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Estado e Teoria Econômica: Apontamentos sobre um não-debate

Embora Adam Smith, considerado por muitos o pai da Ciência Econômica,


tenha dito, ainda no prefácio de A Riqueza das Nações (1776), que as teorias da então
chamada Economia Política “têm exercido considerável influência, não somente sobre
as opiniões de homens cultos, mas também sobre a conduta pública de príncipes e
Estados soberanos” (SMITH, 2003, p. 4), o inverso não necessariamente é verdadeiro.
Em outras palavras, ainda que a Teoria Econômica tenha influenciado a atuação
econômica dos Estados ao longo da história, pouco se discute dentro da própria Teoria
Econômica a respeito dessa atuação.
Diante dessa contradição, o objetivo desse artigo é apresentar em linhas gerais
uma reflexão sobre a presença do Estado na Teoria Econômica. Nesse caso, não se trata
aqui de discutir o papel desempenhado efetivamente pelos diferentes Estados nas
realidades concretas de distintas economias nacionais, mas sim, o lugar (ou não lugar?)
ocupado pelo Estado na Teoria Econômica.
Com a intenção de facilitar a visão panorâmica que pretendemos construir sobre
a Teoria Econômica, nos centramos aqui em três paradigmas fundamentais da evolução
do pensamento econômico: a economia clássica, com Adam Smith, a economia
neoclássica, com León Walras1, e a economia keynesiana, com John Maynard Keynes.
Ao fim apresentaremos algumas considerações gerais sobre o tema.

O paradigma clássico

O paradigma clássico da Economia se constituiu como um grande avanço frente


ao pensamento econômico disperso que lhe antecedeu. Quando Adam Smith afirma que
o bem-estar social era oriundo da atuação egoísta dos diferentes indivíduos, superou a
polêmica existente até então sobre qual seria o aspecto predominante da natureza do ser
humano, se o egoísmo ou a cooperação.
Segundo Gentil Corazza:

Hobbes afirmava que o comportamento humano era


essencialmente egoísta. Por esse motivo, somente a ação

1
Também abordaremos o pensamento de Milton Friedman, ainda que, sendo ele um integrante da escola
monetarista, não possa ser considerado propriamente um economista neoclássico. Tomamos a decisão de
incluí-lo na análise, não obstante esse aspecto, devido à similitude existente entre as concepções de
Friedman e Walras a respeito do caráter científico da Teoria Econômica.
coercitiva do Estado permitira a constituição da sociedade civil.
Já para Locke, o homem é naturalmente bom. As desigualdades
e os antagonismos entre os homens originam-se da posse da
riqueza. O Estado não se constitui em fundamento da sociedade
civil, mas é apenas sua garantia. [...] Nesse sentido, o
pensamento de Smith distingue-se pela superação dessa
contradição, na medida em que atribui um papel socialmente
positivo ao egoísmo. (CORAZZA, 2020, p. 36)

De fato, a frase célebre do autor de A riqueza das nações sintetiza bem a


concepção dele a respeito das causas que geram o bem-estar social:

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do


padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que
eles têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade,
mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades,
mas das vantagens que eles podem obter. (SMITH, 2003, p. 19).

Ao afirmar que o bem-estar social poderia ser conquistado através da atuação


egoísta dos indivíduos, Smith abriu oportunidade para que a Ciência Econômica se
desprendesse da necessidade de discutir abertamente a política, na medida em que a
atuação dos indivíduos no mercado garantiria por si mesma que o bem-estar social fosse
alcançado. Desse modo, segundo afirma Carvalho (1999), a economia pode se constituir
como um “sistema fechado”. Isso porque:

[...] Smith mostra na Riqueza das nações que o comportamento


do sistema econômico pode ser explicado por sua própria
lógica, dispensando-se a necessidade de se tomar em conta
elementos que lhe são estranhos, como a influência de forças
políticas, culturais, religiosas, etc. Assim, a hipótese que Smith
está propondo é que a economia se comporta por suas próprias
leis, exibindo uma real autonomia frente a outras dimensões da
vida social. (CARVALHO, 1999, p.10).

Daí que, sendo a economia um sistema fechado, o desenvolvimento da riqueza


nacional possua, para o paradigma clássico, um curso natural regulado pelo próprio
mercado. Caberia ao Estado, portanto, respeitar esse curso, já que com estímulos ou
restrições agiria efetivamente contra os objetivos desejados (Corazza, 2020).
Obviamente o pensamento de Smith era muito mais tridimensional do que a
pequena síntese aqui apresentada. De fato, apesar de ser tratado por muitos como
liberal, as posições de Smith quanto à atuação do Estado são muito menos restritas que
aquelas pregadas pela ideologia liberal contemporânea, isso porque a sociedade real
apresentada por Smith está longe da existência harmoniosa de sua “sociedade ideal”
(Corazza, 2020).
De fato, a análise de A Riqueza das Nações é assentada sobre três classes
principais: trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra. Nesse sentido, o sistema
de análise smithiano parece entrar em contradição: se a atuação egoísta dos indivíduos
procurando satisfazer suas necessidades gera o benefício público, como pode a
sociedade estar dividida em diferentes classes com distintos interesses?
Não obstante as inconsistências de sua obra, em linhas gerais Adam Smith
assume que é a atuação egoísta dos indivíduos no mercado que gera os melhores
resultados à riqueza da nação. Diante disso, para ele o Estado deveria cumprir
essencialmente duas funções: proteger a nação dos conflitos externos e proteger a
propriedade privada dos conflitos internos. A primeira necessidade surge do
reconhecimento de que diferentes nações possuem distintos interesses econômicos. A
segunda, ocultada pela ideologia liberal contemporânea, se assenta no reconhecimento
por Smith de que a sociedade é dividida em classes.
Cabe mencionar ainda duas exceções à liberdade de comércio defendida por
Adam Smith: em primeiro lugar o Estado deve proteger a indústria nacional sempre que
determinada indústria for importante para a defesa do país. Esse é o caso da marinha
mercante e a razão pela qual as leis de navegação são defendidas pelo autor (Smith,
2003). Em segundo lugar, para evitar a concorrência desleal de uma indústria
estrangeira, o Estado sempre deve taxar uma mercadoria importada quando seu similar
nacional também for taxado.
Em todo caso, parece claro a Smith que o Estado é um ente externo à economia.
Nesse sentido, em linhas gerais e apesar das exceções que mencionamos, a melhor
receita a ser seguida pelo Estado é deixar o mercado atuar livremente. Não há em sua
obra, não obstante, uma teoria sobre a atuação do Estado na economia. O que há,
contudo, são certos indícios. De fato, na medida em que Smith reconhece a existência
de classes e a necessidade de o Estado proteger a propriedade privada, é de se deduzir,
portanto, que cabe ao Estado proteger aquelas classes que detém a propriedade privada,
quais sejam, os capitalistas e os proprietários de terra. Ainda assim, essas são apenas
intuições possíveis de se desenvolver a partir da obra de Smith2.

O paradigma neoclássico
2
Essa intuição é levada adiante por Marx que encontra na Economia Política Clássica uma das fontes
teóricas de sua Crítica da Economia Política. Não ao acaso o mesmo Marx afirma que: “Não me cabe o
mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna ou a luta entre elas. Muito antes
de mim, alguns historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta de classes
e alguns economistas burgueses a anatomia econômica das classes.” (MARX, 2016, p 33).
Se a economia clássica, a partir do desenvolvimento do sistema smithiano,
permitiu consolidar a Economia como um campo particular da ciência, com suas
próprias leis, o paradigma neoclássico foi além. Isso porque, enquanto a economia
clássica ainda admitia a existência de classes com distintos interesses, no paradigma
neoclássico as classes serão abandonadas completamente. Ao eliminar os aspectos
conflitivos e a contradição de classes, a economia neoclássica acabou por salientar o
caráter harmonioso e a igualdade na teoria econômica. Nesse sentido, o paradigma
neoclássico consolida a economia como um campo teórico apartado da política.
De fato, ao conceber os indivíduos como consumidores maximizadores de
utilidade e as firmas como, maximizadoras de lucro, a produção abandona o centro das
discussões teóricas para dar lugar à esfera da circulação. E na esfera da circulação todos
os agentes são, a princípio, iguais. Com efeito, no regime de concorrência perfeita
(modelo básico da economia neoclássica) ao maximizar os lucros as firmas na prática
garantem a maximização da utilidade dos diferentes consumidores. Assim,
consumidores e firmas não têm, a princípio, interesses opostos. Daí que a análise de
classes seja abandonada e os modelos teóricos no máximo incorporarão diferentes
agentes econômicos remunerados segundo a produtividade marginal dos fatores que
possuem (capital, trabalho, terra).
Dessa forma, se segundo a economia neoclássica não há, em linhas gerais,
divergência entre os interesses individuais dos agentes e o bem-estar social, e se o bem-
estar coletivo é visto como um somatório do bem-estar de todos os agentes individuais,
o Estado só poderá ter um papel secundário. E de fato, como afirma Fonseca (2020),
para economia neoclássica o Estado não é posto nas análises, mas inegavelmente
suposto, e o mercado não só é o elemento mais importante da economia, como também
constitui toda a economia (Corazza, 2020).
O paradigma neoclássico é caracterizado também pela microfundamentação da
macroeconomia. Ou seja, uma vez que o bem-estar social é o somatório do bem-estar de
cada um dos indivíduos, os agregados macroeconômicos são simples somatórios de
variáveis microeconômicas. Esse aspecto é ainda mais reforçado pela concepção de
moeda neutra defendida por esses autores. Daí que uma das principais preocupações
econômicas dos Estados deva ser garantir a estabilidade da moeda, já que o sistema de
preços, ou seja, o mercado, é a instituição responsável por garantir a maximização do
bem-estar coletivo.
Assim, a teoria neoclássica “estreitou os horizontes da teoria econômica em
vários sentidos” (CARVALHO, 1999, p. 18), e o pouco espaço reservado à atuação do
Estado - para além da necessidade de garantir a estabilidade de preços - será destinado a
tratar do tema das falhas de mercado. É ali, e só ali, onde o mercado não pode garantir
os resultados mais eficientes, que o Estado deve atuar.
A abordagem das falhas de mercado, contudo, não significou abrir espaço para
um novo agente econômico - o Estado - mas sim criar certas regras para que o Estado
possa compensar o que o sistema de preços por si só não pode garantir. Ou seja, se trata
de buscar mecanismos, essencialmente impostos e subsídios, que compensem as
desutilidades geradas pelas falhas de mercado.
O paradigma neoclássico foi marcado ainda por importantes mudanças
metodológicas. Obras de caráter dissertativo-argumentativo perdem espaço diante de
outras que privilegiam a formalização matemática. A busca pela matematização como
sinônimo de exatidão científica se desenvolverá na Economia de um modo pouco
comparável ao ocorrido em qualquer outra das demais Ciências Sociais.
León Walras, por exemplo, ao conceber a possibilidade de uma economia
política pura, contribui decisivamente nesse movimento. De fato, como ressalta Corazza
(2020), Walras não concebia que toda economia poderia ser entendida sem a política ou
o Estado. Mas, ao separar a economia, por um lado em economia política pura, e por
outro em economia política aplicada e economia política social, Walras permitiu que ao
menos parte da ciência econômica pudesse ser concebida de maneira isolada da política
e, na prática, como uma ciência natural.
De fato, Walras afirma explicitamente conceber essa parcela da economia, ou
seja, a economia política pura, como sendo “uma ciência em tudo semelhante às
ciências físico-matemáticas.” (WALRAS apud CORAZZA, 2020, p. 96). Daí que,
sendo a Economia política pura “como a mecânica, como a hidráulica, uma ciência
físico-matemática, ela não deve temer que se empreguem o método e a linguagem
matemática” (WALRAS apud CORAZZA, 2020, p. 96).
Essa concepção da ciência econômica como uma ciência natural, assim como a
crença de que o rigor matemático é sinônimo de verdade científica, em grande medida
pairam até os dias de hoje na Ciência Econômica e são frequentemente objetos de
disputa. Não ao acaso, anos mais tardes, e já num contexto de disputa com o
keynesianismo hegemônico, Milton Friedman resgatará a ideia de uma economia
positiva muito semelhante à economia política pura de Walras. De fato, com sua
economia positiva Friedman intencionava provar, assim como Walras, a possibilidade
de existir certo conteúdo da Ciência Econômica tão exato que não dependesse de
considerações políticas para ser ciência.

A economia positiva independe, em tese, de qualquer posição


ética especial ou de juízos normativos. No dizer de Keynes
[John Neville Keynes, pai de John Maynard Keynes], ela trata
“do que é” e não “do que deveria ser”. A tarefa dessa economia
positiva é a de provar um sistema de generalizações passível de
ser utilizado para fazer previsões corretas acerca das
consequências de qualquer alteração das circunstâncias. O
desempenho de uma tal economia será ajuizado em termos da
precisão e do alcance das previsões e em termos do ajuste que
haja entre tais previsões e a experiência. Em suma, a economia
positiva é ou pode vir a ser uma ciência “objetiva”, exatamente
como qualquer das ciências físicas. (FRIEDMAN, 1981, p. 163-
164).

Conceber a Ciência Econômica como uma ciência natural, “objetiva”, exclui a


possibilidade de existência de contradições e, portanto, da política. Se a economia se
rege por leis tão imutáveis como as da física, então, assim como é impossível mudar a
gravidade, também é impossível alterar a objetividade das leis econômicas. Qual o
espaço de atuação para o Estado dentro dessa concepção? Praticamente nenhum.
Também do ponto de vista metodológico Friedman dá um importante passo na
consolidação do “não-debate” sobre o Estado. Isso porque para Friedman os
pressupostos teóricos de um modelo econômico não precisam ser realistas para garantir
sua cientificidade.

Hipóteses verdadeiramente importantes têrn "pressupostos" que


não passam de extravagantes e não-acuradas representações
descritivas da realidade. Via de regra, quanto mais significativa
uma teoria, tanto mais não-realistas (neste sentido) os seus
pressupostos. A razão é simples. Uma hipótese é importante
quando "explica" muito com base em pouco, ou seja, quando
está em condições de delimitar, por abstração, partindo da
massa de circunstâncias complexas e pormenorizadas que
cercam o fenômeno a explicar, uma classe de elementos comuns
e fundamentais, formulando previsões válidas cujo alicerce é,
justamente, apenas essa classe de elementos cruciais.
Consequentemente, para que seja importante, uma hipótese
deve ser descritivamente falsa em seus pressupostos.
(FRIEDMAN, 1981, p. 174)

Uma vez que os pressupostos teóricos de um modelo não precisam ser realísticos
para o sucesso do mesmo, é completamente plausível, dentro dessa concepção, conceber
modelos econômicos que excluem a existência do Estado de suas análises. O lugar
ocupado pelo Estado na teoria neoclássica será, portanto, muito pouco privilegiado.

O paradigma keynesiano

Frente aos paradigmas clássico e neoclássico, o pensamento keynesiano


representou um avanço a respeito da relação entre economia e Estado. Isso porque para
Keynes o pleno emprego (e com ele a possibilidade de que o mercado tenda por si
mesmo ao equilíbrio) é apenas um caso particular da economia. Keynes abre espaço,
desse modo, para a possibilidade de que a ação individual dos agentes não
necessariamente gere a maximização do bem-estar social.
Para Keynes o bem-estar social só poderia ser atingido na medida em que um
ente externo (o Estado) atuasse sobre a Economia. “O papel do Estado, neste contexto, é
precisamente, coordenar esta ação coletiva, tornando possível, deste modo, que os
indivíduos busquem objetivos superiores aos que almejariam na ausência dessa ação.”
(CARVALHO, 1999, p. 21). Essa atuação se daria, sobretudo, através de duas frentes:
1) por meio do aumento da liquidez de modo a impulsionar a demanda efetiva e 2) por
meio da socialização dos investimentos.
Keynes percebe que devido ao entesouramento e ao rentismo nem todo dinheiro
é efetivamente investido na economia real, dependendo o nível de investimento das
expectativas dos capitalistas. Tanto o aumento da liquidez quanto a socialização dos
investimentos visam contrarrestar esse “vazamento de demanda”, proporcionando que a
economia real mantenha-se em níveis próximos ao pleno emprego. Keynes abre espaço
assim para a atuação do Estado na economia real para além das áreas historicamente
ocupadas por ele nas doutrinas econômicas anteriores.
Keynes afirma que:

O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a


propensão a consumir, em partes através de um sistema de
tributação, em parte por meio da fixação da taxa de juros e, em
parte, talvez, recorrendo a outras medidas. Por outro lado,
parece improvável que a influência política bancária sobre a
taxa de juros seja suficiente por si mesma para determinar um
volume de investimento ótimo. Eu entendo [diz ele], portanto,
que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único
meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego,
embora isso não implique a necessidade de excluir ajustes e
fórmulas de toda a espécie que permitam ao Estado cooperar
com a iniciativa privada. (KEYNES, 1988, p. 248)

Apesar disso, Keynes deixa claro que a socialização dos investimentos não é
sinônimo de socialização da propriedade dos meios de produção. Comentário
importante para diferenciar sua proposta daquela já realizada pelos países socialistas de
então. Quanto a isso ele afirma:

[...] não se vê nenhuma razão evidente que justifique um


Socialismo do Estado abrangendo a maior parte da vida
econômica da nação. Não é a propriedade dos meios de
produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz
de determinar o montante agregado dos recursos destinados a
aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus
detentores, terá realizado o que lhe compete. (KEYNES, 1988,
p. 248)

Ao demonstrar que não necessariamente quando atuam segundo seus interesses


privados os agentes maximizam o bem-estar social, Keynes supera o pensamento de
equilíbrio entre os níveis micro e macroeconômico que tem em Smith um de seus
precursores. De fato, Keynes abre a possibilidade para uma teoria macroeconômica não
microfundamentada, como é hoje a Macroeconomia pós-keynesiana, por exemplo.
Apesar dos avanços, a debilidade da teoria keynesiana se encontra em dois
pontos fundamentais: um, mais essencial, diz respeito à explicação sobre a própria
atuação do Estado. É como se Keynes tivesse prescrito uma receita para a atuação do
Estado na economia, mas ao mesmo tempo não tivesse se preocupado em explicar
efetivamente como o Estado atua realmente na economia. Não ao acaso, no prefácio
alemão à Teoria Geral, Keynes chega a assumir que talvez um regime totalitário fosse o
mais propício para aplicar às suas ideias econômicas. Em suas palavras:

[...] a teoria da produção como um todo, que é o que o livro [A


teoria geral do emprego, do juro e da moeda] se propõe a expor,
seria muito mais facilmente adaptada às condições de um
Estado totalitário do que a teoria da produção e distribuição de
um volume dado em condições de livre concorrência e uma
ampla dose de laissez-faire. (KEYNES, 1988, p. 12)

Trazemos esse debate aqui não para desprestigiar o pensamento de Keynes ou


mesmo fazer uma crítica rasteira ao keynesianismo por conta do caráter antidemocrático
dessa afirmação, mas sim para ressaltar que ao defender o Estado totalitário como o
mais “ideal” para sua teoria macroeconômica, talvez Keynes estivesse efetivamente
confessando sua debilidade, na medida em que reconhecia que o Estado nas sociedades
democráticas seria o mais suscetível aos interesses de frações particulares dos
capitalistas.
E de fato, historicamente é isso mesmo que se verifica. A eutanásia do rentier,
desejada por Keynes, poderia, por exemplo, ser promovida por um tipo de Estado como
o dominante nas sociedades capitalistas atuais? Se ao longo das últimas décadas o que
mais vimos foi justamente o crescimento do poder das frações financeiras do capital e
seu crescente controle sobre os Estados nacionais e os rumos da política econômica, é
de se esperar que qualquer tipo de política anti-rentismo no mínimo gere importantes
conflitos políticos. Keynes assume, portanto, que “o Estado é capaz de melhorar os
resultados da economia. A questão que permanece é: buscará o Estado fazê-lo?”
(CARVALHO, 1999, p. 22).
Outra debilidade de Keynes está em admitir a possibilidade de que a teoria
neoclássica funcione como um caso específico da economia real. De fato, Keynes
afirma que “a teoria clássica é apenas aplicável ao caso do pleno emprego” (KEYNES,
1988, p. 29). Isso permitiu que a teoria keynesiana fosse apropriada pela economia
neoclássica, dando lugar à síntese neoclássica, que apesar de admitir a possibilidade de
desemprego involuntário no curto prazo, sustentava que no longo prazo a economia
voltaria ao pleno emprego.
Esse flanco presente na obra de Keynes, que na prática permitiu que o impacto
da “revolução keynesiana” fosse em parte minimizado pelo resgate dos pressupostos da
teoria neoclássica no longo prazo, não só minou o poder de crítica da teoria de Keynes,
como também acabou por diminuir o espaço reservado à atuação do Estado na
economia. Afinal, se no longo prazo a economia tende ao pleno emprego, qualquer
atuação do Estado sobre a demanda efetiva por demasiado tempo correrá o risco de
desencadear pressão inflacionária e, portanto, afetar o sistema de preços e o mercado.

Um não-debate: Estado na teoria econômica

O desenvolvimento da ciência - ainda mais de uma ciência com forte relação


com a materialidade, como é o caso da Ciência Econômica - tem em grande medida
suas bases no próprio desenvolvimento da sociedade. As contradições e dilemas de cada
tempo histórico frequentemente exigem da ciência uma resposta às necessidades
humanas. Com uma ciência tão estreitamente atrelada à reprodução material como a
Economia não foi diferente.
A reflexão sobre os temas que hoje atribuímos à Economia é bastante antiga,
mas ainda que importantes contribuições tenham sido feitas no passado pelos
precursores da Ciência Econômica, é apenas com o advento do sistema capitalista e o
surgimento da sociedade moderna que a Economia se consolida como um campo
específico da ciência.
De fato, frequentemente as contribuições precursoras sobre economia
encontravam nos limites históricos de seu tempo importantes dificuldades para o seu
desenvolvimento teórico. A respeito de Aristóteles, por exemplo, Marx afirma o
seguinte:

O fato de que nas formas dos valores das mercadorias todos os


trabalhos são expressos como trabalho humano igual e, desse
modo, como dotados do mesmo valor é algo que Aristóteles não
podia deduzir da própria forma de valor, posto que a sociedade
grega se baseava no trabalho escravo e, por conseguinte, tinha
como base natural a desigualdade entre os homens e suas forças
de trabalho. [...] O gênio de Aristóteles brilha precisamente em
sua descoberta de uma relação de igualdade na expressão de
valor das mercadorias. Foi apenas a limitação histórica da
sociedade em que ele vivia que o impediu de descobrir em que
“na verdade” consiste essa relação de igualdade. (MARX, 2014,
p. 136)

Assim, ainda que Aristóteles tenha tido concepções brilhantes para o seu tempo
a respeito da Economia, as próprias condições históricas o impediam de chegar a
conclusões que só poderiam ser tomadas na sociedade moderna, quando os mecanismos
econômicos estariam plenamente desenvolvidos.
Do ponto de vista da relação entre a história e o desenvolvimento da teoria
econômica, o fenômeno histórico que dá impulso ao paradigma clássico da Economia é
a dissolução do feudalismo e a consolidação das relações capitalistas na Europa. O
mercado, instituição chave das discussões da Teoria Econômica, cumpria um papel
marginal na sociedade feudal. Lá e naquele tempo, o espaço do mercado era, sobretudo,
o espaço das pequenas feiras, bem como do incipiente comércio internacional, que ainda
se centrava principalmente em produtos exóticos vindos do Oriente.
A dissolução das relações feudais e a expansão as relações mercantis serão as
bases para que o capitalismo se consolide, o que garantirá ao mercado a ocupação de um
importante espaço no domínio das relações sociais.
Nesse sentido, do ponto de vista histórico, poderíamos dizer que a Economia
Clássica, em especial a obra de Adam Smith, pode ser entendida num contexto de
afirmação dos mecanismos da economia de mercado e de luta contra o decadente Estado
feudal. E aqui cabe mencionar uma importante diferença entre a sociedade feudal e a
sociedade capitalista: a relação entre economia e política.
Segundo Marx (2013), a separação relativa entre política e economia é fruto da
sociedade burguesa, do mesmo processo que separou formalmente o poder político do
poder econômico. O Estado feudal não buscava representar a totalidade da sociedade
feudal, como o Estado moderno busca representar; isto porque nele a vida política e a
vida não-política são uma mesma coisa.

A abstração do Estado como tal pertence somente aos tempos


modernos porque a abstração da vida privada pertence somente
aos tempos modernos. A abstração do Estado político é um
produto moderno. [...] Na Idade Média, a vida do povo e a vida
política são idênticas. (MARX, 2013, p. 58)

As relações econômicas entre o senhor feudal e seus servos, por exemplo, eram
ao mesmo tempo - e explicitamente - relações econômicas e relações de poder. Na
sociedade burguesa, ao contrário, “[...] assim como os cristãos são iguais no céu e
desiguais na terra, também os membros singulares do povo são iguais no céu de seu
mundo político e desiguais na existência terrena da sociedade.” (MARX, 2013, p. 103).
Ou seja, na política e, portanto, diante do Estado, os indivíduos são iguais perante a lei,
ainda que economicamente ocupem posições de classe distintas e inclusive antagônicas.
Na sociedade moderna, portanto, as relações entre política e economia se
complexificam, e é no momento histórico em que esse processo mais avançou que
vimos surgir o paradigma da Economia Clássica. Desta forma, é natural, por assim
dizer, que a Economia Clássica buscasse afirmar a centralidade dos mecanismos de
mercado, visto que era necessário, do ponto de vista histórico, e diante da luta entre os
interesses da nascente burguesia em oposição à decadente aristocracia feudal, reafirmar
o poder econômico como um poder separado do poder político. Não causa espanto,
portanto, que nas principais obras da Economia Clássica o tema do Estado ocupe
relativamente pouco destaque.
O paradigma neoclássico da Economia surge em outro momento histórico. O
capitalismo havia se consolidado como sistema dominante e o Estado feudal já havia
ruído e dado lugar ao Estado moderno. As relações mercantis se tornaram as relações
sociais dominantes e o antigo conflito entre burguesia e aristocracia feudal já havia sido
superado. Em seu lugar, e diante do aumento das contradições sociais e das
desigualdades econômicas, surge um novo e importante conflito social, dessa vez entre
a burguesia e classe trabalhadora.
Nesse contexto, o paradigma neoclássico - como afirmamos anteriormente -
abandona a análise da sociedade a partir das classes e iguala os indivíduos como
consumidores. “Os indivíduos já não são identificados por sua posição no processo
produtivo ou por qualquer outra característica institucional. Somos todos consumidores,
identificados por nossa função-objetivo.” (CARVALHO, 1999, p. 18-19).
O individualismo metodológico adotado pelo paradigma neoclássico, bem como
a esterilização dos aspectos políticos da Economia empreendida por sua concepção
liberal da sociedade, foram úteis nesse contexto histórico de acentuação dos conflitos
sociais. Realçou-se assim, a importância do mercado em detrimento do Estado.

O processo de ocultamento do Estado é uma decorrência da


própria visão liberal da economia, uma visão individualista da
sociedade, uma visão harmoniosa dos interesses econômicos
entre os indivíduos que a compõem, orientada pelos
mecanismos autorreguladores do mercado, e garantidora do
progresso e do bem-estar geral. (CORAZZA, 2020, p. 289-290).

Não ao acaso, é justamente durante esse período que: “A Economia deixa de ser
economia política para ser apenas Economia.” (CORAZZA, 2020, p. 292).
O paradigma keynesiano surge também em um contexto histórico particular,
dessa vez de acentuação das crises econômicas e agravamento dos conflitos sociais
gerados pelo crescimento do desemprego. Nesse contexto social crítico era difícil
afirmar, como fazia o paradigma neoclássico, que não existia desemprego involuntário.
Keynes reconhecia ao contrário, que: “É certo que o mundo não tolerará por muito mais
tempo o desemprego que, à parte curtos intervalos de excitação, é uma consequência – e
na minha opinião uma consequência inevitável – do capitalismo individualista do nosso
tempo.” (KEYNES, 1988, p. 250).
É tendo em mente essa preocupação que Keynes busca alternativas à teoria
econômica dominante. A eutanásia do rentier será, como afirmamos anteriormente, uma
das alternativas encontrada por ele como forma de contrarrestar os males do que ele
chamou de “capitalismo individualista”. De fato: “O grande conflito de interesses
presente na teoria geral está entre o capital industrial e o capital financeiro. Keynes
assume abertamente a defesa do capital industrial e propõe-se a eliminar o especulador
financeiro.” (CORAZZA, 2020, p. 160).
Os limites do paradigma keynesiano se encontram justamente no fato de que,
apesar de reconhecer o papel regulador e estabilizador do Estado na economia, não
explicita os estreitos limites desta ação, bem como sua natureza. Em grande medida isso
se deve à concepção ingênua que Keynes possuía a respeito do Estado.
Segundo Fernando Cardim:

Keynes era, pessoalmente, extremamente otimista quanto à


“vontade” do Estado em perseguir estes objetivos. Sua visão do
Estado era platônica: a de um aparato que, de alguma forma,
representasse a sociedade de forma até melhor do que ela seria
capaz de representar diretamente. Sua utopia era a do “rei-
filósofo”. (CARVALHO, 1999, p. 22).

Em linhas gerais, todos os paradigmas econômicos apresentados nesse artigo,


apesar de suas diferenças, possuem em comum o fato de não colocarem o Estado dentro
do debate teórico. Isso se deve em grande parte à concepção existente de forma geral na
Teoria Econômica de que o Estado é um agente externo à economia.

Conceber Estado e economia como entidades separadas, que


mantém, apenas, uma relação de exterioridade, implica, em
primeiro lugar, conceber a economia como realidade fechada,
autônoma, constituída de relações dos homens com as coisas e
dotada de suas próprias leis de regulação e reprodução. Por
outro lado, implica também conceber o Estado como entidade
autônoma, dotado de leis, vontade e poder próprios ilimitados.
(CORAZZA, 2020, p. 293).

Desse modo, por acreditar ser o Estado um ente externo à economia, a Teoria
Econômica acaba por cair geralmente em dois tipos de equívocos: ou entende o
mercado como uma instituição que precisa muito pouco do Estado para garantir o bom
funcionamento de seu próprio sistema, ou, por outro lado, ainda que defenda a
necessidade do Estado para que o sistema não sofra diante de suas próprias
contradições, concebe-o como um ente livre e independente diante do mercado.

No entanto, economia e Estado fazem parte de uma realidade


social maior. Estado e economia e suas relações só podem ser
compreendidas no contexto desta realidade social de que são
partes constitutivas. A realidade econômica é uma realidade
essencialmente social, formada por relações sociais entre
homens, e não por relações entre coisas ou entre homens e
coisas. (CORAZZA, 2020, p. 293).

Somente uma Teoria Econômica que consiga superar o não-debate existente


sobre o Estado em seu próprio campo de estudo poderá avançar na compreensão dos
dilemas da realidade contemporânea, ainda mais diante de uma conjuntura tão complexa
e desafiadora como a das últimas décadas.

Considerações finais

No pequeno panorama que traçamos sobre o tema do Estado na Teoria


Econômica pudemos ver que diferentes momentos históricos frequentemente geram
novas perguntas que precisam ser respondidas pela ciência. Cabe ressaltar, contudo que
essa relação não é automática.
Fernando Cardim Carvalho afirma que:

Há, naturalmente, uma influência muito importante dos


problemas correntes vividos por uma sociedade na
determinação do que se define como um problema relevante
teoricamente em economia, mas essa relação está longe de ser
tão simples ou mecanicista quanto normalmente se quer supor.
(CARVALHO, 1999, p. 9).

De fato, a evolução das ideias obedece também a uma história que é própria à
história das ideias e está submetida a distintos aspectos sociais. Prova disso é a
discussão teórica realizada na periferia do sistema capitalista. Aqui, frequentemente o
colonialismo intelectual impede que se discutam aspectos relativos à particularidade
local.
No caso do Brasil e da América Latina de forma geral, os estudos sobre o
capitalismo periférico3 desenvolvidos em meados do século XX representaram um
grande avanço na superação da simples reprodução de teorias estrangeiras. Pela
primeira vez produzia-se na América Latina um pensamento econômico próprio,
estreitamente vinculado à superação dos dilemas impostos pelo subdesenvolvimento.
A particularidade histórica do capitalismo periférico impõe certos aspectos na
relação entre economia e Estado que não estão necessariamente dispostos no caso dos
países centrais. A troca desigual, a dependência, a presença importante de capital
estrangeiro na região, assim como as heranças históricas de 300 anos de colonialismo
são aspectos que incidem sobre o mercado e o Estado brasileiro e latino-americano que
não podem ser menosprezados.

3
O debate sobre o capitalismo periférico envolveu desde economistas desenvolvimentistas, como por
exemplo, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Aníbal Pinto, Raúl Prebisch, etc., até pensadores
marxistas, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra, etc.
De fato, mencionamos anteriormente que uma das importantes diferenças entre o
Estado feudal e o Estado moderno está em que o Estado moderno supõe a separação
relativa entre o poder político e o poder econômico. Tal separação pode ser realizada na
medida em que para esse Estado, todos os homens são iguais perante a lei. O Estado
moderno é baseado, portanto, na igualdade formal entre os indivíduos.
É nesse contexto histórico que Adam Smith escreveu sua Riqueza das Nações
em 1776, dando o pontapé inicial na consolidação da Economia como um campo
próprio da Ciência. No Brasil, não obstante, levaríamos ainda mais de 100 anos desde a
publicação da obra de Smith até que a escravidão fosse abolida, em 1888. De fato, o
Estado brasileiro, fundado em 1822, conviveu por mais de 60 anos com a escravidão,
mantendo, portanto, justamente a lógica da desigualdade.
Daí que se já é importante reivindicar uma Teoria Econômica do Estado em
termos gerais, para nós, latino-americanos, é necessário ainda mais saber que essa teoria
precisará necessariamente garantir espaço à discussão do caráter histórico particular de
nosso desenvolvimento econômico e social. Somente assim, poderemos avançar, por um
lado no desenvolvimento teórico, e por outro, na compreensão de nós mesmos.

Referências

CARVALHO, Fernando José Cardim de. Mercado, Estado e teoria econômica: uma
breve reflexão. Revista Econômica, Niterói, v. 1, n. 1, p. 9-25, 1999.

CORAZZA, Gentil. Estado e economia na história do pensamento econômico: uma


análise crítica do liberalismo econômico. Porto Alegre: Cirkula, 2020.

FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Prefácio. In: CORAZZA, Gentil. Estado e economia
na história do pensamento econômico: uma análise crítica do liberalismo econômico.
Porto Alegre: Cirkula, 2020, p. 11-14.

FRIEDMAN, Milton. A metodologia da economia positiva. Edições Multiplic, v. 1, n.


3, p. 163-200, fev., 1981.

KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo:
Nova cultural, 1988.
MARX, Karl. Cartas filosóficas (Antologia). São Paulo: Iskra/Centelha, 2016.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2014.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo,
2014.

SMITH, Adam. A riqueza das Nações. Vol. I. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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