação básica ao movimento que desemboca justamente em uma época afinada pelo
tédio. Caso tal empresa logre sucesso, será o suficiente.
76
18
Em relação à interpretação heideggeriana de Nietzsche ver Nietzsche I (HEIDEGGER, 2007) e
Nietzsche II (HEIDEGGER, 2008).
79
aponta justamente, como acima foi descrito, para o arranjo automatizado e sistemático a
partir do qual os entes em geral, inclusive o ser-aí humano, são posicionados e se
atualizam em um devir irrefreável. A partir da abertura da técnica como composição, o
real se desencobre como mera disponibilidade, sem lastro ontológico algum, de um tal
modo que o real aparece como mero acontecimento ôntico em devir. O perigo de tal
situação Heidegger (2012c, p. 30) indica em dois trechos esclarecedores:
E também:
uma mera “fazeção” (Ibidem). Uma fazeção desenfreada em meio a qual o homem se
torna autômato de procedimentos dos quais já não experimenta mais necessidade
alguma, de um tal modo que em momento algum o ser-aí é capaz de se colocar em
questão como “lugar” de articulação singular de sentido. O que importa agora é apenas
a rapidez, a eficiência e eficácia com a qual se atua no mundo, sem se saber ao menos
em virtude do que essencialmente se faz alguma coisa. Tendo em vista essa “fazeção”
vazia e sem limites, o homem circula de maneira cada vez mais superficial e indiferente
em um espaço onde o “aqui” significa o mesmo que “lá”, onde o presente é idêntico ao
passado e ao futuro, onde o que se anuncia é a uniformidade das práticas humanas em
geral e, por mais que se movimente de um ponto a outro, já não há movimento algum,
pois todas as coisas são versões do mesmo. Onde isso acontece já não há mais
temporalização, e onde não há mais temporalização o homem permanece distante de si.
Esse é precisamente o perigo que Heidegger aponta para o homem atual: o perigo de se
ver tomado por uma lógica de funcionamento que o arrasta e o mantém distante do
acontecimento de sua humanidade, que o mantém ausente para o essencial e,
consequentemente, o mantém no vazio.
O grande problema da técnica moderna é que ela mantém o homem
incessantemente alimentado de certezas que, através de suas asseverações sempre
corretas, só fazem distanciar o verdadeiro (no sentido de alétheia, desvelamento).
Quando isso se dá, o tipo de impessoalidade que advém desse momento histórico é uma
impessoalidade capaz de fornecer sempre respostas prontas, capaz de manter e
pavimentar incansavelmente para si sua dinâmica mesma, de modo que o homem seja
sempre “capturado” para o interior dessa dinâmica impessoal de forma extremamente
competente. O problema aqui, outra vez mais, não é condenar a impessoalidade, mas
apenas indicar que em tal cenário - da era da técnica - a impessoalidade deixa de ser o
que indica e permite uma transformação possível, para se tornar o modo específico de
uma época que muda sem se transformar: uma época impessoal. A técnica moderna
dificulta extremamente a conquista de si-mesmo. A impessoalidade, ao invés de ser um
“passo” necessário para a conquista de um próprio, se torna ampla e irrestrita na
absorção e manutenção do ser-aí na medianidade, naquilo que vale para todos e para
ninguém. A técnica moderna é capaz de tornar o ser-aí qualquer um, ela o torna
superficial, mediano. O impressionante no mundo da técnica é precisamente que tudo
sempre funciona e quando isso acontece o que se mantém é o seu “arranjo” e a
possibilidade de que sua arrumação se dê novamente e outra vez mais em figuras e
81
Foi visto até aqui que o tédio é a afinação específica da consumação do destino
do ocidente enquanto abandono radical da questão do ser. Tédio é a afinação que
denuncia o esgotamento, o esgotamento por sua vez diz respeito à concretização de um
projeto de mundo que busca se totalizar através do abandono severo do mistério
inerente ao acontecimento de mundo, e ao fato de o homem se distanciar
derradeiramente de sua própria essência enquanto ente cujo âmago é ser abertura de
mundo. Hoje o homem se encontra vazio, uma vez que perdeu qualquer relação com o
desvelamento, mesmo uma relação de cegueira. O próprio modo como o tédio se dá,
apesar de não ser aceito, ao modo da profunda serenidade vazia e da retenção do tempo,
indica que o homem hoje encontra abrigo em uma época esgotada. O homem da técnica
mora no fim de um projeto de mundo que, como foi visto, não se desenvolveu de forma
necessária, mas que hoje se encontra em vias de totalização. A era da técnica é
essencialmente uma contagem regressiva em direção a sua plena concretização e
consequentemente ao pleno esvaziamento do homem. No entanto, a era da técnica é
uma contagem regressiva que não se envergonha de encontrar sempre e outra vez mais
infinitos microssegundos que a separam do zero. A técnica precisa sempre encontrar
microssegundos para não experimentar a possibilidade de quebra, uma vez que seu
movimento se encontra para além de qualquer tematização do fim que ela mesma é.
Aqui surge um paradoxo: a era da técnica é essencialmente a época da consumação do
projeto histórico ocidental, ela é o fim de um percurso histórico, no entanto, ela sempre
encontra subterfúgios para fazer desse lugar o lugar perene de seu irrefreável
acontecimento, para além de qualquer ponto final de fato. Sendo iminência do fim, a
técnica arranja para si sempre um próximo passo, faz da iminência o seu lugar de pouso.
Ela sempre se salva ao perenizar sua essência regressiva, e através desse movimento de
esgarçamento do fim ela leva consigo o homem a modos de ser cada vez mais
elementares, uma vez que a natureza de tal esgarçamento do fim é o esvaziamento.
83
Após essa breve reconsideração da trajetória trilhada até aqui, é preciso indicar o
modo como especificamente a psicologia se insere em tal cenário. Em um movimento
que prima pelo desterro do homem em relação a si mesmo, como a psicologia enquanto
disciplina acadêmica tende a se posicionar? De que modo a psicologia busca se inserir
em um cenário como esse? Qual saída ela encontra? Antes, porém, de tecer
propriamente considerações acerca da psicologia é preciso esmiuçar melhor o modo
como o esgarçamento do esgotamento repercute na existência humana contemporânea.
prévio de ser, mas a renúncia a uma tal objetificação de si por meio da entrega à
proveniência infinita e insondável de sua essência enquanto ente formador de mundo.
Foi visto que o homem é, essencialmente, abertura de mundo e que hoje as
coisas se encontram como que do avesso. Em um tal processo de perenidade do
esvaziamento para “onde” vai o homem? O quê acontece com ele? Na medida em que
desconhece seu próprio modo de ser, a partir de que modos de ser o homem da técnica é
impelido a se orientar?
5.1.1 O animal
A atitude de se por em análise o modo de ser do animal não tem em vista uma
transposição no sentido de habitar a perspectiva do animal, mas apenas descrever o
modo como o animal experimenta isso que para o ser-aí humano é abertura de mundo.
Esse processo só é possível na medida em que o homem é de fato um ente voltado “para
fora”, para o surgimento do mundo enquanto mundo, somente a partir disso ele pode
olhar o animal e descrevê-lo em seu próprio modo de ser. Não se trata propriamente de
85
tentar fazer a experiência do animal, mas uma transposição a partir daquilo que o modo
de ser do animal permite revelar. O que, a partir disso, o animal é capaz de revelar em
seu modo de ser? Como já foi antecipado, que ele é pobre de mundo. Mas o que isso
quer dizer? Que o animal experimenta mundo “mais ou menos” como o homem, ou que
a inteligência do animal é um pouco menor que a humana?
Falar em pobreza de mundo, no fundo, trás para cena, outra vez mais, mundo.
Aqui fica evidente que a caracterização da essência do animal reside fundamentalmente
em algo que lhe é privado, i.e., mundo ao modo da abertura. O animal não experimenta
mundo como mundo. Isso não quer dizer que o animal seja inferior ou menos evoluído,
as questões aqui não aparecem nesses termos, é preciso apenas se colocar em sintonia
com a riqueza própria desse ente chamado animal. O modo como Heidegger vai
trabalhar essa questão aponta para uma delimitação tripla: a pedra (o não vivente) é sem
mundo, o animal (vivente) é pobre de mundo e o homem é formador de mundo. Essa
tripla delimitação não tem a ver com uma “escada” evolutiva que, conforme foi se
desenvolvendo, foi entregando cada vez mais “mundo” à geração seguinte. Tudo isso
soa muito especulativo e metafísico. O ponto é que em se colocando em transposição à
pedra e ao animal é possível considerar a impossibilidade da pedra experimentar mundo
e do animal em certa medida experimentar mundo. Mas que modo, pobre, é esse? Já foi
dito que tal pobreza não diz de uma imperfeição do animal, mas de seu modo de ser. Tal
modo de ser recebe o nome de perturbação (Benommenheit). O animal, diferentemente
do homem, não abre mundo, mas é perturbado, não por entes que se abrem, mas por
desinibidores de comportamentos. Na medida em que o animal não age, mas é
desinibido, ele não se encontra propriamente em um mundo, mas em um ambiente que
dispara suas aptidões de comportamento, suas pulsões de comportamento.
O trecho indica que o animal para comportar-se precisa ser apto e dotado de
aptidões. A aptidão do animal para determinados comportamentos indica que, no fundo,
o animal não abre mundo enquanto mundo. O animal, de algum modo estranho ao
homem, é abertura de mundo, mas nunca abertura de mundo enquanto mundo. Como
foi visto no segundo capítulo, o que torna possível ao homem ser abertura de mundo é
86
justamente o fato de o homem ser o ente marcado por uma relação com “sua” própria
negatividade estrutural, que o lança para possibilidades de ser. Na medida em que o
animal não se abre para o fundamento nulo da existência, ele não é capaz de se por
diante de possibilidades de ser, ele simplesmente se comporta. Por isso é possível
delimitar e inventariar comportamentos possíveis do animal, já que o animal se coloca
em uma dinâmica de comportamentos pulsionais: um cachorro não pode em algum
momento decidir tornar-se psicólogo; um gato, por articulação de sentido, não pode
querer prestar vestibular ou uma girafa desistir da vida na selva para tentar a sorte na
cidade grande etc. Um cachorro late e tem uma miríade de comportamentos
inventariáveis e treináveis a partir do modo como, obedecendo sua essência de cachorro,
é perturbado em direção a comportamentos específicos para os quais é apto. Esse é o
acontecimento próprio da vida: ela é o desempenhar das aptidões por meio de
perturbações do ambiente. Não há por parte do animal nenhuma relação com seus
comportamentos, ele é pura pulsão para além de qualquer presença ou ausência de
relação consigo mesmo. Aqui é importante enfatizar o fato de o animal não estar negado
da possibilidade de lucidez em relação à abertura de mundo, mas apartado de uma tal
possibilidade. Toda negação é negação de uma afirmação, caso ao animal fosse negada a
abertura de mundo enquanto mundo, de algum modo o animal se relacionaria com tal
abertura, mesmo ao modo de sua constante negação, isso de alguma maneira reservaria
a possibilidade de em algum momento o animal se abrir para isso que lhe é negado. Não
é isso que ocorre, o animal se encontra apartado de uma tal possibilidade ou de uma não
possibilidade de abertura de mundo, ele simplesmente vive conforme suas aptidões. A
partir disso é possível delimitar com alguma precisão os limites próprios ao animal, na
medida em que ele se movimenta a partir de comportamentos vinculados unicamente a
suas aptidões.
na medida do animal, uma vez que, em um tal cenário de negação de mundo, esse
parece o único modo possível de o homem saber de si: o homem se reduz à vida. O
homem do tédio profundo da técnica é mantido negado ao mundo enquanto abertura,
com isso ele se aproxima do modo de ser do animal em uma mera perturbação das
coisas que não são plenamente reveladas a si. Em um trecho do excelente livro O
aberto, Giorgio Agamben (2013, p. 107) diz:
No ser deixado vazio pelo tédio profundo vibra assim uma espécie de eco
daquela “agitação essencial” que alcança o animal de seu ser exposto e preso
a um ‘outro’ que não se lhe revela enquanto tal. Por isto, o homem que se
entedia vem a se encontrar ‘extremamente próximo’ – ainda que
aparentemente – da perturbação do animal. Ambos são, em seus gestos
específicos, abertos a um fechamento, integralmente ligados a qualquer coisa
que se recusa obstinadamente.
No recusar de uma época que vela o seu caráter de abertura de mundo, que
entrega o ente sem lastro ontológico algum, o homem se equipara ao animal, pois em
um tempo como esse, de imediato, não há qualquer perspectiva que faça afastar a nítida
sensação de que o homem é, no máximo, um animal diferenciado, superior. No entanto,
isso já é de algum modo um entendimento que nega o homem como abertura de mundo.
Dizer que o homem é um animal superior é, já de início, vincular a existência humana
pela medida do animal. O homem hoje é apenas uma variação específica dessa
animalidade de base. Essa aproximação do homem ao animal, possibilitada pelo
esgarçamento do fim que a era da técnica é, não é de modo algum uma perda de
capacidades superiores, como se o ser-aí, em se distanciando da abertura de mundo que
ele mesmo é, regredisse para uma naturalidade rudimentar que sempre estivera latente
dentro de si. Não. Como foi visto no segundo capítulo, o ser-aí não é primeiramente
alguma coisa que posteriormente se “encaixa” uma abertura de mundo. O ser-aí é
somente e radicalmente abertura de mundo. Sua aproximação ao animal é feita, não por
recrudescimento de suas “capacidades” até o solo da mera animalidade (até porque aqui
não há qualquer possibilidade de se falar em escala evolutiva, mas em essências
distintas: o homem e o animal), mas pelo movimento opressivo que a negação de
mundo pela atmosfera do tédio profundo estabelece. Como foi visto no terceiro
capítulo, em meio a tal opressão essencial o ser-aí foge de um tal questionamento
essencial e se permite existir em fuga de tal opressão essencial, em fugindo ele assume e
radicaliza sua equiparação ao animal, já que recusa seu único e último elo de
humanidade: a abertura de mundo pela opressão do tédio profundo. Aqui há um
88
movimento que se retroalimenta: uma época se abre sem possibilitar grandes chances de
o ser-aí se por para além do ente em dinâmica leviana e, em meio a tal abertura afinada
pelo tédio profundo, o ser-aí nem chega a desconfiar de uma tal recusa de mundo e, ao
menor sinal da opressão do tédio, já de imediato foge para a diversão e o bem-estar.
Esse é o resultado do movimento viciado de esvaziamento promovido pela era da
técnica: em uma época que faz da iminência do fim o lugar perene de seu
acontecimento, o homem se distancia radicalmente de si mesmo enquanto ente formador
de mundo e se orienta pela animalidade para encontrar a si mesmo.
No entanto, por mais que o homem se oriente decididamente pelo modo de ser
do animal, é preciso deixar indicado que esse movimento é sempre reversível, i.e., a
completa coincidência entre homem e animal é algo impossível. É assim na medida em
que, mesmo no abandono e na negação de mundo, o homem pode despertar para seu
caráter indeterminável, despertar para o poder-ser. É por isso que na descrição do tédio
profundo Heidegger diz que tal horizonte é “entediante para alguém”. O “alguém” diz
tanto de uma inatividade essencial do homem em relação à conquista de uma identidade
própria, quanto de uma possível reconquista do homem em relação a si mesmo. Como
está explícito no trecho:
Virá à luz que esse estado de ânimo fundamental [o tédio profundo], e tudo o
que está relacionado a ele, deve ser delineado e distinguido nos confrontos
daquilo que afirmamos como essência da animalidade em relação à
perturbação. Esse delineamento será extremamente decisivo para nós, porque
a própria essência da animalidade, a perturbação, vem se encontrar,
aparentemente, com um fechamento extremo que discutimos como elemento
característico do tédio profundo, e que denominamos o encantar-se-ligar-se
do ser no âmbito do ente na totalidade. Virá naturalmente à luz que esse
fechamento extremo das duas concepções essenciais não é apenas enganoso,
como por de trás dele há um abismo que não pode ser superado por mediação
alguma (HEIDEGGER, 2003, p. 225).
suficiente para não permitir, de uma vez por todas, uma espécie de aplanamento total e
radical do homem na medida do animal. Agamben (2013, p. 111) explicita:
A crítica que a seguir terá início, e que encerra o presente trabalho, tem a ver
com as bases de um saber psicológico enquanto disciplina acadêmica. A presente etapa
de investigação do movimento norteador da psicologia atual nem de longe é capaz de
esgotar a complexidade e a riqueza temática que envolve os seus estudos, apenas tem
em vista a indicação de um processo central que corroe a validade da psicologia
90
Descartes foi responsável por dar novo impulso à filosofia no século XVII. Após
a redescoberta do homem e da natureza pelo Renascimento e pela Revolução Científica
(com destaque para as contribuições de Galileu à astronomia e Newton à física)
aconteceu uma consequente mudança de paradigma em relação aos esgotados conceitos
escolásticos, houve a necessidade de reunião dos novos pensamentos em um único
sistema filosófico. A morada do pensamento medieval desmoronava, e um novo método
deveria se mostrar como início de um novo saber em condições de impedir uma série
desordenada de observações sem coesão interna. Estava difundida a confiança no
homem e no seu poder, também estava bastante difundida a incerteza sobre o caminho a
se tomar para garantir um rumo bem definido com relação às escandalosas e novas
descobertas, que em muitos casos negavam todo o conhecimento medieval. A filosofia
medieval não conseguia mais se sustentar, já se tomava como medida aquele conjunto
91
Mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei
que era necessário (…) e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em
que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso, não restaria
algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os
nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa
alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens
que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias
de geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que
estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até
então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos
pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando
dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi
fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu
espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo
em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E,
notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei
que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia
que procurava (DESCARTES, 2006, p. 70).
No trecho citado fica evidente que a razão do homem é o cerne seguro que
sustenta todo o projeto de pensamento cartesiano. As percepções sensíveis, que vez por
outra são enganadoras, devem ser deixadas de lado para que aquilo que é mais próprio
ao homem se anuncie claramente, ou seja, o “eu” pensante. Enquanto eu penso eu sou.
Essa certeza não pode ser minada de nenhum modo por nenhum gênio maligno, uma
vez que, ainda que tal gênio exista, o “eu pensante” deve existir para ser enganado.
Portanto, a proposição “penso, logo existo” se tornaria verdadeira, porque até sua
dúvida mais extremada a confirma.
A prova do novo saber que se ventila é o sujeito humano, o “eu”, a consciência
racional. É a partir do homem que tudo pode se tornar conhecido e determinado.
Descartes, por meio da dúvida hiperbólica, defronta-se com a certeza fundamental: a do
“eu penso”. Esta, porém, não é apenas uma das verdades que se alcança, mas é a
verdade mais essencial que, uma vez alcançada, fundamenta todo conhecimento seguro
que por ventura o homem procure saber: dos entes, do saber matemático, do saber
geométrico etc. Qualquer outra verdade só será acolhida na medida em que se adequar
ou aproximar de tal evidência segura inicial.
Descartes inaugura a cisão homem/mundo por meio do que chamará de res
cogitans e a res extensa. O homem, em algum momento, seria uma espécie de ponto de
encontro entre dois mundos, nele há o encontro entre alma e corpo. A alma é uma
93
realidade inextensa, ao passo que o corpo é extenso. Trata-se de duas realidades que
nada têm em comum: uma delas é a razão, o eu pensante (aquilo que fundamenta
propriamente o homem), e o outro é o mundo sensível, que serve de base para que o
homem aplique e desenvolva seu conhecimento e controle. É a partir de tal cisão que
algo como uma psicologia pôde surgir, dois séculos depois. Um trecho de Discurso do
método parece resumir seu pensamento e lançar a possibilidade da psicologia como
ciência de foro íntimo, como ciência daquilo que torna o homem propriamente humano,
i.e., da subjetividade:
nova descoberta, ele já passa a compreender a si mesmo na medida do que lhe fora
aberto compreensivamente, ou melhor, pela medida daquilo que se liberou a ser
compreendido numa determinada direção específica. Uma descoberta nunca é uma
descoberta isenta de uma compreensão específica do real. Quando Descartes
compreende o real como coisa material passível de esclarecimento científico, o homem
já se coloca na alça de mira de uma tal perspectiva de mundo. Mesmo que Descartes
tenha tentado livrar o homem, i.e., sua alma e não seu corpo, de uma postura científica,
sua descoberta mesma do ente enquanto matéria passível de esclarecimento científico
guarda em si o “DNA” do movimento que elenca o homem como esclarecível também
em termos científicos. De certa maneira, Descartes é vítima de um movimento que ele
mesmo indicou por meio de seu pensamento, já que, mesmo tentando reservar à alma,
ou mesmo à humanidade, uma qualidade diferente do ente extenso, Descartes no fundo
indica um caminho de “entrada” ao saber científico. Ele é a uma das primeiras e
principais vozes de uma compreensão hermenêutica que posiciona o homem como
esclarecível científicamente. A partir disso, por princípio, a psicologia é a ciência que
procura consumar esse movimento de “entrada” e de esclarecimento da internalidade
humana, e o psicólogo seu especialista correspondente. Como mostra Feijoo (2011, p.
18-19):
não encontra meios de legitimar seus “fatos psíquicos”. Para não ser injusto com Freud,
seu sistema até procura tal fundamentação em um escrito que ficou propositadamente
escondido do grande público não se sabe por qual motivo. Tal escrito é o Projeto de
1895 (Entwurf einer Psychologie). Em tal escrito, apenas publicado em 1950, portanto
depois da morte de Freud, fica explícita a sua tentativa em encontrar fundamentos para
todas as suas séries de postulados:
A finalidade desse projeto é estrturar uma psicologia que seja uma ciência
natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados em partículas materiais especificáveis, dando
assim a esses processos um caráter concreto e inequívoco (FREUD, 1975, p.
395).
Em tal trecho Freud assume a psicanálise como uma ciência sem vínculo com
alguma base em específico, nem com a descrição dos atos de consciência, nem com o
conhecimento do cérebro. Ela se assume como um espectro que vale por si mesma a
partir de seus “resultados”. Essa nítida incompatibilidade entre psicanálise e alguma
fundamentação possível fica tão evidente com o passar do tempo que mesmo Lacan
(1988, p. 50) afirma que “o que constitui o interesse que podemos ter lendo o Projeto
não é sua pobre contribuição a uma fisiologia fantasista que ela comporta”. O ponto de
tal frase lacaniana é que, a partir de um determinado momento a psicanálise legitima si
mesma a precindir de uma procura por fundamento. Ela se aceita como um saber
espectral, que vale por si mesmo independente de qualquer pergunta por bases.
Justamente por isso a psicanálise funciona extremamente bem como símbolo de uma
realidade que hoje a psicologia de uma maneira geral se vê forçada a encarar: o fato de
ser uma ciência carente de bases para suas teorias explicativas. Talvez justamente esse
caráter de ausência de base permita que a psicologia seja caracterizada pela imensa
dispersão de orientações teóricas, uma vez que tudo parece ter a chancela de ser dito
sem maiores rigores.
98
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve em vista tornar o mais acessível possível o modo como
Heidegger trabalha com a noção de tédio, bem como apontar o modo como a afinação
do tédio pôde se tornar a tônica de atual época histórica, chamada por Heidegger de era
da técnica. Tudo isso tendo em vista apontar em tal cenário a crise pela qual passa a
psicologia, que se vê em meio ao processo de animalização do homem e sem ainda
encontrar meios de legitimar a si mesma em tal processo. Para tanto, de início foi visto
o modo como Heidegger se apropria do pensamento de Edmund Husserl e Wilhelm
Dilthey. Através do pensamento husserliano foi visto que o primado da experiência
humana não se encontra na interioridade, e sim, no próprio conhecimento intuitivo do
fenômeno. É somente a partir do fenômeno que se pode abstrair um “eu” e um “objeto”
de modo que o que se dá sem intermediação alguma é o que se dá na percepção
fenomenológica. Esse ato original é aquilo que realmente se experiencia nas vivências
em geral. O homem existe fenomenologicamente e não teoricamente. Em Dilthey, foi
visto que o modo como o homem se estabelece em sua existência está
indissociavelmente ligada a um nexo estrutural histórico, a partir do qual toda a sua vida
se apoia, marcando dessa forma toda vivência humana como inegavelmente debitária de
tal semântica de nexos articulados. Também fora uma importante contribuição de
Dilthey a postura de, assim como Husserl, tentar retirar a experiência humana do modo
artificial de entendimento que as teorias em geral fomentam acerca do homem. Para
tanto, cindiu as ciências em humanas e naturais.
Heidegger ao se apropriar de ambos, aponta para o equívoco no qual ambos
parecem decair. Husserl recai sutilmente no âmbito daquilo que critica. Uma vez que
seu pensamento entrega a possibilidade de libertar o homem de noções como ego e
psiquismo, Husserl acaba encerrando o entendimento fenomenológico de “fluxo de
vivências em síntese” em um “ego transcendental”, quando ele faz isso acaba reeditando
as noções que seu pensamento mesmo não permitia mais que fossem pensadas. Já em
Dilthey, o que Heidegger reconhece é uma recaída em âmbitos teóricos. Por mais que o
projeto ensaiado por Dilthey buscasse um rompimento com o modo de conhecimento
das ciências naturais, a construção de uma ciência humana, “no frigir dos ovos”,
também deporia em favor de uma artificialização do modo mesmo como o homem se
estrutura em sua existência fática. Heidegger conseguiu reconhecer em ambas o que
102
trama complexa envolve a psicologia hoje: ela se encontra rebaixada a uma auxiliar das
ciências biológicas, em particular as neurociências, e para combater tal movimento
arrasador ela apela para um falso saber: o saber acerca de uma espectral subjetividade.
Na tentativa de desacelerar o ritmo que esgota e nivela o ser-aí, a psicologia ainda tenta
se apegar a subjetividade como “espaço” da intimidade e reserva em relação à
“pasteurização” em curso. O ponto final do presente trabalho foi indicar o esboço de
uma psicologia de resistência, uma psicologia que não mais seja marcada pela tentativa
de perscrutar hipotéticas subjetividades, nem se render ao mero conhecimento objetivo
do organismo, mas que acredite no homem enquanto ente livre, e faça dessa certeza o
norte de suas atividades.
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REFERÊNCIAS
DILTHEY, W. Ideias sobre uma psicologia descritiva e analítica. Rio de Janeiro: Via
Verita, 2011.