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OS PROVÁVEIS IMPACTOS DA PEC 75/2019 NA PUNIBILIDADE DOS

CRIMES DE ESTUPRO E FEMINICÍDIO NO BRASIL

Marina Mariano Torres1


RESUMO

O presente artigo consiste em análise dos prováveis impactos da PEC 75/2019, de autoria da
senadora Rose Freitas, do partido PODEMOS-ES, a qual propõe a alteração do inciso XLII do
art 5° da Constituição Federal de 1988, de forma a incluir o estupro e o feminicídio,
qualificadora do crime de homicídio, no rol de crimes imprescritíveis. Tem-se como principal
objetivo comprovar a hipótese de que a inserção deles no rol da imprescritibilidade impactaria
significativamente na redução da impunidade de ambos os crimes, bem como auxiliaria a
diminuição da subnotificação das ocorrências, especialmente nos casos de estupro. Para tanto,
será utilizada metodologia predominantemente quantitativa, por meio do exame de índices de
ocorrência e subnotificação destes crimes, além de análises qualitativas e bibliográficas.
Palavras-chave: Prescrição. Estupro. Feminicídio. Punibilidade.

ABSTRACT

This article consists of analysis of the probable impacts of PEC 75/2019, written by senator
Rose Freitas from PODEMOS-ES party, which proposes the alteration of line XLII from
article 5 of the Federal Constitution of 1988, in order to include the crimes of rape and
feminicide, a homicide qualificator, in the list of the indefeasible crimes. The main objective
is to prove the hypothesis that the insertion of such crimes in the list would impact
significatively on the reduction of impunity of both crimes and would also assist to lower the
under notification of occurrences, speacially in cases of rape. For such, mainly quantitative
methodology will be used, by examining indexes of the occurrence and under notification of
those crimes, as well as qualitative and bibliographical analysis.
Keywords: Prescription. Rape. Feminicide. Punishability.

INTRODUÇÃO

O presente artigo adveio de análise da Proposta de Emenda Constitucional 75/2019,


que pretende a inserção do estupro e do homicídio qualificado por feminicídio no rol dos
crimes imprescritíveis, atualmente composto pelo crime de racismo e pelos crimes de ação de
grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático,
elencados nos incisos XLII e XLIV do Art. 5º da Constituição Federal.
Delineou-se, a partir da referida PEC, a hipótese de que tornar tais crimes
imprescritíveis estaria diretamente relacionado à redução dos níveis de impunidade e

1
Graduanda em Direito - Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: marinatorres02@live.com
subnotificação, os quais, na conjuntura social brasileira, são extremamente alarmantes, frente
ao crescente e preocupante cenário de violência contra a mulher.
Nesse contexto, faz-se necessário, considerando as particularidades dos crime de
estupro e feminicídio, entender os motivos pelos quais a impunidade se mantém frequente
nessas ocorrências, e como a impossibilidade da perda do direito de punir pelo decurso do
tempo auxiliaria na mudança desse cenário, oportunizando às vítimas uma via legal eficaz e
imperecível para denúncia e tramitação processual.
Para bem abordar o questionamento suscitado, a pesquisa tem embasamento teórico no
conteúdo da própria PEC e nas justificativas apresentadas pela autora em defesa à sua
aprovação, bem como na análise bibliográfica do instituto processual da prescrição.
Ademais, concentrou-se em dados quantitativos por meio da análise de estudos sobre a
violência contra a mulher no Brasil, no intuito de verificar o crescimento estatístico dos
crimes de estupro e feminicídio e, especialmente, apurar as condições psicossociais das
vítimas no pós-crime, de forma a apreender como essas se relacionam com os indíces de
impunidade e subnotificação.
Dessa forma, o presente trabalho segue, inicialmente, à apresentação detalhada do
conteúdo da proposta de emenda constitucional e as razões apresentadas pelos parlamentares
que a defenderam no âmbito do Poder Legislativo.
Posteriormente, inicia-se uma análise teórica do instituto processual da prescrição,
buscando compreender, principalmente, quais fatores ensejaram o surgimento das suas
exceções, seguido pela observação dos índices e estudos previamente mencionados.
Por fim, colocam-se as considerações finais que se aproximam das respostas
pretendidas com este estudo.

1 A PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL 75/2019

A PEC 75/2019 foi apresentada em 07 de maio de 2019, pela senadora Rose Freitas,
do partido PODEMOS-ES, em coautoria com inúmeros outros parlamentares.
O texto original da proposta visava integrar somente o feminicídio no rol da
imprescritibilidade, tendo sido emendado para incluir o crime de estupro, em 30 de outubro de
2019, pelo senador Alessandro Vieira, do partido CIDADANIA-SE, após sugestão da
senadora Simone Tebet. Faz-se relevante pontuar, porém, que já existiam outras propostas no
sentido de incluir o estupro no inciso XLII do Art. 5º da CF/88, sendo uma de autoria do
senador Jorge Viana do Partido dos Trabalhadores - AC, a PEC 64/2016.
A PEC 75/2019, objeto de análise do presente trabalho, foi aprovada no Senado
Federal, em 06 de novembro de 2019, de onde seguiu para a Câmara dos Deputados e
permanece pendente de apreciação.
Apresentou-se como primeira justificativa da emenda um estudo recente da
Organização Mundial da Saúde (OMS)2, que situou o Brasil em quinto lugar na taxa de
feminicídios entre 84 nações pesquisadas.
Indicou-se, também, o “Mapa da Violência” de 20153, que apontou terem morrido
106.093 pessoas, entre 1980 e 2013, pela mera condição de ser mulher, bem como
levantamento feito pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP e da Pesquisa Violência
Doméstica contra a Mulher4, realizada pelo DataSenado, em parceria com o Observatório da
Mulher contra a Violência, confirmando que os registros de feminicídio cresceram em um
ano.
Pontuou, por conseguinte, o senador Alessandro Vieira, no parecer da Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ)5, que “precisamos comunicar aos agressores que a
violência contra as mulheres não é admissível e será severamente punida pela ação estatal.
Tornar o feminicídio imprescritível é um dos caminhos possíveis para a dissuasão que
pretendemos”.
Quanto ao estupro, não há na própria emenda justificativa específica, visto que
originalmente, ela não o continha como objeto, mas asseverou o senador Jorge Viana, de
forma complementar, sobre a retromencionada PEC 64/2016, o que segue:
No Brasil, só no ano de 2015, foram registrados 45.460 casos de estupros
consumados, o que corresponde à alarmante taxa de 22,2 casos de estupro para cada
grupo de 100 mil habitantes. Na verdade, a maioria dos casos de estupro não são
reportados. Estudo do IPEA calcula que o número de estupros por ano no Brasil seja
em torno de 527 mil tentativas ou casos de estupros consumados no país, dos quais
apenas 10% seriam reportados à polícia. A subnotificação dos crimes de estupro

2
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição Nº 75, de 2019. Brasília, Disponível em:
<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7952642&ts=1573087391777&disposition=inline>.
Acesso em: 05 nov. 2019.
3
Ibidem
4
Ibidem
5
BRASIL. Parecer (sf) N° 153 de 2019. Brasília, Disponível em:
<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8032711&disposition=inline#Emenda1>. Acesso em:
05 nov. 2019.
ocorre devido ao receio de que as vítimas têm de sofrer preconceito, superexposição
ou serem revitimizadas. (...) Diante desse quadro, propomos a imprescritibilidade do
crime de estupro. Essa medida, por um lado, permitirá que a vítima reflita, se
fortaleça e denuncie, por outro lado, contribuirá para que o estuprador não fique
impune. 6

A menção à prevenção da impunidade e à coibição dos possíveis criminosos foram as


premissas mais recorrentes dentre os parlamentares para justificar a aplicação da
imprescritibilidade, além de um forte clamor social por medidas de repressão mais efetivas
em face dos que que praticam crimes contra grupos visivelmente vulneráveis.

2 A REALIDADE CONTEMPORÂNEA DOS CASOS DE ESTUPRO E


FEMINICÍDIO NO BRASIL: IMPUNIDADE E SUBNOTIFICAÇÃO

2.1 O instituto da prescrição e suas exceções

Inicialmente, a fim de compreender o cabimento da imprescritibilidade, é necessário


conceituar o instituto da prescrição.
A prescrição, sob a égide de Fernando Capez7, é causa extintiva da punibilidade pelo
decurso do tempo, que implica na perda do direito de punir (jus puniendi) ou da pretensão de
executar a pena (jus executionis) pelo Estado. No Direito Brasileiro, de acordo com o Art. 109
do CPB8, tem-se que a prescrição punitiva, contada antes do trânsito em julgado, regula-se
“pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime”.
A importância desse instituto é apresentada a partir da dicotomia entre a finalidade da
pena e o decurso do tempo, visto que, passado certo tempo após o cometimento do crime,
poderá não mais haver funcionalidade em aplicar a pena.

6
BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição, Nº 64 de 2016. Brasília, Disponível em:
<https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=1392762&ts=1567521008086&disposition=inline>.
Acesso em: 05 nov. 2019.
7
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal Parte Geral. Vol.1 .São Paulo. Saraiva, 2011
8
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de
Janeiro, 31 dez. 1940.
Destacam-se, pois, teorias fundamentadoras da prescrição penal, conforme preleciona
Damásio de Jesus9: a teoria do esquecimento; da expiação moral do criminoso; da emenda; do
transcurso do tempo, da dispersão das provas e da presunção de negligência.
Quanto à teoria do esquecimento, depreende-se que o temor do crime praticado
dissipa-se com o tempo, não havendo motivos para punir o agente se o fato já fora esquecido
pela sociedade, perdendo o chamado caráter de exemplaridade.
Já em relação à teoria da expiação moral do criminoso, tem-se que o acusado já teria
sofrido demasiadamente pela culpa que pesa sobre ele, durante o tempo que transcorreu o
processo criminal, já tendo sido, pois, castigado por seu próprio senso moral e remorso, de
modo que a imposição de outra pena além desta chegaria a atentar até mesmo contra o
princípio do non bis in idem.
A teoria da emenda, por sua vez, defende que, decorrido lapso temporal suficiente,
presumir-se-ia que o criminoso tivesse se corrigido, desde que nesse período de tempo não
tivesse cometido outro delito, sendo a boa conduta suficiente para inferir a não necessidade de
aplicação da pena. que o agente, em decorrência do tempo, pode ter mudado seu
comportamento, inclusive redimindo-se do crime ora praticado; que a inércia do Estado na
busca pela punição do acusado geraria a permissão de não mais punir o agente, ao qual não
cabe o ônus da demora do Estado.
Essa teoria defende que as provas do crime vão, ao longo do tempo, se perdendo e
perecendo, tornando o fato delituoso cada vez mais difícil de ser provado, não havendo,
assim, motivos para prosseguir com a investigação, visto que estariam aumentados os riscos
de erros judiciários.
Por fim, a teoria da presunção de negligência aduz que o acusado deve deixar de ser
punido em razão da negligência estatal, pois somente ao Estado incumbe-se o dever de
perseguir a investigação bem como todo o curso do processo, no tempo pré-fixado pela
legislação, não cabendo ao acusado o ônus da mora do Poder Judiciário ou da autoridade
policial.
Todas as teorias acima apresentadas encontram vasto respaldo doutrinário e
jurisprudencial e não são necessariamente contraditórias em se tratando da possibilidade de
exceções à prescrição.

9
JESUS, Damásio E. de, Direito Penal: Parte Geral, 36 ed., São Paulo, Saraiva, 2015, V.1, p. 22.
Ocorre que, nos casos de crimes imprescritíveis, mesmo em face a todas essas teorias,
os impactos causados pela prática do crime foram demasiadamente profundos e, portanto,
merecem uma reprimenda estatal mais forte e robusta, alcançada por meio da
imprescritibilidade.
A imprescritibilidade, por sua vez, é exceção no contexto jurídico brasileiro, e foi
consolidada pelo constituinte no já mencionado Art. 5º da Constituição Federal de 1988, em
duas hipóteses, quais sejam o crime de racismo e pelos crimes de ação de grupos armados,
civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, elencados nos
incisos XLII e XLIV.
O intuito da imprescritibilidade consiste, em verdade, em punir de forma mais severa o
autor desses crimes, coibindo sua prática por meio da frustração da esperança de impunidade.
O Estado mantém, assim, em seu poder, o direito de perseguir o crime cometido,
independentemente do decurso do tempo, bem como executar a pena a ele referente.
Enquanto a segunda hipótese de imprescritibilidade se relaciona à defesa da soberania
estatal e à coibição de atos atentatórios ao próprio Estado Democrático de Direito, a hipótese
do racismo enquanto crime imprescritível apresenta motivações históricas e sociais bastante
específicas para sua inserção neste rol.
Nesse ínterim, evidentemente, pode-se mencionar que houve inúmeros impactos
advindos da escravidão e segregação sofrida por indivíduos negros desde o período colonial
até a idade contemporânea, sendo o Estado responsável por elaborar políticas que
proporcionem equidade de direitos e reparação histórica ao povo negro.
Assevera o magistrado Waldemar Zveiter, em parecer: “(...) para a preservação dos
Direitos Humanos, recepcionados pela legislação das nações democráticas, com foi em nosso
país, devemos reagir com todas as forças, pelos meios lícitos, contra qualquer forma de
racismo”. (ZVEITER, 2007)10
Dessa forma, com o intuito de “reagir com todas as forças” e para que o Direito
acompanhasse as necessidades da sociedade, o constituinte, ao instituir o racismo como crime,

10
ZVEITER, Waldemar. Parecer sobre a constitucionalidade da instituição do sistema de
cotas para negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do Norte Fluminens,
a partir de consulta formulada pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Afrobrasileiros e
outros. Disponível em:<www.politicasdacor.net/jurisprudencia/Pareceres/pareceres.htm>
Acesso em: 18 abril 2021.
também o aparelhou com a imprescritibilidade e a inafiançabilidade, reforçando, dessa forma,
a gravidade de tal crime.
Ainda quanto às exceções da prescritibilidade, reputam-se relevantes os crimes do
âmbito do direito internacional, incorporados à legislação brasileira por meio da ratificação do
Estatuto de Roma.
De imensa gravidade, crimes como genocídio, tortura, o homicídio doloso, cometidos
em tempo de guerra; crimes sistemáticos contra populações civis, como homicídio, extermínio
ou perseguição, também encontram tutela sob a égide do direito enquanto imprescritíveis,
reforçando a ideia de que em função da gravidade das suas consequências, o criminoso não
poderia ser prestigiado com a remota possibilidade de impunidade em caso de
demora/perecimento do direito de ação.
Asseveram, sobre o assunto, Santos de Oliveira e Aride Cunha:
Desse modo, compreende-se que, com relação aos crimes julgados por Tribunais
Internacionais, a imprescritibilidade vem sendo aplicada de modo recorrente,
inclusive, afastando-se princípios inerentes ao próprio instituto da prescrição, como
por exemplo, as teses subjetivistas de que o agente, com o decurso do tempo poderia
transformar sua identidade, vindo a reprimenda tardia a incidir sobre alguém que já
não teria o que expiar sobre seu ato. Ademais, vêm compreendendo os Tribunais
Internacionais, que no caso dos crimes internacionais contra humanidade, estes têm
como suas vítimas o ser humano enquanto homem, e por isso, o seu caráter gravoso,
que deixa marcas na sociedade presente e futura, não seria passível de prescrição.11

Tal entendimento fortalece a tese de que já há, no Brasil, mesmo que em caráter
supraconstitucional, hipóteses de outros crimes, semelhantes em gravidade aos crimes
previstos na PEC 75/2019, que têm como característica a imprescritibilidade.

2.2 Fundamentos históricos para a imprescritibilidade dos crimes de estupro e


feminicídio
Tomando tais premissas como base para refletir acerca do cabimento da
imprescritibilidade para os crimes de feminicídio e estupro, depreende-se que, de forma
semelhante, esses crimes que atingem majoritariamente mulheres, refletem consequências de

11
OLIVEIRA, Natalia Angélica Santos de; CUNHA, Fabiane Aride. A POSSIBILIDADE DA
IMPRESCRITIBILIDADE NO HOMICÍDIO DOLOSO. 2016. Disponível em:
https://dspace.doctum.edu.br/bitstream/123456789/1483/1/A%20POSSIBILIDADE%20DA%20IMPRESCRITI
BILIDADE%20NO.pdf. Acesso em: 18 abr. 2021.
uma histórica ausência de direitos e da perpetuação de uma cultura da mulher enquanto
propriedade no Direito Brasileiro.
Pode-se mencionar, a título de ilustração, o instituto de legítima defesa da honra,
previsto no Código Penal de 1890, que punha a defesa da honra como excludente de ilicitude,
permitindo, dessa forma, que uma mulher adúltera pudesse ser morta pelo cônjuge, sob tal
pretexto.12
Segundo Cleber Masson, com base neste dispositivo legal, os passionais eram
comumente absolvidos, pois “ao encontrarem o cônjuge em flagrante adultério, ou movidos
por elevado ciúme, restavam privados da inteligência e dos sentidos.”13
Ademais, no âmbito civil, a lenta evolução jurídica da mulher enquanto cidadã pode
ser comprovada pela participação política e direito ao voto tardio - garantido somente na
década de 30 -, bem como pelas previsões do Código Civil de 1916 - modificado somente na
década de 60, com o advento do “Estatuto da Mulher Casada” - que aduzia que a mulher
somente poderia ser economicamente ativa, receber herança e obter a guarda dos filhos (em
caso de separação) mediante autorização do marido.14
Ainda neste viés, somente em 1985, após pressões sociais, foram criadas delegacias
especializadas para tratar de casos de violência doméstica, as chamadas Delegacias da
Mulher.
Não foi até o ano de 2006, porém, que se tipificou lei específica para tratar da
violência doméstica, a qual adveio do célebre e trágico caso da Sra. Maria da Penha, que
sofreu duas tentativas de homicídio, em 1983, e só obteve provimento jurisdicional para a
condenação do seu agressor no ano de 2002, chegando a ficar paraplégica devido às
violências sofridas.
Neste caso específico foi reconhecida até mesmo internacionalmente a demora do
Estado brasileiro em prover assistência à vítima, bem como processar o acusado, face à
condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

12
RAMOS, Margarita Danielle. Reflexões sobre o processo histórico-discursivo do uso da legítima defesa da
honra no Brasil e a construção das mulheres. Rev. Estud. Fem. [online]. 2012. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2012000100004&lng=en&nrm=iso>.
ISSN 0104-026X. Acesso em 05 nov. 2019.
13
MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral. São Paulo: Método, 2013, p. 421.
14
COELHO, Renata. A EVOLUÇÃO JURÍDICA DA CIDADANIA DA MULHER BRASILEIRA – breves
notas para marcar o dia 24 de fevereiro, quando publicado o Código Eleitoral de 1932 e os 90 anos do voto
precursor de Celina Viana. Disponível em:
http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/Evoluojurdicadacidadaniadamulherbrasileira_RenataCoelho.pdf. Acesso
em: 18 abr. 2021.
Na sentença, a Corte recomendou, ainda, ao Poder Público brasileiro que:
Adotasse sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável
civil da agressão, as medidas necessárias para que o Estado assegure à vítima
adequada reparação simbólica e material pelas violações aqui estabelecidas,
particularmente por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo; por manter o
caso na impunidade por mais de quinze anos; e por impedir com esse atraso a
possibilidade oportuna de ação de reparação e indenização civil.15

Evidencia-se, portanto, inúmeras razões históricas e fáticas que demonstram a


fragilidade da mulher enquanto sujeito de direitos perante o Estado brasileiro, ensejando uma
ação estatal mais robusta para reparar os danos causados pelo incentivo, ainda que
inconsciente, a uma cultura de discriminação, violência doméstica e objetificação da mulher.
2.2 A imprescritibilidade como medida de combate ao contexto de violência
contra a mulher no Brasil
Consoante o apanhado histórico acima, pode-se inferir a necessidade da promoção de
políticas públicas por parte do Estado brasileiro de forma a proteger os direitos das mulheres
frente a séculos de negligência neste aspecto.
Assim, a proposta da imprescritibilidade surge como uma medida relevante na luta
contra a impunidade e subnotificação dos casos de violência contra a mulher no Brasil, pelos
motivos que serão expostos adiante.
A princípio, vale ressaltar que, de acordo com a pesquisa intitulada “Estupro no
Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde”16, realizada pelo IPEA, somente 7,5%
das vítimas de violência sexual registram o crime na delegacia.
Esse alto índice de subnotificação se dá, dentre outras razões, pelos impactos
psicossociais causados na vítima após o crime, quais sejam a depressão, ansiedade, problemas
múltiplos de personalidade e transtornos de estresse pós-traumático e obsessivo compulsivo,
os quais podem perdurar até o fim da vida da vítima, não sendo seu impacto em grau algum
diminuído em face ao arrependimento do agente.17

15
AMERICANOS, Organização dos Estados. RELATÓRIO ANUAL 2000 RELATÓRIO N° 54/01* CASO
12.051 MARIA DA PENHA MAIA FERNANDES. Disponível em:
https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em: 18 abr. 2021.
16
IPEA. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde. 2014. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/21/estupro-no-brasil-uma-radiografia-segundo-os-dados-da-saude>
. Acesso em: 05 nov. 2019.
17
Souza, F. B. C., Drezett, J., Meirelles, A. C., & Ramos, D. G. (2013). Aspectos
Ademais, segundo Drezett (2003, p. 37): “No Brasil, a maior parte das mulheres não
registra queixa por constrangimento e humilhação, ou por medo da reação de seus
conhecidos e autoridades. Também é comum que o agressor ameace a mulher de nova
violência caso ela revele a que sofreu.”18
É compreensível, pois, que a vítima do estupro demore para se manifestar acerca da
situação sofrida, não se tratando de um crime fácil de ser relatado e exposto. Também as
condições de sua ocorrência; um crime oculto, sem testemunhas e de difícil instrução
processual, podem fazer com que a vítima se sinta descredibilizada, o que a faz se manter
inerte por anos, ultrapassando, inclusive, o prazo prescricional previsto em lei.
Os impactos dessa subnotificação e consequente impunidade vão, inclusive, muito
além da baixa confiabilidade dos dados acerca da violência sexual, conforme aduz Brito de
Oliveira, em artigo publicado na Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade da
UFRN:
Uma das principais consequências da subnotificação é o fato de que, ao se ocultar
um problema, poucas são as medidas tomadas para resolvê-lo. Desse modo, mesmo
que o estupro seja considerado um problema de saúde pública, ele é muito
mais difícil combater, por se tratar de um mal invisível que atinge diversas pessoas
sem, no entanto, ser posto à mostra. A falta de políticas efetivas para o combate ao
estupro, por sua vez, ocasiona um número cada vez maior de casos, o que faz com
que esse crime se torne um problema sistêmico e crescente.19

Por sua vez, o feminicídio, qualificadora do homicídio acrescentada pela Lei


13.104/15, já foi incorporado à legislação penal brasileira com o intuito de conferir maior
severidade à pena dos homicídios praticados contra mulheres por razões da condição de sexo
feminino.
No entanto, mesmo com essa tipificação mais severa, não se verificou, desde a
promulgação da referida legislação, diminuição no número de assassinatos de mulheres; pelo
contrário, os números somente aumentaram, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança

psicológicos de mulheres que sofrem violência sexual. Disponível em:


https://doi.org/10.1016/j.recli.2013.03.002. Acesso em: 18 abr. 2021.
18
DREZETT, Jefferson. Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva. Revista
de Psicologia da UNESP, Assis, v. 2,n. 1, 2003.Disponível em:
<http://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/view/1041>. Acesso em: 18 abr. 2021.
19
OLIVEIRA, Khadja Vanessa Brito de. A SUBNOTIFICAÇÃO ENQUANTO CARACTERÍSTICA
MARCANTE DO ESTUPRO NO CONTEXTO BRASILEIRO. Disponível em:
http://revistafides.ufrn.br/index.php/br/article/view/400/458. Acesso em: 18 abr. 2021.
Pública de 2019, o Brasil teve um aumento de 7,3% no número de casos de feminicídio em
2019 em comparação com 2018, sendo mortas, em média uma mulher a cada 7 horas.20
Dado que se revela ainda mais preocupante é o da impunidade de criminosos que
praticaram o feminicídio, em sua forma tentada ou consumada.
De cada dez mulheres vítimas de feminicídio no Brasil, nove são mortas por parceiros
ou ex-parceiros, ainda segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
De acordo com estudo liderado pelo pesquisador Sérgio Barbosa, da Universidade
Federal do Ceará, tais assassinatos são precedidos por ciclos de violência doméstica. Em um
levantamento de casos de violência doméstica ocorridos no estado de São Paulo no primeiro
semestre de 2019, Barbosa concluiu que apenas 5% dos cerca de 3.000 processos acabaram
com prisão do agressor. Ressaltou que isso não significa que todos os outros 95% deveriam
estar presos, mas teriam de, ao menos, “estar participando de grupos reflexivos, espaços de
encontro entre agressores onde eles falam sobre seus casos e são orientados a refletir sobre os
ataques que praticaram, na tentativa de evitar a reincidência.”21
Apontou, ainda, que a impunidade pode advir também da subnotificação, no entanto,
não se pode culpar a vítima por isto, visto que, segundo ele, na maioria dos casos “as vítimas
querem a punição, mas não a prisão do companheiro”. Existindo, ademais, os fatores do medo
de ameaças futuras do parceiro e a dependência financeira.22
A possibilidade de tornar esses crimes imprescritíveis, fazendo com que o Estado
mantenha o seu jus puniendi sem perecimento pelo decurso do tempo pode impactar de forma
significativa no cenário atual, possibilitando que, pelo decurso do tempo, o status quo que
impede as vítimas de denunciarem seus agressores se modifique, propiciando assim mais
chances de uma possível investigação.
Faz-se necessário mencionar, no entanto, que não poderia a pretensão da PEC 75/2019
consistir em solucionar todos os problemas referentes à violência doméstica no Brasil.
Segundo o senador Alessandro Vieira, visto que esses crimes têm raízes culturais
muito antigas, não cessarão por meio de somente uma medida, mas, ao observar a evolução

20
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-13/.
Acesso em: 18 abr. 2021.
21
BARBOSA, Sérgio. AGRESSÃO E IMPUNIDADE: O CICLO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PELA
ÓTICA MASCULINA. Disponível em:
https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/agressao-e-impunidade-o-ciclo-da-violencia-domestica-pela-otica-
masculina/. Acesso em: 18 abr. 2021.
22
Idem
dos crimes de racismo e de violência doméstica após a emissão das leis Antirracismo e Maria
da Penha, confere-se uma maior visibilidade a eles, inibindo, de certa forma, sua prática.23
Nesse sentido, não se coloca a proposição da imprescritibilidade como um remédio
absoluto para as questões de violência contra a mulher, mas, tão somente, se defende que
exista mais um mecanismo que propicie segurança à mulher, tantas vezes fragilizada por
situações de abuso doméstico, físico ou sexual, e violência por parte de desconhecidos, em
inúmeros cenários.
A insegurança, a desconfiança da palavra da vítima e inúmeros outros fatores
apresentados previamente demonstram o quanto o Poder Público brasileiro ainda tem de
investir na reversão da cultura de violência contra a mulher, enfatizando principalmente, a sua
dignidade humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no que foi apresentado, ficou demonstrada a importância da ação estatal
para coibir ações de violência contra a mulher, bem como as lacunas historicamente deixadas
pelo Poder Público brasileiro neste quesito.
Em análise dos prováveis impactos da PEC 75/2019 na punibilidade dos crimes de
estupro e feminicídio, verificou-se que o decurso do tempo pode ser considerado como ponto
relevante para a denúncia de tais crimes, devido às condições psicossociais em que as vítimas
estão inseridas.
Desse modo, a hipótese inicial de que a impunidade e a subnotificação dos casos
poderiam ser diminuídas com o advento da imprescritibilidade foi sustentada. Depreendeu-se,
pois, que os crimes de estupro e feminicídio possuem elementos que embasam de forma
fática e teórica sua introdução no rol de imprescritibilidade, à luz das peculiaridades de cada
tipo penal e do possível impacto no crescimento da punibilidade em face ao atual cenário de
altas taxas de impunidade
Compreendeu-se, em suma, que tais crimes devem passar a integrar o rol do inciso
XLII do Art.5º da CF/88, porém, não se pode tomar tal alteração como premissa para inverter
a lógica do sistema processual penal pátrio, tornando a maioria dos crimes como

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FOCO, Congresso em. Maior rigor na lei do feminicídio e estupro não vai acabar com violência contra a
mulher. Disponível em:
https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/maior-rigor-na-lei-do-feminicidio-e-estupro-nao-vai-acabar
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imprescritíveis, visto ter o instituto da prescrição importância no que concerne à segurança
jurídica e a relação indivíduo-Estado.
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