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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Paulo Victor Rodrigues da Costa

Tédio como tonalidade afetiva da era da técnica: esboço de uma


psicologia de resistência

Rio de Janeiro
2015
Paulo Victor Rodrigues da Costa

Tédio como tonalidade afetiva da era da técnica: Esboço de uma psicologia de


resistência

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Psicologia Social.

Orientadora: Profª. Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo

Rio de Janeiro
2015
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

C837 Costa, Paulo Victor Rodrigues da.


Tédio como tonalidade afetiva da era da técnica: esboço de uma psicologia de
resistência / Paulo Victor Rodrigues da Costa. – 2015.
107 f.

Orientadora: Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia.

1. Tédio – Teses. 2. Heidegger, Martin, 1889-1976 – Teses. 3. Psicologia –


Teses. I. Feijoo, Ana Maria Lopez Calvo de. II. Universidade do Estado do Rio
de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es CDU 316.6

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta dissertação, desde que citada a fonte.

Assinatura Data
Paulo Victor Rodrigues da Costa

Tédio como tonalidade afetiva da era da técnica: Esboço de uma psicologia de


resistência

Dissertação apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: Psicologia Social.

Aprovada em 27 de janeiro de 2015.

Banca examinadora:

Profª. Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo (Orientadora)


Instituto de Psicologia – UERJ

Prof.ª Dra. Myriam Moreira Protasio


Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial - IFEN

Prof. Dr. Luiz José Veríssimo


Instituto de Psicologia - UVA

Rio de Janeiro
2015
AGRADECIMENTOS

Para Ana Feijoo, pela paciência com que lidou comigo nos meus primeiros
passos acadêmicos, e por ser um eterno exemplo de dedicação e simplicidade.
Para Luiz Veríssimo, pelas conversas esporádicas e serenas, bem como pela
atenção dedicada ao presente trabalho.
Para Myriam Protasio, pela constante solicitude e pela atenção dedicada ao
trabalho.
Para Aline, sem a qual não sou ninguém.
RESUMO

COSTA, Paulo Victor Rodrigues da. Tédio como tonalidade afetiva da era da
técnica: esboço de uma psicologia de resistência. 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

A presente dissertação de mestrado tem em vista adentrar a noção heideggeriana


de tédio, de um tal modo que seja possível delinear sua relação com o horizonte
histórico da era da técnica e o modo como a psicologia, em meio a um tal cenário, se
encontra em crise enquanto disciplina acadêmica. A trajetória percorrida será a de, a
princípio, indicar as principais influências ao pensamento heideggeriano, i.e., a
fenomenologia e a hermenêutica em busca da mudança que Heidegger imprime a tais
disciplinas. Posteriormente será visto que a noção de ser-aí se torna essencial para a
compreensão do que está em jogo com a tonalidade afetiva do tédio. Dito de maneira
enxuta, a tonalidade do tédio é inerente ao esquecimento e abandono do modo de ser do
ser-aí, enquanto ente marcado fundamentalmente por ser abertura de mundo. A partir de
um tal esquecimento e abandono, o homem da técnica se pauta pela animalidade para
encontrar sua própria essência. A partir da certeza da animalidade como critério para o
homem avaliar a si mesmo, a psicologia se encontra rebaixada a uma posição de
subdisciplina das ciências biológicas, em particular das neurociências. Em um cenário
como esse urge a construção de uma psicologia de resistência, que se paute pela medida
do homem como ente originariamente livre.

Palavras-chave: Heidegger. Psicologia. Tédio.


ABSTRACT

COSTA, Paulo Victor Rodrigues da. Boredom as technological age’s tone: sketch of a
resistance psychology. 2015. 107 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) –
Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

This master thesis aims to enter Heidegger's notion of boredom, in such a way
that it is possible to outline their relationship to our historical horizon and how the
psychology, in the midst of such a scenario, is in crisis as an academic discipline. The
trajectory will be to the principle set out the main influences in Heidegger's thought, ie,
phenomenology and hermeneutics, in order to show the change that Heidegger prints in
both disciplines. Later it will be seen that the notion of Dasein becomes essential to
understanding what is at stake with the affective tone of boredom. The tone of boredom
is inherent to oblivion and neglect the way of being of Dasein, while being
fundamentally marked by being Erschlossenheit. From such oblivion and neglect, the
contemporary man is guided by animality to find their own essence. From the certainty
of animality as a criterion to evaluate the man himself, psychology is lowered to a sub-
discipline position of biological sciences, especially neuroscience. In such a scenario it
is urgent to build a resistance psychology, whose agenda is to measure the human-being
as being originally free.

Keywords: Heidegger. Psychology. Boredom.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………… 7
1 PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS AO PENSAMENTO
HEIDEGGERIANO……………………………………………………… 15
1.1 Husserl e a fenomenologia………………………………………………... 15
1.2 Dilthey e a hermenêutica………………………………………………... 22
1.3 A fenomenologia-hermenêutica de Heidegger………………………....... 26
2 O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO……………………………… 30
2.1 Ser e Tempo……………………………………………………………...... 30
2.2 Ser-Aí…………………………………………………………………….... 37
3 TONALIDADE AFETIVA DO TÉDIO…………………………………. 49
3.1 Tonalidade afetiva……………………………………….………………... 49
3.2 O tédio……………………………………………………………………... 53
3.3 O ser entediado por……………………………………………………... 54
3.4 O entediar-se junto a……………………………………........…………... 57
3.5 O tédio profundo……………………………………………...…………... 62
4 ERA DA TÉCNICA………………………………………...…………….. 68
4.1 Esquecimento da questão de ser………………………………………… 68
4.2 Miopia, cegueira e vazio………………………………………………... 72
5 TÉDIO, ERA DA TÉCNICA E PSICOLOGIA........................................ 82
5.1 Redução do homem à vida.......................................................................... 83
5.1.1 O animal……………………………………………………………..……... 84
5.1.2 Animalização do homem…………………………………………………... 86
5.2 A crise da Psicologia……………………………………………….……... 89
5.2.1 O legado cartesiano à Psicologia e sua ruína……………………………... 90
CONCLUSÃO……………………………………………………...……... 101
REFERÊNCIAS…………………………………………………………... 105
7

INTRODUÇÃO

A presente dissertação tem como objetivo investigar, a partir do pensamento do


filósofo alemão Martin Heidegger, a tonalidade afetiva do tédio e sua íntima relação
com o horizonte histórico chamado por Heidegger de era da técnica (technischer
Zeitalter) e, a partir disso, indicar a crise na qual a psicologia hoje se encontra. O
percurso do trabalho será investigar o modo como a tonalidade afetiva do tédio afina,
atualmente, a existência humana de uma maneira geral, sem exceção considerável, bem
como indicar, na medida do possível, o percurso histórico de formação que possibilita a
instauração de uma época afinada por tal tonalidade. O presente tema é de suma
importância para a psicologia por alguns motivos: o primeiro deles é que, como será
visto ao longo do trabalho, o modo como o assunto é aqui desenvolvido, aponta para um
modo não tradicional, ou psicologizante, de se entender a dinâmica existencial humana
e suas tonalidades correspondentes. Tédio aqui será trabalhado para além do sentido de
algo referente à experiência subjetiva humana, articulando muito mais o tédio como
afinação epocal, histórica, em meio a qual o homem contemporâneo se estabelece. Um
segundo, e não menos importante motivo, é o de indicar a partir disso o fracasso da
psicologia enquanto saber acerca do subjetivo, o que a impele a se tornar uma
subdisciplina das neurociências. Isso por si só já se apresenta como um importante
passo para a possibilidade de uma psicologia que almeje se estabelecer em novos
termos; uma psicologia que não se paute mais por conceitos caducos e inverossímeis,
que de uma forma ou de outra sempre apelam para alguma natureza interna
substancializada para fazer valer a si mesma como ciência e saber acadêmico. Aqui será
tentado um modo de leitura que se posicione em sintonia com as conquistas
heideggerianas e suas consequentes repercussões para a psicologia como um todo.
A presente dissertação é um texto voltado fundamentalmente para psicólogos.
Ela é um texto que intenta tornar o mais visível possível o modo como o pensamento
heideggeriano pode fornecer elementos para uma psicologia ainda em construção; uma
psicologia que em meio aos acontecimentos contemporâneos se envergonhe, ou bem de
ser posicionada como uma subdisciplina das neurociências, ou de fornecer “saberes”
acerca do espaço subjetivo. Tendo em vista o cumprimento da tarefa acima descrita, será
necessário trilhar um percurso que leva das influências heideggerianas mais imediatas
(Husserl e Dilthey) na direção de um breve esclarecimento de sua metodologia
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fenomenológico-hermenêutica de questionamento e seu respectivo modo de se por de


forma mais originária em relação ao ente humano. A necessidade de chamar tais autores
para cena não se deve a nenhuma pretensa, e falsa, erudição ou a uma perda de tempo
desnecessária, mas ao fato de tais autores, a partir de seus pensamentos, conseguirem de
algum modo facilitar o acesso ao que Heidegger, de maneira bastante original,
desenvolve em seu método de investigação. Isso se dá pelo fato de que tal pensamento
se apresenta como um decidido passo na direção da reconquista de experiências
existenciais fundamentais, perdidas ao longo da tradição ocidental de uma maneira
geral. Experiências estas exaustivamente tematizadas ao longo do trabalho
heideggeriano como um todo. A fundamentação e o desenvolvimento de seu
pensamento serão feitos, predominantemente, com base nos livros Ser e Tempo (1988) e
Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo - Finitude - Solidão (2003). Como
ficará evidente ao longo do texto, o presente trabalho acontecerá em diálogo constante
com a filosofia, e isto por um motivo simples: o pensamento e as contribuições de
Heidegger para o saber social e a psicologia de uma maneira geral, necessariamente
trazem consigo esse diálogo, de um tal modo que as fronteiras entre filosofia,
pensamento social e psicologia, a partir do labor heideggeriano, se veem, de pronto,
abaladas pela força do que se apresenta como digno de questão: a abertura de uma
época afinada pelo tédio e suas consequências correspondentes.
Como foi dito acima, embora o enfoque argumentativo seja explicitamente
heideggeriano, será importante o desenvolvimento, mesmo que breve, de autores
decisivos para uma compreensão mais bem estruturada do que propriamente o
pensamento heideggeriano é voz, e do que se tem em vista quando se tematiza o tédio.
Tais autores são Wilhelm Dilthey, vinculado à escola hermenêutica de pensamento, e
Edmund Husserl, vinculado à fenomenologia. Eles serão articulados de acordo com
aquilo que diferem e também contribuem para o nascimento do pensamento
fenomenológico-hermenêutico heideggeriano. Apenas de modo introdutório e dito de
maneira rápida, a filosofia de Dilthey é importante no sentido de vincular a existência
humana uma necessária e inalienável estruturação histórica, estruturação essa que
invariavelmente “atravessa” o homem em sua singularidade. Por mais que o trabalho
diltheyano tenha caráter fragmentário, de modo que seja possível dividir seu caminho de
pensamento em muitas partes de difícil reunião, uma tônica contínua de seu labor é
justamente a presença constante do elemento histórico. O elemento histórico como
momento essencial da existência humana, longe de ser uma obviedade, só adentra
9

decididamente o âmbito filosófico no século XIX com Hegel. Até então, a busca era por
uma filosofia isenta e asséptica que atingisse plenamente respostas definitivas para suas
questões, desconsiderando qualquer elemento que se vinculasse a alguma
“contaminação” histórica. Ao trazer para jogo o elemento histórico, um passo decisivo é
dado na direção de considerar a experiência humana como invariavelmente datada,
finita e contingencial. A par da conquista hegeliana, Dilthey a absorve em seu
pensamento, de um tal modo que, para ele, o homem é desde sempre constituído por
uma determinada rede significativa que o atravessa. Tal rede nunca é absoluta, no
sentido de ser estática, pelo contrário, ela é sempre móvel e passível de ser
ressignificada e, justamente por isso, histórica. No fundo, Dilthey revela o cerne
histórico, não só da vida, mas também do pensamento e da vontade humana. É a partir
dessa característica histórica da experiência humana que Dilthey propõe uma distinção
entre ciências humanas e ciências da natureza: ciências humanas necessariamente
partem da compreensão de uma rede significativa prévia que orienta as práticas
humanas em geral, enquanto ciências da natureza partem do princípio de tirar de seus
objetos de estudo qualquer elemento histórico que “contamine” a pretensão científica de
respostas certas. Dilthey reconhece na filosofia de seu tempo justamente a necessidade
de delimitação dos limites e diferenças entre ciências humanas e ciências naturais, uma
vez que o fato humano é essencialmente histórico e o seu conhecimento deve se dar por
compreensão, enquanto os objetos da ciências precisam ser retirado de tal dinâmica
histórica para serem válidos enquanto objetos científicos e se estabelecerem no âmbito
da explicação.
Além de Dilthey outro filósofo importante para o pensamento heideggeriano é
Edmund Husserl, em razão disso haverá, também, a preocupação em desenvolver, de
acordo com os aspectos que interessam ao presente trabalho, a sua filosofia. Sua
importância se dá pelo fato de o método fenomenológico se construir contra uma
querela clássica no interior da filosofia: a briga entre concepções realistas e idealistas
acerca da possibilidade de conhecimento do mundo. Como será visto ao longo do texto,
tal briga ganha contornos diferenciados no decorrer do século XIX. Resumidamente, o
que há é a impossibilidade de se chegar a alguma conclusão que não deturpe o sonho
filosófico de chegada ao conhecimento “puro”: o idealismo pela contaminação da
realidade a partir do aparato perceptivo e o realismo pela impossibilidade de retirar da
experiência localizada noções gerais (CASANOVA, 2014). Até o fim do século XIX tal
conflito não se decide e, muito pelo contrário, só indica que suas aporias não levam a
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decisões seguras. Tal situação no fundo depõe contra a pretensão filosófica de dar conta
do todo e da possibilidade de conhecimentos absolutos. Surge, então, a presença
avassaladora do positivismo e a postura de não mais se dedicar a questões de cunho
metafísico ou absoluto, mas apenas criar condições que permitam a certificação de
análises pontuais e seguras no interior de seu próprio campo de análise. A tentativa
husserliana é a de vincular qualquer tipo de ciência ao vínculo mais fundamental
possível, isto é, ao vínculo da percepção enquanto ato. Com a atenção voltada para tal
problemática Husserl promove o reencontro do homem com o ente sem intermediações,
retorno que a filosofia de seu tempo ignorara e que, posteriormente, ganharia novos
contornos com uma radicalização ainda maior feita por Martin Heidegger.
O trabalho consistirá em cinco capítulos. No primeiro dar-se-á a exposição
concisa do pensamento de Dilthey e de Husserl. Não será o objetivo do capítulo esgotar
o pensamento de ambos os autores, o que será buscado será elencar pontos úteis para o
desenvolvimento do pensamento heideggeriano e para o tema geral do trabalho. Como
já foi brevemente antecipado, será importante trabalhar com Dilthey de modo que seja
possível tornar clara a importância do horizonte histórico na dinâmica constitutiva do
homem. Será indicado como Dilthey trabalha com a noção de que um pensamento
isento de historicidade não se faz possível, uma conquista que por si só tem muito a
contribuir ao pensamento de Heidegger. Também no primeiro capítulo será enfatizado o
retorno ao elemento sensível da percepção, promovido por Husserl, a partir do método
fenomenológico. Será mostrado que compreender Husserl, de início, é compreender que
todo fenômeno é caracterizado como ato intencional que se determina a partir de si, da
maneira em que ocorre propriamente no ato vivencial, considerando que toda atitude
teórica abre mão do fenômeno enquanto fenômeno. Husserl busca permitir àquilo que se
dá a vigência de si enquanto tal, para além de posições teóricas sobre experiência
humana. Essa postura husserliana é pioneira no sentido de indicar, por meio não teórico
e sim descritivo, a natureza ekstática da percepção humana, entendendo consciência
como ato intencional. Claramente, com isso se busca fugir do conceito moderno de
sujeito substancializado anterior ao fenômeno propriamente dito; a noção de “eu” como
previamente dada e conquistada antes mesmo de o fenômeno se dar como fenômeno.
Husserl conquista o “eu transcendental”, o “eu” que se dá na mesma medida em que se
reconhece como ato intencional, anterior a qualquer posição teórica, seja
“internalizante” (idealista) ou “externalizante” (realista). Ainda no final do primeiro
capítulo, será indicado como Heidegger se apropria tanto de Dilthey quanto de Husserl,
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Heidegger reconhece em Dilthey, em sua chave ciências humanas/ciências da natureza,


a falta de um modo explícito de como o homem acontece a partir de uma rede
significativa, além de uma recaída em amarras explicativas da natureza humana (por
mais que Dilthey tenha buscado, por meio da compreensão, fugir de tal papel). No que
tange a Husserl, Heidegger reconhece ainda um vínculo excessivo com a noção de “eu”
do “eu transcendental”, além de considerar que Husserl desconsidera em seu labor o
elemento histórico como essencialmente constituinte da experiência humana.
O segundo capítulo, dará conta da introdução daquilo que se apresenta como
propriamente necessário para a presente interpretação do tédio: o pensamento
heideggeriano. A obra a ser evidenciada será Ser e Tempo, uma vez que lida
intimamente com os pensamentos em questão e reposiciona a discussão acerca do
homem em termos tão originais, e originários, que torna quase impossível o retorno e a
aceitação pura e simples da fenomenologia e da hermenêutica, suas disciplinas
predecessoras. Será indicado como, a partir da junção das duas disciplinas, Heidegger
consegue abrir mão da noção de sujeito, aceitando o fenômeno a partir de si mesmo ao
modo do pensamento husserliano, bem como vinculando tal experiência a um
determinado horizonte histórico, ao modo do pensamento diltheiano. O termo utilizado
por Heidegger para caracterizar tal modo de ser do homem é ser-aí (Dasein). O conceito
explicitado tem como característica reunir as ideias de abertura de um campo de
mostração fenomênico, estruturado por meio de um horizonte histórico fático que
determina o modo do que se abre ao ser-aí. Será indicado como tal noção implode a
possibilidade de se pensar e se fazer psicologia pautado em concepções
“internalizantes”, o que exige da psicologia um posicionamento em relação aos seus
próprios preconceitos firmemente arraigados e defendidos, e que hoje começam a
apresentar seus primeiros sinais de fadiga.
O terceiro capítulo trará a introdução ao conceito de tonalidade afetiva em geral,
e a do tédio em específico. Como o segundo capítulo indicará, a noção de ser-aí,
presente em Ser e tempo, traz consigo a ruína de qualquer investida solipsista da
existência, a ruína da validade de um âmbito completamente apartado e reservado do
acontecimento de abertura de mundo que o ser-aí ele mesmo é. Tal impossibilidade de
ser outra “coisa” senão abertura de mundo exige que se pense o modo como tal abertura
se vincula a um tom específico, já que a ideia de uma abertura neutra é prontamente
refutada como ingênua. Será exposto como o tom da existência humana se estabelece,
não a partir de concepções como sentimentos e afetos que por si só reeditam um modo
12

dicotômico de entendimento do homem como separado do mundo, mas em meio à


abertura dos entes. Será visto que tonalidade afetiva diz respeito ao modo como o ser-aí
sempre se encontra de alguma maneira “sintonizado” com a existência que ele mesmo é.
Tonalidade afetiva, em suma, é o tom em meio ao qual e a partir do qual o homem desde
sempre acontece faticamente em sua existência. É a tonalidade afetiva que permite a
experiência existencial propriamente dita, já que é pelo tom de sua própria existência
que o homem se movimenta. A partir dessa concepção de tonalidade serão
desenvolvidas as três formas de tédio que Heidegger aponta no livro Os conceitos
fundamentais da metafísica, são elas: ser-entediado-por, entediar-se-junto-a e tédio
profundo. No ser-entediado-por, Heidegger evidencia uma situação na qual o homem se
vê forçado a encarar um espaço que perde seu sentido de ser, deixando o homem à
deriva de coisa alguma: uma estação de trem cujo trem não tem hora pra chegar. O que
Heidegger tenta mostrar com essa situação aponta na direção de uma delimitação do
modo como o tédio se abate ao ser-aí, i.e., ao modo da serenidade vazia e da retenção
do tempo. Tais expressões serão desenvolvidas em seu devido lugar, o que importa
agora é considerar esse duplo modo do tédio invariavelmente se dar. No que tange ao
entediar-se-junto-a, a situação de tédio não é imposta ao ser-aí por meio de uma situação
qualquer, mas o próprio ser-aí busca para si mesmo o tédio. Esse tédio é o tédio das
diversões cotidianas que buscam incessantemente aplacar um acontecimento que
atualmente diz respeito a todos: o tédio profundo. Tédio profundo, por sua vez, tem a
ver com a radical indiferença em meio a qual o ser-aí se encontra articulado com o
espaço existencial que ele mesmo é. No fundo, as duas primeiras formas de tédio se
relacionam de maneira fundamental com a terceira, uma vez que é a terceira forma que
fundamenta o acontecimento de ambas. Será por fim mostrado no terceiro capítulo que
ao menor sinal do tédio profundo o ser-aí contemporâneo já sempre recuou em direção à
distração, tamponando com isso a possibilidade do tédio poder, de fato, ser vivido e ter
“algo a dizer”.
A partir disso, será indicado no quarto capítulo como que a instauração do tédio
nasce de um esquecimento do homem acerca de sua essência existencial mesma, a partir
de uma abertura de mundo que dificulta ao extremo tal experiência, fato que
propriamente caracteriza a era da técnica. No quarto capítulo será preciso fazer uma
junção da tonalidade afetiva do tédio com o horizonte histórico da técnica. Trabalhar
com a afinação do tédio e a noção de era da técnica aponta para uma importante
mudança no caminho heideggeriano. O texto heideggeriano que versa sobre o tédio (Os
13

Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo – Finitude – Solidão) data do início da


década de 1930, década esta que demarca uma clara mudança de acento em relação ao
pensamento presente em Ser e Tempo (publicado originalmente em 1927). Até 1930,
antes de priorizar a tematização dos horizontes históricos e suas transformações,
Heidegger acentua a experiência singular do ser-aí. Heidegger agrega importância ao
fato de que, conjuntamente a singularização do ser-aí, acontece também a rearticulação
do espaço que cada ser-aí desde sempre é. Desta forma, a tonalidade afetiva da angústia
e a possibilidade da singularidade ocupam posição primordial em relação à
transformação do horizonte mais imediato que constitui o homem. Qualquer
transformação do campo existencial ou do horizonte histórico exige, a princípio, uma
transformação singular. Portanto, até a década de 1930, a possibilidade de se falar em
horizontes históricos e decisões históricas transformadoras passa necessariamente pela
possibilidade da experiência da negatividade constitutiva do ser-aí, que por sua vez seria
capaz de rearticular o campo mesmo no qual o ser-aí se insere. No entanto, após meados
de 1930, Heidegger identifica em tal compreensão das coisas um impasse: como é
possível que, diante de inúmeras singularizações, um mesmo horizonte histórico
permaneça o mesmo? Como seria possível estabelecer relações entre transformações
singulares distintas e a mudança de uma mesma época? É evidente que cotidianamente
há inúmeras singularizações, no entanto elas são insuficientes para rearticular, por elas
mesmas, um mesmo horizonte histórico. Caso fossem suficientes para tal rearticulação,
seria preciso pensar, então, um mundo no qual cada manhã se apresentasse como uma
época inteiramente inédita. Como se sabe, algo desse tipo não é possível. Tendo tal
problema em vista, Heidegger pensa a noção de acontecimento apropriador (Ereignis).
O termo citado se caracteriza como uma radicalização da própria noção de ser-aí.
Enquanto que com a ideia de ser-aí Heidegger ainda se preocupava demasiadamente
com o movimento de singularização e com a atividade humana de busca por uma
maneira mais própria de existência, com o acontecimento apropriador há uma entrega
definitiva ao espaço e a forma como o espaço requisita, ele mesmo, o homem a partir de
si. Tal noção posiciona o homem não mais como o agente transformador do mundo, mas
como expressão da transformação do mundo. A mudança descrita permite o que se
chama de “primeiro” e “segundo” Heidegger: em um primeiro momento envolto em
questões sobre a singularidade, e em um segundo momento decididamente debruçado
sobre questões mais fundamentais, que apontam na direção do envio histórico ocidental.
Será mostrado como a noção de acontecimento apropriador se vincula ao que Heidegger
14

chama de essenciar-se do ser, e como, em meio ao essenciar-se do ser o homem


conquista a si mesmo. Não será o intuito de tal parte do texto uma postura
extremamente ácida e crítica ao horizonte histórico da técnica, mas apenas a indicação
de como a tradição ocidental se organiza em torno do projeto histórico de esquecimento
e abandono da questão do ser. Não haverá a intenção de indicar uma vilania da técnica,
uma postura desse tipo indica de forma latente a desconsideração da técnica como
figura possível da verdade, e se resume a um modo histérico e infrutífero de relação
com o que se abre hoje como época histórica.
No quinto, e último capítulo, será indicado o duplo problema pelo qual a
psicologia atualmente passa. O primeiro deles já foi indicado nos primeiros capítulos,
i.e., a impossibilidade de se construir um saber de cunho interno, uma vez que tal
dicotomia homem-mundo não mais se sustenta após a leitura atenta dos escritos
heideggerianos. Um segundo problema para a psicologia se mostra em função do
próprio modo como a abertura epocal da técnica se estrutura: ela impõe uma
aproximação do modo de ser do homem ao modo de ser do animal, com isso, mesmo
uma tentativa de manter a psicologia como ciência do âmbito particular, interno,
subjetivo; fracassa. Ela invariavelmente fracassa pelo fato de o movimento irrefreável
da técnica medianizar o ser-aí, tornando-o qualquer um, um ente meramente vivo. Esse
movimento não permite espaço de reserva subjetivo, pois a técnica, orientada
incessantemente pela promoção de medianidade, rompe com qualquer paradigma que
interrompa tal fluxo de radical vulgarização do ser-aí ao nível-limite do critério
biológico. Com isso, mesmo uma tentativa em insistir na psicologia como saber inerente
ao âmbito da subjetividade não pode ser levado a cabo, pois na era da técnica é o
critério biológico que fornece a última palavra, não há mais ouvidos para os caprichos
das teorias da subjetividade e seus “saberes” extremamente discutíveis. Em um tal
cenário duro golpe-duplo, a psicologia se encontra diante de algumas questões que
precisam ser levantadas para a urgente tomada de novos rumos.
15

1 PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS AO PENSAMENTO HEIDEGGERIANO

Traz mau apreço ao mestre


quando se permanece
sempre e somente aluno.
Friedrich Nietzsche

1.1 Husserl e a fenomenologia

Como foi adiantado na introdução, o pensamento de Husserl se constrói a partir


de uma crise da filosofia. Há um embate clássico no interior da filosofia que data desde
a Grécia antiga: o embate entre realismo, a princípio aristotélico e idealismo,
inicialmente platônico. Não cabe aqui desenvolver se o pensamento de Platão é
evidentemente idealista ou se o pensamento aristotélico é realista, mas o fato é que tal
cenário se descortinou no desenvolvimento da filosofia de um tal modo que
tradicionalmente tais filósofos foram posicionados antagonicamente. O desenrolar de
tal rixa teórica culmina com o que é chamado de “crise dos universais” do século XIX
(CASANOVA, 2014). Tal crise se configura como uma insuficiência da filosofia em
fornecer respostas seguras para suas pretensões de assepsia do conhecimento. O que no
fundo acontece é que ambas as posturas teóricas encontram limites a partir dos quais
nenhuma saída se apresenta como viável, ambas “contaminam” a pretensão de
conhecimento. No que tange ao idealismo, seu pecado é o que se chama de problema do
acesso: como é possível a saída de um âmbito interno para um objeto externo a própria
percepção deste mesmo objeto? Como é possível construir uma ponte segura que leve
do externo para o interno, sem que essa saída falsifique o próprio objeto? Até Husserl,
tal problema nunca encontrara tematização radical o suficiente na história da filosofia.
O segundo problema nasce do extremo oposto, ou seja, do realismo: é a partir do espaço
empírico que se atinge o conhecimento. O problema dessa visão é que nunca se atinge
conhecimento absoluto algum. Todo conhecimento advindo da certeza empírica é
passível de contestação, uma vez que ele sempre pode se restringir ao mero campo em
que aparece, invalidando, assim, a possibilidade de induções universais. Percebe-se
16

claramente com isso por que tal crise se chama crise dos universais, pois a filosofia se
encontra em um caminho sem saída em relação a sua pretensão mesma de fundamentar
qualquer tipo de conhecimento absoluto. O resultado de tal crise para a filosofia é
bastante forte:

Neste sentido, a partir da superação moderna dos realismos da tradição antiga


e medieval e do esgotamento dos idealismos metafísicos modernos, a
filosofia se viu, para Husserl, diante de um dilema incontornável. Ou bem ela
precisava se resignar à impossibilidade de alcançar um conhecimento
rigoroso acerca dos objetos, uma vez que ela nunca conseguia efetivamente
superar os resíduos de seus posicionamentos hipostasiantes, ou bem ela
precisava encontrar uma forma diversa de se posicionar em relação a esses
objetos em geral. Dito de maneira ainda mais expressa, a filosofia precisava
buscar uma via alternativa ao modelo teórico tradicional e aos
desdobramentos realistas e idealistas. Caso ela não encontrasse essa via
alternativa, não lhe restaria outra coisa senão sucumbir juntamente com as
consequências céticas desse modelo (CASANOVA, 2014, p. 78-79).

Alinhada à crise pela qual a filosofia passa, a postura metodológica do


positivismo ganha espaço: se de todo modo não é possível conhecimento universal, o
que passa a importar é certificação e a segurança com a qual os mais variados “recortes”
da realidade se estabelecem. O positivismo tem a posição clara de abandono de qualquer
pretensão ontológica de conhecimento; não importa mais lucubrações profundas e
exaustivas sobre a totalidade, mas a delimitação segura de regiões cada vez mais
específicas da vida humana. Não é a toa que o século XIX como um todo é conhecido
por uma “explosão” de disciplinas acadêmicas, dentre elas a própria psicologia. É assim
na medida em que o que se torna imperativo é busca por certificações seguras das mais
diversas áreas da realidade. Isso gera um cenário amplo e desordenado de disciplinas,
que tendem à desarticulação em relação umas as outras.
A par de tal crise vivida pela filosofia e pelas ciências em geral, Husserl busca
alguma saída sólida que consiga superar o beco sem saída no qual a filosofia havia se
encaminhado. O todo desordenado no qual a academia havia se posicionado deveria ter
um solo rigorosamente estabelecido1. Talvez por afinidade de projeto de pensamento,
Husserl procura de início em Descartes o rigor necessário para o seu próprio
pensamento, o que posteriormente resulta na negação das principais bases que seu
inspirador estabelecera. Husserl desenvolve explicitamente uma metodologia que
retoma o caminho das Meditações Metafísicas, de Descartes, no intuito de traçar mais

1
Interessante considerar como o projeto husserliano se afina com o projeto cartesiano: ambos, em épocas
distintas obviamente, buscaram a refundamentação do solo filosófico: Descartes por não aceitar as bases
do pensamento medieval e Husserl por não aceitar as bases do pensamento cartesiano.
17

sistematicamente os contornos de um novo método. A expressão “às coisas mesmas”


(HUSSERL, 1988) cunhado em uma de suas principais obras, Investigações Lógicas, dá
a tônica daquilo que seu novo pensamento busca: algo revolucionário. Ela incita o
pensamento a buscar aquilo que de fato se mostra e deve se mostrar como passível de
ser pensado em si mesmo, como cerne de toda e qualquer argumentação filosófica ou
científica. Era preciso reeducar o homem a pensar em bases efetivamente sólidas que,
segundo Husserl, se “entulharam” com o tempo: tais bases seriam as coisas nelas
mesmas.
Reside no que foi dito acima um detalhe que muito provavelmente pode induzir
em erro. O pensamento husserliano não diz respeito a um pensamento de inspiração
realista que busca e encontra no mundo dados brutos, empiricamente comprovados.
Pelo contrário, voltar às coisas mesmas é recusar as caducas argumentações doutrinárias
e os antigos sistemas filosóficos pré-fixados, em proveito das interrogações suscitadas
pelo mundo sempre presente e das quais a reflexão invariavelmente se alimenta. Há aqui
uma crítica aos pensamentos tradicionais, que se estabelecem como simples conceitos
que se fecham em uma posição interna coerente, regida por concepções meramente
lógicas e abstratas de verdade, ou seja, Husserl quer depor contras as meras teorias.
Husserl pleiteia os direitos de um pensamento cuja fonte seja a própria experiência e de
seu critério interno mais fundamental: a intuição.

Já nas Investigações Lógicas (Tomo 2, 1ª parte) Husserl dizia: “Significações


que não fossem vivificadas senão por intuições longínquas e imprecisas,
inautênticas – se é que isto acontece através de intuições quaisquer – não nos
puderam satisfazer. Nós queremos voltar às coisas mesmas”. Segundo
Husserl, o discurso filosófico sempre deve manter contato com a intuição. Do
contrário redunda em conversa vazia. O retorno à intuição originária é a fonte
de verdadeiro conhecimento (ZILLES, 2002, p. 18-19).

E ainda:

Ao encetar a crítica do conhecimento, importa, pois, adjudicar o índice da


questionabilidade a todo o mundo, à natureza física e psíquica e, por fim,
também, ao próprio eu humano, juntamente com todas as ciências que se
referem a estas objetalidades. A sua existência, a sua validade ficam por
decidir (HUSSERL, 1986, p. 53).

Husserl aposta na força intuitiva do conhecimento. Um objeto não é conhecido


no sentido mais radical do termo, a não ser que ele seja dado em uma evidência intuitiva
que resulte de um testemunho em primeira pessoa. O sentido da palavra “intuitiva” não
18

remete ao interior de uma subjetividade, mas ao próprio ato originário de conhecimento


do mundo. Aqui uma primeira ruptura com a tradição se apresenta. Tradicionalmente,
conhecimento seria a completa transparência entre razão e objeto, ou seja, levar-se-ia
em conta uma instância interna racional capaz de promover, a partir da razão e seu
correto direcionamento, o encontro com o que é verdadeiro no mundo. Para Husserl
esse ato intuitivo já se dá no próprio fenômeno, não é preciso uma enunciação sobre o
fenômeno para que ele se torne válido, mas sua validade já foi intuída desde o início, no
ato perceptivo.
É por isso que a fenomenologia se inscreve como um pensamento revolucionário
em comparação com o que estava em voga no seu tempo. Para o pensamento até o final
do século XIX a experiência sensível e intuitiva seriam meras instâncias secundárias
derivadas de conceitos apriorísticos quaisquer. Conhecer seria conhecer por conceitos a
partir de definições propostas previamente, ao invés de provadas de acordo com aquilo
que se experimenta vivencialmente. Aqui acontece uma das principais rupturas
promovidas pela fenomenologia: a busca por um pensamento que prescinda de atitudes
teóricas e se atenha ao que de fato é experimentado. Isso faz com que todo o legado
moderno entre em cheque, uma vez que, desde Descartes e sua dicotomia res cogitans e
res extensa, a postura filosófica fundamental se baseou em certezas e preconceitos
históricos bastante enraizados em tal dicotomia homem/mundo, na ideia de um “eu”
subjacente com características aprioristicamente dadas ou um mundo “lá fora”
simplesmente dado com propriedades particulares. O pêndulo realismo/idealismo vive
em torno de tal querela, que naturalmente nunca se resolve de maneira plena, uma vez
que se estrutura em torno de um falso problema.
Diante da postura de retorno às coisas mesmas, uma atitude que se faz
fundamental para tal empresa é a atitude descritiva. Tal atividade consiste em dizer
aquilo que é “visto” sem negligenciar qualquer faceta do fenômeno, na tentativa de ser o
mais completo possível sem preenchê-lo com traços teóricos inventados, que não façam
parte da experiência efetiva do homem. Em suma, tal atitude supõe muita autenticidade
e transparência em relação ao que de fato se dá na vivência, uma postura até então
claramente em declínio, não por má-fé, mas em virtude do acúmulo de vícios e
pressupostos teóricos que turvam a visão do simples e imediato.
Descrever, no entanto, não é possível sem antes buscar a suspensão de todos os
valores naturais com os quais corriqueiramente se trabalha. Husserl quer abdicar das
atitudes naturais de entendimento do mundo. Essa suspensão recebe o nome de epoché.
19

Husserl toma emprestado o conceito grego de epoché (entendido na filosofia antiga


como suspensão de qualquer juízo conceitual sobre a realidade) e desenvolve aquilo que
acredita ser o caminho seguro para proceder a uma análise filosófica que pudesse
atender às exigências do rigor verdadeiramente fundamentado que almejava alcançar.
Epoché, no sentido fenomenológico, visa colocar entre parênteses a crença em toda
realidade do mundo. Isto quer dizer que não se deve fazer juízo algum sobre o mundo e
tudo aquilo que nele se inclui. O que há é a suspensão das mais convincentes evidências
filosóficas e científicas, uma vez que tanto a filosofia tradicional, quanto as ciências
naturais alimentavam-se deste mundo que, em Husserl, entra em questão. Uma
consideração rigorosa do conhecimento deveria partir da absoluta e total falta de
pressupostos2.

[...] em nossas afirmações fundamentais nada pressuporemos, nem sequer o


conceito de Filosofia, e assim queremos ir fazendo adiante. A epoché
filosófica, que nos propusemos praticar, deve consistir, formulando-a
expressamente, em nos abstermos por completo de julgar acerca das
doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas
descrições no âmbito desta abstenção. (HUSSERL apud ZILLES, 2002, p.
22).

A abstenção em relação ao posicionamento de seu próprio pensamento se deve a


mesma postura que se abstém de todo e qualquer posicionamento teórico sobre o mundo
e o homem. Evidentemente, isso não quer dizer que se deve negar a existência do
mundo ou do homem, o que seria impossível, mas simplesmente que tudo deve ficar em
suspenso. Tradicionalmente, como já foi visto, há uma descontinuidade entre o “eu” e o
“mundo” de modo que toda tentativa de junção permanece inoperante: resulta sempre na
impossibilidade de conhecer o que quer que seja de maneira plena. Na atitude natural
forma-se um abismo entre ambos, e disso resulta a pergunta de como fica o
conhecimento se o objeto permanece em um continente separado por um fosso. Impõe-
se para ele uma solução na relação entre mundo interior e exterior. Husserl pretende
resolver o problema superando tais orientações internalizantes, se orientadas pelo
idealismo, ou realistas, se orientadas pela crença no mundo empírico. No entanto, para
combater a ideia de realismo, Husserl não tenta abdicar do mundo em si mesmo. Para

2
Rebater a postura fenomenológica de ausência de pressupostos sob a argumentação de que “não ter
pressupostos já é um pressuposto” é apelar para uma argumentação vazia e sem vínculo com oque de
fato é pensado por Husserl e que, justamente por isso, se encontra distante do âmbito argumentativo
husserliano, se configurando dessa forma como desnecessária e infrutífera para aquilo que está em jogo
na fenomenologia.
20

ele é evidente que o mundo é, em si e por si, aquilo que é, quer se esteja presente ou
ausente. Relativamente a esta existência, Husserl suspenderá apenas o seu juízo, isso
também ocorrerá no que se trata da existência do próprio “eu”. Tal suspensão, como dito
acima, designada pela equivalente palavra grega epoché, já fora usada na antiguidade
pelos céticos na filosofia grega, que suspendiam ou se abstinham de qualquer
asseguramento por não reconhecerem razões decisivamente eliminatórias da incerteza
(REALE, 2011). Husserl a introduz, porém, não como instrumento de uma atitude
cética, mas de depuração em busca de um radicalismo em direção ao que pode se
mostrar como confiável.
Posto isto, o que é colocado entre parênteses não é negado, mas perde o caráter
de absoluto e inquestionável que lhe é atribuído na atitude natural e passa a valer como
fenômeno da consciência. Na atitude fenomenológica propiciada pela epoché, o modo
de visão do mundo sofre uma transformação radical: deixa-se de aceitar a evidência da
existência das coisas, deixa-se de lidar com o mundo físico e passa-se a lidar com o
mundo da consciência, formado pelas vivências do sujeito.

[...] em vez de possuir o mundo de um modo ingênuo e de propor questões


ingênuas sobre o mundo, propomos agora novas questões sobre o mundo que
puramente em nós, e primeiro de mim e em mim, adquiriu sentido e valor;
em mim, notemo-lo bem, como eu transcendental. (HUSSERL, 1941 apud
FRAGATA, 1959, p. 81).

Com isso, fica claro que a epoché reflete a mudança de atitude necessária para o
empreendimento proposto por Husserl, qual seja, a migração da atitude natural, que
posiciona mundo como algo pré-concebido, para a atitude fenomenológica, que entende
mundo como ato de consciência. O mundo da atitude natural não é só exterior, seu
modo de reflexão faz com que o eu se remeta a si mesmo e para a sua própria imanência
como algo sólido. Para Husserl, toda a posição da natureza deve ser hibernada, e,
portanto, também a existência de si mesmo que reflete. Deste modo, como está acima
indicado, atinge-se o “eu” absoluto ou transcendental e, com ele, o âmbito da
experiência genuinamente confiável. Este “eu”, assim depurado, torna-se apenas
concebível na sua relação ao “objeto”, o qual já também não é um objeto mundano,
existente no sentido empírico da palavra, mas um “objeto” puramente intencional. Com
isso, Husserl reposiciona a própria noção de consciência: se tradicionalmente
consciência era entendida como algo previamente constituído, como faculdade interna
do sujeito, agora consciência é entendida como ato que em si mesmo possibilita a
21

projeção posterior de algo como um eu ou um objeto. Surge a noção de consciência


enquanto ato intencional deixando de ser, com isso, uma faculdade mental.
Husserl acredita ter atingido, assim, o “eu” verdadeiramente radical, só
inteligível na sua explicitação plena. Como foi visto, Husserl começa pelo
absolutamente radical, pondo “entre parênteses” não só o mundo, mas o eu na sua
radicalidade total enquanto existente no mundo. Neste exercício radical da epoché
atingem-se os fenômenos verdadeiramente puros, pois só se leva em consideração
aquilo que é dado com plena evidenciação. O “eu”, assim depurado, é o “eu puro”, apto
a conhecer sem vícios, como expectador desinteressado ou imparcial, tudo o que se
apresenta como é, ou seja, tudo o que do fenômeno brota. O que acontece é a inserção
do “eu” em uma nova atitude oposta à natural: o “eu” em atitude fenomenológica ou
transcendental.
Deste modo, Husserl acreditava que teria atingido o último fundamento que
verificava todas as condições requeridas para a construção de uma filosofia rigorosa e
que fundamentasse todas as disciplinas acadêmicas em gênese: a aprioridade absoluta
numa ausência radical de pressupostos, e evidência imediata, plenamente garantida
contra a intromissão de qualquer pressuposto. Assim, compreende-se melhor o sentido
da epoché husserliana. Por meio dela, não se renuncia propriamente ao mundo, mas
apenas, à maneira ingênua e corriqueira de considerá-lo. A própria postura de
distanciamento do mundo, de modo a buscar sua cristalina compreensão transcendental
revela a concepção husserliana de que mundo é um ato de consciência e que necessita
de um espectador para se fazer presente na forma específica pela qual se presentifica,
nada além disso.
Graças à epoché mais radical é possível reconhecer o contato imediato com os
entes que se apresentam na sua evidência intencional mais originária, pois, em vez de
possuir-se gratuitamente o mundo, possui-se o ato intencional de consciência de mundo.
A fenomenologia não mais do que olha puramente para este ato, deixando-se orientar
por ele como se apresenta em sua virgem evidência, explorando e descrevendo as
riquezas deste mundo, que é a “consciência pura”. Deste modo, a partir do
questionamento radical da filosofia tradicional e de seus métodos, Husserl atinge aquilo
que imagina ser o seu ponto fraco: a abdicação ao fenômeno e a fundamentação de
todas as suas certezas em construtos teóricos desvinculados do mundo em seu caráter
perceptivo mais imediato.
22

1.2 Dilthey e a hermenêutica

Para falar sobre Dilthey é preciso falar primeiramente do caráter fragmentário e


de difícil acesso de seu texto. De fato, ao tentar-se percorrer, mesmo que rapidamente e
superficialmente, algumas de suas obras, sempre fica a sensação de que falta algum
plano ou projeto esboçado que permita um trânsito bem ordenado em torno de seus
escritos, de um tal modo que o que aqui será apresentado não tem como se mostrar de
outra forma senão de caráter parecido com o modo como o próprio Dilthey apresenta
seus textos: um tanto quanto desordenadamente. Isso não quer dizer que seu
pensamento seja incoerente, muito pelo contrário, e por isso mesmo que ele aqui será
brevemente explorado, o seu pensamento rende importantes frutos para filósofos
posteriores, dentre eles Martin Heidegger e Georg Gadamer.
Para começar é preciso considerar que o momento histórico no qual Dilthey
surge é o mesmo no qual Husserl se faz presente, i.e., meados do século XIX. Não à toa
os problemas com que lidam se afeiçoam, apesar de serem diferentes enquanto projeto
de pensamento. Dilthey, assim como Husserl, reconhece no estado filosófico de seu
tempo o predomínio do positivismo em relação a toda e qualquer postura reunidora do
todo que por ventura pudesse surgir como “elemento” estruturador do real. Dilthey
reconhece em tal característica do positivismo um problema que começa a ganhar forma
cada vez mais presente: a mutilação da realidade histórica. O positivismo, como já foi
visto no trecho designado a Husserl, é marca de um movimento de fragmentação do
todo, que desconsidera de forma a priori qualquer tentativa de pergunta pelo todo,
dando-se por satisfeito a circunscrever com exatidão apenas regiões específicas de
análise. Não apenas isso, o positivismo não apenas se caracteriza pela veia fragmentária
como também, pela submissão do homem aos conceitos e métodos das ciências
naturais, advindos desse mesmo movimento de fragmentação que passa a orientar
qualquer investida teórica sobre o homem. Desse modo, Dilthey reconhece a
necessidade de delimitar dois modos específicos de ciências, de um tal modo que possa
resguardar o homem da investida fragmentária e reducionista do positivismo, são elas,
as ciências naturais e as ciências humanas. Como fica dito no trecho abaixo:

A oposição diltheyana ao domínio do naturalismo imperante em seu tempo


espelha uma necessidade mais profunda de justificar a força independente da
realidade do mundo espiritual para a formação do pensamento filosófico.
23

Reconhecer a essência das ciências humanas significa, então, o mesmo que


definir os seus limites ante as ciências da natureza e, consequentemente, não
aceitar uma simples submissão das ciências do espírito aos métodos próprios
das ciências naturais (AMARAL, 1994, p. 12).

O que se entende a partir do trecho acima é justamente o fato de que Dilthey


reconhece a necessidade de fundamentar com clareza qual é agora o papel de seu
pensamento: o de inaugurar uma ciência que resguarde o modo próprio como o homem
se coloca no mundo de maneira concreta, i.e., desde sempre pensante, interessada e
afetiva e que se encontra indissoluvelmente ligado em meio a sua circunstância
histórica3. É contra um modo artificial de entender o ser humano que Dilthey se volta.
Ele considera que “nas veias do sujeito conhecedor construído por Locke, Hume e Kant
não circula sangue de verdade, mas sim a seiva rarefeita da razão, na mera qualidade de
atividade intelectual” (DILTHEY apud AMARAL, 1994, p. 14). Com isso ele quer dizer
que não é possível, de uma vez por todas, resumir o homem a qualidades abstratas ao
modo da filosofia tradicional, mas que o homem sempre se dá de maneira contingente,
interessada e afetiva. Reconhecer isso já torna o projeto de pensamento diltheiano algo
realmente ímpar, uma vez que sua força é de justamente recuperar o homem perdido em
meio a teorizações artificiais sem vínculo real com a experiência humana concreta, e de
libertar o homem das amarras positivantes resgatando o valor de sua experiência
concreta, sempre contingente, afetiva e interessada. A diferença básica entre os dois
modos de ciência que Dilthey propõe, tem a ver com o fato de as ciências humanas
necessariamente partirem da compreensão de uma rede significativa prévia que orienta
as práticas humanas em geral, enquanto as ciências da natureza se estruturam a partir do
princípio de tirar de seus objetos de estudo qualquer elemento histórico que
“contamine” a pretensão científica de respostas certas. Dilthey reconhece na filosofia de
seu tempo justamente a necessidade de delimitação dos limites e diferenças entre
ciências humanas e ciências naturais, uma vez que o fato humano é essencialmente
histórico e o seu conhecimento deve se dar por compreensão, enquanto os objetos das
ciências precisam ser retirado de tal dinâmica histórica para serem válidos enquanto
objetos científicos e se estabelecerem no âmbito da explicação.
No entanto, é preciso de algum modo se voltar para como afinal esse resgate do
homem seria possível. Algumas expressões presentes em seus textos dão aceno para
isso, “filosofia da experiência” e “filosofia da vida” dão a tônica da virada que Dilthey

3
Essa virada imposta por Dilthey repercute de forma essencial no trabalho de Heidegger, de forma que é
a partir daí que se torna possível a virada prática heideggeriana.
24

tenta imprimir à filosofia. No fundo, elas representam um protesto contra o excessivo


realce dado às faculdades meramente teóricas construídas pelas filosofias mais
tradicionais. Aqui não é muito difícil encontrar semelhanças com o projeto de
pensamento husserliano: ambos se caracterizam pela veia de retorno a um modo mais
originário de compreender o homem, i.e., para além de qualquer postura teórica. Mas
como especificamente Dilthey compreende essa virada? Em Husserl essa postura se dá
como saída da postural natural, rompendo com a dicotomia homem/mundo, dando
lugar, por meio da epoché, a uma experiência pura do “eu” transcendental, revelando
com isso o caráter intencional da experiência. Em Dilthey também há a preocupação
com a experiência dos fatos da consciência. No entanto, em Dilthey, essa experiência é
dada no interior da totalidade da vida psíquica, que constitui e são constituídas por um
processo histórico vivo e fluído. Com isso, um elemento novo vem à tona: o elemento
histórico, e não apenas isso, o elemento histórico necessariamente vinculado à vivência
imediata do homem.
Para Dilthey, a vida se desenrola em meio aos fatos históricos vivenciados
psiquicamente. É a partir da vivência psíquica imediata que o todo histórico se estrutura
e se organiza. Por isso Dilthey buscou na psicologia a fundamentação necessária para
impedir a desintegração das diversas disciplinas que em seu tempo surgiam. Seria pela
psicologia que uma postura reunidora do todo se tornaria possível. Como já é de se
imaginar, Dilthey rejeita a psicologia explicativa e construtivista, de cunho positivista, a
qual recorreria a um sistema de hipóteses análogo ao das ciências naturais. De um tal
modo que “de fato, as psicologias explicativas se baseiam em uma transposição
evidente daquilo que vale em relação à percepção exterior para a percepção interior”
(DILTHEY, 2011, p. 101), o que Dilthey quer dizer com isso é que por meio de uma
incompreensão do modo mesmo como a vivência humana se dá, ocorreria o equívoco de
uma postura que orienta o homem a se pautar na medida do que lhe aparece através da
percepção dos entes. Em função disso, para pensar e ser fiel a um determinado modo de
lidar com o homem em sua figura total seria preciso reconsiderar o modo como se
entende a sua disciplina de base, mais fundamental: a psicologia. Uma nova psicologia
teria como objeto a humanidade como um todo a partir de um método descritivo e
analítico das unidades vivas, psicofísicas (i.e. unidades espírito/corpo), que interagindo
uns sobre os outros reconstruiriam a “totalidade maravilhosamente entrelaçada que são
a história e a sociedade”. (DILTHEY, 2011, p. 25) A nova psicologia proposta por
Dilthey descobre, a partir disso, um movimento pendular que leva da experiência
25

vivencial mais imediata dos indivíduos psicofísicos para o campo universal a partir do
qual tais vivências se tornam possíveis, esse é o chamado círculo hermenêutico: a
vivência de uma rede universal pelo individuo, que em vivenciando um tal nexo
histórico é capaz de alargá-lo e modificá-lo. A partir de tais reconstruções entre
unidades psicofísicas e o todo histórico é possível reconstruir o nexo vital que atravessa
o todo relacional de uma época, numa expressão que ficou conhecida como “espírito do
tempo”. No entanto, o termo utilizado por Dilthey é visão de mundo (Weltanschauung).
Visão de mundo é o que se dá quando a vivência humana se estabelece por meio de um
determinado horizonte histórico contingencial. Para Dilthey, qualquer individuo em
qualquer tempo histórico é expressão de uma visão de mundo específica. Por fim, a
visão de mundo por sua vez é justamente o que resulta, em última análise, da atividade
hermenêutica homem/história, de um tal modo que a partir da compreensão da unidade
psico-física particular se reconstrói o nexo vital a partir do qual essa unidade pode se
estabelecer enquanto vivente. Essa, no fundo, é uma das grandes conquistas diltheianas:
a explicitação do caráter histórico das vivências humanas. Histórico é aqui entendido
como expressão de uma visão de mundo prévia a partir da qual uma vida se concretiza
em sua contingência, afetividade e interesse. Não há como, em função disso, pensar o
homem como desarticulado de algum tipo de horizonte histórico/visão de mundo em
sua vivência concreta.
Como foi anteriormente esclarecido, os pensamentos de Husserl e Dilthey foram
aqui tratados com alguma rapidez e de um tal modo que fossem realçados apenas os
pontos que pudessem vincular seus pensamentos ao surgimento do pensamento
heideggeriano. De modo que se possa seguir adiante no texto é preciso relembrar que, o
que foi conquistado por Husserl se refere ao caráter intencional e não empírico da
percepção humana, de uma forma tal que não há mais espaço para considerações
dicotômicas do tipo eu/mundo, mas apenas ato originário do “eu” transcendental. Em
relação à Dilthey o que se conquistou foi caráter hermenêutico da vivência humana, a
partir da relação entre homem e história, de um tal modo que, a partir de tal relação
circular, o que em última análise se delimita é a “presença” de uma determinada visão
de mundo, que se faz presente por meio de uma vivência concreta do nexo estrutural do
todo.
26

1.3 A fenomenologia-hermenêutica de Heidegger

O presente trecho do trabalho terá como finalidade introduzir o pensamento


heideggeriano a partir do que foi visto até aqui. Até o presente momento, foi visto o
pensamento de dois filósofos de influência mais imediata ao trabalho heideggeriano. No
entanto, Heidegger rearticula tais pensamentos de maneira singular, firmando um
caminho filosófico próprio. De maneira breve, o que Heidegger faz é unir o modo como
Husserl entende a abertura aos objetos, ou seja, enquanto ato que deve ser respeitado em
si mesmo, ao modo como Dilthey vincula as vivências humanas em geral à
determinação específica de um horizonte histórico que, em se abrindo, permite a
consolidação de uma rede significativa temporal em meio a qual o homem se estabelece.
A vinculação de Heidegger com a fenomenologia husserliana data do inverno de
1909/1910, quando a obra de Husserl Investigações Lógicas ocupou lugar diferenciado
dentre diversas leituras as quais se dedicava o até então desconhecido estudante de
teologia da Floresta Negra. Seu interesse pela obra se devia ao fato de considerá-la de
vital importância para a compreensão da dissertação Sobre o significado múltiplo do
ente segundo Aristóteles, de Franz Brentano. Obra esta que servia de principal auxílio
nas suas tentativas de adentrar ao mundo da filosofia. Da obra de Husserl, Heidegger
esperava um estímulo decisivo com relação às questões suscitadas pela dissertação de
Brentano, a principal delas dizia respeito a seguinte indagação: já que o ente é expresso
em múltiplos significados, qual seria o seu determinante significado fundamental?
Heidegger via no estudo da Fenomenologia uma possível saída para tal impasse.
Como o próprio Heidegger escreve no texto Meu caminho para a
fenomenologia, de início a leitura de Husserl trazia mais dúvidas que respostas, e sua
postura se tornara a de estudar a fundo a fenomenologia sem saber ao certo o que o
fascinava exatamente. A inquietação dizia respeito ao modo de proceder ao pensamento
fenomenológico, uma vez que o mesmo se autointitulava sem pressupostos. O primeiro
volume que Heidegger teve acesso, de 1900, trazia a refutação do psicologismo,
procurando mostrar que o pensamento e o conhecimento não poderiam fundar-se em
bases psicologizantes. Opondo-se a isto, o segundo volume, aparecido no ano seguinte,
continha a descrição dos atos conscientes essenciais para edificação do conhecimento
fenomenológico, logo, parecia impor-se uma psicologia. Heidegger identifica em tal
postura uma recaída. Husserl com a sua descrição fenomenológica dos fenômenos
27

conscientes, no fundo ainda permanecia preso à postura do psicologismo que


precisamente procurara refutar. Caso não fosse possível atribuí-lo tal erro, o que afinal
poderia significar a descrição fenomenológica dos atos conscientes? Além disso, como
se pode atestar um “eu” transcendental se o que se dá é o próprio ato de consciência por
si mesmo? Tal “eu” parece ser um elemento a mais desnecessário. Heidegger identifica
tal “eu” como resquício da tradição filosófica que o próprio Husserl intentava superar.
Estas questões atormentavam Heidegger e apenas em 1913 uma resposta se revelou. No
primeiro volume do Anuário de filosofia e pesquisa fenomenológica, Husserl escreveu
um tratado que manifestava o âmbito no qual a fenomenologia deveria se inscrever, o
mesmo dizia assim: Ideias a propósito de uma fenomenologia pura e de uma filosofia
fenomenológica. Para tal título Heidegger diz:

A 'fenomenologia pura' é a 'ciência básica' da filosofia por ela marcada. 'Pura'


significa: 'fenomenologia transcendental'. 'Transcendental' é a 'subjetividade'
do sujeito que conhece, age e valora. Ambos os títulos, 'subjetividade' e
'transcendental' indicam que a fenomenologia se encaminhava, consciente e
decididamente, na esteira da tradição da Filosofia Moderna. (HEIDEGGER,
2009b, p. 06)

Heidegger reconheceu na fenomenologia resquícios fragmentares do tipo de


pensamento que a própria fenomenologia buscava refutar, ainda assim Heidegger
manteve-se fascinado com aquilo que Investigações Lógicas irradiava. Suas páginas
provocavam uma certa inquietação que o próprio desconhecia a razão de ser, mas que
considerava certamente ter relação com a sua incapacidade de chegar a realizar
plenamente o processo de pensamento que se designava como “suspensão
fenomenológica”. A perplexidade desaparecera muito lentamente na medida em que
Heidegger entrou em contato direto com Husserl durante a sua atividade de docente na
Universidade de Freiburg. A proximidade de Husserl facilitou sua maior imersão no
“ver fenomenológico”, até que após anos de dedicação acadêmica, Heidegger
reconheceu a partir do trabalho husserliano uma ligação mais originária a respeito
daquilo que na fenomenologia era chamado de “automostrar-se dos fenômenos”: para
Heidegger o mesmo fora pensado na Grécia Antiga de maneira mais originária
atendendo por alétheia. Em grego, alétheia é o desvelamento do espaço aberto, o
desocultamento da physis, da natureza em sentido arcaico; seu mostrar-se mais
originário e puro. Portanto, o que Heidegger identifica na fenomenologia e sua
pretensão de “retorno às coisas mesmas”, na realidade aponta para uma experiência
28

grega “soterrada” e que clamava por ser novamente reexperimentada: a experiência do


acontecimento dos entes como um ato de desvelamento.
Aquilo que as Investigações lógicas, e o pensamento de Husserl como um todo,
redescobriram como a atitude básica do pensamento, revelou-se para Heidegger como
traço fundamental do pensamento grego, quando não da filosofia enquanto tal. Quanto
mais decisivamente esta convicção se definia, mais insistentemente retornava a questão
que perguntava sobre a maneira que se determinava aquilo que, de acordo com a
fenomenologia, deveria ser experimentado como “coisa mesma”? Seria ela a indicação
de um “eu” transcendental, ou seria abertura de mundo a partir de uma dinâmica de
desvelamento e ocultação? No que tange às perguntas suscitadas pela nova
compreensão da fenomenologia, Heidegger pôde iniciar um pensamento ainda mais
radical que o fenomenológico: “Deste modo fui levado ao caminho da questão do ser,
iluminado pela atitude fenomenológica [...]” (HEIDEGGER, 2009b, p. 498).
Em relação ao pensamento de Dilthey muitas semelhanças se fazem presentes.
Heidegger se apropria da noção de círculo hermenêutico, bem como da ideia de que o
todo se organiza em meio a uma relação estrutural de nexo, possibilitando, na
linguagem de Dilthey, uma visão de mundo e, na linguagem de Heidegger, a abertura de
uma época histórica. No entanto, há uma importante diferença no modo como
Heidegger se apropria de ambas as características. O conceito de visão de mundo, para
Heidegger, é ainda desarticulado de uma experiência sincera da historicidade, ainda está
por demais presa a uma noção vaga de cultura e o modo teórico de inventariar as quase
infinitas expressões históricas humanas. O ponto aqui não é reconhecer a
contigencialidade das visões de mundo, mas fazer a experiência existencial do que isso
ainda teoricamente indica. Heidegger procura, no fundo, evidenciar o caráter fático do
modo como o homem se encontra lançado no mundo. Por mais que Dilthey tenha
insinuado uma virada prática de modo a sair de uma postura teorizante e hipotética em
relação ao homem, ao modo das ciências naturais, essa postura, para Heidegger, ainda
se revela presa à dinâmica explicativa. A crítica de Heidegger a Dilthey envolve a
própria noção de que fundar uma ciência humana é, de certa forma, manter-se
teoricamente preso a um tipo de saber positivo sobre o homem, um “-ismo”. O
problema de tal postura é exatamente reinserir o homem em uma dinâmica artificial de
si mesmo, por mais que esse não seja propriamente o intuito de Dilthey em sua proposta
de pensamento. O que Heidegger busca é justamente a radicalização de tal postura: não
se trata mais de criar algum tipo de ciência racional, seja do ato intencional da
29

percepção fenomenológica, seja do caráter histórico-hermenêutico da vivência humana,


mas de fato fazer a experiência existencial que tais disciplinas indicam; preencher de
conteúdo existencial o que em seu próprio pensamento chamará, não de conceitos, e sim
de indicadores formais. Como será visto em breve, Heidegger imprime uma
radicalidade de pensamento tanto em relação à postura husserliana de abandono da
dicotomia eu/mundo, quanto da noção diltheiana de vínculo da vivência imediata a um
nexo histórico e visão de mundo. No fundo, Heidegger aprimora a fenomenologia
através da hermenêutica e vice-versa. O que Heidegger consegue fazer é enxergar, a
partir da junção de tais disciplinas, o modo de ser do homem em uma simples atitude
descritiva, para além, agora sim, de qualquer postura teórica. Com isso, a partir da
simples atitude de descrição do modo de ser do homem, a partir de seu método
fenomenológico-hermenêutico, Heidegger almeja indicar o caminho de uma radical
transformação tanto singular quanto histórica, uma vez que seu pensamento em essência
também está articulado às aporias que se evidenciam no decorrer do século XIX e ao
movimento de desarticulação do homem em relação a si mesmo. Essa é a tarefa
pretendida em Ser e tempo: relembrar ao homem quem ele é.
30

2 O PENSAMENTO HEIDEGGERIANO

Todos imos embarcados na mesma nau, que é a vida,


e todos navegamos com o mesmo vento que, é o tempo.
Antonio Vieira

2.1 Ser e Tempo

É em Ser e Tempo que Heidegger inicia a jornada de uma vida inteira dedicada à
investigação sobre a relação de tensão e reciprocidade entre homem e ser. De acordo
com o pensamento heideggeriano, o homem se insere no interior de um processo
histórico a partir do qual passa a ser entendido como um ente dotado de propriedades
previamente dadas, sendo passível de ser encerrado em determinações pré-concebidas,
algo já antevisto por Dilthey. Sua tentativa é a de resgatar o que de essencial se perdeu
nesse processo de aproximação entre homem e coisa simplesmente presente. Para tanto,
inaugura uma investigação minuciosa acerca de como o homem se mostra em sua
existência, sem recorrer a caracterizações e axiomas situados fora do eixo
fenomenológico-hermenêutico de investigação, garantindo dessa maneira o rigor
necessário para suas pretensões.
O projeto de pensamento heideggeriano é, pelo menos desde Ser e Tempo, o
projeto de desenvolvimento de uma ontologia fundamental, isto é, um pensamento que
se articula com a gênese do acontecimento de mundo, de modo que, a partir de tal
gênese, seja possível a redescoberta do homem a respeito de sua própria humanidade.
De início, é preciso considerar uma comparação com Husserl. Se com Husserl a
consciência intencional indica que o homem não acontece nem dentro, em um sentido
psicologizante, nem fora, em sentido empírico, mas como “eu” transcendental, com
Heidegger essa mesma conquista da fenomenologia aponta na realidade para o fato do
homem ser o ente a quem mundo se abre como mundo. O que Heidegger vê na
fenomenologia não é a chegada a um ponto final, ao “eu” transcendental que seria o
fundamento de qualquer filosofia ou ciência, mas a um ponto de partida: à investigação
31

do homem como abertura de mundo. Aqui já há um aceno para aquilo que é a tônica do
labor heideggeriano como um todo: a constatação da íntima relação entre homem e ser.
[...] [Heidegger] depois de ter declarado que queria retomar o método da
redução, teorizado por Husserl – entendendo este, porém, não no sentido
transcendental como “recondução da visada fenomenológica da atitude
natural do homem que vive no mundo das coisas e das pessoas à vida
transcendental da consciência”, mas antes no sentido ontológico de uma
“recondução da visão fenomenológica do ente à compreensão do ser”.
(VOLPI, 2013, p. 33).

Portanto, sua tentativa é a de delimitar o cerne do acontecimento que torna o


homem humano, ou seja, sua postura não é a de imiscuir e delimitar regiões específicas
da existência humana, nem a de buscar respostas definitivas para questões da existência
(como uma má interpretação da busca heideggeriana do sentido fundamental do ser
poderia fazer parecer), mas de possibilitar o vislumbre da experiência essencial do
homem, a experiência de ser o ente marcado pela abertura e pela relação com a abertura
de mundo.
Ao contrário de Husserl, que consegue com seu pensamento atingir as portas da
percepção, mas não consegue ir além dela, recaindo nas amarras da tradição filosófica e
demonstrando que seu pensamento não é tão radical quanto poderia sugerir que fosse, o
modo de questionamento heideggeriano procura descrever a estruturação ontológica do
homem de modo que seja possível perguntar pela essência do ser. Heidegger para isso
lança mão das estruturas ontológicas da existência ou existenciais4. As estruturas
ontológicas são espécies de “pilares” fundamentais a partir das quais a existência
humana se baliza em seu caráter ek-sistencial. Elas dizem respeito às condições de
possibilidade que sustentam o modo mesmo como o homem se mostra como ente capaz
de se dar ao modo da abertura de mundo. As estruturas ontológicas são o que dão
“suporte” para a concretização do homem enquanto ente, em essência, existencial. O
que Heidegger reconhece em Husserl é algo que Husserl não reconhece em seu próprio
pensamento: a chegada a um âmbito de questionamento que se liberta da filosofia
tradicional e lida com a própria abertura aos entes em geral. Tal lida e tematização direta
da abertura é o que Heidegger interpreta como o que foi esquecido enquanto tema ao
longo do desenvolvimento da filosofia.
Por mais que já tenha sido dito que o pensamento de Heidegger não se apresenta
como “teoria”, em sentido moderno, sua metodologia poderia entrar em xeque caso se

4
Ao longo do trabalho serão apresentados os existenciais que de forma mais imediata interessam a
investigação do trabalho.
32

lançasse mão da argumentação instantânea que compara sua forma de pensamento a


mera criação de um novo sistema filosófico. Isso se daria no sentido de equiparar as
estruturas ontológicas da existência ao modo de faculdades a priori do conhecimento,
ao modo da filosofia moderna de Kant. Embora se diga que as estruturas ontológicas
sejam condições de possibilidade para a abertura dos entes em geral, não se diz com isso
que tais estruturas são faculdades que captam e moldam o que se abre, mas apenas que
elas permitem a entrega do ente, para usar uma expressão de Husserl, nele mesmo. Não
se pode equiparar a tentativa de pensamento das estruturas ontológicas e de uma
ontologia fundamental a teorizações arbitrárias comuns, a ponto de se poder falar numa
“teoria” ou “hipóteses heideggerianas”, algo que de forma alguma pode ser dito. Como
está presente em Ser e Tempo:

O uso do termo ontologia não visa designar uma determinada disciplina


filosófica dentre outras. Não se pretende, de forma alguma, cumprir a tarefa
de uma dada disciplina, previamente dada. Ao contrário, é a partir da
necessidade real de determinadas questões e do modo de tratar imposto pelas
“coisas nelas mesmas” que, em todo caso, uma disciplina pode ser elaborada.
Com a questão diretriz sobre o sentido do ser, a investigação se acha dentro
da questão fundamental da filosofia em geral. O modo de tratar essa questão
é fenomenológico. Isso, porém, não significa que o tratado prescreva um
“ponto de vista” ou uma “corrente”. Pois, enquanto se compreender a si
mesma, a fenomenologia não é e não pode ser nem uma coisa nem outra. A
expressão “fenomenologia” diz, antes de tudo, um conceito de método. Não
caracteriza a qüididade real dos objetos da investigação filosófica mas o seu
modo, como eles o são. Quanto maior a autenticidade de um conceito de
método e quanto mais abrangente determinar o movimento dos princípios de
uma ciência, tanto maior a originariedade em que ele se radica numa
discussão com as coisas em si mesmas e tanto mais se afastará do que
chamamos de artifício técnico, tão numeroso em disciplinas teóricas.
(HEIDEGGER, 1988, p. 56-57).

Assim sendo, a quase imediata reação de classificar seu pensamento como mais
uma linha teórica ou mais um “-ismo” cai por terra, e o caminho de investigação sobre o
sentido do ser se estabelece como reconhecimento fenomenológico do modo mesmo
como a existência se dá. O questionamento do sentido do ser trás consigo algumas
questões que se referem à formalidade desse questionamento. Na medida em que há a
necessidade de se perguntar sobre o ser e seu sentido, fica em suspenso qual ente em
específico deve ser interrogado a fim de assegurar-se o correto acesso a seu
questionamento. Como já foi dito, já que sua tentativa não é a de questionar entes em
específico em suas características fáticas próprias (ontologia regional), mas de
questionar a abertura dos entes em geral (ontologia fundamental), torna-se necessário
clarificar de qual ente deve partir a saída para tal abertura ao ser. Como já é possível
33

imaginar, Heidegger aponta que o ente a ser interrogado é aquele a quem foi confiado o
privilégio de tal questionamento, isto é, o homem. Portanto, questionar o sentido do ser
significa tornar transparente um ente privilegiado: aquele capaz de tal questionamento, e
que Heidegger nomeia de ser-aí5.
Logo no início de Ser e Tempo, Heidegger procura livrar o leitor da impressão
de que seu pensamento recai em tautologia. Tal má impressão ocorre devido ao
entendimento de que para iniciar a investigação sobre o ser, uma ideia inicial sobre o ser
precisaria entrar em vigor para tornar possível a sua contemplação, como indicaria a
expressão “o ser é”. Em suma, para falar sobre o ser seria necessário utilizar a noção
que se quer explicar. Isso faria com que sua investida entrasse em descrédito devido a
um círculo vicioso elementar, no qual o que se busca já seria subentendido no cerne do
questionamento. Tal objeção poderia ser válida caso o pensamento heideggeriano se
tratasse de uma argumentação vinculada à lógica clássica que, partindo de categorias
elementares ou de comandos gerais, fosse desencadeando uma série de raciocínios
lógicos que findariam por indicar alguma tautologia que invalidaria tal série de
raciocínios. No entanto, Heidegger não é um filósofo analítico (CABRAL, 2008), sua
linguagem acontece em uma frequência outra em relação à linguagem de antolhos da
lógica. Seu pensamento é muito mais uma aceitação ou acolhimento das formas mais
básicas e originárias pelas quais a existência se dá. Como está explicitado no trecho:

Essa visualização do ser, orientadora do questionamento, nasce da


compreensão cotidiana do ser em que nos movemos desde sempre e que, em
última instância, pertence à própria constituição essencial do ser-aí. Tal
'pressuposição' nada tem a ver com o estabelecimento de um princípio do
qual se deveria, por dedução, uma conclusão. Não pode haver 'círculo
vicioso' na colocação da questão sobre o sentido do ser porque não está em
jogo, na resposta, uma fundamentação dedutiva, mas uma exposição
demonstrativa das fundações. (HEIDEGGER, 1988, p. 34).

Não pode haver círculo vicioso capaz de invalidar a empresa heideggeriana, na


medida em que aquilo que é trabalhado em seu pensamento são elementos evidentes,
desde sempre presentes. Assim como na fenomenologia, Heidegger não trabalha com
conceitos abstratos que se impõem ao “objeto” de análise, mas parte do que é evidente
por si mesmo. Ser e tempo é uma obra que prima pelo extremo rigor descritivo, o que

5
Uma das tentativas de Heidegger com o termo ser-aí (Dasein) é retirar do termo homem toda sua
herança tradicional, que remete a entendimentos antropológicos, biológicos, psicológicos etc. Além
disso, ser-aí reúne um entendimento de fundamental importância para o desenvolvimento de seu
pensamento, que é a ideia de co-pertencimento e co-originariedade entre homem e mundo, por isso a
importância da utilização do hífen no termo.
34

muitas vezes não é percebido pelo leitor e se faz passar por hipótese teórica. Por isso é
necessário acompanhar com máxima clareza seus passos para que nada do que é
apresentado soe gratuito. No trecho acima, além da tematização do problema do círculo
vicioso, vem à tona um dos passos iniciais para o questionamento do sentido do ser: a
necessidade de que tal questionamento se dê, de início, a partir da cotidianidade
mediana do ser-aí. Isso quer dizer que no processo de análise existencial sempre será
levado em conta a maneira pela qual o ser-aí é e se revela em seu dia a dia, em suas
atividades mais banais, pois são nessas condições que o ser-aí se encontra
irrefletidamente lançado em seu modo de ser e por isso mesmo apto a ser interrogado. É
a partir da existência cotidiana que se torna possível o solo de análise sobre o qual o
pensamento acerca do sentido do ser pode ser iniciado. Tal instância cotidiana de
compreensão de si-mesmo é chamada de compreensão pré-ontológica, compreensão que
se estabelece de maneira irrefletida e atematizada, mantendo o ser-aí, de início e na
maior parte das vezes, no campo do não estranhamento de sua própria dinâmica
existencial. Esse não-estranhamento permite a lida rápida e dinâmica do ser-aí em sua
performance cotidiana. Para citar um exemplo ilustrativo é possível considerar a
situação de alguém com pressa e atrasado ao dirigir um carro: o indivíduo em questão
não irá realizar cada movimento necessário para que o carro ande de maneira clara e
explícita. Ela simplesmente agirá, fará os movimentos necessários para que o carro
ande, sem sobressalto algum. Esse agir irrefletido dos atos cotidianos é capaz de revelar
as estruturas ontológicas que suportam tais atos. Torna-se claro, com isso, que na
compreensão cotidiana o ser-aí se relaciona de maneira prática com os entes em geral e,
somente a partir dessa praticidade cotidiana, é que se torna possível a tematização do
homem como ente em íntima relação com o ser. Portanto, a analítica proposta por
Heidegger em Ser e Tempo visa reinserir de forma plena o ser-aí em seu mesmo “lugar”,
que de uma maneira ou de outra já sempre foi compreendido pré-ontologicamente e
irrefletidamente. Espaço esse que o ser-aí já sempre ocupou de forma imediata.
Portanto, um maior apuro do ser-aí com seu espaço existencial performático é um maior
apuro do ser-aí consigo mesmo. É precisamente isso que Heidegger busca em sua
empreitada:

Na tarefa de interpretar o sentido do ser, o ser-aí não é apenas o ente a ser


interrogado primeiro. É, sobretudo, o ente que, desde sempre, se relaciona e
comporta com o que se questiona nessa questão. A questão do ser não é se
não a radicalização de uma tendência ontológica essencial, própria do ser-aí,
a saber, da compreensão pré-ontológica do ser. (HEIDEGGER, 1988, p. 41).
35

E ainda:

Uma análise do ser-aí constitui, portanto, o primeiro desafio no


questionamento da questão do ser. Assim, torna-se premente o
problema de como se deve alcançar e garantir a via de acesso ao ser-aí.
Negativamente: na construção do ser-aí, não se deve aplicar, de maneira
dogmática, uma ideia qualquer de ser e realidade por mais 'evidente' que seja.
Nem se deve impor ao ser-aí 'categorias' delineadas por aquela ideia. Ao
contrário, as modalidades de acesso e interpretação devem ser escolhidas de
modo que esse ente possa mostrar-se em si mesmo e por si mesmo. Elas têm
de mostrar o ser-aí em sua cotidianidade mediana, tal como ela é antes de
tudo e na maioria das vezes. Da cotidianidade, não se devem extrair
estruturas ocasionais e acidentais, mas sim estruturas essenciais
(HEIDEGGER, 1988, p. 44).

Nunca é demais reafirmar que essa estruturação não se insere em um âmbito


teórico e subjetivista, como se fosse possível atrelar o ser a uma internalidade à parte
que regulasse e condicionasse o seu aparecimento. Como foi visto, as descobertas
dessas estruturas se dão no seu simples reconhecimento fenomenológico, tendo como
solo fundamental de análise a lida cotidiana com os entes em geral, sem apelo
dicotômico do tipo “eu” e “mundo”.
Desenvolvidos de forma introdutória alguns dos pontos e questionamentos
relacionados a Ser e Tempo que interessam ao presente trabalho, resta uma última
delimitação antes de se partir para o desenvolvimento do pensamento acerca do ser-aí
de maneira mais bem fundamentada. Essa delimitação é a junção entre ser-aí e o
cerceamento histórico de sua existência. Aqui, outra vez mais há afinidade com o
projeto diltheyano de pensamento, principalmente no que tange a noção de círculo
hermenêutico: assim como em Dilthey, Heidegger busca na dinâmica horizonte
histórico/homem o modo como faticamente se baliza o movimento existencial humano.
Diferentemente de Dilthey, Heidegger reconhece mais elementos nessa dinâmica, além
de propô-la de um determinado modo que não seja possível mais ver em suas
explanações qualquer resquício de hipótese teórica.
O ser-aí não tem somente a “tendência” em decair pré-ontologicamente no
mundo em que é e está, e de se reconhecer a partir das orientações que nele se
estabelecem. Além disso, o ser-aí também decai em sua tradição de modo irrefletido, o
que lhe retira a princípio a capacidade de agir de forma singular, sempre se orientando
por sentidos e orientações legados pela tradição que, em um processo de estreitamento,
entrega automaticamente suas significações enraizando, dessa forma, o ser-aí em seu
36

mundo e momento histórico também de forma irrefletida. Essa historicidade elementar


do ser-aí na maior parte das vezes permanece escondida dele mesmo, que a partir de
então toma a si e, consequentemente, seu horizonte histórico como absolutos.

Explicitamente ou não, o ser-aí é sempre o seu passado e não apenas no


sentido do passado que sempre arrasta 'atrás' de si e, desse modo, possui,
como propriedades simplesmente dadas, as experiências passadas que, às
vezes, agem e influem sobre o ser-aí. Não. O ser-aí 'é' o seu passado no modo
de seu ser, o que significa, grosso modo, que ele sempre 'acontece' a partir de
seu futuro. Em cada um de seus modos de ser e, por conseguinte, também em
sua compreensão do ser, o ser-aí sempre já nasceu e cresceu dentro de uma
interpretação de si mesma, herdada da tradição. De certo modo e em certa
medida, o ser-aí se compreende a si mesmo de imediato a partir da tradição.
Essa compreensão lhe abre e regula as possibilidades de seu ser. Seu próprio
passado, e isso diz sempre o passado de sua 'geração', não segue mas precede
o ser-aí, antecipando-lhe os passos. (HEIDEGGER, 1988, p. 48).

De uma maneira geral a tradição tende a tornar pouco acessível aquilo que ela
mesmo lega. A tradição simplesmente torna evidente aquilo que é imediato e, dessa
forma, impede a passagem para as fontes originais de onde nasceram. Isso acontece de
maneira tão radical que até faz esquecer essa proveniência. É em vista desse fenômeno
de estreitamento dos sentidos e significados legados pela tradição que Heidegger propõe
uma destruição da história da ontologia, de modo a melhor transparecer a questão do ser
em sua originariedade, sem os vícios e preconceitos históricos que já são fornecidos de
imediato pela tradição filosófica. Sua intenção é a de abalar as certezas de uma tradição
cristalizada e implodir sua construção petrificada, sempre tendo como fio condutor a
análise do ser-aí, até se atingir o mais limpidamente possível as determinações
essenciais do sentido do ser.
Cabe ressaltar que a destruição da ontologia tradicional a ser empreendida por
Heidegger em nada tem a ver com uma negação do passado. Muito pelo contrário, ela
visa a incorporação decidida do passado no presente, de modo que possa remeter
plenamente a um futuro que não seja mera repetição de sentidos e significados de um
horizonte histórico sedimentado. Esse processo difere em muito do processo moderno
de entendimento do passado que, esse sim, tem em vista o completo abandono do antigo
para que um novo conhecimento se imponha. A respeito da destruição da ontologia
tradicional Heidegger diz:

Essa comprovação da proveniência dos conceitos ontológicos fundamentais


mediantes uma exposição investigadoras de suas respectivas 'certidões de
nascimento' nada tem a ver com uma relativização das perspectivas
37

ontológicas. A destruição também não tem o sentido negativo de arrasar a


tradição ontológica. Ao contrário, ela deve inscrever e definir a tradição em
suas possibilidades positivas e isso quer sempre dizer em seus limites, tais
como se dão de fato na colocação do questionamento e na delimitação, assim
pressignada, do campo de investigação possível. Negativamente a destruição
não se refere ao passado; a sua crítica volta-se para o 'hoje' e os modos
vigentes de se tratar a história da ontologia, quer esses modos tenham sido
tratados pela doxografia, quer pela história da cultura ou pela história dos
problemas. Em todo caso, a destruição não se propõe a sepultar o passado em
um nada negativo, tendo uma intenção positiva. Sua intenção negativa é
implícita e indireta (HEIDEGGER, 1988, p. 51).

Em suma, o projeto empreendido em Ser e Tempo é o projeto de retorno do


homem (ser-aí) ao seu mesmo “lugar” fundamental, que por algum motivo passou a não
ser mais reconhecido e “habitado” por ele mesmo. Heidegger reconhece que é preciso
relembrar ao homem quem ele é, justamente porque o homem é o lugar da iluminação
natural do ser, no sentido de conquistar sua existência sempre e somente a partir do que
é aberto pelo campo existencial que ele mesmo é, i.e., através da abertura de mundo.
Como até aqui foi exposto, a postura de Heidegger em Ser e Tempo é a de, a partir de
uma analítica existencial do ser-aí oriunda de sua experiência cotidiana, tornar cristalino
aquilo que permite ao homem ser propriamente humano: sua relação fundamental com a
abertura dos entes em geral e, o que no fundo quer dizer, com o ser. Além disso, tal
empreitada necessita dialogar com o modo como a própria tradição entendeu o lugar do
homem e sua relação com o ser, por isso a importância da destruição da ontologia
tradicional e a tematização de seus legados.

2.2 Ser-Aí

Até aqui mostrou-se que em Ser e Tempo há a preocupação e o projeto de


delimitar fenomenologicamente o modo pelo qual o ser-aí de fato acontece. Delimitação
essa para além de compreensões de ordem moderna e que apelem para preconceitos
históricos arraigados no seu desenvolvimento, a ponto de em suas páginas propor a
destruição da ontologia tradicional. O que resta ser explicitado é a estruturação desse
38

ente que todo ser-aí é, estruturação esta a partir da qual o questionamento do ser se torna
possível6.
O termo ser-aí reúne a ideia de existência (ser), delimitada por um espaço
específico de concretização de si mesma (aí). Justamente por isso, no processo de
investigação do ser-aí a expressão ser-no-mundo é correntemente usada por Heidegger
para designar algo muito peculiar: o co-pertencimento entre homem e mundo. Já em sua
cunhagem o termo demonstra que na determinação existencial do ser-aí está presente
uma noção de co-pertencimento entre homem e mundo. Mas de que maneira essa
relação se dá? De início não se pode pensar que primeiramente se tem um ser-aí “puro”
que em seguida acopla-se um mundo. Fazer isso, como já foi visto, seria reeditar os
preconceitos tradicionais com os quais o senso comum trabalha. Não. Mundo já é e
sempre foi “pertencente” ao ser-aí.

[...] ser-no-mundo não é uma “propriedade” que o ser-aí às vezes apresenta e


outras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela. O
homem não “é” no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o
mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado (HEIDEGGER, 1988,
p. 95-96).

É de suma importância abrir mão do entendimento que versa sobre a existência


gratuita de uma sede interna (eu, ego, psiquismo etc.) que acessa, por meio dos sentidos
e faculdades mentais, um mundo externo que se contrapõe a ele. Caso isso fosse
possível seria plausível a ideia de uma natureza humana com propriedades dadas.
Desde Husserl há uma ruptura com o pensamento moderno, no entanto, é com
Heidegger que essa ruptura encontra uma postura mais clara, decidida e a altura de si.
Husserl antecipa a argumentação heideggeriana de retorno ao mundo, só que ainda
permanece preso a terminologias tradicionais para fazê-lo. Quando Heidegger apela
para novas terminologias sua intenção é a de livrar a filosofia de termos viciados em
conceitos sem relação com a existência em seu sentido originário. Os termos ser-aí e
ser-no-mundo se inscrevem nessa empreitada de “refrigerar” a filosofia e reposicionar a
ontologia em termos realmente essenciais.
Para Heidegger há uma ligação compreensiva do ser-aí com seu “espaço”, isto é,
com si mesmo. Essa compreensão passa longe de um entendimento intelectual sobre a

6
Cabe ressaltar que a exposição da estruturação do ser-aí aqui descrita não corresponde completamente
ao que é desenvolvido por Heidegger em Ser e Tempo. Uma vez que o presente trabalho se encarrega da
tarefa de focar no tema da tonalidade afetiva do tédio, mostram-se urgentes alguns pontos da obra
citada, em detrimento de outros.
39

abertura de mundo, mas é a compreensão que permite a imersão fática do ser-aí no


mundo que o constitui. Essa compreensão insere o campo de jogo no qual o ser-aí
sempre estará presente. Isso quer dizer que já é como lançado no mundo que o ser-aí
descobre a si mesmo como um existente e que, outra vez mais, sempre se encontrará
nesse âmbito. Isso impede que o ser-aí seja tomado como um ente simplesmente dado,
já que sua mostração se dá sempre de maneira dinâmica, lançado contingencialmente no
mundo que ele mesmo “é”.
Portanto, para Heidegger, a compreensão pré-ontológica do ser-aí a respeito do
ente que ele mesmo é, permite o não estranhamento de si e uma consequente imersão
nos sentidos sedimentados de um determinado horizonte histórico. Essa imersão
direciona o ser-aí a uma lida prática com os entes que lhe vão ao encontro no mundo.
De início o ser-aí não interpela os entes em seu ser, mas os utiliza sem tematização
alguma, por isso Heidegger chama os entes assim entendidos como utensílios (Zeugen).
De maneira cotidiana o ser-aí lida e sempre lidará de forma prática com os entes
que lhe vem ao encontro. O ser-aí, de início e na maior parte das vezes, imerge nos
significados e orientações de seu mundo e operacionaliza procedimentos entregues por
seu horizonte. A título de exemplo pode-se imaginar uma pessoa que, em casa, escuta o
som da campainha e caminha em direção à porta para abri-la. Ao chegar junto à porta
ela executa o movimento típico de abertura de portas em geral: estende a mão até a
maçaneta, gira a maçaneta em sentido anti-horário e puxa a porta. Quando isso acontece
a pessoa em questão não tematiza cada passo dado, ela simplesmente abre a porta como
se abre uma porta. De forma alguma o que acontece aí é uma complexidade de eventos
metafísicos no sentido de que primeiro acontece, por vibrações de ondas sonoras, um
reconhecimento auditivo do toque da campainha e, posteriormente, uma dedução
cognitiva de que o toque significa que alguém espera pela abertura da porta e com isso
se dá início a um procedimento de “abertura de porta”, que culmina com o
entendimento racional de como uma maçaneta opera fisicamente na porta e, após esse
entendimento, a compreensão de que se deve iniciar a execução do movimento correto
para abri-la. Muito pelo contrário, a compreensão cotidiana do ser-aí acerca dos entes
em geral se dá de forma prática e irrefletida. Na cotidianidade o ser-aí é convocado
pelos entes do mundo e atende incessantemente a suas requisições sem grandes
problemas. Um utensílio jamais é um objeto de apreciação teórica. No momento que se
tematiza a maçaneta de uma porta, automaticamente ela se retira de sua
40

operacionalização e deixa de se configurar como utensílio. Com relação ao


entendimento do ente como utensílio Casanova (2006, p. 25) diz:

Tomado estritamente o utensílio nunca 'é' porque jamais se revela


primariamente como uma coisa isolada simplesmente dada que pode ser
conhecida em si mesma e investigada teoricamente para além de todas as
suas relações utensiliares. Na medida mesmo em que é, ele já sempre
pressupõe o espaço fenomenal de realização de um uso e de consequente
configuração de uma lida possível do ser-aí com ele.

Heidegger chama o “modo de funcionamento” cotidiano do ser-aí de impessoal


(das Man). Esse modo meramente operativo no qual o ser-aí se encontra de início e na
maior parte das vezes recebe esse nome justamente porque é nesse modo que ele existe
como se existe. Na impessoalidade o ser-aí desliza sem entraves nos modos de ser que
são familiares a um contexto específico, sem experiência alguma do peso que é ter-de-
ser e de ter de cuidar incessantemente da própria existência. O impessoal retira do ser-aí
o ônus de sentir o peso de cada passo dado e, justamente por isso, também retira
parcialmente a chance de se existir de maneira própria, autêntica. Como diz Heidegger
(1988, p. 180):

O impessoal tira o encargo de cada ser-aí em sua cotidianidade. E não apenas


isso; com esse desencargo, o impessoal vem ao encontro do ser-aí na
tendência de superficialidade e facilitação. Uma vez que sempre vem ao
encontro de cada ser-aí dispensando-o de ser, o impessoal conserva e
solidifica seu domínio caturro.

De início e na maior parte das vezes “enredado” pelo impessoal o ser-aí se


encontra cotidianamente desonerado de seu próprio peso. Esse estado de coisas,
contrariamente do que se imagina de imediato, não se altera a partir de uma mera
escolha diferente do ser-aí, como se para se livrar do impessoal o ser-aí tivesse que a
cada segundo provar para si e para os outros que faz e escolhe tudo de maneira única e
diferenciada. Isso se torna impossível na medida em que o impessoal constitui o ser-aí.
É para o impessoal que o ser-aí sempre imerge e imergirá.
Para Heidegger de início e na maior parte das vezes é na impessoalidade que o
ser-aí se encontra, e a possibilidade de uma existência própria e singular não se dá de
forma estanque à impessoalidade, mas a partir de um “salto” que a própria
impessoalidade permite. Pode-se ter como exemplo um punk, que usa roupas rasgadas e
de aspecto chocante para mostrar que não pertence e não comunga com os valores
predominantes de sua sociedade, que apontam na direção de um determinado modo de
41

vida “pasteurizado”. No entanto, quando ele faz isso achando ter se tornado alheio ao
horizonte no qual está inserido, finda por reforçar ainda mais seu laço com a
impessoalidade na medida em que procura incessantemente ser sua negação e passa a
dever sua identidade aos ditames sociais que critica. Não há nenhuma postura radical de
singularidade em tal exemplo. Ninguém se torna singular escolhendo coisas diferentes
da maioria.
Uma outra característica do impessoal, além da de configurar o que é margem ou
não, é a de agregar ao seu repertório de ditames aquilo que outrora se configurava como
revolucionário. O impessoal é sempre capaz de “sugar” em sua direção as mais diversas
tendências, sejam elas quais forem. Nesse sentido a sabedoria popular já cunhou
excelentes e debochados termos, e não menos precisos, para designar tal acontecimento,
como “hippie de boutique” ou “comunista da Zona Sul7”. O que esses termos
aparentemente bobos revelam, mesmo sem estarem completamente atentos para isso, é a
inesgotável absorção da margem às orientações sedimentadas do mundo em um
consequente nivelamento de todas as possibilidades de ser, aqui o trecho de Ser e Tempo
é bastante claro:

Em seu ser o impessoal coloca essencialmente em jogo a medianidade. Por


isso, ele se atem de fato à medianidade do que é conveniente, do que se
admite como valor ou desvalor, do que concede ou nega sucesso. Essa
medianidade, designando previamente o que se pode ou deve ousar, vigia e
controla toda e qualquer exceção que venha impor-se. Toda primazia é
silenciosamente esmagada. Tudo que é originário se vê, da noite para o dia,
nivelado como algo de há muito conhecido. O que se conquista com muita
luta, torna-se banal. Todo segredo perde sua força (HEIDEGGER, 1988, p.
180).

Pode parecer que a impessoalidade do modo de ser cotidiano do ser-aí resume


pejorativamente tudo que deve ser afastado na busca por uma experiência existencial
mais autêntica, mas como foi visto, essa impessoalidade constitui o ser-aí e sempre irá
constituir. Não existe possibilidade alguma de que em algum momento da história da
humanidade isso se dê de outra forma. Justamente por esse motivo uma interpretação
pejorativa da impessoalidade se torna inválida, pois nada que constitui o ser-aí em seu
ser é passível de crítica nesses termos, o que pode ser feito é “apenas” a delimitação de
seu acontecimento. Impessoal é um termo para designar que o ser-aí precisa “ser” os
seus modos de ser, no entanto a concretização desses modos de ser depende da

7
Zona Sul do Rio de Janeiro, considerada área nobre da cidade.
42

concretização de um espaço no qual esses modos de ser efetivamente se mostrem como


possíveis. Isso depõe contra uma interpretação depreciadora do impessoal. Na medida
em que o ser-aí não possui instância interna regulativa capaz de servir de pilar de
sustentação de sua performance existencial, o ser-aí necessita sair de uma
estranhamento originário para conquistar uma certa familiaridade com o mundo. Um
recém-nascido precisa se familiarizar, e se familiariza, com o mundo que é o dele a
partir de uma imersão no seu contexto específico: ele aprende o que pode fazer, o que
não pode fazer, como se fala com as pessoas, como não se fala, para que serve cada
utensílio etc. (CASANOVA, 2006). De maneira geral, quem retira o recém-nascido de
uma certa indiferença e o apresenta paulatinamente ao tempo específico de um mundo
são os pais e a família, todos também íntimos, de uma forma ou de outra, das
determinações de seu tempo.
Utilizando uma metáfora que pode ser útil, é preciso, de início, a criação de
raízes que ligam o homem ao seu solo, de modo que seja possível o seu próprio
florescimento posterior. Uma flor ou uma árvore já não nascem floridas e rendendo
frutos, é preciso um processo de intimidade delas com seu solo para que isso aconteça.
O mesmo se dá com o homem. Sem a segurança do impessoal não seria possível a
conquista de si-mesmo enquanto ser-aí singular, pois não haveria sentidos e significados
sedimentados a serem rearticulados pela experiência do homem singular. Sem a
familiaridade do ser-aí com seu espaço o ser-aí se tornaria incapaz de ganhar a si mesmo
ou de experimentar crises e transformações, na medida em que um solo de significados
familiares se torna fundamental para a sua concretização performática. Portanto,
querendo ou não, o ser-aí já sempre se estabeleceu de uma maneira ou de outra na
dinâmica existencial de um mundo específico. Em razão disso, para ganhar a si-mesmo,
o ser-aí necessita estar de início na impessoalidade, pois caso não estivesse, qualquer
conquista ou transformação seria um acontecimento sem parâmetro ou vínculo real
algum. Fica claro a partir do que foi exposto que, fundamentalmente, não é possível
atribuir valor algum à noção de impessoal, apenas que ele se dá, sempre se dará e que,
além disso, é a partir do impessoal que o ser-aí se estabelece enquanto ser-aí e com isso
sempre se encontra à beira da possibilidade de “ganhar” plenamente a si-mesmo.
Outra questão se mostra importante no que diz respeito à relação ser-aí e
impessoal. Ambiguamente, a possibilidade do ser-aí se encontrar imerso
irrefletidamente no seu mundo ao modo da impessoalidade só é permitida na medida em
que o ser-aí é marcado por uma fragilidade ontológica que sempre “lança” o ser-aí em
43

direção ao mundo e sua familiaridade. Apesar disso, essa mesma fragilidade ontológica
impossibilita a sua determinação de uma vez por todas. Nesse sentido, o impessoal
apresenta uma face dupla: a de permitir uma necessária intimidade com o mundo e a de,
justamente por isso, velar e dificultar ao ser-aí a possibilidade de conquista plena de si-
mesmo, mas sem com isso impossibilitá-la. O impessoal, no fundo, é marca de que ao
ser-aí é possível ser si-mesmo. A par do que foi explicitado acerca da impessoalidade, e
a sua capacidade de tornar o ser-aí comum, resta clarificar o que propriamente
permanece inacessível ao ser-aí toda vez que ele se encontra no ritmo cotidiano.
Como foi visto ao longo do texto, não há apelo interno capaz de fornecer
medidas específicas ao homem; sua essência é seu ato, “ato” sendo aqui entendido não
como ação específica de fazer alguma coisa em detrimento de outra, mas como
estruturação dinâmica ek-sistencial. Chega-se a conclusão que nada é mais natural a um
ente que não possui subjetividade do que o fato de ser “lançado”, “jogado” para fora de
si. Por isso, quando se tematiza o ser-aí em seus fundamentos nenhuma naturalidade se
apresenta, nenhuma categoria aprioristicamente dada torna o ser-aí predicável, de forma
que sua “essência” é o seu próprio caráter de lançado em sua mostração, em seu
acontecimento. É em função dessa fragilidade ontológica que mundo se torna tão
importante para sua existência, pois sem mundo o ser-aí simplesmente não é8! Se é que
pode ser colocado dessa forma, tudo o que concerne e diz respeito ao homem aponta
para o lado de “fora” e em resposta a recorrente pergunta “o que é o homem?”, deve-se
responder: nada. O homem é seu próprio lançamento no mundo e não uma categoria
simplesmente dada.
Para Heidegger, o ser-aí sai de uma indeterminação originária e paulatinamente
se torna familiar ao mundo que lhe constitui e que de certa forma ele mesmo é. Há de
início uma estranheza que se suprime em direção à familiaridade do mundo e que torna
possível ao ser-aí alguma consistência. Isso não quer dizer que, lançado no mundo, o
ser-aí alcançaria uma essência posterior a sua indeterminação originária. Enquanto
existente, o ser-aí já sempre se concretizou de uma maneira ou de outra dentro dos
limites de seu mundo e de seu horizonte histórico. Justamente por isso a analítica da
cotidianidade\impessoalidade se faz importante no pensamento heideggeriano, pois, de

8
É importante resguardar o sentido de mundo aqui delimitado para além de um entendimento de
preservação da natureza, no sentido de que o homem necessitaria para sobreviver daquilo que a natureza
lhe fornece. Mundo tem a ver com o espaço performático “no” qual o homem se vê repentinamente
lançado. Por mais que a deterioração da natureza tenha como base uma relação despreocupada do
homem com o mundo que ele mesmo é, seu entendimento é maior que o conceito de natureza e sua
preservação.
44

início e na maior parte das vezes, o ser-aí se encontra imerso irrefletidamente em seu
mundo, tomando a si e os outros seres-aí como entes simplesmente presentes e, com
isso, velando seu caráter mais fundamental: o de poder-ser (Seinkönnen).
A noção de poder-ser, por sua vez, aponta para possibilidades inerentes a um
ente que em essência “não é”, e na mesma medida em que é ausente de propriedades,
lhe é entregue a liberdade de ser, sendo! Aqui um importante ponto se revela: aquilo que
faz com que o ser-aí seja privilegiado em relação à questão do ser não é nenhuma
qualidade positiva, mas a sua negatividade estrutural. Quando se diz que o ser-aí é
estruturalmente vazio não se está dizendo que o homem está condenado a um niilismo
sem fim em meio ao qual nenhum modo de vida valeria a pena, pelo fato de que motivo
algum nunca seria forte o suficiente para dar cabo da existência e sua falta de sentido.
Na verdade aquilo que a nulidade do ser-aí permite é justamente o inverso disso, ela
permite ao ser-aí a possibilidade de “apoio” no mundo e seus sentidos. É por não ser
essencialmente nada que alguém pode, em sua dinâmica existencial, “ser” alguma coisa.
Uma pessoa só pode se identificar com a psicologia e ser psicóloga porque de antemão
ela não é psicóloga e nem é absolutamente nada, seu modo de ser só pode se dar na
mesma medida de sua existência, e isso vale para todas as atividades humanas. Portanto,
a nulidade própria ao ser-aí o lança para as possibilidades do mundo ao invés de privar-
lhe disso. Cabe lembrar também que o caráter de poder-ser do ser-aí sempre se encontra
cerceado concretamente por horizontes existenciários específicos e por épocas
específicas, a liberdade do ser-aí não é algo que se dá sem limites e por si mesma, mas
para ser liberdade precisa de limites fáticos para sua realização.
Contudo, como já foi dito, na impessoalidade o ser-aí permanece “cego” a esse
fato e sua dinâmica existencial acontece por modos de ser que lhe são assegurados por
“empréstimo” pelo mundo fático que é o seu, por sentidos sedimentados que lhe dizem,
com certa segurança, o que deve ser feito ou não. Em outras palavras, o impessoal
permite ao ser-aí a ilusão de ter uma existência justificada numa cadência específica
previamente dada. Esses estado de coisas Heidegger chama de decadência
(Verfallenheit) do ser-aí em relação ao seu caráter mais fundamental de ter-de-ser si-
mesmo:

E o ser-aí sempre é meu uma vez mais a cada vez dessa ou daquela maneira
de ser. Ele já sempre se decidiu de algum modo em que medida o ser-aí a
cada vez é meu. O ente para o qual em seu ser o que está em jogo é esse ser
mesmo relaciona-se com seu ser como sua possibilidade mais própria. O ser-
aí é sempre a cada vez essencialmente sua possibilidade, e ele não 'tem'
45

apenas possibilidades como uma propriedade simplesmente dada. E porque o


ser-aí sempre é a cada vez essencialmente sua possibilidade, ele pode em seu
ser se 'escolher', se ganhar, ele pode se perder ou nunca e só 'aparentemente'
se ganhar. Ele só pode ter se perdido e ainda não se ter ganho, uma vez que,
segundo sua essência, ele é algo próprio possível, isto é, uma vez que ele
pode se apropriar de si. Os dois modos de ser da impropriedade e da
propriedade - essas expressões são escolhidas terminologicamente no mais
rigoroso sentido da palavra – fundam-se no fato de que o ser-aí em geral é
determinado pelo caráter de ser sempre a cada vez meu (HEIDEGGER, 1988,
p. 57).
Aquilo que diferencia o ser-aí singular do decadente é justamente a forma como
o ser-aí lida com o seu caráter essencial de poder-ser, a partir da experiência de sua
negatividade fundamental. Como o ser-aí é poder-ser, ele tem desde sempre um
problema do qual não pode abrir mão: o problema da incessante concretização de si-
mesmo: o ser-aí precisa ser para resolver um problema existencial que ele mesmo é e
sempre será. Essa resolução pode se dar pela mera inserção irrefletida na
impessoalidade e seus ditames ou pela escuta própria ao poder-ser singular que se é,
configurando dessa forma uma experiência mais rica de si.

[...] a assunção de caminhos impessoais se constrói puramente a partir de


uma plena absorção do ser-aí na lógica da ocupação e de uma consequente
negação de si como poder-ser. O ser-aí experimenta a si mesmo como
simplesmente dado e nunca lida senão taticamente com as diversas situações
em que se encontra inserido. No segundo caso ele é 'chamado pelo si-próprio
a sair da perdição no impessoal' e a assumir plenamente a responsabilidade
por si mesmo como poder-ser (CASANOVA, 2006, p. 92).

Assumir plenamente a responsabilidade por si-mesmo é tomar em sentido pleno


todo o peso e urgência que a nulidade da existência trás consigo, o peso de, querendo ou
não, ter-de-ser. Desse modo, como diz Feijoo (2011), a relação do ser-aí com a nulidade
de seu fundamento aponta não para o “problema que temos, mas para o problema que
nós somos”. Longe de ser pretexto para uma interpretação pessimista ou negativista do
homem, como algumas vezes se classifica o pensamento heideggeriano, o peso da
existência é voz de que evidentemente algo é possível ao homem, de que o homem se
depara, repentinamente, como sendo lançado no seio da liberdade. Liberdade esta que se
vela e se encontra a perigo toda vez que o homem se entrega de maneira cega ao
impessoal. No entanto, sempre que o ser-aí se encontra inserido na impessoalidade,
invariavelmente, sempre se encontrará no âmbito do seu próprio despertar.
Como está explicitado acima, quando se diz que o ser-aí é nulo se diz por
consequência disso que ele é livre. Essa liberdade insere o ser-aí no âmbito da
responsabilidade por si-mesmo, essa responsabilidade aponta na direção do que
46

Heidegger chama de cuidado (Sorge)9. Cuidado é um termo para designar que o ser-aí
tem-de-ser-si-mesmo incessantemente e que quanto a isso não há escapatória alguma: o
ser-aí cuida de si integralmente, sem momentos de pausa. Enquanto existente o ser-aí
sempre se dará, de maneira inalienável, ao modo do cuidado de si.
Por sua vez aquilo que se revela com o fato do ser-aí ser incessantemente ao
modo do cuidado (mesmo na decadência) é que o homem já sempre se inseriu
originariamente no seio do tempo. A diferença essencial entre autenticidade e
decadência, entre propriedade e impropriedade nesse quesito é que a partir do instante
em que o ser-aí se toma de maneira própria, em toda a sua negatividade estrutural, o
tempo se abre de maneira mais rica. O tempo deixa de ser uma sucessão de minutos
simplesmente dados e se torna o tempo específico da singularidade, de maneira que o
ser-aí singular se torna o seu próprio tempo. O que está sendo dito com isso não é que
ao experimentar, pela negatividade de sua essência, seu caráter essencial de poder-ser o
ser-aí passa a criar para si um tempo particular, como se seu dia a partir de então
deixasse de ter 24 horas. O que se conquista na propriedade é a dimensão fundamental
do tempo, aquilo de que tempo é evidentemente tempo, ou seja, tempo de ser-si-mesmo.
Isso se dá de maneira que o ser-aí passa a ser o “espaço” da temporalização plena do
mundo.
Na decadência o arranjo da temporalidade se dá de forma que há um passado
que trás o ser-aí ao presente através de uma “linha do tempo” e que entrega um presente
que deve ao passado sua conjuntura mesma. O futuro, nesse estado de coisas, é apenas o
ainda não do que já se presentificou de maneira dada no espaço do agora. Com a
experiência do ser-aí como poder-ser essa dimensão partida do tempo se unifica em
função do porvir, de maneira que tanto o passado quanto o presente se unem ao futuro.
Como escreve Heidegger:

A temporalidade originária e própria se temporaliza a partir do porvir em


sentido próprio, de tal modo que só no vigor de ter sido, vigente no porvir, é
que ela desperta a atualidade. O porvir é o fenômeno primordial da
temporalidade originária e própria (HEIDEGGER, 1988, p. 124).

Na decadência há a experiência de um tempo simplesmente dado pelo mundo,


no sentido de se estar desde sempre inserido naturalmente em um tempo que corre por si
9
Tal termo em Heidegger não se resume ao cuidado apenas de si mesmo, mas ao cuidado do ser-aí com
outros seres-aí, na medida em que ser-aí é tão fundamentalmente ser-com-ou-outros, quanto é ser-si-
mesmo. Por um motivo de foco argumentativo, dar-se-á atenção apenas a repercussão “individual” do
cuidado.
47

mesmo e que é passível de medição: inserido no “tempo do relógio”. Na experiência


própria de si-mesmo o homem se abre de maneira fundamental para o seu essencial
caráter temporal e, com isso, passa a ser o próprio espaço de temporalização do mundo.
Na propriedade o ser-aí se dá conta de que lhe é “dado” tempo.
Ao final do presente capítulo é possível alcançar determinados pontos cruciais a
respeito do ser-aí que interessam imediatamente ao presente trabalho. Quando se tem
em vista a tematização do ser-aí, algumas características prontamente se apresentam no
que diz respeito àquilo que sua indeterminação originária permite. São elas as seguintes
relações: ser-aí e impessoalidade, ser-aí e poder-ser, ser-aí e tempo. Será
fundamentalmente em diálogo com essas bases conquistadas até aqui que o trabalho se
desenvolverá. Aqui é importante mostrar como, a partir das conquistas heideggerianas,
uma psicologia atenta para tais palavras sente a necessidade de transformar a si mesma e
abrir mão do modo como até aqui se estrutura. Não há mais espaço para noções como
saúde mental, normal e patológico, dinâmica psíquica, subjetividade etc., pois todas elas
de uma forma ou de outra apelam para a ideia de que é possível à psicologia arvorar um
conhecimento positivo acerca do homem com base em conhecimentos prévios acerca de
seu modo de ser. Mas como foi visto, isso não é possível uma vez que o homem é
marcado por uma negatividade estrutural que impede que seus modos de ser e
comportamentos sejam inventariados segundo algum critério isento de preconceito. Para
citar Dilthey, toda atividade explicativa não diz respeito ao homem, o homem
invariavelmente se estabelece em uma dinâmica de compreensão. No entanto, quem é
capaz de fundamentar plenamente essa indicação diltheiana é Heidegger, já que é por
meio de suas descrições dos existenciais do ser-aí que se atinge o solo negativo
estruturador da existência humana, e por meio disso, a impossibilidade de uma ciência
positiva acerca do homem, ao modo das ciências naturais e da psicologia tradicional. O
lugar do homem é o mistério de seu fundamento nulo, esse mistério nunca é passível de
algum esclarecimento genial10. Se encaradas de forma contundente, as conquistas
heideggerianas exigem da psicologia uma transformação. Transformação essa que hoje
se ensaia. Mais afrente a própria situação atual da psicologia será detidamente
trabalhada.

10
Nesse sentido Freud, Lacan, e a psicanálise de uma forma geral, soam por demais ingênuos em suas
hipóteses interpretativas. O modo como lidam com o caráter nulo do fundamento humano, ao modo do
inconsciente e da falta, é por demais superficial para a densidade própria do mistério íntimo do ser-aí,
que nunca se apresenta como passível de encerramento teórico pleno.
48

Por fim resta esclarecer que o presente capítulo se encarregou da tarefa de


explicitar os principais pontos do pensamento heideggeriano que interessam
imediatamente a investigação do tédio como tonalidade afetiva da era da técnica. Não
houve preocupação com o desenvolvimento de temáticas não menos importantes de seu
pensamento, como a angústia, o ser-para-morte e a culpa11. Não que o tema do tédio
não traga para jogo tais temáticas, mas a linha que o presente trabalho percorre é a de
realçar a relação do tédio com o caráter de fuga de si-mesmo que seu acontecimento
requisita dos seres-aí em geral. Aqui é preciso fazer uma pausa de modo que seja
possível introduzir a noção de tonalidade afetiva (Stimmung), para que posteriormente
possa se falar de tédio e de sua relação com o horizonte histórico contemporâneo.

11
Um bom meio de se voltar para questões que envolvem especificamente o tédio e a finitude em suas
concreções contemporâneas é o livro Tédio e Finitude (FEIJOO, 2012).
49

3 TONALIDADE AFETIVA DO TÉDIO

Aí há homens que vivem, pálidos, sem cor,


e morrem sem saber por que sofreram.
Rainer Maria Rilke

3.1 Tonalidade afetiva

Foi visto até aqui, que apesar de todo rigor com que Husserl desenvolveu seu
pensamento, Heidegger reconheceu na fenomenologia resquícios de vícios do
pensamento tradicional, como a ideia de encerrar as vivências fenomenológicas em um
“ego transcendental”. No entanto, foi somente a partir do exercício do pensamento
fenomenológico que Heidegger encontrou o caminho de entrada para o questionamento
do ser, tomando como veículo de análise o homem (ser-aí). Heidegger se utilizou dos
ensinamentos de Husserl para delimitar precisamente o modo mesmo pelo qual a
existência se dá, reconhecendo principalmente o co-pertencimento e a co-originariedade
entre homem e mundo, de um tal modo que tal relação se posiciona em razão de uma
fragilidade ontológica inerente ao ser-aí. Fragilidade esta que lança o ser-aí, a princípio,
na impessoalidade. Foi visto que a impessoalidade seria como uma “etapa” necessária
para a inserção do ser-aí no campo propriamente dito das possibilidades, do poder-ser,
no campo do peso existencial e do tempo em sentido originário.
O desenvolvimento dessas temáticas ao longo do texto se fez importante
principalmente no que tange a busca por uma compreensão mais bem fundamentada
acerca do horizonte histórico atual, que de uma maneira ou de outra se faz ver de
diversas formas e diversos aspectos. No presente capítulo chega o momento de delimitar
o que propriamente se mostra como tonalidade afetiva, e de que maneira se configura o
tédio, para que no quarto, e último, capítulo possa ser indicado o movimento que torna
possível o tédio como afinação epocal, por meio de uma breve explanação do que
Heidegger chama de abandono da questão do ser.
Primeiramente é preciso revisitar uma questão que fora propositalmente deixada
em aberto no segundo capítulo. Essa questão diz respeito ao modo de “acesso” do ser-aí
50

ao espaço que ele mesmo é. Como já foi visto, o ser-aí não possui uma internalidade a
partir da qual experimenta o mundo. Consequentemente sua experiência de mundo não
é feita mediante conceitos tradicionais como sentimentos e afetos, uma vez que estes
partem do pressuposto de que há um mundo empírico que a partir de si atinge a
subjetividade humana fazendo com que este experimente uma sensação específica na
sua lida com os entes. Tais noções dão a entender que o mundo é por si mesmo neutro e
que, a partir do momento em que o homem se vê por ele afetado, há automaticamente
um processo de falsificação desse espaço neutro na direção de um sentimento ou afeto
específico. Portanto, para o pensamento tradicional, os sentimentos e afetos participam
de um mero processo de adorno da realidade, que de certa forma distancia o homem
daquilo que a realidade neutra por si mesma é.
No entanto, mundo para Heidegger não é um mundo empírico previamente
delimitado, não é um espaço potencialmente comprovável e determinável de uma vez
por todas. Ele não é comprovável justamente porque sua experiência só é e só pode ser
feita de maneira fenomenológico-hermenêutica, de forma que mundo se dá enquanto
fenômeno ao invés de estar simplesmente presente e apto a ser percebido por uma
subjetividade. Ao ter reconhecido tal fato na maneira como o ser-aí experimenta mundo,
Heidegger se deparou diante da situação de ter de delimitar o modo mesmo pelo qual
essa experiência acontece sem lançar mão das conceituações tradicionais explicitadas.
Para tanto reconheceu as tonalidades afetivas.
Tonalidade afetiva se refere ao modo mesmo como o ser-aí se encontra
“sintonizado” com o mundo que ele mesmo é; corresponde à “afinação” do ser-aí com
seu espaço performático, é o modo concreto com que mundo se pronuncia na sua
mostração. Ao se dizer isso supera-se a noção tradicional de que é apenas vez por outra
que alguma tonalidade afetiva “colore” a existência humana. Ao invés disso, há a
certeza de que elas se fazem presente incessantemente e são condições de possibilidade
para a experiência fática de mundo.
Contudo, esse “estar presente” da tonalidade afetiva não diz respeito a um estar
presente semelhante à presença de um ente físico no espaço. A presença da tonalidade
afetiva se dá sob o modo específico com que mundo se revela concretamente, de
maneira que sua presença se estabelece como uma “presença-ausente”: uma tonalidade
afetiva não pode ser vista, ela não está aí simplesmente dada em algum lugar, mas ao
mesmo tempo é ela que perpassa o ente em sua totalidade, se estabelecendo no “como”
51

da mostração do mundo. Com relação às tonalidades afetivas Heidegger (2003, p. 81)


escreve:

Uma tonalidade afetiva é um jeito, não apenas uma forma ou um padrão


modal, mas jeito no sentido de uma melodia, que não paira sobre a assim
chamada presença subsistente própria do homem, mas que fornece para este
ser o tom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seu ser.

O caráter de “ausência” da tonalidade afetiva confere a ela o poder de se


estabelecer como se não estivesse presente, ao mesmo tempo em que afina de maneira
total os entes em geral. Essa característica da tonalidade afetiva torna possível a ideia
comum de que cotidianamente nenhuma tonalidade está evidentemente afinando o ser-
aí, de maneira que, para o entendimento mediano, seu acontecimento fica restrito a
situações-limite em meio às quais o ser-aí se encontraria por ventura exposto. Essa
certeza cotidiana trás consigo a ideia de que no momento em que tais situações por
ventura deixassem de se apresentar, o ser-aí estaria apto a retornar à neutralidade de seu
cotidiano sem afinação alguma. Todavia, são nesses estados de coisas que,
cotidianamente, a presença da tonalidade afetiva se torna mais enraizada e influente,
justamente quando ela se faz como se não estivesse presente a sua “presença” é mais
avassaladora:

Exatamente porque a essência da tonalidade afetiva consiste em não ser


nenhuma manifestação paralela, mas nos remete para o fundamento do ser-aí,
ela permanece velada ou disfarçada para nós. É por isso que apreendemos
inicialmente a essência da tonalidade afetiva a partir do que a princípio se
abate sobre nós: a partir dos rompantes extremos da tonalidade afetiva, a
partir do que irrompe e se dissipa. Porque tomamos a tonalidade afetiva a
partir dos rompantes, elas parecem ser eventos entre outros e
desconsideramos o ser afinado de modo peculiar, a tonalidade afetiva que
atravessa originariamente todo ser-aí enquanto tal (HEIDEGGER, 2003, p.
82).

E ainda:

E exatamente as tonalidades afetivas paras as quais não atentamos de maneira


alguma e que observamos ainda menos, as tonalidades afetivas que nos
afinam de um tal modo que tudo se dá para nós como se nenhuma tonalidade
afetiva estivesse aí, como se nós não estivéssemos absolutamente afinados:
exatamente estas tonalidades afetivas são as mais poderosas (HEIDEGGER,
2003, p. 81).

Os trechos acima evidenciam a tonalidade afetiva como o tom sempre presente


da mostração do mundo. A reboque desse fato é possível se dar conta de que sem as
52

tonalidades afetivas a experiência de mundo simplesmente não aconteceria. Sem ela


haveria a falta de um conteúdo explicitador de mundo, de modo que sua vivência se
tornaria impossível. A par disso, quando se volta a atenção para o modo de mostração
do ser-aí em sua cotidianidade mediana um importante dado vem a tona. O ser-aí
cotidiano age como se nenhuma tonalidade afetiva estivesse afinando sua experiência de
mundo. Como já foi visto, a cotidianidade é marcada por uma autonomização dos
sentidos sedimentados pelo mundo já sempre presente e uma correspondente lida prática
do ser-aí com suas demandas. Para que tal imersão no impessoal seja feita, um modo de
afinação que promova impessoalidade deve permitir que o ser-aí permaneça operante
em seu mundo de maneira irrefletida. Essas afinações que inserem e unem ser-aí e
impessoalidade são chamadas de tonalidades afetivas cotidianas.
Não é necessário aqui desenvolver cada uma das possíveis tonalidades afetivas
cotidianas, o que se torna necessário é esclarecer, outra vez mais, que tais tonalidades
sempre estão presentes sem que com isso se mostrem enquanto tal, justamente porque
elas são o “como” da experiência de mundo cotidiano, e se ocultam em função de sua
proximidade. Elas são responsáveis pelo laço justo entre impessoalidade e ser-aí,
fazendo com que o acontecimento cotidiano se desenvolva sem percalços maiores. No
entanto, há determinadas tonalidades afetivas que não são cotidianas e que possuem
relação íntima com o cerne do ser-aí enquanto tal.
As tonalidades afetivas que não são cotidianas têm o poder de retirar o ser-aí da
imersão irrefletida no impessoal e de confrontar o ser-aí consigo mesmo. Em razão da
conexão dessas tonalidades afetivas com a experiência do ser-aí em sua essencialidade,
enquanto de fundamento nulo de si-mesmo, tais tonalidades afetivas são chamadas de
tonalidades afetivas fundamentais. Um exemplo de tonalidade fundamental é a
angústia. Ela torna possível o estranhamento do mundo dado, uma vez que desempenha
uma aproximação do ser-aí com seu cerne nulo. Ao aproximar o ser-aí de seu
fundamento inexistente, a angústia promove uma exuberância desmedida do mundo, de
modo que tudo se torna repentinamente possível. Ela lança o ser-aí numa indiferença
existencial que o paralisa, pois onde tudo é possível nada se mostra como necessário e o
foco mais básico para as ações cotidianas se perde. No entanto, na maior parte das vezes
quando a angústia se pronuncia, ocorre prontamente uma atividade de supressão dessa
atmosfera no sentido de reinstalar a familiaridade com o mundo. Isso ocorre na medida
em que um tal estranhamento tem relação com a abissalidade da ausência de solo seguro
originário, e a partir do momento em que o ser-aí se confronta com seu fundamento
53

nulo, busca um retorno imediato para a segurança dos sentidos e significados


sedimentados do mundo. A angústia serve para exemplificar um certo tipo de afinação
com o mundo que não possui época histórica específica para acontecer. Onde e quando
existirem homens, existirão angustiados, pois essa é a marca indelével de sua relação de
tensão com o ser.
Além da angústia, Heidegger aponta também para uma tonalidade afetiva
fundamental que precisa ser despertada, uma vez que se encontra extremamente
“presente” nas ações humanas em geral. A referida tonalidade afetiva é a do tédio. A
compreensão heideggeriana de despertar o tédio se encontra para além de uma
intelecção racional que só faz identificar de maneira erudita o que ele, tédio, significa, e
como as coisas se dão quando o tédio se faz presente. Heidegger tem em vista tornar
possível uma experiência dessa tonalidade afetiva de modo fático, de modo que ela
tenha “algo a dizer”, e que possibilite uma ação plena possível.
Heidegger chama o tédio de tonalidade afetiva fundamental fática. Ela é assim
chamada de “fática” porque, ao contrário da angústia, ela se encontra completamente
vinculada a um período histórico específico e não diz respeito apenas ao que de maneira
ontológica constitui o homem, mas está ligada ao horizonte histórico contemporâneo.
Em função de se estabelecer como presença-ausente, Heidegger fala em um despertar
do tédio na medida mesma em que considera o tédio como uma afinação vigorosa, sem
que com isso seja apreendida plenamente em seu acontecimento. Esse caráter de
ausência inerente às tonalidades afetivas em geral conferem a elas outra vez mais a
permissão para que se instalem de forma inabalável. Portanto seu intuito inicial é o de
possibilitar, a partir de uma “escuta” ao tédio, o que de essencial está sendo “dito” por
essa tonalidade fundamental fática, que afina a abertura do ente na totalidade no que
tange ao homem contemporâneo.

3.2 O tédio

De início há de se esclarecer uma possível objeção: como evidentemente se pode


ter certeza, de maneira absolutamente concreta, que o tédio se instala de forma
abrangente no tempo atual? Como é possível se certificar de que, de fato, o tédio se
instala? Como é possível garantir a realidade dessa situação e afastar a compreensão de
54

que o tédio como tonalidade afetiva fundamental não passa de uma simples opinião?
Quanto a isso simplesmente não há resposta alguma. O pensamento heideggeriano
quando confrontado frontalmente por ultimatos se retrai e se desvincula do seu âmbito
argumentativo próprio. Como já foi visto, Heidegger não faz teorizações, ele tenta
muito mais uma inserção do homem em seu modo mesmo de dinâmica existencial, de
modo que para isso simplesmente não há “provas”. Provas empíricas não acontecem no
mesmo nível de originariedade de seu questionamento. Portanto, ou simplesmente o que
está sendo dito encontra sua escuta própria ou tudo não passa de meditações vazias e de
jogo de palavras que em nada tocam o que há de essencial no homem. No livro Os
conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude – solidão, Heidegger reconhece
três modos possíveis de instalação do tédio: o ser-entediado-por..., o entediar-se-junto-
a... e o tédio profundo. De início, será dada atenção à primeira forma do tédio.

3.3 O ser entediado por...

Heidegger não quer que seu pensamento recaia em imposições teóricas ou


adequações forçosas, apenas procura que o centro das experiências em geral venham a
plena luz em seus respectivos acontecimentos. Para tanto Heidegger foge de definições
acerca do que é o tédio e procura muito mais uma reambientação ao seu modo de
ocorrência no cotidiano. Ele diz:

Precisamos justamente evitar que venhamos a nos perder em enfoques


tradicionais artificialmente instituídos ou fixamente cristalizados, ao invés de
manter e sustentar a imediatidade do ser-aí cotidiano. O que vale não é o
esforço por nos familiarizarmos com uma posição particular, mas,
inversamente, a serenidade da visada cotidiana livre – livre das teorias
psicológicas e outras mais da consciência, de teorias sobre o fluxo de
vivências e coisas do gênero. Mas, como estamos impregnados por tais
teorias – frequentemente já na compreensão mais imediata e no
esclarecimento de significações vocabulares –, é seguramente muito mais
difícil em si esta serenidade do que aprender a gravar inúmeras teorias.
Precisamos compreender a partir daí a aparente circunstancialidade, com a
qual buscamos nos aproximar de um fenômeno tão trivial quanto o tédio.
Esta aproximação tem o sentido de um afastamento de tudo o que se acerca
de tais posições (HEIDEGGER, 2003, p. 110).

Uma vez que a postura é a de aproximação em relação ao tédio, ao invés de sua


inquirição direta, o primeiro contato com a tematização dessa tonalidade afetiva deve
55

acontecer a partir de uma situação em meio a qual o seu acontecimento seja corriqueiro.
Nesse sentido Heidegger fornece um exemplo: a espera da chegada de um trem por uma
pessoa qualquer em uma estação ferroviária. Grosso modo, a situação é a seguinte: uma
pessoa se encontra sentada numa estação de trem, esta estação localiza-se no interior
mais remoto de uma cidade qualquer. A estação não é familiar, muito menos atrativa,
pois se insere numa região extremamente inóspita. Além de tudo ela é comum, é uma
estação como qualquer outra. Por algum motivo a pessoa em questão chega à estação 4
horas antes da partida do trem de modo que não há outra alternativa senão esperar. Ela
tenta ler um livro, por alguns instantes chega a ter a impressão que de fato lê, mas não
consegue mantê-la por muito tempo. Olha ao redor desinteressadamente à procura de
algo que a prenda e repentinamente focaliza os gráficos indicadores de diversas estações
das quais nunca ouviu falar e calcula mentalmente a distância entre elas. Quando olha
para o relógio novamente se passaram 5 minutos. Uma aflição toma lugar e é preciso
fazer alguma coisa para que tal situação não piore. É preciso sair dali. Ela vai à rua, mas
nada muda essencialmente. Ela conta o número de árvores, conta de quanto em quanto
tempo alguma pessoa passa, desenha figuras aleatórias na areia e se pega novamente
olhando para o relógio: agora já se passaram 10 minutos desde o começo de seu
sofrimento.
Essa é uma situação que não é estranha a quem lê. De certa forma sua leitura
estimula um certo desconforto semelhante ao experimentado por diversas situações que
se passam no cotidiano das grandes cidades. Mas como é possível determinar
exatamente do que tanto se foge numa situação como essa? O que causa tanto
desconforto? Foge-se e se quer aplacar o tédio. Mas o que “é” propriamente o tédio? E
porque isso, que nem se sabe ao certo o que é, é tão chato? Nesse ponto é preciso apelar
ao termo “tédio” em alemão, que é autoexplicativo. Em alemão tédio se escreve die
Langeweile. Essa palavra é formada pela junção de um substantivo (Weile) a um
adjetivo (lang) que juntos desempenham o sentido de “instante longo”, “momento
longo”. Portanto no tédio há um “alongamento” do tempo. O tempo se torna
insuportavelmente longo quando o tédio se instaura, de forma que ao seu menor anúncio
alguma coisa precisa ser feita imediatamente para aplacá-lo. No entanto, esse
alongamento do tempo em nada tem a ver com o período de tempo objetivo que uma
pessoa tem de ficar a espera que algo aconteça. Muitas vezes um momento
insuportavelmente longo de tédio dura 5 minutos, outras vezes mais, outras vezes
menos. Apesar disso, o decisivo não é quanto tempo objetivamente se experimenta uma
56

situação entendiante, mas o que propriamente acontece quando uma situação qualquer
de tédio se anuncia, bem como o que acontece quando se lança mão de certos recursos
para espantá-lo.
Como foi visto, ao menor sinal de que o tédio pode se instalar há a tentativa
imediata de sufocá-lo. Quando uma pessoa conta árvores, desenha figuras aleatórias na
areia, ou lê um livro que nem a interessa tanto, o que ela está querendo fazer é se ver
livre desse tempo hesitante e por isso se vê obrigada a lançar mão das mais diversas
estratégias para consegui-lo. Tais estratégias que invariavelmente surgem com o tédio
são chamadas de passatempo. Sem brecha para dúvidas, toda vez que houver tédio
haverá um passatempo correspondente. O passatempo, por sua vez, possui
rigorosamente apenas um objetivo específico: matar o tempo que se alonga. O
passatempo é o “instrumento” utilizado para desviar o olhar do tédio, que se anuncia tão
inóspita que inviabiliza de imediato a sua simples permissão a se aproximar. Apesar
desse caráter destruidor do passatempo, um olhar ligeiramente mais demorado ao que
ele busca é capaz de reconhecer na atitude de “matar o tempo” uma certa libertação da
sensação de clausura que a hesitação do tempo trás consigo. No que se refere ao
presente trabalho, tal fato será decisivo mais adiante.
Retornando ao exemplo dado, nada se dá à pessoa em questão como se ela
estivesse plenamente a par da lentidão do tempo e quisesse, por esse motivo explícito,
fazer alguma coisa com isso. Ela muito mais se volta contra uma situação que mal sabe
dizer propriamente qual é, mas sabe muito bem que ela é “chata”. Essa “chatice”
inexplicável e que mal consegue ser experimentada senão por instantes direciona
imediatamente para uma libertação imediata, que é não sentir de maneira alguma a
hesitação do tempo, de forma que o tempo e sua experiência desagradável fiquem
anestesiados12.
Até o presente momento foi visto que na primeira forma do tédio, o ser-
entediado por..., o ser-aí se encontra a beira de se confrontar com o tédio, e que o tédio
se configura como uma hesitação do tempo, um “alongamento” do tempo. Foi visto que

12
Algumas noções equivocadas podem surgir a partir daqui. Mesmo que de maneira bem distante o
passatempo tenha uma ligação com a libertação, o que ele faz, e somente faz, é tornar o tempo
insignificante ao invés de permitir que se dê de maneira hesitante pelo tédio. Esse esclarecimento
salvaguarda de má interpretação os acontecimentos que, assim como aqueles que acontecem durante o
exercício do passatempo, retiram o ser-aí da experiência mais imediata do tempo. De forma alguma o
que acontece com alguém que se dedica imensamente a algo que gosta de modo a não se dar conta de
que um dia inteiro passou é a mesma coisa que acontece quando alguém vê televisão e quando se dá
conta já é noite. Apesar de aparentemente se tratar do mesmo fenômeno de “rápida passagem do
tempo”, as duas situações não dizem respeito ao mesmo acontecimento.
57

esse tempo, que teima em não passar logo, direciona inequivocamente o ser-aí a um
correspondente passatempo, que tem por único objetivo neutralizar esse tempo
hesitante. No entanto, são dois os momentos importantes e estruturais da tonalidade
afetiva do tédio. O primeiro deles, como foi visto, é a retenção do ser-aí em um tempo
hesitante. O segundo é que a experiência de tal tempo hesitante ocorre conjuntamente à
serenidade vazia.
Em relação à serenidade vazia, quando uma estação entedia a quem espera pelo
trem que não chegará tão cedo, o que ocorre é a simples entrega de um espaço fora da
possibilidade mesma da qual ela é espaço. Uma estação que não possui um trem que
siga viagem prende o ser-aí em um vazio que não o orienta para prática alguma,
forçando-o a forjar para si alguma coisa com a qual se ocupe, um passatempo. Sendo
que esse passatempo não possui evidentemente compromisso algum com o que se
pratica em seu ato e nem do que dele advém. O que leva a pensar que, mesmo ao se
livrar da “inconveniência” de um espaço sem sentido, há uma permanência no vazio,
sob a ilusão de que se faz alguma coisa.
Portanto, ao se questionar o tédio no seu primeiro modo, algumas características
próprias ao seu funcionamento já se conquistam. Há na tonalidade afetiva do tédio uma
relação íntima dessa tonalidade com o tempo e seu ritmo. O tédio se relaciona
propriamente com a temporalização do ser-aí. No tédio o tempo hesita, ele se torna
cansativo, se torna longo demais para ser aceito. O ser-aí se encontra repentinamente
retido por essa hesitação do tempo. Por isso remete imediatamente ao passatempo, que é
o seu antídoto mais imediato. Na mesma linha de acontecimento da retidão em um
tempo hesitante, co-pertencente a ela, há o “deixar vazio” que a serenidade vazia do
tédio promove, de modo que o que resulta de uma situação entediante é a entrega de um
espaço que “não diz nada” ao ser-aí. No tédio, o ser-aí se insere na experiência de um
ralentamento temporal co-pertencente ao vazio de um espaço, que ele mesmo é, e que
não lhe permite muita coisa.

3.4 O entediar-se junto a...

Apesar de diferenciar três formas de tédio, Heidegger não quer com isso
estabelecer a existência de três acontecimentos distintos, pelo contrário, quer revelar
58

como esses três eventos concernem a um único fenômeno que afina o ser-aí
contemporâneo de maneira geral. Enquanto no primeiro tédio o entediante se faz
presente a partir de uma situação específica, como se pudesse ser dito que ele se impõe
ao ser-aí de “fora”, o que acontece na segunda forma do tédio é diferente da primeira.
Para a segunda forma do tédio Heidegger narra uma segunda história, que é a seguinte:

Fomos convidados para ir a um lugar qualquer à noite. Não precisamos ir.


Mas tivemos um dia tenso e à noite temos tempo. Assim, vamos. Há aí a
comida de sempre com as conversações de sempre à mesa. Tudo não está
somente de fato saboroso, mas também de muito bom gosto. As pessoas se
sentam juntas depois animadamente, talvez ouçam música, conversem: tudo é
espirituoso e divertido. Já é tempo de ir embora. As senhoras asseveram, e
não apenas ao se despedirem, mas também no andar de baixo e do lado de
fora, onde já estão entre si: '-Foi realmente muito legal'; ou: '-Foi
extremamente estimulante'. De fato. Não se encontra nada que pudesse ter
sido entediante nesta noite; nem a conversação, nem as pessoas, nem os
ambientes. As pessoas voltam, portanto, totalmente satisfeitas para casa. Elas
ainda dão uma rápida olhadela sobre o trabalho interrompido à noite, fazem
um cálculo aproximativo e uma consideração prévia do que tem de ser feito
no dia seguinte – e, então, aparece aí: eu entediei-me efetivamente esta noite,
em meio a este convite (HEIDEGGER, 2003, p. 132).

Pela simples presença de uma história diversa da primeira, a segunda forma do


tédio já se lança em diferentes níveis de acontecimento. Não no sentido de que os
momentos estruturais da primeira forma do tédio (retenção do tempo e serenidade vazia)
não se encontrem mais na segunda. Tudo está presente nela também, inclusive o
passatempo. Mas como é possível reconhecer isso numa situação que simplesmente não
dá abertura para que algo como uma retenção do tempo ou a entrega de um espaço vazio
fosse sentido e, consequentemente, se fizesse necessário um passatempo
correspondente? Todo instante da festa foi completamente dinâmico, vívido e prazeroso,
de modo que não se experimentou a serenidade vazia nem a retenção no tempo
hesitante. Mas ainda assim o que há é a completa entrega à presença do tédio.
Tudo nessa situação se encontra ainda imensamente confuso, não é fácil
encontrar nela uma situação tão bem desenhada quanto na primeira. No entediar-se-
por... uma situação específica retira o ser-aí de seu dinamismo e alonga o seu tempo
pelo esvaziamento do seu espaço. Mas como isso se mostra agora? Há na segunda
forma do tédio uma indeterminação quanto ao que é entediante e uma desconfiança
acerca se seu acontecimento realmente se dá ou não, pois não há a experiência de
ralentamento temporal. Da mesma forma como a inserção no tédio não pôde ser feita de
maneira abrupta na primeira situação, aqui a postura com relação à entrada em seu
próprio âmbito também deve ser indireta, de modo que ao invés de se perguntar
59

frontalmente pelo o que acontece com o tédio nessa situação, é preciso primeiramente se
inserir no acontecimento de sua fuga, ou seja, no passatempo.
No segundo “tipo” de tédio simplesmente não há situação entendiante. Não no
sentido de que no entediar-se-junto-a... simplesmente não acontece um tédio
considerável, mas que entediar-se-junto-a... remete a um “não sei o quê”. O que é
entediante é algo indeterminado que se articula com o aquiescimento ao convite da
festa. Uma vez que o convite é aceito o ser-aí então presente na festa se movimenta em
um “deixar rolar” que, de forma contrária daquela que no primeiro tédio era a
serenidade vazia, o mantém imerso nos acontecimentos do seu espaço, ao invés de
lançá-lo na busca incessante de algo para fazer. Essa imersão nos acontecimentos da
festa inviabiliza a sensação de retenção no tempo hesitante, de modo que a retenção
típica do entediar-se-por... simplesmente não é sentida no entediar-se-junto-a...
Outra vez mais comparativamente, no primeiro tédio o ser-aí é forçado a se
deparar com uma situação na qual lhe é imposto um espaço vazio. O tempo se retém e o
ser-aí se vincula a uma paz superficial e irritante. A reboque, o passatempo trás a
tentativa vã de reinserção nesse espaço, mas o que ele somente faz é reinserir o ser-aí de
maneira mais contundente no vazio. No segundo tédio o que acontece é que o próprio
ser-aí busca para si o esvaziamento do espaço em meio ao qual vai se inserir. O ser-aí
busca escapar de si-mesmo. Heidegger diz:

Reside aí um deixar rolar peculiar, e mesmo em um sentido duplo: em


primeiro lugar, no sentido de deixar-se-para-trás, do abandonar-se, do deixar-
para-trás si-próprio mesmo. Neste deixar-rolar característico da entrega ao
que aí se transcorre por parte do que se deixa para trás pode formar-se um
vazio. O ser-entediado ou o entediar-se são determinados por esta formação
de um vazio em meio à participação aparentemente preenchida no que aí se
transcorre. Também aqui, portanto, na segunda forma do tédio, encontramos
uma serenidade vazia; e, em verdade, uma forma essencialmente mais
profunda da serenidade vazia do que a do caso precedente. A serenidade vazia
consistia lá simplesmente na ausência de preenchimento. Ela consistia no fato
de determinadas coisas, com as quais buscamos uma diversão e ocupação, se
nos recusarem. Aqui, contudo, não permanece apenas um vazio não
preenchido, mas forma-se justa e efetivamente um vazio. Este vazio é o
deixar-se-para-trás de nosso si-próprio mesmo (HEIDEGGER, 2003, p.
143).

Heidegger fala em um abandono do ser-aí por ele mesmo porque no entediar-se-


junto-a..., o ser-aí procura para si mesmo uma anulação bastante eficiente do tempo e do
espaço. O ser-aí “tem” tempo para a festa. No caso específico do exemplo, o tempo
60

entre o trabalho e o sono. Ele direciona seu foco e seu tempo para o acontecimento de
esquecer de si-mesmo. Ele procura se deixar vazio, se anular.
Assim como no ser-entediado-por..., os dois momentos estruturais do tédio
também acontecem: a retenção do tempo e a serenidade vazia. No entanto, ambas se
transformam e se fazem presentes de diferentes maneiras. O “deixar rolar” que concerne
à atmosfera da festa corresponde à serenidade vazia da primeira forma de tédio. A
diferença consiste no fato de que o “deixar rolar” absorve o ser-aí no espaço ao invés de
direcioná-lo para a fuga do tédio. O “deixar rolar” torna o ser-aí extremamente presente
em toda a situação. Só que essa presença e absorção no espaço acontecem de modo que
se tem a clara impressão de que muita coisa acontece. Mas esse “acontecer” é um mero
acontecer tático entre os entes simplesmente presentes no espaço da festa, de modo que
o que se dá nisso tudo é o próprio afogamento na serenidade vazia, transfiguradamente.
Na serenidade vazia os entes em geral não transmitem nada de importante e assim o é
nesse “deixar rolar”. Essa total imersão no presente trás consigo a retenção do tempo,
afinal tudo na festa impressiona: a comida é boa, as companhias são agradáveis, há uma
atmosfera prazerosa de diversão etc. Tudo é tão bom na situação que ela passa muito
rapidamente, como se fosse um único instante. Essa é precisamente a retenção do
tempo. A festa inteira se desenrola como se não houvesse vinculação nenhuma com o
tempo. O ser-aí busca na festa uma desvinculação com o tempo. Quem nunca ouviu a
expressão “como se não houvesse amanhã”, frequentemente dita por quem deseja se
entregar completamente a um evento ou festa? O que ela revela é justamente isso: a
vontade de deixar o passado para trás, esquecer-se do futuro e se entregar
completamente a um presente que passa como num segundo. Passado e futuro não são
separados, como se houvesse uma clivagem. Eles são esquecidos em nome do “agora”.
Isso se desdobra dessa forma pelo fato do tempo, na segunda forma do tédio, se resumir
a um presente estagnado na totalidade gratuita do seu espaço simplesmente dado, onde
muita coisa divertida e interessante pode acontecer, e geralmente acontece, mas nada
que diz respeito essencialmente ao ser-aí de fato tem início. Pois o que se dá nessa
situação é que a própria festa é o passatempo do tédio e, como foi visto, o passatempo
não é outra coisa se não uma imersão maior no vazio que a própria situação por si
mesma é.
É importante frisar que a estagnação do tempo não é um abandono completo do
tempo, o que acontece é o refreamento do fluxo temporal. Por mais que toda festa seja
divertida e prazerosa, ela sempre acaba. Ela sempre acaba porque não há de todo modo
61

uma desvinculação total do ser-aí com a dinâmica do fluxo temporal que ele mesmo é,
fluxo temporal entendido aqui como aquilo que é possibilitado através da
indeterminação que cada ser-aí invariavelmente “é”, a partir de sua relação de tensão
com o ser. Como foi visto, tal indeterminação ontológica sustenta o ser-aí enquanto
poder-ser e enquanto ente marcado pela permissão de ser finitamente si-mesmo. A
desoneração de tal modo de ser é o intuito latente na busca frenética por diversão: adiar
indefinidamente si-mesmo. Esse esclarecimento é necessário porque afasta o
entendimento de que o ser-aí seria completamente capaz de instaurar, a partir de sua
atitude, as medidas de seus próprios acontecimentos. Por mais que o passatempo seja
uma tentativa de anestesiar o ser-aí entediado, há um limite, impossível de ser
delimitado precisamente, que impede a saída total de seu próprio modo de ser, ou seja,
que impede o ser-aí de se desvincular totalmente de si-mesmo.
Definitivamente, o que há no segundo exemplo é que a própria festa é o
passatempo do tédio. No passatempo do entediar-se-junto-a... também acontece uma
mudança. Ao invés dele ser uma postura solta e inquieta, como no ser-entediado-por..,
ele é toda a ação conjunta referente ao convite e, por conseguinte, não salta aos olhos de
maneira peculiar. A festa por si só já é a situação forjada para afugentar o tédio. Mas que
tédio? Tédio em relação a que? Como foi dito, em relação a um “não sei o que”. Esse é
um dos motivos para que a segunda forma do tédio seja dita “mais profunda” que a
primeira. Nessa forma de tédio não há uma imposição “de fora” que força o ser-aí a se
deparar com uma situação específica entediante e que o retira a força do seu ritmo, mas,
nesse segundo momento, o tédio já afina de forma tão impressionante o ser-aí que ele
mesmo se “avalia” desinteressante, vazio, e em função disso se dá tempo para se
anestesiar. De maneira estritamente caricata, enquanto que no ser-entediado-por... o
tédio se remete para “fora”, para uma situação específica, no entediar-se-junto-a... o
tédio se remete para “dentro” do próprio ser-aí. Isso se dá de modo que ao invés de uma
situação qualquer entediar, o que entedia agora é o próprio homem:

O tédio concentra-se cada vez mais em nós, em nossa situação enquanto tal; e
o que há de singular na situação não tem grande importância. De maneira
acessória, ela não é senão aquilo junto ao que nos entediamos, não o que nos
entedia (HEIDEGGER, 2003, p. 136).
62

3.5 O tédio profundo

“É entediante para alguém”, com essas palavras Heidegger define aquilo que se
passa com o ser-aí quando tomado pelo tédio profundo. “É entediante para alguém”. O
que uma expressão como essa poderia revelar? Bem, aquilo que ela expõe é um estado
no mínimo esquisito, no qual o ser-aí é deixado completamente vazio. A expressão
revela que esse esvaziamento é tão arrasador que não é precisamente um indivíduo que
entedia ou frente a uma situação específica ou em relação a si-mesmo, como se pudesse
dizer fortuitamente que “se está entediado pela estação de trem” ou “se está esquivando
do tédio de si”, simplesmente há a supressão de qualquer indicação quanto a uma
experiência existencial que possa ser encarada como “sua”, tudo se torna nulo.
O que de fato ocorre na interpretação do tédio, e que já pode ser visto agora, é
que seus dois primeiros modos são versões mais brandas e amenas do tédio profundo
propriamente dito. De certa forma a primeira e a segunda forma de tédio são anúncios
de um acontecimento que o ser-aí procura a todo custo afastar de si. Esse acontecimento
é o tédio profundo. Nas duas primeiras formas do tédio há uma atitude de fuga em
relação ao desconforto que a tonalidade afetiva do tédio provoca, no entanto na
tonalidade afetiva do tédio profundo simplesmente não há possibilidade alguma de
passatempo. Não há essa possibilidade em razão da tonalidade do tédio profundo forçar
impiedosamente o ser-aí a “ouvi-la”. Ela força o ser-aí a se deparar diante dela sem
escape possível. Não seria apenas inútil se debater contra a profundidade desse tédio a
partir de um passatempo qualquer, mas seria uma desmedida já que ele se impõe
cruamente ao ser-aí. Um passatempo já não é mais admitido:

Enquanto no primeiro caso o empenho se direciona para o abafamento do


tédio através do passatempo, a fim de que não se precise escutá-lo; enquanto
no segundo caso o distintivo é um não-querer-ouvir, temos agora um ser-
obrigado à escuta; um ser obrigado no sentido de uma imperatividade, que
tudo que é próprio possui no ser-aí e que está, por conseguinte, em ligação
com a liberdade mais intrínseca. O “é entediante para alguém já nos transpôs
para o interior de um domínio, em relação ao qual a pessoa singular, o sujeito
público individual, não pode mais nada” (HEIDEGGER, 2003, p. 162).

Na terceira forma do tédio a serenidade vazia se encontra totalmente evidente de


forma simples. Aquilo que se anunciava no ser-entediado-por... e no entediar-se-junto-
a... como a entrega de um espaço vazio completa agora seu “objetivo”. Agora há a total
63

indiferença com relação aos entes em geral. Isso não acontece como se o tédio fosse
tomando cada coisa ao seu tempo e lentamente fosse retirando o sentido de cada coisa
em particular de modo que por fim a totalidade seria esvaziada. Na verdade, tudo em
geral e cada coisa em particular tornam-se, em uma tacada só, indiferentes. No tédio
profundo, não se faz presente nenhuma vinculação do tédio com um determinado
espaço que força tal situação, nem o ser-aí consigo mesmo busca se entediar junto a
alguma situação, mas tudo, de forma contrária a tonalidade da angústia, se mostra como
desprovido de exuberância.
Como já foi visto, mesmo que o ser-aí se encontre “esvaziado” isso não significa
que a constituição do ser-aí enquanto ser-aí seja alterada ou dizimada. Por esse motivo a
expressão “é entediante para alguém” mantém o “alguém”, porque mesmo que o ser-aí
seja recusado pelo ente na totalidade, os entes permanecem aí presentes a espera de se
tornarem realmente o espaço pleno que de fato são. O ser-aí se encontra entregue ao
ente na totalidade que se recusa, mas de alguma maneira ainda se encontra presente para
se recusado. No livro Os Conceitos Fundamentais da Metafísica Heidegger escreve:

Nesta terceira forma do tédio, a serenidade vazia é a entrega do ser-aí ao


ente que se recusa na totalidade. Neste 'é entediante para alguém'
encontramo-nos – enquanto ser-aí – totalmente deixados na mão; não apenas
não ocupados por esse ou aquele ente, não apenas deixados estagnados por
nós mesmos segundo este ou aquele aspecto, mas na totalidade. O ser-aí só se
sustém ainda em meio ao ente que se recusa na totalidade. O vazio não é um
buraco em meio a algo preenchido, mas se refere ao ente como um todo e não
é, apesar disso, o nada” (HEIDEGGER, 2003, p. 166).

O trecho termina fazendo referência ao nada e ao vazio: a diferenciação feita


entre ambas é muito importante. “Nada” é por demais ontológico para se referir ao
tédio. O nada tem relação com a própria abertura de mundo. O nada possui ligação com
a angústia e não com tédio, o nada “é” atemporal. Como já foi explicitado, Heidegger
procura na tonalidade afetiva do tédio uma ligação que tenha algo a revelar sobre a
presente época. O tédio profundo se vincula especificamente com o homem atual, e
“vazio” é um termo para designar que a forma como o horizonte histórico
contemporâneo se abre impede, ou dificulta extremamente, que o ser-aí experimente sua
própria existência de maneira plena. Tal plenitude em nada tem a ver com alguma
sensação permanente e duradoura de conforto e felicidade, e sim com a possibilidade de
vislumbre da densidade misteriosa própria da existência, a experiência desse mistério é
quase impedida pela forma como o horizonte histórico contemporâneo “se entrega”. O
64

homem contemporâneo é atravessado pelo acontecimento do esvaziamento e da


gratuidade de um mundo simplesmente presente, dado como óbvio. Portanto no tédio
profundo o ser-aí é entregue ao vazio. Não a um vazio parcial, mas a um completo vazio
que a tudo toma. Isso tudo se dá sem que, com isso, o ser-aí seja completamente
eliminado do acontecimento mesmo que o constitui enquanto ser-aí. Tudo permanece
presente, mas sem convocação específica alguma. O ser-aí se encontra aí, vazio.
Sabe-se também que o tédio é constituído por dois momentos estruturais: a
serenidade vazia e a retenção do tempo. O que acontece aqui com a retenção do tempo?
De qual forma o tempo se articula com a profundidade desse tédio? Afinal, o tédio
possui, antes de tudo, uma relação muito específica com o tempo. Nos dois primeiros
casos há um ralentamento do tempo, ora promovido à força pelo espaço, ora promovido
pelo próprio ser-aí que busca para si o seu esvaziamento. Na última forma do tédio não
há, no entanto, ralentamento algum. Assim como não há ralentamento não há fluxo
temporal. Isso se dá porque no tédio profundo o que acontece é que o ser-aí se encontra
retirado para além de um tal fluir e de uma tal inércia. O tempo não ralenta, ele se retira.
Ele se retira de tal forma que o ser-aí não encontra mais acesso ao ente, que se recusa na
totalidade. O tempo se desarticula na simplicidade de um espaço nulo, de modo que a
gravidade do tédio profundo é propriamente a gravidade do tempo que se retira,
invalidando o espaço que se abre.
Heidegger procura com seu pensamento “despertar” essa tonalidade afetiva
adormecida. É esse tédio profundo que afina incessantemente as práticas cotidianas
mais banais e comuns. É esse tédio que paira por sobre o ser-aí contemporâneo,
lançando sobre ele uma sombra. O intuito de Heidegger com o deixar vir à tona o tédio
não é o de afundar ainda mais o ser-aí no vazio que se instaura, mas de tentar fazer com
que o tédio profundo seja “ouvido”, pois ele poderia ter evidentemente “algo a dizer”.
Mas como o tédio pode ter algo a dizer se o que ele faz é amortizar o ser-aí? Como é
possível que se proponha o despertar de uma tonalidade afetiva desse tipo? Não seria
óbvio que numa situação como essa o combate enérgico do tédio profundo seria a
solução mais lógica? Acontece nesse momento uma das muitas conclusões peculiares
que o pensamento de Heidegger impõe: aquilo mesmo que é a condenação, no caso o
tédio, acena para os caminhos de sua própria superação. Enquanto que sua libertação
mais óbvia, sua fuga, condena o ser-aí cada vez mais ao vazio, “olhar o tédio nos
olhos”, acolher sua “presença”, “escutar” o que ele tem a dizer é capaz de tornar
possível, e aqui é importante frisar o seu caráter de “mera” possibilidade, a reinserção
65

do ser-aí em sua própria essência existencial. Mas o que é propriamente essencial no


ser-aí? Heidegger (2003, p. 176) diz:

O que bane dispõe concomitantemente sobre o propriamente possibilitador:


este tempo mesmo que bane é ele próprio este ápice que possibilita o ser-aí
essencialmente. Desta feita, o tempo que bane o ser-aí anuncia-se enquanto
tal no tédio, dá-se simultaneamente a conhecer como o propriamente
possibilitador. Mas isto que o que bane enquanto tal, o tempo, dá a conhecer
em verdade como justamente recusado; o que ele justamente apresenta como
algo quase desaparecido, como um possível e apenas como tal; o que ele dá a
saber como algo passível de liberação e que propriamente possibilita; o
que ele em última instância libera dando a conhecer não é nada menos que a
liberdade do ser-aí enquanto tal.

E ainda:

O ser-impelido do ser-aí para o interior do ápice do que propriamente


possibilita é o ser-impelido através do tempo que bane para o interior dele
mesmo, em sua própria essência: para junto do instante enquanto a
possibilidade fundamental da existência própria do ser-aí (HEIDEGGER,
2003, p. 177).

Aquilo que o tédio mesmo dá a conhecer por meio de uma indicação é a pertença
do ser-aí ao tempo, não ao tempo simplesmente dado do relógio, mas ao tempo da
singularidade enquanto poder-ser-si-mesmo – no trecho acima indicado pela palavra
instante. “Instante” é um termo que se refere ao filósofo dinamarquês Sören
Kierkegaard e que se relaciona ao ser-aí singular. De maneira geral, aproximando tal
termo da terminologia heideggeriana, designa um decidir-se libertador que reinsere o
homem como ente plenamente aberto a sua essência como poder-ser. Essa decisão é
possível a partir de um confronto do ser-aí consigo mesmo, confronto ao qual o tédio
direciona e indica silenciosamente. O instante é aquilo para que o tédio profundo se
refere ao modo de uma recusa. Somente pelo instante é possível “quebrar” o banimento
do tempo. O instante se vincula a liberdade que todo ser-aí sempre é e será. Nele o ser-aí
se toma como próprio e assume a responsabilidade de ser-si-mesmo. Esse, portanto, é o
ápice velado do ser-aí banido do tempo e precisamente aquilo que o tédio indica e tem a
dizer a partir de uma recusa: o ser-aí é livre.
Curiosamente, a indicação de que o homem é livre se dá ao modo de uma
opressão frente ao alongamento do tempo. O ser-aí é oprimido pelo tédio. Justamente
por isso, como foi visto ao longo do presente capítulo, ao menor sinal desse
alongamento o ser-aí escapa em direção à distração, o que dizima a possibilidade do
tédio dizer o que lhe é próprio e chafurda ainda mais o ser-aí no vazio. Essa sim é a
66

maior penúria do homem contemporâneo: não ter olhos para ver, nem ouvidos para
ouvir aquilo que lhe é aberto. Há uma “cegueira” para o que de essencial há no mundo
contemporâneo sendo que, de fato, pouca coisa acontece com o homem.
O ser-aí permanece de fora de sua própria opressão essencial de modo que
ninguém se encontra junto a si e junto ao outro de maneira plena, e tudo se organiza em
meio a uma encenação um tanto quanto discutível de conforto e felicidade. Há essa
enorme opressão essencial da qual se abre mão em nome dos mais diversos “escapes”
cotidianos. Escapes esses que sempre fornecem as mesmas perguntas e as mesmas
respostas e mantém o ser-aí distante da tarefa que é ter-de-ser-si-mesmo e de sua
grandeza correspondente. Hoje, o homem é convidado a se contentar com a mera
resolução de problemas superficiais, para os quais sempre se tem disponível nas mãos
as respectivas soluções. Por sua vez, o pensamento existencial tem um compromisso
originário com o ser-aí em sua essência nula, isso indica que há um compromisso de tal
pensamento com a preservação do homem enquanto pode-ser, enquanto possibilidade de
singularização, bem como com seus riscos correspondentes. O pensamento existencial
busca manter o ser-aí junto de sua própria riqueza e, consequentemente, junto de seu
próprio risco, pois esta sempre será a condição de um ente que não possui fundamento
algum: ele sempre estará por vir. E o que precisamente impressiona no risco que ronda o
ser-aí atual é que há uma certa aparência de que não se corre risco algum.
Cotidianamente, não há pista alguma do que propriamente acontece com o ser-aí. Não
há nem pista de que se foge do tédio, ou se há não se quer saber o que é esse tédio e o
que ele poderia ter a “dizer”. O homem já não acontece à altura do questionamento que
indica o caminho que poderia reinseri-lo no seu próprio tempo, talvez isso nem lhe diga
mais nada. Qualquer desconforto tem de ser prontamente remediado, anulado em nome
de uma noção extremamente questionável de bem-estar. Simplesmente não se quer
encarar essa “chatice” cotidiana, de modo que o ser-aí busca, cada vez mais, doses
cavalares de diversão. O ser-aí atual necessita de diversão, de um tal modo que nunca
experimente qualquer interrupção em sua dinâmica impessoal de existência. O ser-aí
contemporâneo é constantemente adiado por meio da diversão e sua consequente
manutenção na impessoalidade. A diversão mantém na impessoalidade uma vez que, em
se entregando freneticamente a ela, o ser-aí nunca põe em jogo sua existência mesma e
apenas circula superficialmente por sentidos e significados sedimentados quaisquer. A
diversão enquanto fuga incessante do tédio não abre o ser-aí para uma experiência densa
de si-mesmo. O ser-aí desaprendeu a ser grande e apenas convive, ou não, com a vaga
67

sensação de que algo se encontra fora do lugar. Mas para que se importar com isso se
existem tantas tarefas cotidianas a serem desempenhadas, tantos “objetivos” a serem
cumpridos? Além disso, o que há de tão problemático em um mundo onde tudo pode ser
tão divertido?

Quem nunca exige nada de si nunca pode saber de uma recusa e de um ser-
recusado, mas se embalança sim em meio a um deleite. Ele sempre tem o que
deseja e apenas deseja o que pode ter (HEIDEGGER, 2003, p. 194).
68

4 ERA DA TÉCNICA

[...] então, o domínio da composição não pode se esgotar


em apenas obstruir todo brilhar de cada desabrigar e todo
aparecer da verdade. Então, a essência da técnica deve antes
justamente abrigar em si o crescimento daquilo que salva.
Martin Heidegger

4.1 Esquecimento da questão de ser

Se algo se tornou nítido até aqui foi justamente o caráter de vazio que impera em
relação ao horizonte histórico contemporâneo. Mas a que se deve tal fato? Como pôde
algo desse tipo ter lugar? O que afinal precisamos fazer? Podemos fazer algo? Antes de
fomentar ou buscar respostas para tais perguntas é preciso considerar alguns pontos da
trajetória que Heidegger nomeia de “destino do ocidente”. Destino aqui em nada tem a
ver com um plano previamente traçado para o desenrolar do mundo ocidental. Muito
pelo contrário, destino tem a ver com a possibilidade, sempre radical, de tomada de
caminhos laterais e rotas de fuga. Tem a ver com a concretização epocal específica e
com a tomada de decisões históricas fáticas. No entanto, cedo ou tarde, um caminho
chega ao fim, e chega ao fim não pelo fato de “sua hora ter chegado”, como se a
passagem do tempo meramente atualizasse um acontecimento programado, mas pelo
fato de que qualquer trajetória, necessariamente, encontra seus limites. Destino do
ocidente é uma expressão, portanto, para indicar em essência um esgotamento. Tal
esgotamento é a consumação de um processo histórico de distanciamento do homem de
seu vínculo com a abertura de mundo que ele mesmo é, e que hoje fornece seus
primeiros indícios mais fortes por meio do tédio. O esgotamento se faz sentir e ver pelo
fato de o vazio indicado pelo tédio se apresentar de maneira cada vez mais radical e
galopante, tendo como “sintoma” imediato a busca desesperada por diversão. No
entanto, na medida em que um caminho ganha contornos específicos e definitivos, é
preciso indicar e pensar o modo por meio do qual tal caminho se desenvolveu, bem
como pensar a possibilidade de sua transformação.
69

Aqui a argumentação heideggeriana ganha novos contornos: o que está em jogo


agora não é mais a tematização detida do ser-aí, mas a tematização do acontecimento da
semântica epocal. Como já foi antecipado na introdução, a década de 1930 marca uma
virada no pensamento heideggeriano na direção do que chamou de acontecimento
apropriador. Essa mudança se dá não por um equívoco que invalide Ser e tempo e seu
modo de pensamento, mas por uma mudança de frequência, de camada de pensamento.
No início do trabalho foi visto como Husserl e Dilthey permitem que Heidegger saia de
uma postura teórica e, por meio de seu método fenomenológico-hermenêutico, descreva
o ser-aí em seus momentos estruturais, já que é através do homem que uma tematização
do sentido de ser se faz possível. Há uma trajetória que leva Heidegger de suas
influências mais imediatas para a possibilidade de descrição plena do modo de ser do
homem em seus momentos essenciais em Ser e tempo. O que acontece posteriormente,
de maneira simples, é que tal auxílio do ser-aí não é mais necessário: Ser e tempo
entrega a possibilidade de Heidegger se por na direção radical do espaço e seu modo de
requisitar o ser-aí a partir de si. Heidegger reconhece que Ser e tempo é insuficiente para
aquilo que seu pensamento tem em vista a partir de um determinado momento: a
possibilidade de uma rearticulação histórica. Por isso abandona os termos usados na
obra citada e radicaliza ainda mais seu próprio trabalho. Agora propriamente não é a
respeito do ser-aí que Heidegger tem palavras, mas da semântica histórica, que por si
mesma requisita o ser-aí a partir de si enquanto acontecimento apropriador.
Basicamente, Heidegger reconhece na tradição ocidental um problema bem
específico: o problema do esquecimento da diferença ontológica. De Platão até
Nietzsche, o que Heidegger testemunha é uma miríade ampla de questões filosóficas
distintas e de modos distintos de esquecimento de tal diferença13. Tal ampla gama de
filósofos, e o modo como cada um deles deixa de considerar a diferença ontológica em
sua plenitude, não será aqui minuciosamente explorada. O decisivo é que, para
Heidegger, o projeto filosófico da tradição é marcado por esse esquecimento em
comum. Mas o que significa diferença ontológica? Diferença ontológica aponta para a
completa, total e radical diferença entre ser e ente. Ser “acontece” invariavelmente
como tensão com o ente, como diferença radical. Em tal tensão, o que se abre ao ser-aí
humano é o ser do ente, vinculado a uma medida ontológica possibilitada a partir de sua

13
Não se diz, com isso, que em 25 séculos de filosofia nunca lidaram com o problema da diferença
ontológica, mas apenas que o próprio modo como consideraram tal diferença não faz jus ao modo de
como ela se “dá”.
70

relação com o essenciar-se do ser. O problema se constitui exatamente no modo como a


tradição compreendeu tal diferença entre ser e ente, e no modo míope como considerou,
ou deixou de considerar, o essenciar-se do ser. Para Heidegger (2008, p. 265), a tradição
“transpõe o ser uma vez mais para o interior do ente”. É assim na medida em que, a
princípio considerando a diferença entre ser e ente, a tradição ocidental tentou fixar de
uma vez por todas o essenciar-se do ser em medidas ontológicas estáticas, algo que por
natureza simplesmente está fora de qualquer possibilidade de sucesso. A partir do
espanto inicial grego com a abertura da physis em seu des-velamento (a-létheia),
repetidamente abdicou-se do caráter velado daquilo que por si mesmo surge em direção
a sua tematização explícita mostradora: a ideia platônica, a ousia aristotélica, a
substantia medieval etc., apontam para o esquecimento da diferença ontológica e
indicam a pretensão da tradição em alcançar definitivamente o ser do que se abre. O que
Heidegger mostra, por conseguinte, é que tal possibilidade de fixação é algo impossível.
É assim na medida em que quando se pensa o essenciar-se do ser em seu caráter
formador de ontologias, ser já se “recolheu” em sua radical diferença infinita. Ser, ao
mesmo tempo em que permite a configuração de uma determinada ontologia, aponta
para um caráter de reserva em tudo que se mostra; reserva abissal e infinita. Justamente
por isso não se pode dizer que Heidegger pensa o ser, mas que apenas tematiza a
diferença ontológica e suas repercussões. O “sonho” da tradição ocidental e, portanto,
metafísica, é poder fixar o ser como fundamento estático da realidade, desconsiderando
o caráter inegavelmente finito que o essenciar-se do ser impõe a qualquer semântica
ontológica. Para tal característica da tradição, Heidegger (2006, p. 56) cunha a
expressão “onto-teo-lógica”, i.e., ela tem o caráter de discurso (lógica) que tematiza o
ser (onto), determinando-o como fundamento eterno (teo). Em suma, ele reforça o fato
de a tradição ocidental nunca ter considerado de maneira suficiente a diferença entre ser
e ente, tendo tematizado o ser sempre ao modo da entidade. Portanto, Heidegger pensa o
percurso da tradição ocidental como o caminho da consumação metafísica onto-teo-
lógica, em um envio que leva de Platão, que pensa ideia como fundamento, até
Nietzsche, que seria a voz da liberação da dinâmica da vontade de poder e do eterno
retorno do mesmo para fundamentar o acontecimento universal e irrestrito da vida.
Através de um riquíssimo diálogo com a tradição filosófica, Heidegger pretende
demonstrar, por meio de um “passo atrás”, o fundo impensado de tudo o que por ela foi
pensado para, através de uma reconsideração da diferença ontológica, apontar a
constituição onto-teo-lógica da tradição ocidental. Heidegger indica, com isso, que em
71

esquecendo da diferença ontológica a tradição filosófica perde de vista, paulatinamente


ou não, sua questão fundamental, o solo a partir do qual qualquer questão se torna digna
de ser pensada: a questão do ser. O modo como Heidegger lê a filosofia até seus dias
aponta na direção, não apenas do esquecimento da diferença ontológica, mas
fundamentalmente, do abandono da questão do ser.
Pois bem, se Heidegger reconhece na tradição o abandono da questão do ser e
ele mesmo reinsere tal questão no âmbito filosófico, tudo parece estar resolvido: a
questão do ser volta a fazer parte da jornada humana. Não. A retomada pura e simples
da questão do ser não cria o âmbito no qual a experiência da tensão abissal entre ser e
ente possa se fazer presente, como disse certa vez Heidegger ao seu fiel aluno Gadamer
“essa distinção não é feita de modo algum por nós” (GADAMER, 2009, p. 70). Há um
sentido específico em tal frase: a distinção não pode ser feita ao modo de uma
tematização fortuita que por si mesma abre o ser-aí humano para a experiência de tal
diferença. A diferença ontológica não é algo que, por meio de alguma manobra genial, o
ser-aí humano faz ver. Apesar disso, não se exclui a possibilidade de o vislumbre
decidido de tal tensão se dar através de uma inserção misteriosa do ser-aí humano em
seus domínios: “[...] a diferença [ontológica] não é algo que se faça, mas algo que se
apresenta aí, que se abre como um abismo. Algo se afasta. Um despontar tem lugar”.
(GADAMER, 2009, p. 70).
Na medida em que não é volitivamente possível ao ser-aí humano criar para si
mesmo o espaço da plena experiência da tensão entre ser e ente e, por conseguinte, o
vislumbre da abissalidade do ser, mas apenas posicionar-se em sintonia de atenção,
Heidegger passa nitidamente a dedicar seus escritos tardios a uma espécie de
“fermentação” de tal acontecimento. Esse acontecimento Heidegger chama de
acontecimento apropriador. O acontecimento apropriador faria mostrar por meio de “si”
a tensão em meio a qual o ser-aí humano desde sempre se encontra imerso, tensão essa
obliterada ao longo da tradição ocidental. Em meio à experiência de tal tensão, e do
vislumbre do ser como diferença, uma rearticulação do horizonte histórico ocidental
poderia emergir, tornando possível ao homem entediado um retorno transformado à
tarefa e a delícia que é existir14.

14
É justamente nesse ponto que reside a querela do outro início: Heidegger em muitos momentos de seu
trabalho dá a entender, por meio de uma linguagem pouco usual, que outro início seria uma expressão
ligada à superação da tradição metafísica em direção a um tempo, hoje, desconhecido. Tempo esse que
se veria forçado a encarar o ser como seu próprio fundamento radicalmente nulo e dissonante.
72

Como foi visto ao longo do trabalho, a grande denúncia do tédio é o vazio. O


tédio é voz de um esvaziamento que não consegue ser ouvido. Há um problema que, ao
mesmo tempo, se mantém ausente no que tange ao que de essencial esse problema
mesmo teria a revelar. Como se tornou possível que algo nesse sentido pudesse vir a
termo? Que processo teve lugar para que uma falta de escuta em relação ao vazio
pudesse se estabelecer e tornar seu domínio ainda mais implacável? Bem, se é verdade
que o ser-aí se encontra vazio, também é verdade que esse vazio não se fez presente
desde sempre na história da humanidade, pelo contrário, sua presença se vincula a um
horizonte específico: a era da técnica. Isso torna necessário o desenvolvimento, mesmo
que grosso modo, dos principais pontos de um percurso de aproximadamente 2500 anos
que possibilitam a entrega de uma época marcada pelo vazio, bem como, a delimitação
mais precisa do perigo que marca esse cenário de acontecimentos.

4.2 Miopia, cegueira e vazio

Dissertou-se até aqui que o homem passa por um processo de esvaziamento, de


decaimento de si, de maneira que lhe é entregue um horizonte histórico vazio.
Metaforicamente, se há um esvaziamento do espaço que o homem mesmo “é”, isso quer
dizer que esse espaço que hoje é “vazio” outrora foi “cheio”, se não fosse assim o que
poderia significar “esvaziamento”? Mas o que propriamente esse “cheio” poderia
significar?
No primeiro capítulo mostrou-se que Heidegger irrompe para além de seus
mestres, não por arrogância, mas pela força do que era digno de ser dito. Ele identifica
algo peculiar na fenomenologia, que aponta para o resgate do entendimento grego de
“verdade”. Apesar disso a própria fenomenologia não atentou para esse fato, o que
forçou Heidegger a romper com Husserl e seguir o caminho possibilitado pela
investigação fenomenológica. Para Heidegger a fenomenologia precisava ser superada.
Superada em nome da retomada daquilo que a fenomenologia estaria tentando
reencontrar e dizer, mesmo sem sabê-lo. Em razão da aquiescência às determinações da
tradição ela sempre recaía em preconceitos históricos simplesmente aceitos. Esse
declínio retirava da fenomenologia a sua potência e a reinseria, sutilmente, no próprio
73

âmbito daquilo que ela criticava. Para Heidegger a fenomenologia se reaproxima da


alétheia, do desvelamento, do desencobrimento do ente.
Alétheia é um termo que se relaciona com o entendimento atual de “verdade”.
Mais precisamente, o termo “verdade” é um termo que encerra em si um declínio em
relação à palavra originária grega, mas que de certa forma ainda mantém alguma relação
com ela. A-létheia é composta pelo prefixo “alfa”, que possui o sentido de negação, e
pelo termo “lethe”, que significaria algo como encobrimento, velamento. Portanto já é
possível de início delimitar que em seu entendimento mais primordial, e justamente por
isso livre de derivações que obscureceriam o seu significado, a alétheia aceita e
reconhece na mostração dos entes em geral um caráter de retraimento, de velamento.
Esse caráter de obscuridade inerente à mostração confere a ela o sentido de des-
velamento, des-encobrimento, em detrimento de um sentido que se restrinja à mera
presença total simplesmente dada dos entes no espaço. O ente se des-vela. Ele se
permite mostrar ao invés de permanecer desconhecido.
Em seu entendimento já está reunido um não se mostrar próprio àquilo que se
revela. “Verdade” na Grécia tem, portanto, um sentido decididamente ontológico que
significa o mostrar-se do ente, que é permitido em uma possibilitação recíproca entre
velamento e desvelamento, no qual cada termo garante ao outro o vigor de sua essência,
de modo que os dois só se desempenham juntos. Com isso, preenche-se o ente de
ausência, reconhece-se no mundo o seu movimento originário, testemunha-se o devir e
abre-se para o tempo. Na Grécia a destinação é entregue ao homem. A destinação só é
possível na medida em que um ente em especial, o homem, é capaz de ser permeado
pela alétheia e seu mistério essencial. O homem é o ente que acompanha a perene
transformação do mundo porque a ele que é direcionada a “guarda” da verdade. A
essência humana é entendida aqui como ekstase, como fluxo em direção ao ente em seu
surgimento eternamente misterioso. É precisamente essa “atribuição” que torna o
homem humano. Uma atribuição que hoje se encontra distante de si mesma. Para os
primeiros pensadores gregos esse era o ponto central de todo e qualquer questionamento
filosófico, aquilo que era digno de ser pensado era a physis, a “natureza” em sua
mostração mesma que reunia em torno de si o mistério inerente ao acontecimento da
verdade. A própria physis era o espaço virgem da alétheia, e o homem era o seu
“intérprete”. A physis era vista de forma essencial em seu próprio movimento misterioso
e que levava o homem a reboque em direção a sua destinação específica. Os primeiros
pensadores gregos conseguiam “ver” na physis um constante embate, uma luta
74

permanente entre velamento e desvelamento capaz de instaurar o desabrochar do ente


em seu surpreendente movimento. Um movimento de criação e destruição, de
nascimento e perecimento. Foi na investigação desta obscuridade essencial da verdade
que um primeiro problema filosófico teve lugar e desde então nunca mais se resolveu:
como seria possível delimitar claramente os limites de identidade e diferença, ser e vir-
a-ser, imanência e transcendência? Como lidar com o fluxo próprio ao acontecimento da
physis? Na Grécia, pelo menos pré-socrática, a princípio, não havia a preocupação em
tornar a retração inerente à verdade (alétheia) algo concreto como a mostração em si
mesma de certa forma é, algo nesses termos era impensável. O velamento era aceito em
sua unidade com a mostração15.
No entanto, com a latinização do mundo grego essas questões assumem outros
contornos. A partir do momento em que os romanos se assenhoram do pensamento
grego sob a perspectiva imperial, automaticamente entra em curso um empobrecimento
das questões gregas em função de uma falta de sensibilidade em relação ao que na
Grécia estava sendo tratado. Nesse sentido alétheia é entendida como veritas e, com
isso, seu novo entendimento passa a ignorar o que de essencial havia sido despertado no
pensamento grego: o retraimento daquilo que se presentifica como co-pertencente e
necessário para a mostração em si. O que tem lugar nessa latinização é a equiparação da
própria retração ao ente que se mostra, de modo que a retração passa a ser uma
mostração que não é imediatamente acessível, mas que está presente “por detrás” do
ente que se presentifica. A veritas trás consigo o entendimento de que há uma
substância, algo subjacente ao ente e que se encontra para além dele mesmo enquanto
ente simplesmente a mostra. A partir de então é a substância que confere ao ente a sua
especificidade e, portanto, ela passa a ser a verdade do ente. Esse processo de
transformação da alétheia para veritas é decisivo para o desenrolar do destino ocidental
por que é a partir de então que o acontecimento de “mundo” começa a se desenhar como
um espaço simplesmente dado que deve a alguma outra instância a sua essencialidade.
Esse tipo de verdade predomina por toda a Idade Média, e toda a sua organização se
volta para a tentativa de reconquista desse espaço plenamente verdadeiro e que não é
mais acessível ao homem de imediato. Em uma leitura rápida e de grosso modo, o
homem busca uma religação com o espaço do qual julga ter sido expulso e as atenções
se voltam para o temor e adoração de Deus. Portanto, na Idade Média, opera-se um

15
No que tange ao modo grego de lidar com o movimento de desvelamento da physis uma importante
contribuição se dá através da interpretação heideggeriana de Heráclito em Heráclito, 1998.
75

rebaixamento do mundo dos homens em relação à dimensão divina. Essa separação só é


possível na medida em que alétheia dá lugar a veritas, de modo que no momento em
que isso acontece ocorre uma primeira, e decisiva, miopia da visão original grega16. Na
transformação de aléthiea para veritas a aceitação do velamento enquanto parte
essencial da verdade deixa de ser aceita e, com isso, o velamento passa a ser tal qual a
mostração. A transformação da essência da verdade já se iniciou: ela passa de alétheia
para veritas. No entanto ela não se encerra aí, ela dá lugar, então, a uma outra
tranformação que se vale do entendimento de veritas para acontecer17. Enquanto que na
veritas os entes presentes no mundo secular possuem cada qual uma substância inerente
a cada um deles e que se relacionam a outro plano existencial que lhe conferem esse
mesmo valor, na transformação de veritas para certitudo há a redução dessas
substâncias ao ente capaz de ser o único ente detentor de alguma substancialidade: o
homem. Essa é a mudança que justamente caracteriza a passagem da Idade Média para a
Idade Moderna. Há uma mudança de acento: perde força a presença de uma realidade
superior e o homem, de certa forma, torna-se o centro das atenções. Isso se dá
justamente por ser ele, teoricamente, o ente que teria a capacidade de ser o centro do
acontecimento dos entes em geral. Tal mudança de ênfase, no entanto, só pode ocorrer
pelo modo como o próprio ente passa a ser questionável em si mesmo. Por isso, antes de
tudo, o ente precisa ser certificado em sua validade. Tal questionamento ganha um solo
e respostas seguras somente no homem. É através do homem que o mundo ganha sua
validade e sua consistência, de um tal modo que antes de tudo quem é agora é o homem.
O que acontece na essência da verdade como certeza é que os entes em geral passam a
ser encarados como mera representação do homem, o primeiro entre todos os entes
possuidor de alguma substancialidade segura. Como escreve Casanova:

O ser não é mais simplesmente considerado como o ser do ente ou o


realmente ente que pode ser interpelado discursivamente (lógos) em seu
aspecto puro (idéia). Ao contrário, a própria acessibilidade ao ser do ente é a
princípio questionada em sua possibilidade efetiva e tomada,
consequentemente, como problemática. Sem poder se fiar de maneira plena
na ligação sensível imediatamente dada com os entes, o homem experimenta

16
Aqui é preciso tornar claro que o que está em jogo não é um apego apaixonado pelo modo de ser grego,
nem uma pretensão de reconstruir uma Grécia perdida, mas de apontar a experiência de mundo grega
como a experiência que melhor revela o caráter essencialmente des-velador da abertura de mundo que o
ser-aí humano é.
17
Embora aqui esse processo seja indicado de maneira por de mais rápida e um tanto grosseira, tal texto
visa dar alguma orientação básica ao movimento que desemboca justamente em uma época afinada pelo
tédio. Caso tal empresa logre sucesso, será o suficiente.
76

uma cisão radical em relação à exterioridade e se volta plenamente sobre si


mesmo (2006, p. 127).

Quando a verdade como certeza se estabelece o acento em relação à


compreensão dos entes em geral se volta para a internalidade humana, pois é dentro do
homem que a sua expressão se torna possível. Os entes em geral agora se encontram
simplesmente dados e precisam ser certificados acerca de sua presença real. Mas a partir
do momento em que a acessibilidade em relação aos entes em geral passa a ser
questionada, imediatamente a subjetividade responsável por essa captação dos entes
também passa a ser questionada em sua validade, de modo que se torna necessário saber
precisamente “o que é” essa subjetividade e de que maneira ela está apta a desempenhar
verdadeiramente a representação dos entes em geral. Em outro trecho do livro Nada a
Caminho, Casanova (2006, p. 128) explicita:

A metafísica da subjetividade moderna repousa sobre uma mudança na


própria compreensão de verdade. A verdade deixa de ser pensada em função
apenas de uma orientação prévia do discurso pelo modo de mostração dos
entes e pela determinação daí decorrentes de suas qüididades específicas,
passando a se mostrar em sintonia com a colocação do problema mesmo da
verdade em termos de um sujeito das representações. O que temos aqui não é
mais a dedução lógica dos modos genéricos de interpelação discursiva dos
entes em sua aparência (categorias). Ao contrário, o que temos é muito mais a
experiência de uma subjetividade que precisa, antes de tudo, fundar
racionalmente a si mesma como a sede própria das representações para que
possa cunhar por meio de si mesma uma via de acesso efetiva às qüididades.

A certeza, a certificação da presença dos entes em geral, inclusive a do homem,


orientam a direção de todas as investigações humanas. Qualquer teoria que não explique
plenamente seu objeto de estudo é digna de descrédito, pois é preciso antes de tudo
explicar o acontecimento do real. Tudo se encontra agora apto a ser explicado, ou
melhor, tudo precisa ser explicado. Aquilo que o pensamento cartesiano põe em curso é
justamente a tentativa de certificação plena do sujeito que representa os entes, de modo
que seja possível, antes de tudo, certificar-se de si mesmo para que se possa ter acesso
ao mundo que se representa na subjetividade. Quando um pensamento desse tipo tem
vez ele passa a ser voz de uma cisão radical entre homem e mundo, de um
distanciamento ainda maior do mundo em sua experiência originária.
Tomando Descartes como símbolo, a certeza se alcança pela razão, que garante
ao homem a sua essência e ao mundo a sua validade. O homem se torna algo, assume
uma definição: animal racional. O mundo se torna o seu espaço de jogo, onde o homem
77

é o senhor e desempenha toda a sua capacidade teórica. No momento em que isso


acontece, todas as atenções se voltam para o homem e a sua capacidade de elaborar
racionalmente explicações que sejam capazes de dar conta da gratuidade de si mesmo e
da gratuidade de um espaço simplesmente presente. O homem com isso se torna objeto
de si mesmo e passa a ser entendido como apto a ser predicado racionalmente. A
pergunta que é feita é “o que é o homem?”, uma pergunta que já traduz um descaminho
de sua essência, pois indica um nivelamento entre homem e coisa a ser predicada. Na
medida em que não há mais espaço para retração, tudo tem de ser conhecido mediante a
capacidade teórica e científica humana. Tudo tem de ser provado, nada deve ficar sem
resposta. Todo mistério tem de ser desvendado, ou se ainda há mistério, ele é apenas o
combustível que fomenta uma nova série de perguntas e respostas. O que se busca nesse
momento, não é mais uma justificativa divina para o mundo, mas a certeza
indubitavelmente comprovável das inquirições e o domínio amplo e irrestrito de todas
as variáveis com as quais o homem se depara durante tal empresa, como pensa
Descartes (2006), até o homem tornar-se “mestre e possuidor da natureza”. O homem
passa a ser o protagonista do mundo e toda atividade deposita-se na sua capacidade de
estabelecer certezas a partir de sua aptidão tecnológica e genialidade teórica. O mundo
histórico que se abre na Idade Moderna consuma a miopia da veritas em cegueira. Tal
cegueira diz respeito à saída do homem de seu âmbito ekstático, existencial, para o
solipsismo do eu como primeira e única instância segura. O eu se apresenta como
instância de segurança justamente pelo fato de o homem não “ver” mais o ente em seu
desabrochar, de um tal modo que precisa, agora, se certificar de tudo e encontrar algo no
que se balizar: o eu.
O que acontece em um processo como esse é que o “elo” entre homem e mundo,
e consequentemente o “elo” do homem consigo mesmo, se obscurece. A miopia
medieval dá lugar à cegueira moderna, que exige certificação de tudo, uma vez que não
enxerga nada. Em seguida a cegueira moderna dá lugar ao vazio. O vazio se dá na
medida em que paulatinamente o processo de certificação do real se perde e há a entrega
a uma época que não experimenta mais ente algum. O movimento que leva da
modernidade para o contemporâneo se afina com um exemplo que pode ser
esclarecedor: uma pessoa que é cega, no fundo, permanece enxergando, afinal um cego
usa sua bengala porque de fato continua em alguma medida vendo: ele sabe que a sua
frente existe algo e por isso usa sua bengala para certificar que seus passos o levam para
algum lugar e não são dados randomicamente. O ponto é que do moderno ao
78

contemporâneo, ou como Heidegger vai chamar de era da técnica, o homem passa da


cegueira para o vazio, para a desertificação. Ele não chega nem a se perder, pois já não
sabe mais de tal perda de mundo. A pergunta “o que é o homem?”, que em si já traduzia
um esquecimento do essencial do homem, i.e., sua natureza ek-statica e sua relação com
o mistério do nascimento da physis, deixa de ser feita e com isso se esquece do
esquecimento de sua essência. O que impera agora é a imposição da própria dinâmica
de acontecimento do mundo a partir de suas configurações contingenciais estabelecidas
de maneira conjuntural no que tange a sua gratuidade enquanto dinâmica mesma.
Outra vez mais, aqui é necessário se referir ao modo como Heidegger lê
Nietzsche como o filósofo que marca a consumação do destino do ocidente. Um termo
importante para designar tal interpretação heideggeriana é “vontade”. Por meio de uma
interpretação heideggeriana, vontade é um termo utilizado para indicar o modo como se
abre o acontecimento apropriador da consumação do envio histórico ocidental. Em
linhas gerais, vontade aponta para a maneira como Heidegger posiciona Nietzsche no
interior do projeto histórico ocidental: como já foi dito, como filósofo que, no fundo, é a
voz que descortina e libera a vontade incondicionada da técnica como dinâmica
insaciável da época do abandono da questão do ser18. Essa interpretação posiciona a
vontade de poder e o eterno retorno do mesmo de Nietzsche como expressão de um
movimento implacável que abandona radicalmente e finalmente qualquer pretensão
última de pergunta ontológica, i.e., pergunta pelo acontecimento da verdade: é a
cegueira para além do lastro daquilo que não vê. Isso leva o ser-aí humano a um
exercício contínuo de “esvaziamento” de suas forças. O que há, agora, é a
autonomização das práticas em relação ao que é efetivamente praticado. O mundo se
torna um mero espaço que precisa ser explorado, dominado e usado. O homem se
entrega a um espaço mediano e sem raízes, no qual até mesmo o próprio homem se
insere como coisa a ser utilizada. O que passa a existir é a rendição a um ritmo frenético
ditado pela cadência de uma nova ordem: a ordem da técnica.
Técnica, para Heidegger, não é um mero meio para atingir fins, nem uma
atividade qualquer do homem, pelo contrário, “técnica é uma forma de
desencobrimento” (2012a, p. 17). A partir disso, era da técnica é uma expressão
utilizada para indicar o modo como o horizonte histórico da consumação do envio
ocidental se descortina ao modo da composição (Gestell). Por sua vez, composição

18
Em relação à interpretação heideggeriana de Nietzsche ver Nietzsche I (HEIDEGGER, 2007) e
Nietzsche II (HEIDEGGER, 2008).
79

aponta justamente, como acima foi descrito, para o arranjo automatizado e sistemático a
partir do qual os entes em geral, inclusive o ser-aí humano, são posicionados e se
atualizam em um devir irrefreável. A partir da abertura da técnica como composição, o
real se desencobre como mera disponibilidade, sem lastro ontológico algum, de um tal
modo que o real aparece como mero acontecimento ôntico em devir. O perigo de tal
situação Heidegger (2012c, p. 30) indica em dois trechos esclarecedores:

[...] a composição remete ao desencobrimento do tipo da disposição. Onde


esta domina, afasta-se qualquer outra possibilidade de desencobrimento. A
composição encobre, sobretudo, o desencobrimento, que, no sentido da
poiesis, deixa o real emergir para aparecer em seu ser. Ao invés, o pôr da
exploração impele à referência contrária com o que está sendo. Onde reina a
composição, é o direcionamento e asseguramento da disponibilidade que
marcam todo o desencobrimento. Já não deixam surgir e aparecer o
desencobrimento em si mesmo, traço essencial da disponibilidade.

E também:

Esse ordenamento é a derradeira instalação do que acabou na aparência de


uma realidade cuja operatividade opera de forma irresistível, pois pretende
prescindir de qualquer desencobrimento do vigor de ser e isso de maneira tão
decidida que já não carece pressentir nada de um tal descobrimento
(HEIDEGGER, 2012c, p. 63).

Grosso modo, em tal consumação do envio histórico ocidental como abandono


radical da consideração da diferença ontológica e da questão do ser, o que “resta” ao
ser-aí humano é a entrega ao mero ente em dinâmica leviana. Dinâmica essa que, na
medida em que não conhece nada para além de seu próprio movimento, finda por
autonomizar-se sem travamento algum. O perigo que Heidegger reconhece em tal
cenário é o perigo de tal movimento não experimentar rompimento algum, sempre se
rearticulando em novas configurações contingenciais.
Não é a toa que Heidegger se apropria do termo “técnica”. Em um entendimento
grego, técnica remete a téchne, que em essência diz respeito a um “fazer desabrigar”,
“desabrigar o que não se produz sozinho” (HEIDEGGER, 2007). De início, na Grécia, o
termo téchne está intimamente relacionado com alétheia. Seu sentido se refere às
consequentes possibilidades humanas de criação, oriundas da rica mostração da physis,
que por si só já se apresenta como criativa. No entanto, juntamente a eventos como o
distanciamento da visão da alétheia, a perda das raízes que ligam o homem ao mundo e
a completa entrega do ser-aí a um espaço vazio, ocorre o estreitamento de tal termo a
80

uma mera “fazeção” (Ibidem). Uma fazeção desenfreada em meio a qual o homem se
torna autômato de procedimentos dos quais já não experimenta mais necessidade
alguma, de um tal modo que em momento algum o ser-aí é capaz de se colocar em
questão como “lugar” de articulação singular de sentido. O que importa agora é apenas
a rapidez, a eficiência e eficácia com a qual se atua no mundo, sem se saber ao menos
em virtude do que essencialmente se faz alguma coisa. Tendo em vista essa “fazeção”
vazia e sem limites, o homem circula de maneira cada vez mais superficial e indiferente
em um espaço onde o “aqui” significa o mesmo que “lá”, onde o presente é idêntico ao
passado e ao futuro, onde o que se anuncia é a uniformidade das práticas humanas em
geral e, por mais que se movimente de um ponto a outro, já não há movimento algum,
pois todas as coisas são versões do mesmo. Onde isso acontece já não há mais
temporalização, e onde não há mais temporalização o homem permanece distante de si.
Esse é precisamente o perigo que Heidegger aponta para o homem atual: o perigo de se
ver tomado por uma lógica de funcionamento que o arrasta e o mantém distante do
acontecimento de sua humanidade, que o mantém ausente para o essencial e,
consequentemente, o mantém no vazio.
O grande problema da técnica moderna é que ela mantém o homem
incessantemente alimentado de certezas que, através de suas asseverações sempre
corretas, só fazem distanciar o verdadeiro (no sentido de alétheia, desvelamento).
Quando isso se dá, o tipo de impessoalidade que advém desse momento histórico é uma
impessoalidade capaz de fornecer sempre respostas prontas, capaz de manter e
pavimentar incansavelmente para si sua dinâmica mesma, de modo que o homem seja
sempre “capturado” para o interior dessa dinâmica impessoal de forma extremamente
competente. O problema aqui, outra vez mais, não é condenar a impessoalidade, mas
apenas indicar que em tal cenário - da era da técnica - a impessoalidade deixa de ser o
que indica e permite uma transformação possível, para se tornar o modo específico de
uma época que muda sem se transformar: uma época impessoal. A técnica moderna
dificulta extremamente a conquista de si-mesmo. A impessoalidade, ao invés de ser um
“passo” necessário para a conquista de um próprio, se torna ampla e irrestrita na
absorção e manutenção do ser-aí na medianidade, naquilo que vale para todos e para
ninguém. A técnica moderna é capaz de tornar o ser-aí qualquer um, ela o torna
superficial, mediano. O impressionante no mundo da técnica é precisamente que tudo
sempre funciona e quando isso acontece o que se mantém é o seu “arranjo” e a
possibilidade de que sua arrumação se dê novamente e outra vez mais em figuras e
81

formas superficialmente diferentes. O trunfo dessa dinâmica exata impossibilita a escuta


própria ao risco que essa dinâmica mesma traz consigo, pois ela mantém presa a suas
certezas o ser-aí nela presente.
No entanto, Heidegger não pensa que uma postura de combate ao mundo da
técnica salvaguarda a possibilidade de salvação. Ao contrário, uma aproximação em
relação à essência da técnica e uma aceitação do anúncio de sua vinda aproximam o ser-
aí do caminho que permite a ligação do homem a tudo que é técnico sem que, com isso,
ele se torne seu escravo. Em A Questão da Técnica, Heidegger (2012a, p. 388) diz:

Mas se pensamos a essência da técnica, então experimentaremos a


composição como um destino do desabrigar. Assim, já nos mantemos na
liberdade do destino que de modo algum nos aprisiona numa coação apática,
fazendo com que perpetuemos cegamente a técnica ou, o que permanece a
mesma coisa, nos insurjamos desamparadamente contra ela e a amaldiçoemos
como obra do diabo.

O que Heidegger entende por “experimentar a composição como um destino do


desabrigar” é o aceitar sóbrio e atento dessa dinâmica que se impõe, pois ela é o
acontecimento epocal específico que tem relação, enquanto consumação, com a
miopia/cegueira/vazio em relação ao acontecimento da verdade enquanto des-
velamento, enquanto a falta de escuta em relação ao mistério que é existir e ser abertura
de mundo. Por mais que a técnica moderna limite o homem sempre a suas respostas
certas, a possibilidade de transformação e rearticulação histórica não passa por insurgir
desesperadamente contra ela, ou na medição vã de forças. Há de aceitá-la atentamente
em seu modo de ser, pois ela é o acontecimento que não deixa de ser um modo da
verdade se mostrar e exigir acolhimento do ser-aí, isso por si mesmo já é fundamental e
digno de ser aceito enquanto tarefa e não como fardo terrível a ser desesperadamente
combatido. Tal postura atenta e segura é a postura que no fundo se posiciona como
guarda da possibilidade de rearticulação histórica, da possibilidade de o homem, ao
invés de condenar incessantemente e histericamente seu próprio tempo, se encarar
novamente como digno de uma nova figura do desvelamento, com a qual sempre estará
intimamente relacionado.
82

5 TÉDIO, ERA DA TÉCNICA E PSICOLOGIA

É acreditando nas rosas que as fazemos desabrochar


Anatole France

Foi visto até aqui que o tédio é a afinação específica da consumação do destino
do ocidente enquanto abandono radical da questão do ser. Tédio é a afinação que
denuncia o esgotamento, o esgotamento por sua vez diz respeito à concretização de um
projeto de mundo que busca se totalizar através do abandono severo do mistério
inerente ao acontecimento de mundo, e ao fato de o homem se distanciar
derradeiramente de sua própria essência enquanto ente cujo âmago é ser abertura de
mundo. Hoje o homem se encontra vazio, uma vez que perdeu qualquer relação com o
desvelamento, mesmo uma relação de cegueira. O próprio modo como o tédio se dá,
apesar de não ser aceito, ao modo da profunda serenidade vazia e da retenção do tempo,
indica que o homem hoje encontra abrigo em uma época esgotada. O homem da técnica
mora no fim de um projeto de mundo que, como foi visto, não se desenvolveu de forma
necessária, mas que hoje se encontra em vias de totalização. A era da técnica é
essencialmente uma contagem regressiva em direção a sua plena concretização e
consequentemente ao pleno esvaziamento do homem. No entanto, a era da técnica é
uma contagem regressiva que não se envergonha de encontrar sempre e outra vez mais
infinitos microssegundos que a separam do zero. A técnica precisa sempre encontrar
microssegundos para não experimentar a possibilidade de quebra, uma vez que seu
movimento se encontra para além de qualquer tematização do fim que ela mesma é.
Aqui surge um paradoxo: a era da técnica é essencialmente a época da consumação do
projeto histórico ocidental, ela é o fim de um percurso histórico, no entanto, ela sempre
encontra subterfúgios para fazer desse lugar o lugar perene de seu irrefreável
acontecimento, para além de qualquer ponto final de fato. Sendo iminência do fim, a
técnica arranja para si sempre um próximo passo, faz da iminência o seu lugar de pouso.
Ela sempre se salva ao perenizar sua essência regressiva, e através desse movimento de
esgarçamento do fim ela leva consigo o homem a modos de ser cada vez mais
elementares, uma vez que a natureza de tal esgarçamento do fim é o esvaziamento.
83

Após essa breve reconsideração da trajetória trilhada até aqui, é preciso indicar o
modo como especificamente a psicologia se insere em tal cenário. Em um movimento
que prima pelo desterro do homem em relação a si mesmo, como a psicologia enquanto
disciplina acadêmica tende a se posicionar? De que modo a psicologia busca se inserir
em um cenário como esse? Qual saída ela encontra? Antes, porém, de tecer
propriamente considerações acerca da psicologia é preciso esmiuçar melhor o modo
como o esgarçamento do esgotamento repercute na existência humana contemporânea.

5.1 Redução do homem à vida

Ainda no livro Os conceitos fundamentais da metafísica, Heidegger, não à toa,


introduz uma discussão em torno do modo de ser do homem e do animal. Tal discussão
é importante no que tange ao período de concretização da consumação do destino do
ocidente enquanto abandono da questão do ser. Ela é importante justamente pelo fato
de, em função do próprio movimento sem freio da técnica, ocorrer hoje um
distanciamento contínuo e ininterrupto daquilo que torna o homem humano: sua
“capacidade” de ver. Como foi tratado no capítulo anterior e brevemente acima, esse
movimento leva o ser-aí a modos de ser elementares e que primam pelo caráter de
tornar o homem estranho a si mesmo; o homem deixa de ocupar o seu próprio lugar
como ente que “vê”, para ser posicionado para além mesmo de uma cegueira, ele é
deixado vazio. Em tal movimento de esvaziamento o homem se torna desumanizado, e
se torna desumanizado justamente por perder radicalmente qualquer relação com a
abertura de mundo que ele mesmo é. Sua afinação correspondente, como já foi visto, é o
tédio profundo. Outra vez mais, falar que o homem se desumaniza não tem a ver com o
fato de considerar que o homem possui uma essência previamente conquistada, no
sentido de uma substância interna, que hoje se nega, mas tem a ver com o fato de, em
sendo abertura de mundo, o homem precisar conquistar sua humanidade sempre em
relação de escuta e entrega a esse “espaço” que se abre. É em abandonando qualquer
consideração acerca de uma essência substancializada previamente constituída que o
homem pode se entregar ao enigma do surgimento de mundo e em meio a ele conquistar
sua humanidade. A afirmação de sua essência não é um enrijecimento em um modo
84

prévio de ser, mas a renúncia a uma tal objetificação de si por meio da entrega à
proveniência infinita e insondável de sua essência enquanto ente formador de mundo.
Foi visto que o homem é, essencialmente, abertura de mundo e que hoje as
coisas se encontram como que do avesso. Em um tal processo de perenidade do
esvaziamento para “onde” vai o homem? O quê acontece com ele? Na medida em que
desconhece seu próprio modo de ser, a partir de que modos de ser o homem da técnica é
impelido a se orientar?

5.1.1 O animal

“O animal é pobre de mundo”. Com essas palavras, Heidegger (2003, p. 205)


define o modo de ser do animal. A discussão em torno de como evidentemente um
animal experimenta mundo é, às últimas consequências, impossível de ser radicalmente
posta por motivos óbvios: não há de todo modo a possibilidade de fazer a experiência
do animal, habitar o mundo ao modo do animal. No entanto, é possível identificar a vida
por meio daquilo que é evidente em seus próprios limites.

Em termos gerais, trata-se da pergunta pela possibilidade do transpor-se do


homem para o interior de um outro ente que ele mesmo não é. Transpor-se
não significa aí a introdução fática do ente homem na interioridade de um
outro ente. Ele também não diz respeito à substituição fática do outro ente, ao
colocar-se-em-seu-lugar. O outro ente deve justamente permanecer muito
mais retido enquanto o que ele é e como ele é. Transpor-se para o interior
deste ente diz acompanhar o que o ente é e como ele é – neste
acompanhamento e quanto ao ente que acompanhamos assim, fazer
imediatamente a experiência do modo como as coisas estão em relação a ele,
prestar informações sobre o modo como ele sente a si mesmo, talvez mesmo
visualizar o outro ente mais incisiva e essencialmente em um tal
acompanhamento do que consegue visualizar a si mesmo em ente deste
gênero (HEIDEGGER, 2003, p. 233).

A atitude de se por em análise o modo de ser do animal não tem em vista uma
transposição no sentido de habitar a perspectiva do animal, mas apenas descrever o
modo como o animal experimenta isso que para o ser-aí humano é abertura de mundo.
Esse processo só é possível na medida em que o homem é de fato um ente voltado “para
fora”, para o surgimento do mundo enquanto mundo, somente a partir disso ele pode
olhar o animal e descrevê-lo em seu próprio modo de ser. Não se trata propriamente de
85

tentar fazer a experiência do animal, mas uma transposição a partir daquilo que o modo
de ser do animal permite revelar. O que, a partir disso, o animal é capaz de revelar em
seu modo de ser? Como já foi antecipado, que ele é pobre de mundo. Mas o que isso
quer dizer? Que o animal experimenta mundo “mais ou menos” como o homem, ou que
a inteligência do animal é um pouco menor que a humana?
Falar em pobreza de mundo, no fundo, trás para cena, outra vez mais, mundo.
Aqui fica evidente que a caracterização da essência do animal reside fundamentalmente
em algo que lhe é privado, i.e., mundo ao modo da abertura. O animal não experimenta
mundo como mundo. Isso não quer dizer que o animal seja inferior ou menos evoluído,
as questões aqui não aparecem nesses termos, é preciso apenas se colocar em sintonia
com a riqueza própria desse ente chamado animal. O modo como Heidegger vai
trabalhar essa questão aponta para uma delimitação tripla: a pedra (o não vivente) é sem
mundo, o animal (vivente) é pobre de mundo e o homem é formador de mundo. Essa
tripla delimitação não tem a ver com uma “escada” evolutiva que, conforme foi se
desenvolvendo, foi entregando cada vez mais “mundo” à geração seguinte. Tudo isso
soa muito especulativo e metafísico. O ponto é que em se colocando em transposição à
pedra e ao animal é possível considerar a impossibilidade da pedra experimentar mundo
e do animal em certa medida experimentar mundo. Mas que modo, pobre, é esse? Já foi
dito que tal pobreza não diz de uma imperfeição do animal, mas de seu modo de ser. Tal
modo de ser recebe o nome de perturbação (Benommenheit). O animal, diferentemente
do homem, não abre mundo, mas é perturbado, não por entes que se abrem, mas por
desinibidores de comportamentos. Na medida em que o animal não age, mas é
desinibido, ele não se encontra propriamente em um mundo, mas em um ambiente que
dispara suas aptidões de comportamento, suas pulsões de comportamento.

Trata-se de apreender agora este caráter comportamental do impulso à


aptidão própria à atividade pulsional do organismo. O ser-apto enquanto
poder-ser do animal é ser-apto para o comportamento. Inversamente, onde
quer que o modo de ser se dê como comportamento, aí o ente precisa ser apto
e estar dotado de aptidões (HEIDEGGER, 2003, p. 273).

O trecho indica que o animal para comportar-se precisa ser apto e dotado de
aptidões. A aptidão do animal para determinados comportamentos indica que, no fundo,
o animal não abre mundo enquanto mundo. O animal, de algum modo estranho ao
homem, é abertura de mundo, mas nunca abertura de mundo enquanto mundo. Como
foi visto no segundo capítulo, o que torna possível ao homem ser abertura de mundo é
86

justamente o fato de o homem ser o ente marcado por uma relação com “sua” própria
negatividade estrutural, que o lança para possibilidades de ser. Na medida em que o
animal não se abre para o fundamento nulo da existência, ele não é capaz de se por
diante de possibilidades de ser, ele simplesmente se comporta. Por isso é possível
delimitar e inventariar comportamentos possíveis do animal, já que o animal se coloca
em uma dinâmica de comportamentos pulsionais: um cachorro não pode em algum
momento decidir tornar-se psicólogo; um gato, por articulação de sentido, não pode
querer prestar vestibular ou uma girafa desistir da vida na selva para tentar a sorte na
cidade grande etc. Um cachorro late e tem uma miríade de comportamentos
inventariáveis e treináveis a partir do modo como, obedecendo sua essência de cachorro,
é perturbado em direção a comportamentos específicos para os quais é apto. Esse é o
acontecimento próprio da vida: ela é o desempenhar das aptidões por meio de
perturbações do ambiente. Não há por parte do animal nenhuma relação com seus
comportamentos, ele é pura pulsão para além de qualquer presença ou ausência de
relação consigo mesmo. Aqui é importante enfatizar o fato de o animal não estar negado
da possibilidade de lucidez em relação à abertura de mundo, mas apartado de uma tal
possibilidade. Toda negação é negação de uma afirmação, caso ao animal fosse negada a
abertura de mundo enquanto mundo, de algum modo o animal se relacionaria com tal
abertura, mesmo ao modo de sua constante negação, isso de alguma maneira reservaria
a possibilidade de em algum momento o animal se abrir para isso que lhe é negado. Não
é isso que ocorre, o animal se encontra apartado de uma tal possibilidade ou de uma não
possibilidade de abertura de mundo, ele simplesmente vive conforme suas aptidões. A
partir disso é possível delimitar com alguma precisão os limites próprios ao animal, na
medida em que ele se movimenta a partir de comportamentos vinculados unicamente a
suas aptidões.

5.1.2 Animalização do homem

Como já pode ser visto, o movimento de desterro próprio da era da técnica


aproxima o modo de ser do homem do modo de ser do animal. Na medida em que o
homem já não sabe mais de uma abertura de mundo, e se movimenta para além mesmo
de uma cegueira, o ser-aí da técnica é fomentado a orientar a compreensão de si mesmo
87

na medida do animal, uma vez que, em um tal cenário de negação de mundo, esse
parece o único modo possível de o homem saber de si: o homem se reduz à vida. O
homem do tédio profundo da técnica é mantido negado ao mundo enquanto abertura,
com isso ele se aproxima do modo de ser do animal em uma mera perturbação das
coisas que não são plenamente reveladas a si. Em um trecho do excelente livro O
aberto, Giorgio Agamben (2013, p. 107) diz:

No ser deixado vazio pelo tédio profundo vibra assim uma espécie de eco
daquela “agitação essencial” que alcança o animal de seu ser exposto e preso
a um ‘outro’ que não se lhe revela enquanto tal. Por isto, o homem que se
entedia vem a se encontrar ‘extremamente próximo’ – ainda que
aparentemente – da perturbação do animal. Ambos são, em seus gestos
específicos, abertos a um fechamento, integralmente ligados a qualquer coisa
que se recusa obstinadamente.

No recusar de uma época que vela o seu caráter de abertura de mundo, que
entrega o ente sem lastro ontológico algum, o homem se equipara ao animal, pois em
um tempo como esse, de imediato, não há qualquer perspectiva que faça afastar a nítida
sensação de que o homem é, no máximo, um animal diferenciado, superior. No entanto,
isso já é de algum modo um entendimento que nega o homem como abertura de mundo.
Dizer que o homem é um animal superior é, já de início, vincular a existência humana
pela medida do animal. O homem hoje é apenas uma variação específica dessa
animalidade de base. Essa aproximação do homem ao animal, possibilitada pelo
esgarçamento do fim que a era da técnica é, não é de modo algum uma perda de
capacidades superiores, como se o ser-aí, em se distanciando da abertura de mundo que
ele mesmo é, regredisse para uma naturalidade rudimentar que sempre estivera latente
dentro de si. Não. Como foi visto no segundo capítulo, o ser-aí não é primeiramente
alguma coisa que posteriormente se “encaixa” uma abertura de mundo. O ser-aí é
somente e radicalmente abertura de mundo. Sua aproximação ao animal é feita, não por
recrudescimento de suas “capacidades” até o solo da mera animalidade (até porque aqui
não há qualquer possibilidade de se falar em escala evolutiva, mas em essências
distintas: o homem e o animal), mas pelo movimento opressivo que a negação de
mundo pela atmosfera do tédio profundo estabelece. Como foi visto no terceiro
capítulo, em meio a tal opressão essencial o ser-aí foge de um tal questionamento
essencial e se permite existir em fuga de tal opressão essencial, em fugindo ele assume e
radicaliza sua equiparação ao animal, já que recusa seu único e último elo de
humanidade: a abertura de mundo pela opressão do tédio profundo. Aqui há um
88

movimento que se retroalimenta: uma época se abre sem possibilitar grandes chances de
o ser-aí se por para além do ente em dinâmica leviana e, em meio a tal abertura afinada
pelo tédio profundo, o ser-aí nem chega a desconfiar de uma tal recusa de mundo e, ao
menor sinal da opressão do tédio, já de imediato foge para a diversão e o bem-estar.
Esse é o resultado do movimento viciado de esvaziamento promovido pela era da
técnica: em uma época que faz da iminência do fim o lugar perene de seu
acontecimento, o homem se distancia radicalmente de si mesmo enquanto ente formador
de mundo e se orienta pela animalidade para encontrar a si mesmo.
No entanto, por mais que o homem se oriente decididamente pelo modo de ser
do animal, é preciso deixar indicado que esse movimento é sempre reversível, i.e., a
completa coincidência entre homem e animal é algo impossível. É assim na medida em
que, mesmo no abandono e na negação de mundo, o homem pode despertar para seu
caráter indeterminável, despertar para o poder-ser. É por isso que na descrição do tédio
profundo Heidegger diz que tal horizonte é “entediante para alguém”. O “alguém” diz
tanto de uma inatividade essencial do homem em relação à conquista de uma identidade
própria, quanto de uma possível reconquista do homem em relação a si mesmo. Como
está explícito no trecho:

Virá à luz que esse estado de ânimo fundamental [o tédio profundo], e tudo o
que está relacionado a ele, deve ser delineado e distinguido nos confrontos
daquilo que afirmamos como essência da animalidade em relação à
perturbação. Esse delineamento será extremamente decisivo para nós, porque
a própria essência da animalidade, a perturbação, vem se encontrar,
aparentemente, com um fechamento extremo que discutimos como elemento
característico do tédio profundo, e que denominamos o encantar-se-ligar-se
do ser no âmbito do ente na totalidade. Virá naturalmente à luz que esse
fechamento extremo das duas concepções essenciais não é apenas enganoso,
como por de trás dele há um abismo que não pode ser superado por mediação
alguma (HEIDEGGER, 2003, p. 225).

Heidegger deixa indicado no trecho acima que a completa equiparação entre


homem e animal é de todo modo, enganosa. É enganosa já que, a linha que separa o
homem do animal não é transponível. Não é possível tornar o homem um animal, pois
para o homem sempre estará reservada a possibilidade de se tomar enquanto ente que
pode ser. Se por um lado o animal é capaz de ter seu manancial de comportamentos
inventariados e classificados por meio de uma impossibilidade de relação com as coisas
enquanto coisas, o homem sempre vai reservar, mesmo sem saber, o caráter de
possibilidades de ser. Essa diferença fundamental entre homem e animal é radical o
89

suficiente para não permitir, de uma vez por todas, uma espécie de aplanamento total e
radical do homem na medida do animal. Agamben (2013, p. 111) explicita:

Com isso a proximidade – e com ela a distância – entre o tédio profundo e a


perturbação do animal vem finalmente à luz. Na perturbação, o animal estava
em relação imediata com seu desinibidor. Exposto e perturbado por este, de
modo tal, porém, que esse desinibidor não podia mais se revelar como tal. O
animal é incapaz precisamente de suspender e desativar a sua relação como
cerco dos desinibidores específicos. O ambiente animal é constituído de um
tal modo que a pura possibilidade nunca poderá manifestar-se. O tédio
profundo aparece então como o operador metafísico no qual se dá a passagem
de pobreza de mundo ao mundo, do ambiente animal ao mundo humano.

O que Agambem menciona como “operador metafísico” capaz de fazer a


passagem da pobreza de mundo para a abertura de mundo, é o que foi indicado no
terceiro capítulo como a opressão do tédio profundo. O tédio é o que aproxima o
homem do animal e, ao mesmo tempo, o que distancia. Por isso o tédio profundo é tanto
o que condena quanto o que pode salvar, uma vez que é através dele que o homem tem a
possibilidade de se reencontrar, de deixar de ser “alguém” que se entedia em meio a
opressão do banimento e, para usar um termo de Emmanuel Levinas, reconquista sua
“face” em meio a uma redescoberta de si como ente livre. No entanto, hoje, através da
promoção de esvaziamento do olhar inerente à era da técnica, uma tal passagem,
enquanto acontecimento epocal, parece distante, uma vez que o que se percebe é o
galopante entendimento do homem como matéria biológica, inventariável em seus
comportamentos e modos de ser. Qualquer compreensão divergente soa como poética,
ingênua e dispensável. Agamben irá chamar de “vida nua” esse modo de ser que se
equipara e se orienta pelo que é meramente vivo para posicionar o acontecimento
humano.

5.2 A crise da Psicologia

A crítica que a seguir terá início, e que encerra o presente trabalho, tem a ver
com as bases de um saber psicológico enquanto disciplina acadêmica. A presente etapa
de investigação do movimento norteador da psicologia atual nem de longe é capaz de
esgotar a complexidade e a riqueza temática que envolve os seus estudos, apenas tem
em vista a indicação de um processo central que corroe a validade da psicologia
90

enquanto saber acadêmico. No entanto, como é de amplo conhecimento, a psicologia


admite uma pluralidade sem igual de temas e modulações teóricas, o que a princípio
torna extremamente complexa a tarefa de identificação de uma crise específica no seu
interior. Como aponta Garcia Roza (1977, p. 03) “a psicologia designa um espaço de
dispersão do saber, cuja coerência interna é um ideal provavelmente inatingível”, a par
disso é válido dizer que há pouquíssima coesão interna entre aquilo que é estudado em
suas diversas linhas de estudo e áreas de atuação e o caminho que as une, seja de ordem
terminológica ou temática. Como completa o mesmo Garcia Roza (1997, p. 03) “[...]
sua história não é contínua e evolutiva, mas descontínua.”, com isso fica claramente
dificultada a tarefa de falar “da” psicologia de maneira unificada. No entanto, por mais
que essa tarefa beire o impossível, exatamente isso que será aqui buscado: a delimitação
de uma crise central da psicologia enquanto saber acadêmico, sendo que a paritir desse
veio principal suas diversas ramificações de algum modo também se vejam em crise.
Antes de tudo é preciso buscar algumas bases que fundamentam a possibilidade
de algo como uma psico-logia, i.e., um discurso delimitador do psiquismo, da
internalidade humana. Para falar disso é preciso trazer para cena o filósofo René
Descartes, considerado o pai da subjetividade moderna.

5.2.1 O legado cartesiano à Psicologia e sua ruína

Descartes foi responsável por dar novo impulso à filosofia no século XVII. Após
a redescoberta do homem e da natureza pelo Renascimento e pela Revolução Científica
(com destaque para as contribuições de Galileu à astronomia e Newton à física)
aconteceu uma consequente mudança de paradigma em relação aos esgotados conceitos
escolásticos, houve a necessidade de reunião dos novos pensamentos em um único
sistema filosófico. A morada do pensamento medieval desmoronava, e um novo método
deveria se mostrar como início de um novo saber em condições de impedir uma série
desordenada de observações sem coesão interna. Estava difundida a confiança no
homem e no seu poder, também estava bastante difundida a incerteza sobre o caminho a
se tomar para garantir um rumo bem definido com relação às escandalosas e novas
descobertas, que em muitos casos negavam todo o conhecimento medieval. A filosofia
medieval não conseguia mais se sustentar, já se tomava como medida aquele conjunto
91

de novas teorizações e descobertas, tornadas possíveis muito em função de instrumentos


técnicos que, ou potencializando ou corrigindo os sentidos, eram capazes de apresentar
“universos” até então inexplorados. Era urgente uma filosofia que justificasse a
confiança no homem e em tais novas descobertas. Com relação a isso, Descartes e suas
teorizações se movimentavam na busca incessante por tais bases e métodos seguros para
o correto desenvolvimento de um novo tipo de mundo que se anunciava.
De maneira um tanto condensada esse era o panorama filosófico durante o
século XVII: um mundo em nítida transformação e que clamava por uma forma de
organizar os conhecimentos e as descobertas obtidas durante seu desenvolvimento.
De início o que devia ser feito era uma reconsideração do solo a partir do qual o
novo conhecimento deveria erigir-se. Descartes entendia que uma das prioridades para
tal empresa seria desconsiderar todo o legado fornecido pelos antepassados, uma vez
que a única valia da qual seria realmente capaz de fornecer seria a falta de entendimento
quanto aos novos rumos que deveriam ser tomados. Para Descartes todo o
conhecimento antigo só fazia contaminar o puro entendimento que a filosofia tinha a
obrigação de buscar. Em um tal cenário de mudança, novas bases precisavam ser
buscadas. Assim sendo, o projeto cartesiano de procura por bases sólidas para a
sustentação e suporte de um novo mundo começa por negar toda a tradição que a
precede, tida na maior parte das vezes como enganadora:

Há algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera


muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu
fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui
duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente, uma
vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera
crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse
estabelecer algo de firme e de constante nas ciências (DESCARTES, 2006, p.
44).

O método de busca pelas bases incontestavelmente sólidas tem como condição


da aplicação não aceitar como verdadeira nenhuma asserção que esteja poluída pela
dúvida. É o seu conhecido método da dúvida hiperbólica. Neste sentido não há setor do
saber que se sustente, porque nada resiste, em última instância, à dúvida. Descartes
busca pelo método da dúvida hiperbólica o mais alto grau ceticismo para que, através
dele, seja possível alcançar alguma certeza. O ponto inicial é abandonar a crença óbvia
de que o conhecimento se dá pelo mero reconhecimento sensível dos entes. Não apenas
92

isso, mesmo as considerações marcadamente racionais permanecem fora de validade,


radicalmente tudo é passível de dúvida:

Mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da verdade, pensei
que era necessário (…) e rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em
que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se após isso, não restaria
algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os
nossos sentidos nos enganam às vezes, quis supor que não havia coisa
alguma que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, porque há homens
que se equivocam ao raciocinar, mesmo no tocante às mais simples matérias
de geometria, e cometem aí paralogismos, rejeitei como falsas, julgando que
estava sujeito a falhar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara até
então por demonstrações. E enfim, considerando que todos os mesmos
pensamentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer quando
dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi
fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu
espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo
em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso,
cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E,
notando que esta verdade: penso, logo existo, era tão certa que todas as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei
que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia
que procurava (DESCARTES, 2006, p. 70).

No trecho citado fica evidente que a razão do homem é o cerne seguro que
sustenta todo o projeto de pensamento cartesiano. As percepções sensíveis, que vez por
outra são enganadoras, devem ser deixadas de lado para que aquilo que é mais próprio
ao homem se anuncie claramente, ou seja, o “eu” pensante. Enquanto eu penso eu sou.
Essa certeza não pode ser minada de nenhum modo por nenhum gênio maligno, uma
vez que, ainda que tal gênio exista, o “eu pensante” deve existir para ser enganado.
Portanto, a proposição “penso, logo existo” se tornaria verdadeira, porque até sua
dúvida mais extremada a confirma.
A prova do novo saber que se ventila é o sujeito humano, o “eu”, a consciência
racional. É a partir do homem que tudo pode se tornar conhecido e determinado.
Descartes, por meio da dúvida hiperbólica, defronta-se com a certeza fundamental: a do
“eu penso”. Esta, porém, não é apenas uma das verdades que se alcança, mas é a
verdade mais essencial que, uma vez alcançada, fundamenta todo conhecimento seguro
que por ventura o homem procure saber: dos entes, do saber matemático, do saber
geométrico etc. Qualquer outra verdade só será acolhida na medida em que se adequar
ou aproximar de tal evidência segura inicial.
Descartes inaugura a cisão homem/mundo por meio do que chamará de res
cogitans e a res extensa. O homem, em algum momento, seria uma espécie de ponto de
encontro entre dois mundos, nele há o encontro entre alma e corpo. A alma é uma
93

realidade inextensa, ao passo que o corpo é extenso. Trata-se de duas realidades que
nada têm em comum: uma delas é a razão, o eu pensante (aquilo que fundamenta
propriamente o homem), e o outro é o mundo sensível, que serve de base para que o
homem aplique e desenvolva seu conhecimento e controle. É a partir de tal cisão que
algo como uma psicologia pôde surgir, dois séculos depois. Um trecho de Discurso do
método parece resumir seu pensamento e lançar a possibilidade da psicologia como
ciência de foro íntimo, como ciência daquilo que torna o homem propriamente humano,
i.e., da subjetividade:

Fecharei os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de todos os meus


sentidos, apagarei mesmo de meu pensamento todas as imagens de coisas
corporais [...] refutá-las-ei como vâs e como falsas; e assim, entretendo-me
apenas comigo mesmo e considerando meu interior, empreeenderei tornar-me
pouco a pouco mais conhecido e mais familiar a mim mesmo (DESCARTES,
2014, p. 57).

O ponto agora é reconhecer a enorme influência que Descartes e a noção de


subjetividade legam para a psicologia. Como já foi visto, sem a noção de uma
substancialidade interna a psicologia não surgiria. É a partir de uma tal cisão entre
sujeito e objeto que psicologia alcança a possbilidade de autonomia enquanto ciência
que estuda a subjetividade do homem. Por mais que o projeto cartesiano livre a alma de
um conhecimento científico, aos moldes do ente extenso, o movimento cartesiano de
reconhecer na natureza simplesmente extensão e matéria de conhecimento científico,
permite que, cedo ou tarde, o homem oriente a si mesmo pelos moldes daquilo que
acabara de descobrir. Ocorre nesse sentido um fenômeno curioso tematizado por Jean
Baudrillard (2001, p. 82-83):

É certo que, graças ao progresso da ciência realmente descobrimos o mundo


em toda sua complexidade – seus átomos, partículas, moléculas, vírus. Mas a
ciência nunca postulou, nem mesmo como ficção científica, que as coisas nos
descobrem ao mesmo tempo em que as descobrimos, segundo uma
reversibilidade inexorável. Sempre pensamos que as coisas estavam
esperando para serem descobertas, mais ou menos da mesma forma como se
imagina que a América estava esperando Colombo. Mas não é assim. No
momento em que o sujeito descobre o objeto – seja um “índio” ou um vírus –
o objeto faz uma descoberta reversível, mas nunca inocente, do sujeito. Mais
do que isso – trata-se realmente de uma espécie de invenção do sujeito pelo
objeto inventado.

Tal acontecimento tem a ver com o próprio caráter hermenêutico inerente a


experiência humana. Na medida em que o homem já se orienta pela medida de uma
94

nova descoberta, ele já passa a compreender a si mesmo na medida do que lhe fora
aberto compreensivamente, ou melhor, pela medida daquilo que se liberou a ser
compreendido numa determinada direção específica. Uma descoberta nunca é uma
descoberta isenta de uma compreensão específica do real. Quando Descartes
compreende o real como coisa material passível de esclarecimento científico, o homem
já se coloca na alça de mira de uma tal perspectiva de mundo. Mesmo que Descartes
tenha tentado livrar o homem, i.e., sua alma e não seu corpo, de uma postura científica,
sua descoberta mesma do ente enquanto matéria passível de esclarecimento científico
guarda em si o “DNA” do movimento que elenca o homem como esclarecível também
em termos científicos. De certa maneira, Descartes é vítima de um movimento que ele
mesmo indicou por meio de seu pensamento, já que, mesmo tentando reservar à alma,
ou mesmo à humanidade, uma qualidade diferente do ente extenso, Descartes no fundo
indica um caminho de “entrada” ao saber científico. Ele é a uma das primeiras e
principais vozes de uma compreensão hermenêutica que posiciona o homem como
esclarecível científicamente. A partir disso, por princípio, a psicologia é a ciência que
procura consumar esse movimento de “entrada” e de esclarecimento da internalidade
humana, e o psicólogo seu especialista correspondente. Como mostra Feijoo (2011, p.
18-19):

Acreditamos que a elaboração das psicologias científicas ocorreu a partir de


pressupostos intrínsecos à filosofia da subjetividade, pressupostos tais como a
assunção da verdade como representação e a retenção da dicotomia sujeito-
objeto como estrutura originária da realidade. A crise que ocorre no interior
das filosofias da subjetividade, a partir do esvaziamento do lugar mesmo de
constituição do sujeito moderno, acabou por levantar um questionamento
acerca das teorias em psicologia. Isto se deu, na medida em que as teorias que
fundamentam as psicologias modernas também tomaram o psiquismo como
substância essencial, atemporal e dicotomizada do mundo, desenvolvendo de
diferente formas uma espécie de egologia. Tanto a psicanálise quanto o
behaviorismo partem de teorias que mapeiam a subjetividade ou estabelecem
as leis a partir das quais a subjetividade (comportamento) se constitui,
encontrando em seguida elementos psíquicos que compõem essa
subjetividade e que determinam o seu modo de funcionamento. Cabe ao
especialista psi dominar, por sua vez, tal subjetividade e, assim, saber como
fazer para adaptar o homem e reduzir suas tensões.

A psicologia, portanto, é a disciplina que busca, em meio a uma cisão sujeito-


objeto, delimitar o modo de ser da internalidade humana. Mesmo em uma postura
empiricista, o que está em jogo é a delimitação do modo como a subjetividade se
constitui como impressão da experiência empírica, ainda assim o que está em jogo é a
explicação do sujeito “interno” por meio do “externo”. O psicólogo então é o
95

profissional apto a ser o especialista da internalidade humana. No entanto, o trecho


acima também faz menção à crise das filosofias da subjetividade. Tal crise se dá pelo
fato de as psicologias fundadas nas filosofias da subjetividade nunca conseguirem
embasar, as últimas consequências, suas pretensões de conhecimento do âmbito
subjetivo. É assim, na medida em que suas pretensões se encontram apoiadas em um
falso problema: o “fato” de uma tal dicotomia homem/mundo. Seu “objeto” de estudo,
portanto, é algo suposto a partir de uma tal divisão forjada. Justamente por isso a
psicologia sofre de um mal crônico de falta de embasamento19. Cedo ou tarde, as
diversas teorias em psicologia encontram aporias que, de tão básicas, colocam em risco
seu engenhoso castelo de cartas. Sempre permanece o caráter hipotético de suas
teorizações, de um tal modo que quando se busca algum fundamento para a sustentação
de seus preceitos, absolutamente nada se encontra. Como diz Dilthey (2011, p. 28): “[...]
ao buscarmos produzir um conhecimento causal pleno, somos banidos para o interior de
uma nuvem de hipóteses, para as quais não há nenhuma esperança de que se possa
comprová-las a partir de fatos psíquicos”. Não há nenhuma teoria em psicologia que
consiga evidenciar algum fato psíquico de maneira plena justamente pelo fato de nunca
conseguir suprimir por completo o caráter radicalmente hipotético de seus construtos.
Um bom exemplo da crise da psicologia por meio da ruína das filosofias da
subjetividade e da evidenciação do seu caráter meramente hipotético pode ser tirado de
seu próprio carro-chefe: a psicanálise freudiana20.
Quando Freud monta seu aparato psíquico dinâmico em termos de id, ego e
superego, nada do que aí é proposto é passível de inspeção rigorosa. Todo o encaixe de
relações causais entre tais estamentos do psiquismo, bem como suas categorias
nosológicas (neurótico, psicótico e perverso), funcionam sem sobressaltos apenas no
interior de seus próprios preceitos. No entanto, uma postura levemente menos dócil ao
mero argumento de autoridade de Freud e da psicanálise que pergunte pelas bases de um
tal sistema, que pergunte afinal pela necessidade um tal aparato psíquico se dar da
forma em que se dá, e não de qualquer outro modo, faz com que a psicanálise não tenha
meios de encontrar uma resposta. Ela se cala em relação a isso justamente porque ela
19
Isso, de modo algum, quer dizer que a psicologia deva ter fim, ou que o psicólogo é um profissional
menor. Muito pelo contrário, trata-se apenas de constatar que a psicologia pode assumir novas
orientações e o psicólogo, novas práticas a partir do reconhecimento de que seu papel tradicional não
encontra mais lugar para se estabelecer.
20
Embora a própria psicanálise, por capricho, não se considere psicologia, aqui se admite que não é de
todo modo honesto por parte do movimento psicanalítico desprezar um dos poucos ambientes no qual a
psicanálise ainda possui alguma relevância digna de nota, i.e., o meio acadêmico.
96

não encontra meios de legitimar seus “fatos psíquicos”. Para não ser injusto com Freud,
seu sistema até procura tal fundamentação em um escrito que ficou propositadamente
escondido do grande público não se sabe por qual motivo. Tal escrito é o Projeto de
1895 (Entwurf einer Psychologie). Em tal escrito, apenas publicado em 1950, portanto
depois da morte de Freud, fica explícita a sua tentativa em encontrar fundamentos para
todas as suas séries de postulados:

A finalidade desse projeto é estrturar uma psicologia que seja uma ciência
natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados em partículas materiais especificáveis, dando
assim a esses processos um caráter concreto e inequívoco (FREUD, 1975, p.
395).

O ponto de Freud é tornar o seu aparato psíquico observável e quantificável, em


uma postura típica da psicologia positivista do século XIX, ao ponto de explicitar como
finalidade de seu trabalho a contrução de uma psicologia que seja uma ciência natural:
quantificável e observável em particulas materiais. Mas como Freud pretenderia fazer
isso? Como afinal encontrar o psiquismo de alguma forma concreta e observável ao
modo da ciência natural21? Em tal texto Freud busca vincular seu aparato psíquico ao
sistema nervoso, mais particularmente ao aparelho neuronal. Freud busca um
isomorfismo entre seu psiquismo e o funcionamento neurológico, a paritr de uma
inspiração nas leis da termodinâmica: o cerébro conservaria e manejaria dentro de si um
determinado fluxo de quantidade de energia que paulatinamente sedimentaria um modo
de funcionamento psíquico específico. Em meio a uma economia desse fluxo
energético, o bebê, através de uma série de desencadeamentos orientados pela noção de
prazer e desprazer, desenvolveria uma dinâmica psíquica que, paulatinamente, se
conformaria na direção da constituição do id, ego e superego, bem como na constituição
de uma estrutura nosológica do sujeito, ou seja, na neurose, na psicose e na perversão.
No entanto, o encontro entre tal teoria e o funcionamento observável do cerébro nunca
consegue vir a termo de maneira satisfatória, fazendo com que tal tentativa soe por
demais forçosa, uma vez que os paralelos entre o psiquismo e o cérebro não conseguem
admitir plenamente um perfeito encaixe. A falta de paralelismo entre o psiquismo
freudiano e o modo como se dá o funcionamento neuronal permite que Garcia-Roza
(2004, p. 80) diga que “[...] essa anatomia e neurologia que ele [Freud] nos apresenta
21
Tal pretensão do labor freudiano talvez indique um desconhecimento de Freud em relação ao trabalho
de Dilthey, e sua indicação da impossibilidade de lida das ciências humanas ao modo das ciências
naturais.
97

são fantasiosas. O Projeto não é um trabalho descritivo baseado em observações e


experimentos, mas um trabalho téorico de natureza fundamentalmente hipotética”. De
maneira quase que inacreditável o que Freud faz nesse difícil texto é ler o
funcionamento do cérebro ao modo da psicanálise. Na tentativa de fundamentar sua
teoria, ele adequa aquilo que justamente deveria embasar o que quer provar. Com isso,
fica evidente no texto uma petição de princípio, que não só permanece silenciada, mas
também moldada em relação àquilo que deveria ser seu efeito. Talvez em reconhecendo
a aporia de vincular seu psiquismo ao funcionamento do cérebro Freud (1975, p. 169)
em um de seus últimos escritos parece abdicar de tal embasamento:

A Psicanálise faz uma suposição básica, cuja discussão se reserva ao


pensamento filosófico, mas a justificação da qual reside em seus resultados.
Conhecemos duas espécies de coisas sobre o que chamamos nossa psique (ou
vida mental): em primeiro lugar, seu órgão corporal e cena de ação, o cérebro
(ou sistema nervoso) e, por outro lado, nossos atos de consciência, que são
dados imediatos e não podem ser explicados por nenhum tipo de descrição.
Tudo o que jaz entre eles é-nos desconhecido, e os dados não incluem
nenhuma relação direta entre esses dois pontos terminais de nosso
conhecimento. Se existisse, no máximo permitir-nos-ia uma localização exata
dos processos da consciência e não nos forneceria auxílio no sentido de
compreendê-los.

Em tal trecho Freud assume a psicanálise como uma ciência sem vínculo com
alguma base em específico, nem com a descrição dos atos de consciência, nem com o
conhecimento do cérebro. Ela se assume como um espectro que vale por si mesma a
partir de seus “resultados”. Essa nítida incompatibilidade entre psicanálise e alguma
fundamentação possível fica tão evidente com o passar do tempo que mesmo Lacan
(1988, p. 50) afirma que “o que constitui o interesse que podemos ter lendo o Projeto
não é sua pobre contribuição a uma fisiologia fantasista que ela comporta”. O ponto de
tal frase lacaniana é que, a partir de um determinado momento a psicanálise legitima si
mesma a precindir de uma procura por fundamento. Ela se aceita como um saber
espectral, que vale por si mesmo independente de qualquer pergunta por bases.
Justamente por isso a psicanálise funciona extremamente bem como símbolo de uma
realidade que hoje a psicologia de uma maneira geral se vê forçada a encarar: o fato de
ser uma ciência carente de bases para suas teorias explicativas. Talvez justamente esse
caráter de ausência de base permita que a psicologia seja caracterizada pela imensa
dispersão de orientações teóricas, uma vez que tudo parece ter a chancela de ser dito
sem maiores rigores.
98

Foi visto acima que a psicologia enquanto ciência da internalidade não se


sustenta, pois não passa de uma ciência inventada a paritr de uma cisão que instaura um
falso problema: o problema da subjetividade. Evidencia-se que não há com que a
psicologia possa lidar enquanto “objeto” a ser explicado, de tal modo que suas teorias
sempre são minadas por uma pergunta básica que leva na seguinte direção: Por que é
assim e não de qualquer outro modo? Em meio a tal inquirição as teorias da
subjetividade simplesmente não encontram meios isentos de arbitrariedade para provar
suas proposições. É assim na medida em que elas não conseguem encontrar a pedra de
toque que faria tal comprovação possível, o que é extremamente compreensível já que
seu saber teórico é erigido tendo em vista um “objeto” que não há. Com isso, tudo em
psicologia se torna meramente hipotético e se envia em curso de dispersão e
fragmentação, já que qualquer coisa pode ser dita acerca de um objeto que não existe. A
psicologia entra em crise pelo fato de se deparar com sua falha estrutural.
No entanto, o horizonte histórico que torna evidente as falhas estrturais da
psicologia é o mesmo horizonte que equipara homem e animal, de tal maneira que o
movimento que requisita a psicologia hoje é o movimento de predomínio das
neurociências. Na medida em que é gradativamente mais difícil sustentar o discurso
teórico acerca da subjetividade, a psicologia é forçada a encontrar na matéria biológica,
finalmente, algum porto seguro. Com o fim da subjetividade enquanto substância
interna e a orientação do homem como matéria viva, a psicologia é legada ao papel de
auxiliar das neurociências. Agora não há a possibilidade nem de uma adequação da
dinâmica cerebral às verdades psicológicas, como Freud tentou encenar com seu
Projeto, é o saber sobre o cérebro que posiciona o conhecimento psicológico. O homem
esvaziado da técnica é um homem que no fundo intenta deixar de ser poder-ser, e ser
manancial pré-definido de capacidades e aptidões. Mesmo uma dinâmica de neurose,
psicose ou perversão, agora são consideradas em termos de predisposições genéticas e
seu manejo. O caminho de entrada aberto por Descartes se concretiza: agora há o saber
científico sobre o homem. Na medida em que se consuma uma época vazia, permitida
pela iminência de concretização plena do projeto científico de mundo, os “adornos” e
“barroquismos” da psicologia tradicional não são mais relevantes, se tornam um peso
desnecessário. Se hoje eles ainda sobrevivem em algum lugar é talvez por um modismo
de classe média que busca algum desafogo ao posicionamento frio e calculista da
ciência, de forma que ainda seja possível experimentar algum grau identitário básico
para além dos posicionamentos medianos e impessoais do entendimento de homem
99

como matéria biológica. No interior de uma psicologia em crise, a subjetividade ainda


funciona como um espaço de retração em relação à técnica, como um espaço do
particular, apartado da frieza do posicionamento indiferente da ciência. No entanto, a
técnica torna a subjetividade um peso descartável, “Homem não é sujeito, homem é
vida”, diria a técnica. Cedo ou tarde esse refúgio não será mais possível, de maneira que
a psicologia precisa, de fato, deparar-se com sua própria crise. A psicologia parece estar
diante da possibilidade de três caminhos possíveis: 1) ou insistir, em uma tentativa vã,
no refúgio da subjetividade como modo de legitimar a si mesma como disciplina
acadêmica, tentando ignorar a evidente crise das filosofias da subjetividade e o
movimento de animalização do homem, 2) ou, em aceitando tal crise da subjetividade,
aceitar a si mesma como uma subdisciplina das neurociências, endossando suas
certezas, 3) ou bem procurar algum modo de reiventar-se, o que leva na direção da
consideração do homem como ente marcado por negatividade e, por isso, irredutível a
qualquer posicionamento definitivo, como foi visto no segundo e terceiro capítulos.
Exatamente aqui nasce a necessidade de construção de uma psicologia de
resistência. Uma psicologia de resistência antes de tudo precisa considerar a si mesma
não como uma disciplina explicativa do homem, mas como uma disciplina que se
oriente pelo modo de ser do homem como ser-no-mundo, como abertura, como poder-
ser. Esse caminho já é possível de ser tomado, apesar de ainda ensaiar seus passos.

[...] com o advento da fenomenologia, e especialmente do pensamento de


Heidegger, a aceitação tácita do modelo cartesiano tornou-se passível de
discussão. Rompido esse modelo, surge para nós uma nova possibilidade de
pensar. Temos outro ponto de partida servindo de base para a nossa
concepção de homem, de realidade, de mundo (POMPEIA, 2011, p. 76).

O caminho que leva a rendição da psicologia ao saber objetivo da matéria viva,


se dá em função da exposta fraqueza de suas bases tradicionais, apoiadas na base
sujeito-objeto. O galopante movimento de orientação do homem na medida do animal,
definindo a si mesmo como matéria viva passível de determinação explicativa, iniciado
por Descartes em sua postura de esclarecimento científico do real, fez da psicologia, a
princípio, a disciplina fundamental para a explicação do homem em sua
substancialidade interna, e posteriormente, uma disciplina dispensável, que funciona
meramente como adorno das certezas científicas e/ou refúgio identitário de quem
procura abrigo em relação ao movimento indiferente da técnica. Psicologia de
resistência se constroi justamente no permanente cuidado em manter os olhos abertos ao
100

movimento da técnica de equiparação do homem à matéria biológica, o que se mostra


no caso da psicologia como reconhecimento do homem como ente meramente cerebral,
cujo caráter “psicológico” seria um epifenômeno do incontestável funcionamento
orgânico. A psicologia de resistência não tem caráter panfletário contra a ciência e seu
modo de fomento radical de certezas, ela apenas se mantém atenta em relação ao
movimento em essência fracassado de equiparação entre homem e animal, entre homem
e aptidões de fundo orgânico, acolhendo, em tal movimento de atenção, a quem puder
ter escuta ao que aqui é dito.
101

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve em vista tornar o mais acessível possível o modo como
Heidegger trabalha com a noção de tédio, bem como apontar o modo como a afinação
do tédio pôde se tornar a tônica de atual época histórica, chamada por Heidegger de era
da técnica. Tudo isso tendo em vista apontar em tal cenário a crise pela qual passa a
psicologia, que se vê em meio ao processo de animalização do homem e sem ainda
encontrar meios de legitimar a si mesma em tal processo. Para tanto, de início foi visto
o modo como Heidegger se apropria do pensamento de Edmund Husserl e Wilhelm
Dilthey. Através do pensamento husserliano foi visto que o primado da experiência
humana não se encontra na interioridade, e sim, no próprio conhecimento intuitivo do
fenômeno. É somente a partir do fenômeno que se pode abstrair um “eu” e um “objeto”
de modo que o que se dá sem intermediação alguma é o que se dá na percepção
fenomenológica. Esse ato original é aquilo que realmente se experiencia nas vivências
em geral. O homem existe fenomenologicamente e não teoricamente. Em Dilthey, foi
visto que o modo como o homem se estabelece em sua existência está
indissociavelmente ligada a um nexo estrutural histórico, a partir do qual toda a sua vida
se apoia, marcando dessa forma toda vivência humana como inegavelmente debitária de
tal semântica de nexos articulados. Também fora uma importante contribuição de
Dilthey a postura de, assim como Husserl, tentar retirar a experiência humana do modo
artificial de entendimento que as teorias em geral fomentam acerca do homem. Para
tanto, cindiu as ciências em humanas e naturais.
Heidegger ao se apropriar de ambos, aponta para o equívoco no qual ambos
parecem decair. Husserl recai sutilmente no âmbito daquilo que critica. Uma vez que
seu pensamento entrega a possibilidade de libertar o homem de noções como ego e
psiquismo, Husserl acaba encerrando o entendimento fenomenológico de “fluxo de
vivências em síntese” em um “ego transcendental”, quando ele faz isso acaba reeditando
as noções que seu pensamento mesmo não permitia mais que fossem pensadas. Já em
Dilthey, o que Heidegger reconhece é uma recaída em âmbitos teóricos. Por mais que o
projeto ensaiado por Dilthey buscasse um rompimento com o modo de conhecimento
das ciências naturais, a construção de uma ciência humana, “no frigir dos ovos”,
também deporia em favor de uma artificialização do modo mesmo como o homem se
estrutura em sua existência fática. Heidegger conseguiu reconhecer em ambas o que
102

faltava na outra. Viu na fenomenologia a falta de uma consideração acerca dos


horizontes históricos, e viu na hermenêutica de Dilthey a falta de um modo imediato e
não teórico de acesso ao nexo histórico. Com isso, conquistou o caminho de entrada
para a sua própria metodologia de pensamento, que, de início, chamou de
fenomenologia-hermenêutica. Tal método servira de porta de entrada para a questão que
julgou ser a questão fundamental, não só de seu pensamento, mas da filosofia de uma
forma geral: a questão do ser.
No entanto, a questão do ser só pode ser pensada a partir do momento que se tem
em vista a meditação acerca do único ente que é capaz de ser permeado pela verdade em
seu caráter originário de desvelamento. Esse ente é o homem. Heidegger prefere nomeá-
lo de ser-aí em função dos vícios que a palavra homem já trás consigo e pelo fato de
“ser-aí” reunir no próprio termo a ideia fundamental de co-pertencimento entre homem,
mundo e circunscrição histórica de suas possibilidades. Ao longo das lucubrações acerca
do ser-aí alguns pontos essenciais foram conquistados: a impessoalidade como inerente
ao ser-aí e sua “presença” como um passo necessário para a conquista de si-mesmo,
como também o caráter irrevogável do ser-aí enquanto abertura de mundo e de tempo, e,
em função disso, ter como principal característica ser livre. Após alguns
questionamentos e bagagem mínima adquirida tornou-se possível propriamente a
entrada no tema do presente trabalho: o tédio como tonalidade afetiva da era da técnica.
Foi tomado como base para a interpretação do tédio como tonalidade afetiva da
era da técnica o livro Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo – finitude –
solidão. No desenvolvimento do livro Heidegger reconhece três formas possíveis de
tédio: o entediar-se-por..., o entediar-se-junto-a e o tédio profundo. Apesar de serem três
formas diferentes de tédio, as duas primeiras se relacionam essencialmente com a
última, pois é ela que se anuncia assombrosamente tanto no entediar-se-por... quanto no
entediar-se-junto-a. O que o tédio profundo faz é indicar, por meio de uma opressão,
que ao ser-aí atual é recusado “seu” mundo, o “seu” tempo e a “sua” liberdade. Portanto
essa opressão mesma revela toda a riqueza recusada ao ser-aí, riqueza esta que identifica
o ser-aí como ser-aí e que o tédio mostra opressivamente que se encontra a perigo. A
própria opressão é capaz de indicar um caminho possível de reconquista de si-mesmo.
No entanto, o tédio profundo raramente consegue ser “ouvido” justamente porque antes
dele poder ser visto em sua “presença”, o ser-aí já escapou em direção à distração ou em
direção aos afazeres cotidianos. O ser-aí atual não é atento o suficiente para reconhecer
a opressão junto a qual ele mesmo está presente e isso só faz com que a sua própria
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“cegueira” para o essencial se acirre e o vazio se presentifique outra vez mais. A


incapacidade do ser-aí atual de enfrentar crises bane o ser-aí do banimento e o prende
em um mundo sem apelo.
Posteriormente foi buscado mostrar como algo desse tipo pôde tomar lugar na
presente época. Para tanto, foi desenvolvido o paulatino distanciamento do ser-aí da
verdade enquanto desvelamento, que o constitui. Esse distanciamento se deu em função
da incapacidade de aceitar no espaço a retração inerente à mostração dos entes em geral.
O ser-aí se perdeu no projeto de tornar tudo visto e conhecido, de dizimar a dimensão
misteriosa que nunca se deixar pensar e que sempre terá relação com o homem.
Heidegger reconhece no homem atual a tarefa de aceitar de forma atenta essa destinação
porque ela é a consumação de um projeto de mundo que se encontra em vias de se
totalizar, que começou antes mesmo de a modernidade vir à tona na voz de Descartes,
no qual o próprio Descartes fora “apenas” mais uma via, mais uma voz da modernidade
se fazendo modernidade. Não se diz com isso que tal consumação seja a consumação de
algo previamente arquitetado, como se o processo histórico possuísse alguma finalidade
previamente dada. Não. O que Heidegger faz é apenas reconhecer no projeto histórico
ocidental a formação de uma figura definitiva que consuma um processo de radical
distanciamento da questão da verdade, entendida como des-velamento. No entanto, sua
postura não é a do embate frenético contra tal semântica histórica, chamada de era da
técnica, mas a de se manter no esforço seguro e sereno de permanecer de “olhos
abertos”.
Por fim foi indicado como a psicologia, de uma maneira geral, se posiciona em
relação a tal processo de esvaziamento do ser-aí, e por consequência seu próprio
esvaziamento. Na medida em que há um radical esvaziamento da visão em curso, já que
o ente hoje se torna mera conjuntura ôntica sem lastro ontológico algum, a única forma
como o homem consegue considerar a si mesmo é de uma forma quase elementar: como
matéria biológica viva. Esse processo de equiparação entre homem e vida, arrasa
qualquer tipo de consideração acerca do modo como a psicologia até hoje se estabeleceu
como disciplina acadêmica, ou seja, como saber que lida e esclarece teoricamente a
internalidade do homem. O processo de equiparação entre homem e vida torna tal saber
supérfluo e desnecessário. O ponto aqui foi mostrar que, mesmo uma postura que tente
se prender a algum tipo de conhecimento subjetivo na tentativa de livrar o homem da
frieza do nivelamento à mera vida, é equivocada. Ela é equivocada, pois desconsidera o
modo de ser do homem como abertura, como ser-no-mundo, como liberdade. Essa
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trama complexa envolve a psicologia hoje: ela se encontra rebaixada a uma auxiliar das
ciências biológicas, em particular as neurociências, e para combater tal movimento
arrasador ela apela para um falso saber: o saber acerca de uma espectral subjetividade.
Na tentativa de desacelerar o ritmo que esgota e nivela o ser-aí, a psicologia ainda tenta
se apegar a subjetividade como “espaço” da intimidade e reserva em relação à
“pasteurização” em curso. O ponto final do presente trabalho foi indicar o esboço de
uma psicologia de resistência, uma psicologia que não mais seja marcada pela tentativa
de perscrutar hipotéticas subjetividades, nem se render ao mero conhecimento objetivo
do organismo, mas que acredite no homem enquanto ente livre, e faça dessa certeza o
norte de suas atividades.
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