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Resenha: SUNG, Jung Mo.

Idolatria do dinheiro e direitos humanos: uma


crítica teológica do novo mito do capitalismo. São Paulo: Paulus, 2018. 218p.

Rafael Galvão de Almeida


Doutor em economia, UFMG
Professor substituto, UFMG
Um fato pouco comentado na história das ideias econômicas é que tanto a teoria
da dependência quanto a teologia da libertação emergiram na mesma época, em
contextos semelhantes. Ambas vieram da necessidade de se incorporar as perspectivas
latino-americanas tanto ao pensamento econômico quanto ao teológico. Pois,
anteriormente – e até hoje em seus respectivos mainstreams – existe o domínio de ideias
importadas da academia anglo-saxã. Tais ideias não levam em conta a experiência do
Sul Global, acreditando-se que o mero transplante de ideias hegemônicas centrais é o
suficiente tanto para o objetivo econômico – desenvolvimento econômico – e teológico
– ortodoxia, no seu sentido mais literal, sobre a forma correta de se entender a Deus.

Embora a teoria da dependência prescinda de análise teológica, o mesmo não


pode ser dito sobre a teologia da libertação. Nas palavras de Hugo Assman, um dos
principais nomes da teologia da libertação, debates econômicos acabam sendo mais
importantes do que teológicos. E, a partir daí, uma ponte pode ser estabelecida entre as
duas abordagens. Por isso, argumento que o livro Idolatria do dinheiro e direitos
humanos, de Jung Mo Sung, é digno do tempo dos economistas interessados em
entender e criticar o capitalismo de uma forma melhor.

Sung é um dos mais conceituados cientistas da religião no Brasil. Não somente


isso, mas ele tem um domínio impressionante sobre autores estruturalistas como Celso
Furtado. No seu livro, há referencias não só a Furtado, mas também a outros
economistas como Marx, Galbraith, Stiglitz, Krugman, e críticas relevantes a Hayek e
Mises. Tais críticas são o fundamento do trabalho, que argumenta que a ética liberal, em
que o mercado se a fonte principal de justiça de uma sociedade cria uma sociedade cada
vez mais desigual, cada vez menos humana. Os direitos humanos não imputados a todos
os seres humanos, mas somente aqueles que conseguem triunfar no mercado. Através da
figura de Mamom, um artifício dos tempos bíblicos para antropomorfizar as riquezas, o
dinheiro se torna sacralizado, determinando o sentido absoluto da vida. Pensar diferente
se torna heresia.
Para tanto, Sung reenquadra a definição de teologia. O ângulo de teologia
sistemática – o estudo rigoroso de doutrinas teológicas – é deixado em segundo plano
em prol de uma teologia como ética social. Tomando emprestado a definição de
Horkheimer, essa teologia se torna o estudo do fenômeno do “mundo”, “a esperança de
que a injustiça que caracteriza do mundo não pode permanecer assim.” Ela se torna uma
reflexão crítica da história, para se distinguir o “fetiche” (emprestado do marxismo) do
“espírito”, que humaniza o ser humano, em contraste à desumanização do fetiche da
mercadoria.

No mundo neoliberal, o fetiche da mercadoria, longe de ser um problema, torna-


se um fundamento religioso – um mito, de fato. A ideia de que a palavra “mito” só está
associada à enganação é um equívoco. O mito é mais do que isso: é uma história que
guia as pessoas. Aquilo que Hayek e outros chamam de “ideologia”, Sung chama de
“mito”. Sung comunica ao leitor um dos conceitos mais importantes da economia
alternativa: a economia como ciência não é neutra. Como cientista da religião, ele vê a
presença de mitos como indicação desse problema fundamental que a economia
mainstream insiste em negar. Sung faz referência a Roberto Campos, que uma
descreveu a modernização, propalada pela economia mainstream, como uma “mística
cruel”.

Apoiando-se em Furtado e sua obra célebre sobre o mito do desenvolvimento


econômico, Sung observa que o mito que surgiu após o fim da Segunda Guerra, o mito
do progresso, exauriu-se já logo na década de 1970. A crise ambiental e o crescimento
da desigualdade de renda dão fim a ele. Os países subdesenvolvidos simplesmente não
podiam se tornar desenvolvidos ao meramente obedecer aos sermões dos países
subdesenvolvidos. Na visão de Sung, a teologia da libertação original não sucedeu em
romper com esse mito.

Em lugar deste, surge o mito do neoliberalismo. Ele vê a palestra do Nobel


memorial de Hayek como uma releitura do mito do pecado original presente na Bíblia,
em que a intervenção é vista como o pecado original contra um deus mercadológico que
é capaz de providenciar tudo usando a ordem espontânea do mercado. Um lembrete que
mitos não são sobre verdades, mas sobre fundamentos. E o fundamento do
neoliberalismo é o contraste entre a ignorância humana e a sabedoria decentralizada do
mercado.
Numa paródia cruel de 1 Coríntios 1:25, para os neoliberais, a ignorância do
mercado é mais sábia que a sabedoria da intervenção humana. Mises, como um dos seus
mais tenazes apóstolos, argumenta que a ideia de direitos econômicos é uma enganação.
Ela interfere na capacidade do mercado em providenciar bens e dádivas, portanto a ideia
de justiça social é perigosa. Sung observa que Mises estava reagindo contra resoluções
do Conselho Mundial de Igrejas sobre a necessidade de direitos econômicos.

Na realidade, mesmo que o mercado não mate diretamente como em ditaduras,


ele mata indiretamente. “Sou eu guardador do meu irmão?” Um sonoro NÃO é a
resposta do mercado, pois o próprio fracasso dos mortos em sobreviver é necessário
para validar o sucesso dos sobreviventes. Assim, os únicos que têm direito à vida
econômica são os consumidores frequentes. Lutar contra esse sistema é roubo.

Direitos humanos, assim, tornam-se tanto problemas econômicos e teológicos.


Existe uma relação intima entre estes e direitos sociais, que precisa cada vez mais
discutida com a crescente criminalização da pobreza. Somente uma concretização dos
direitos sociais humaniza o pobre. Aqui entra a ideia de dívida social, um conceito que
vem desde os tempos bíblicos, como na ideia de Ano do Jubileu – escravizados eram
libertos e dívidas canceladas.

O mundo globalizado neoliberal aceita direitos civis e políticos, mas rechaça


direitos econômicos, sociais e culturais. Estes últimos são vistos como manifestação da
inveja dos desfavorecidos. Tanto Hayek quanto Nietzsche argumentam que essa
“inveja” foi inserida na sociedade pelo cristianismo – teologias que se curvam ao
neoliberalismo, então, conformam-se com esse mundo, tornando-se instrumento de
privilegiados para manter seu poder. Ao invés disso, os direitos individuais são
sacralizados pelos economistas e teólogos neoliberais.

Cada vez mais se faz um esforço para tornar as pessoas cada vez mais de acordo
com protagonistas de um livro de Ayn Rand. O argumento da inveja nada mais é do que
um bode expiatório para os fracassos do neoliberalismo em cumprir suas promessas à
população e sacralizar uma elite que cada vez mais se beneficia de um mundo desigual.
A esperança se torna num produto de baixa qualidade. A indiferença se torna
globalizada, pois impossibilita uma parte da população se identificar com outra.

Por isso, é necessário o resgate da ideia de idolatria do dinheiro. Esse é uma das
principais contribuições da teologia da libertação à diálogo econômico. A visão
teológica tradicional da idolatria a vê como a perda da visão de Deus ao se curvar
perante uma imagem imperfeita e incompleta. Sung a entende como incompleta, pois só
permite criticar o niilismo financeiro do capitalismo, mas não toca na exclusão causada
por ele.

Sung, então, dá uma segunda definição de idolatria: a negação da vida. Ao tornar


Deus um ídolo, um processo análogo ocorre na sociedade. Ocorre uma negação do
humano em prol do mercado. Ao invés da Lei ser criada para o ser humano, o ser
humano é criado para a Lei. Por isso ele deve se submeter a qualquer decisão definida
pela elite que controla o mercado, mesmo que seja às custas de sua dignidade. Se o
sistema exigir sua morte, que assim seja.

No contexto latino-americano, tais ideias estão presentes já logo nos discursos


de Bartolomé de las Casas: os espanhóis sacrificavam os índios para o ídolo de ouro,
tornando-se desumanos tanto quanto os ídolos. Sung também cita a ideia do historiador
Enrique Dussel, de que em 1492 houve, na realidade, o “encobrimento da América”
como a origem do mito da modernidade: o progresso com base na exploração e da
negação de sua brutalidade. No fim, a assim chamada era secular não é racional,
secularizada ou ateísta, com o altar neoliberal exigindo sacrifícios.

Assim, Sung resgata uma das ideias fundamentais da teologia da libertação: a


opção pelos pobres. Ela não é somente uma opção literal, mas uma opção pela
dignidade humana frente a um mercado que é incapaz de discernir a vida e a morte
quanto o assunto é eficiência. Mas ela escancara a luta de classes. Citando Francis
Fukuyama, existe o reconhecimento de que classes sociais têm objetivos diferentes. Por
isso, a classe média pode apoiar ditaduras desde que não interfiram com suas ambições.
Assim, Hayek pode dizer que prefere uma ditadura capitalista a uma democracia não
capitalista. A incapacidade de se reconhecer o “outro” gera cinismo, que infecta tanto o
pensamento econômico quanto o teológico.

Enfim, Sung considera que a crítica à idolatria é o fundamento da resistência.


Ela permite a síntese de economia e teologia na forma de uma crítica holística, um novo
mito contra o neoliberalismo. Isso tem o objetivo de se criar uma globalização mais
justa e inclusiva e uma economia mais digna.

O livro tem o potencial de ser uma boa introdução ao pensamento econômico da


teologia da libertação. Embora algumas partes indicam que tenha sido escrito
primeiramente para teólogos e cientistas da religião, creio que economistas terão algum
interesse na crítica econômica vão se beneficiar grandemente de sua leitura. A economia
precisa discutir ética mais seriamente. Novamente, teologia da libertação e teoria da
dependência são como se fossem irmãs que seguiram carreiras diferentes na América
Latina.

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